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domingo, 14 de outubro de 2012

MILHAS À FRENTE: Num intervalo de vinte anos, Miles Davis revirou pelo avesso a história do jazz três vezes seguidas (por Rafael Teixeira)



Em 20 de janeiro de 1949, Harry Truman assumiu o cargo de presidente e discursou no Congresso, em Washington, na primeira posse transmitida pela televisão. Um dia depois, em Nova York, Miles Davis entrou nos estúdios de outro capitólio, a Capitol Records, gravadora cujo emblema era a cúpula do prédio do Congresso. Aos 22 anos, gravou músicas que marcaram a concepção do cool jazz. Dez anos depois, em uma igreja convertida em estúdio da Columbia, ele revirou novamente o panorama da música popular e deu forma ao jazz modal. E, mais uma vez, na década seguinte, também nos estúdios da Columbia, aproximou o jazz do rock para dar origem ao fusion.

No espaço de uma vida, Miles Davis comandou três viradas estéticas, que lhe valeram o epíteto de "Picasso do jazz". Hoje, dezessete anos depois de sua morte - de pneumonia e derrame -, ainda se discute o seu papel como inventor de gêneros jazzísticos, e o quanto ele se valeu de caminhos previamente abertos. Mas, se Davis não inventou propriamente o cool, o jazz modal e o fusion, ele cristalizou os gêneros.

"O status de Miles Davis no mundo do jazz significa que, quando deixava seu nome em um estilo, ele o validava tanto aos olhos do público quando dos jazzistas", disse o crítico inglês Stuart Nicholson. No livro A Vida Como Performance, que traz um perfil do trompetista, o crítico Kenneth Tynan escreveu: "O movimento moderno no jazz tem muitas mansões, mas somente quatro arquitetos: Charlie Parker, Thelonious Monk, Dizzy Gillespie e Davis, o parceiro mais jovem."

Miles Dewey Davis III nasceu em 26 de maio de 1926, em Alton, cidadezinha no estado de Illinois, às margens do rio Mississipi. Filho de uma família abastada, sua infância foi uma perfeita antítese da maior parte dos músicos de jazz de então. Louis Armstrong, o exemplo mais eloquente, nasceu paupérrimo em uma das ruas mais miseráveis de Nova Orleans, filho de uma mãe que se tornou prostituta e de um pai que abandonou a família. Já o pai de Davis era um dentista cuja família tinha uma fazenda de 120 hectares no Arkansas, onde o garoto aprendeu a andar a cavalo. Sua mãe, Cleota Henry Davis, era uma figura respeitada na vizinhança, além de hábil pianista de blues.

Em plena década de 1920, quando boa parte dos Estados Unidos vivia sob leis segregacionistas que impediam negros e brancos de frequentarem o mesmo banheiro público, a família Davis tinha uma empregada e uma cozinheira. Quando o casal e seus três filhos - Dorothy, Miles e Vernon - se mudaram para East St. Louis, em 1927, ele foi morar em um bairro de brancos, nos fundos do consultório de odontologia do pai. Apesar do bem-estar material, Miles Davis passou por maus bocados. Seus pais brigavam muito e sua mãe lhe aplicava uma surra de vez em quando - o que talvez explique, em parte, o motivo pelo qual Davis viria a se tornar arrogante, grosseiro e, eventualmente, violento. Seu pai tinha um gênio péssimo, que o filho sempre suspeitou ter herdado.

Aos 13 anos, Davis ganhou um trompete de seu pai, e começou a ter aulas com Elwood Buchanan, um músico local. Foi por meio dele que Davis começou a desenvolver aquela que seria para sempre a sua marca no trompete: a ausência de vibrato - a vibração da nota final de uma frase musical. Convidado por Buchanan para ver seu aluno tocar, o trompetista Clark Terry (que viria a ser uma das influências de Davis) se lembraria, anos mais tarde, de seus heterodoxos métodos de aprendizado: "Buch tinha uma régua enorme... e toda vez que Miles tremia uma nota, ele o acertava com ela nas juntas dos dedos e dizia: 'Pare de tremer essa nota. Você já vai tremer bastante quando ficar velho.'"

Além disso, foi Buchanan quem incentivou Davis a estudar o estilo mais relaxado de trompetistas como Bobby Hackett e Harold Shorty Baker - um jeito de tocar que guardava algo da primeira das três revoluções que seriam empreendidas pelo trompetista.

Em 1949, quando Davis deflagrou o cool jazz, a Capitol era uma gravadora jovem. Foi a primeira a ter sede em Los Angeles, mas mantinha um estúdio em Nova York, onde estavam boa parte dos músicos de jazz e grandes gravadoras como a RCA Victor, a Columbia e a Decca. Naquele ano, Bing Crosby era um sucesso nacional e Frank Sinatra já aparecera em onze filmes. Em Manhattan, a rua 52 era cheia de clubes, onde tocavam o saxofonista Coleman Hawkins e os pianistas Art Tatum, Thelonious Monk e Bud Powell, e a cantora Sarah Vaughan.

No que diz respeito ao jazz, porém, era o bebop que estava na moda, graças às novidades concebidas pelo saxofonista Charlie Parker e o trompetista Dizzy Gillespie, os pais do gênero. Com os dois, o bebop emancipou o jazz das melodias cantáveis e dançantes que fizeram sua fama até os anos 30. Era um estilo que dava ênfase à técnica, habilidade e inspiração do solista, com harmonias complexas e andamentos rápidos, exigindo muito do músico.

Davis, que tocava profissionalmente desde 1944, assistiu de dentro a popularização do jazz com o bepop, com Parker e Gillespie lotando boates na rua 52. Àquela época, Davis já cheirava cocaína regularmente. Em suas memórias, ele lembra como Parker podia servir de "exemplo" para outros músicos: "Corria a idéia de que o uso da cocaína podia fazer a gente tocar tão bem quanto Bird [o apelido de Parker]."

Convidado por Bird, em 1947, para ser trompetista de seu conjunto, Davis percebeu que não conseguiria - ou que não queria - replicar a torrente sonora dos pais do bebop. Ele era um jovem que tinha Parker como ídolo, mas desenvolveu uma personalidade musical própria: menos elétrica, com notas mais espaçadas, que funcionou às mil maravilhas. Assim o definiu Kenneth Tynan: "Ele é como uma garrafa térmica, que sugere a presença do calor sem irradiá-lo."

Naquele modo de soprar, antecipava-se o cool jazz - segundo alguns jazzófilos, menos como uma busca artística e mais como resolução de um dilema prático. Segundo o crítico americano Gary Giddins, Miles Davis "não tinha o virtuosismo de Dizzy Gillespie", e por isso "criou um jeito de tocar que era mais baseado em timbre e melodia. Tocava pouquíssimas notas, mas fazia com que fossem as notas certas". Stuart Nicholson discordou frontalmente: "A maioria das pessoas que conhece alguma coisa sobre jazz não diria que Davis não tinha o virtuosismo de um Parker ou um Gillespie." Como prova, ele cita gravações, de janeiro de 1949, que originaram o disco The Metronome All Stars, no qual Davis e o trompetista Fats Navarro tocaram com Dizzy Gillespie - e como Dizzy Gillespie.

No fim dos anos 40, Davis era um dos muitos músicos que frequentavam o apartamento do arranjador Gil Evans, em um porão atrás de uma lavanderia chinesa na rua 55, em Manhattan. "Havia todos os canos do prédio, uma pia, uma cama, um piano, uma chapa elétrica de cozinha e nenhum aquecimento", lembrou o sax-barítono Gerry Mulligan em um artigo para a edição de 1971 do álbum Birth of the Cool. Usando o local para ensaios, praticamente o mesmo noneto com que Davis inaugurou o cool jazz se apresentaria por duas semanas no Royal Roost Club, em setembro de 1948.

Segundo Davis conta em suas memórias, "muita gente estranhou a música que a gente tocava", mas o pianista Count Basie teria gostado: "Ele me disse que era 'lento e estranho, mas era bom, bom mesmo'." Notado pelo produtor Pete Rugolo, Davis conseguiu um contrato com a Capitol para gravar doze músicas, que seriam lançadas em discos de 78 rotações (na época, não havia LP).

Foram duas sessões, além da de 21 de janeiro: uma em 22 de abril e outra em 9 de março do ano seguinte, 1950. Seis décadas depois, a música de Birth of the Cool não perdeu o vigor. "Toquei essas faixas com os mesmos arranjos, mas com uma big band, em Amsterdã, em janeiro agora, e o que posso dizer é que elas soaram como novas", lembrou o saxofonista Lee Konitz, aos 81 anos, um dos dois únicos integrantes vivos do grupo.

O caminho do disco foi tortuoso - a Capitol só viria a lançá-lo com esse nome, na forma de LP, em 1957. "Ninguém podia imaginar que estava inaugurando alguma coisa. Esse 'nascimento do cool' só surgiu anos depois. Parecia um bom nome", disse Konitz.

Se hoje Birth of the Cool é item obrigatório em qualquer discoteca jazzística, é porque suas faixas condensaram inovações que vinham sendo observadas isoladamente - como o uso de tuba e trompa no jazz, a execução mais cerebral em contraposição ao jorro intuitivo do bebop, a elegância contida dos arranjos, não exatamente frios como a palavra "cool" pode dar a entender, mas nunca atingindo altas temperaturas. "Bird e Dizzy eram sensacionais, fantásticos, contestadores - mas não eram suaves. Birth of the Cool era diferente, porque dava pra ouvir tudo, e também para cantarolar", escreveu Davis.

O trompetista não inventou o estilo como se nada tivesse acontecido antes. Claude Thornhill já usava tuba e trompa, e a sonoridade de sua orquestra teria grande influência sobre Birth of the Cool. "Havia um fascínio pelas colorações tonais e pelo estilo daquela banda, e a idéia era usar o menor número de instrumentos capaz de reproduzir aquele som", disse Nicholson. Além disso, músicos como o sax-tenor Lester Young já tocavam de um modo que se aproximava do cool.

E Davis não estava sozinho. "Em Birth of the Cool, Miles é importante como agente catalisador, mas Gil Evans, co-mo arranjador-compositor, Lee Konitz, como solista, e Gerry Mulligan, como solista e arranjador-compositor, têm papéis mais significativos nesse marco do jazz do que o trompetista", avaliou o crítico Luiz Orlando Carneiro.

Da mesma maneira, o jazz modal também teve sua existência pré-Kind of Blue, a segunda grande revolução de Davis, registrada dez anos depois. Nessa época, o trompetista já havia conhecido o céu - numa viagem a Paris - e o inferno - o vício em heroína no início dos anos 50. De certa forma, os dois estados se relacionavam intimamente. Em 1949, Davis viajara para a capital francesa com o conjunto do pianista Tadd Dameron. Lá, circulou com Jean-Paul Sartre, Pablo Picasso e a cantora Juliette Greco - com quem teve um romance (ele já tinha dois filhos com sua primeira namorada, Irene Cawthon). "Eu nunca me sentira assim antes", lembrou. "Era a liberdade de estar na França e ser tratado como um ser humano, uma pessoa importante", lembrou. Quando voltou aos Estados Unidos, caiu em depressão e viciou-se em heroína.

O vício lhe custaria caro. Acometido por terríveis síndromes de abstinência, passou a fazer de tudo para conseguir a droga, chegando a trabalhar como cafetão. Não demorou a que os trabalhos como músico começassem a rarear, e se visse transformado de um talento em ascensão a um drogado em fim de carreira. Em 1950, o relacionamento com Irene terminou de vez, e ela retornou a East St. Louis, onde nasceu o terceiro filho do casal. E, como se não bastassem os problemas pessoais e financeiros, a heroína começou a minar aquilo que o trompetista tinha de mais precioso: o talento. "Tinha a embocadura em má forma", lembrou. O sofrimento só terminaria, em 1953, quando Davis, cansado, trancou-se na fazenda do pai e lá ficou por uma semana deitado, suando, com dores horríveis. Até que, um dia, simplesmente acabou. E Davis saiu disposto a recuperar o tempo perdido.

O caminho recomeçou bem, com uma série de discos gravados para o selo Prestige, e, na sequência, com alguns ótimos álbuns para a Columbia. Num deles, Milestones, 1958, o jazz modal apareceu pela primeira vez na obra do trompetista, na música-título - apontando a direção que levaria a Kind of Blue. Àquela época, com o lançamento de Birth of the Cool em LP, o nome de Davis voltava a ser soprado nos meios jazzísticos.

Para além do jazz, a cena musical também ia se transformando: Elvis Presley era uma realidade com quase dez álbuns gravados e Ray Charles vendia seus discos de rhythm and blues como água. Enquanto isso, Davis queria se afastar ainda mais do som de Bird e Dizzy, cuja influência ainda se fazia sentir entre os jazzistas. Só que, agora, ele o faria por outros meios. "Queria reduzir as notas, porque sempre achei que a maioria dos músicos toca demais e por tempo demais", escreveu Davis.

O pináculo da escalada rumo à economia e à simplicidade se daria em 1959, quando da gravação de Kind of Blue, considerado o melhor disco (não necessariamente de jazz) de todos os tempos. Ali, uma vez mais, Davis atuaria como um catalisador, trilhando um caminho iluminado pelo pianista, compositor e arranjador George Russell - outro frequentador do apartamento de Gil Evans na rua 55. Russell inspirou vários músicos a tocar não com base na progressão de acordes, mas em cima de escalas modais. Para efeito de sonoridade, nos solos sobre músicas modais há menos ênfase nas escolhas harmônicas e mais no desenvolvimento da melodia.

Um dos elos mais fortes entre a música modal e Kind of Blue atendia pelo nome de Bill Evans. O pianista tocara com Russell e fora recomendado por ele para o conjunto de Miles Davis. "Foi Evans que ajudou Davis a caminhar para valer na direção da 'modalidade'", afirma Carneiro. E foi assim que, em 2 de março e 22 de abril de 1959, com Evans e outros cinco músicos, entre eles o grande John Coltrane, Davis gravou a obra-prima que viria a se tornar o disco mais vendido de jazz de todos os tempos - 8 milhões de cópias até julho de 2008, segundo a Recording Industry Association of America. "Não tínhamos idéia de que estávamos fazendo algo especial", disse o baterista Jimmy Cobb, aos 80 anos, o único remanescente daquelas sessões. "Sabíamos que tínhamos tocado bem, como de hábito. Afinal, a banda tinha Davis, Bill e todos aqueles caras... Só fui me dar conta de que o disco era histórico quarenta anos depois."

Kind of Blue teve um parto tranquilo, mas atípico. O disco não era exatamente de composições, como se entende normalmente. Tentando extrair o máximo de espontaneidade dos músicos, Davis fez esboços do que todos deveriam tocar, e distribuiu-os em papeizinhos, com explicações vagas, indicações de caminhos pelos quais cada um deveria seguir. Como relata o jornalista Ashley Kahn em seu livro Kind of Blue, às vezes o trompetista avisava em voz alta: "Toque em [compasso] três por quatro." E, outras vezes, sussurrava ao ouvido do solista: "Você é o próximo."

Nenhum dos instrumentistas envolvidos jamais havia tocado qualquer parte daquelas músicas antes de entrar no estúdio. "Tudo que um baterista precisa é de um direcionamento, mesmo", disse Cobb. "Toque mais suave, toque mais forte, acelere o andamento, faça assim, faça assado. Para mim, não mudou muita coisa. Éramos todos profissionais, gente que sabia o que estava fazendo."

De fato, tudo saiu direto na primeira tomada. A faceta artística de Miles Davis parecia estar nos eixos, ainda que sua vida pessoal estivesse sujeita a turbulências. Em 1960, depois de dois anos de namoro, ele se casou com a dançarina Frances Taylor, em uma relação marcada por ciúmes doentios do marido, que não raro descambavam em violência. E Davis ainda usava cocaína com frequência, porque a considerava uma droga "menos condicionante" - não o afetava tanto quando não estava "cheirado". Mas não havia do que reclamar: com suas composições docemente melancólicas (à exceção de Freddie Freeloader), Kind of Blue tornou-se o disco mais vendido de Davis até então, além de um êxito entre os críticos.

A recepção não foi unânime uma década mais tarde, quando Davis, já considerado um gênio do jazz, reuniu um grupo de catorze músicos para gravar Bitches Brew. Naquele fim dos anos 60, a contracultura levava as artes a um plano mais libertário, e o rock'n'roll deixara de ser um gênero recém-nascido para se tornar um fenômeno estabelecido e de massa, de uma predominância que chegou a derrubar a popularidade de vários jazzistas. Davis, por seu lado, se aproximava cada vez mais de outros gêneros musicais. Em 1968, ele ouvia James Brown, Jimi Hendrix e o grupo Sly & the Family Stone. Hendrix e Sly, inclusive, foram apresentados ao trompetista por sua terceira mulher, a cantora Betty Mabry, com quem se casara, em 1968, para se divorciar após um ano, depois de descobrir que ela tinha um caso com Hendrix.

Nesse tempo, a fusão de jazz e rock engatinhava nas mãos de instrumentistas como o saxofonista Charles Lloyd, o vibrafonista Gary Burton e o baterista Tony Williams. Para Davis, os problemas começaram com In a Silent Way, disco gravado em fevereiro de 1969, seis meses antes de Bitches Brew. Nele, apareciam suas primeiras experiências rumo ao fusion, especialmente com a música-título, composta pelo pianista Joe Zawinul.

Em agosto, Davis voltaria aos estúdios da Columbia, onde o ambiente era tenso. A gravadora pretendia alcançar um mercado jovem de potencial evidente, como demonstraram as 400 mil pessoas que apareceram no Festival de Woodstock, em 1969, para ver Joan Baez, Santana e Joe Cocker - além de Hendrix e Sly & the Family Stone, que Davis tanto ouvia. "Eu tinha visto o caminho do futuro com minha música, e ia segui-lo como sempre fizera", escreveu Davis posteriormente. "Não para a Columbia e suas vendas de discos, nem para tentar conquistar alguns jovens compradores de discos brancos. Mas por mim mesmo."

Bitches Brew foi o resultado de três sessões de gravação. Como dez anos antes, Davis levou para o estúdio alguns esboços que nenhum dos músicos havia visto, e regeu a gravação ao sabor dos acontecimentos. O baixista Harvey Brooks relembra: "Sabe, você apenas vai tocando até achar alguma coisa, e isso se torna parte da música."

Foi um assombro. A reunião de duas baterias e dois (às vezes, três) pianos - elétricos, uma heresia - na mesma música, a inclusão de sonoridades nunca dantes navegadas no jazz e o uso sem precedentes de tecnologias de estúdio - loops, ecos, edições - transformaram o disco em um marco. Só não se sabia direito do quê.

"Toda a música era diferente, e isso causava problemas a muitos críticos. Os críticos querem sempre classificar todo mundo", escreveu Davis. Até hoje, discute-se se o disco é ou não jazz. Segundo Luiz Orlando Carneiro: "Pelo menos para mim, o álbum é um monumento à música pop planetária."

Em um célebre arranca-rabo, o trompetista Wynton Marsalis - então com menos de 30 anos, mas notório defensor das raízes do jazz - criticou o colega na imprensa, dizendo que ele era "um velho que queria parecer jovem". Ao que Davis respondeu: "E Wynton é um jovem querendo parecer velho." O disco foi um sucesso comercial, e durante anos vendeu mais do que Kind of Blue.

Bitches Brew acabou inaugurando um estilo - como o fizeram Birth of the Cool e Kind of Blue antes dele. Miles Davis foi o jazzista que mais revoluções deflagrou na música americana do século XX. Foi ele quem forçou os limites do jazz até o ponto em que o próprio gênero parecia ter se tornado outra coisa. Sob esse ponto de vista, foi maior do que gênios de alto quilate, como Louis Armstrong, Duke Ellington ou Charlie Parker.

"Parker viveu muito pouco, morreu aos 34 anos, mas Armstrong e Ellington, de certa forma, se acomodaram artisticamente, independentemente da qualidade do que produziram do meio para o fim de suas vidas", diz o crítico Antônio Carlos Miguel. "Miles continuou procurando novos caminhos e desafios."

É um exercício interessante - e infrutífero - especular o que Miles Davis poderia ter feito, se tivesse tido saúde para viver além dos 65 anos com que morreu, com um quarto filho, divorciado da quinta mulher, e finalmente limpo da cocaína e do álcool. Teria enveredado pela música eletrônica, hip-hop, ou rap? No último parágrafo de sua autobiografia, ele dá uma pista: "Me sinto forte criativamente hoje, e ficando mais forte." E arremata: "Sinto que o melhor ainda está por vir."

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quinta-feira, 4 de outubro de 2012

CODINOME, FRANCIS NEWTON – por Eric Hobsbawm*




Devo meus anos como jornalista de jazz à peça Look Back in Anger, de John Osborne, que  obrigou o establishment cultural britânico de meados dos anos 1950 a registrar a existên­cia daquela forma musical tão evidentemente querida dos novos e talentosos Angry Young Men. Quando, ao precisar de dinheiro, eu vi que Kingsley Amis escrevia no The Observer sobre um assunto do qual ele obviamente entendia não mais, e talvez menos, do que eu, liguei para um amigo que trabalhava no New Statesman. Ele agendou um encontro com o editor, Kingsley Martin, então no apogeu de sua glória, que disse “Por que não?”, explicou que concebera seu leitor padrão como um funcionário público de 45 anos, e me encaminhou para a comandante da segunda metade (cultural) da revista, a formidável Janet Adam Smith. Seus interesses iam de montanhismo a poesia, mas não incluíam jazz. Assinando como Francis Newton (tomando emprestado o nome de um trom­petista de jazz comunista que tocou na versão de Billie Holiday para “Strange Fruit”), eu escrevi para o New Statesman mais ou menos uma coluna por mês, por aproximadamente dez anos.

Eram bons tempos para escrever sobre jazz. Não ape­nas a coluna me dava algum alívio das convulsões pessoais e políticas do ano de 1956, aquele ano de crise comunista,1 como era a primeira vez desde 1935 que os músicos de jazz americanos podiam ser ouvidos ao vivo na Inglaterra. Até aquele momento, o típico fã de jazz britânico, bem infor­mado pela Melody Maker e por minúsculos jornais de debate, sobrevivera essencialmente numa dieta à base de discos de 78 rpm, apaixonadamente analisados por jovens do andar de cima dos “clubes de ritmo” dos anos 1930. Um surpreendente número desses discos fora produzido nos EUA para o mercado britânico, mas os aficionados barra-pesada, especialmente o pequeno, porém pioneiro, grupo de entusiastas de blues, também haviam criado suas próprias redes de importação de discos americanos.

Eu ficara nas franjas dessa comunidade de experts desde o início dos anos 1930, graças a meu primo Denis Preston, que mais tarde se tornaria uma figura inovadora na área da produção musical; mas, até o exemplo de Kingsley Amis ter me dado coragem, eu sofria de uma admiração paralisante que me impedia de entrar em seus debates. Jovens e absolutamente provincianos, suburbanos e musicalmente analfabetos, eles eram mais críticos apaixonados e propagandistas do que músicos propriamente ditos.

Na época em que Francis Newton havia nascido, esses aficionados tinham criado um ambiente jovem, pop e bastante original para o jazz tradicional, que reproduzia versões do jazz de New Orleans e do country blues, até então gêneros muito mais conhecidos na Inglaterra do que nos EUA. Em uma de minhas primeiras colunas, registrei a súbita lucratividade do jazz tradicional “e mesmo do último refúgio contra a bancarrota, o canto do blues”, como demonstravam as lucrativas, porém nada notáveis, imita­ções de “Reckless Blues”, de Bessie Smith, e a versão marginal e líder nas paradas de Huddie Ledbetter para “Rock Island Line”, cantada por um sur­preso e inocente guitarrista britânico, Lonnie Donegan. “O que significava isso?”, era a minha pergunta. Agora sabemos que significava o início do rock britânico, os Beatles e os Rolling Stones, prestes a transformar a indústria pop americana no início dos anos 1960. Esse fenômeno nunca arrebatou a minha geração, ou a da maioria dos músicos de jazz, e muito menos os músicos de estúdios altamente profissionalizados que precisaram transformar produtos iletrados e amadorísticos em música.

Mas o que Francis Newton significava para mim? A atração que eu sentia não se explicava tanto pela oportunidade de resenhar as performances e os discos de jazz que agora chegavam em enxurrada, ou mesmo pela tentativa de encaixar essa música extraordinária na sociedade do século 20. Era a chance de entender os músicos e seu mundo: em resumo, “a cena do jazz”. Eu morava no fim do West End, e dar aulas em Birkbeck me deixava livre a maior parte do dia, então era possível combinar minha profissão com os hábitos noturnos e nada madrugadores da “cena”. Meu quartel-general era o Downbeat Club, na Old Compton Street, a alguns minutos a pé da minha casa, uma espelunca que, como tantos outros músicos modernos e seus saté­lites de Londres, eu usava como base para os momentos fora do expediente.

Embora alguns músicos eventualmente tocassem naquele lugar, que às vezes também contratava um pianista, o Downbeat era mais um clube que uma casa de shows, ao contrário do novo empreendimento de Ronnie Scott, então começando numa Lisle Street ainda não orientalizada, aonde se ia não para beber ou fofocar, mas para ouvir. Havia também algumas espelun­cas no Soho onde se podia fazer tudo isso ao mesmo tempo.

Lembro mais vivamente dos clubes que dos shows, nos quais músicos visitantes ganha­vam o seu pão de cada dia, embora apenas nos EUA eu iria conhecer a glória de uma “cena” jazz baseada primordialmente nos clubes. Devo ter sido um dos últimos a ouvir a grande banda de Ellington, visivelmente à vontade em seu habitat natural, fazendo um típico show de clube, “derretendo”, como eu descrevi, “uma dura plateia de advogados, médicos, jornalistas e lobistas quarentões de São Francisco a ponto de eles se parecerem com noivas de antigamente”. Suponho que isso e o encontro com o trágico pianista Bud Powell em seu quarto de hotel em Paris, catatônico exceto quando diante do teclado, são as mais vívidas lembranças dos meus anos jazzísticos.

Logo se tornou óbvio que havia uma lacuna substancial, tanto de gosto quanto de contexto, entre aqueles de nós – a maioria dos que escreviam sobre jazz, mas também músicos bem-sucedidos – que se entusiasmaram com a música nos anos 1930 e 1940 e o pequeno corpo de músicos ingleses sérios e profissionais que tocavam e formavam o único público existente para o jazz “moderno” antes de Miles Davis fazer sentir seu impacto. Escrever sobre jazz nos anos 1950 significava, basicamente, tentar entender o bebop ou ao menos aprender a lidar com ele (mesmo Philip Larkin, um conservador amante do jazz, acabou sentindo que precisava dar um passo nessa direção), mas eu não sei até que ponto tive sucesso, a não ser pela admiração por Thelonius Monk e a paixão instantânea pelo talento supremo e inteligente de Dizzy Gillespie, o mais impressionante trompetista do mundo, a quem não faltava nenhum dom, a não ser a disposição de revelar a própria alma, como Charlie Parker havia feito. Minha admiração por Miles Davis baseava-se em seus discos, e não em nenhuma performance a que eu tivesse assistido.

Eu desfrutava da companhia dos músicos, e eles me aceitaram como uma excentricidade na “cena” (nenhum milieu é mais tolerante que o dos músicos de jazz), às vezes como uma espécie de dicionário ambulante, capaz de dar respostas a suas perguntas (quando não musicais). Lembro de uma feita pela namorada de um saxofonista tenor, que queria saber se era certo acreditar em Deus. Mas alguém não músico seria capaz de entender a essência de músicos criativos, por mais que convivesse com eles? Afinal, como um deles me disse (creio que foi o saxofonista tenor Sonny Stitt), “as palavras não são meu instrumento”. Para um não músico branco se aproximar dos artistas negros era ainda mais difícil. Até o grande êxodo dos músicos americanos nos anos 1960, quando a “cena” do jazz entrou em colapso nos Estados Unidos, poucos deles viviam na Europa.

É verdade que não parecia se fazer muita diferença entre brancos e negros no Downbeat Club, e a jovem Cleo Laine ficava perfeitamente confortável descrevendo-se como uma “crioula cockney”, mas os músicos afro-americanos visitantes tinham consciência da questão racial mesmo na tolerante Europa, assim como, quase com certeza, tinham também os que vinham das colônias britânicas no Caribe, como o talentoso e aventureiro sax alto Joe Harriott, que era um componente importante da “cena” moderna. Ainda assim, nas excursões, que eram seu meio de vida permanente, os americanos costumavam ouvir perguntas de admiradores brancos sobre o tema, e músicos experientes, que dependiam inteiramente do circuito branco, notadamente os cantores de blues, tinham uma narrativa genuinamente informativa pronta.

Na condição de único acadêmico a escrever sobre jazz, e sob auspícios cultu­rais de classe alta, Francis Newton naturalmente acabou servindo de guia turís­tico para os intelectuais estrangeiros no fervilhante Soho. Ele também se viu atraído para a boemia cultural avant-garde britânica, que fazia interseção com a “cena” jazz não bop. George Melly e “Trog” (Wally Fawkes, o clarinetista da Escola Humphrey Lyttelton) já estavam produzindo a Flook, sua tira de quadrinhos satírica e socialmente perspicaz, publicada, quem diria, no Daily Mail.

Ainda guardo o cartão de sócio do Muriel Colony Club, na Dean Street, que alguém – mais provavelmente Colin MacInnes – me impingiu, porém aquele agrupamento alcoólico não era a minha, nem o jazz era a deles, embora uma vez eles tenham tido uma música de fundo decente, tocada por um agradável pianista caribenho. Encomendaram-me quase imediatamente um livro. Falando clara­mente, encarnar Francis Newton reforçou meus contatos com aqueles de quem os músicos dependiam, os agentes, programadores e todo o resto do mundo empresarial pop, no qual o jazz era uma pequena parte. Suas opiniões privadas sobre “o talento” divergiam amplamente daquelas emitidas em público.

Vi-me então membro de uma rede global de amantes intelectuais do jazz. Uma vez que, fora da Inglaterra, esses ainda julgavam partilhar uma fé pró­xima ao underground, se é que não mais perseguida, eles – e especialmente os escritores – formavam uma rede internacional surpreendentemente efetiva de confiança e ajuda mútuas. Nos Estados Unidos, isso não foi tão longe quanto no Japão, onde, como eu iria descobrir naqueles bares minúsculos, os acadêmicos mais formais – e quem pode ser mais formal que um reitor japo­nês? – se abriam com uma inconcebível franqueza, simplesmente porque um convidado que eles nunca tinham visto antes era amante de jazz. Logo percebi que a solidariedade do jazz, que caminhava a par da promoção de Kafka no primeiro estágio da Primavera de Praga, era igualmente intensa na Tchecos­lováquia. Quando as trilhas sonoras de Miles Davis e do Modern Jazz Quartet para os filmes da nouvelle vague apareceram, nos anos 1950, esperava-se que os intelectuais franceses se engajassem no jazz moderno, mas, como de hábito, eles não deram muita atenção para os críticos de jazz não franceses.

No território americano, a solidariedade do jazz consistia mais em aju­das concretas. Os críticos locais de jazz faziam tudo o que podiam para ajudar um desconhecido chegado de Londres, desde reser­var um quarto de hotel no Greenwich Village até encaminhá-lo a um crítico depois do outro para que o guiassem na “cena” de alguma cidade menos conhecida. Ajudou ainda o fato de muitos divulgadores de jazz e blues terem origem na esquerda dos anos 1930 e 1940, com destaque para o maior de todos os descobridores de talentos do jazz, John Hammond Jr., com seu corte de cabelo militar, cujas opiniões iriam ter grande influência sobre mim.

Foi apenas em minha primeira viagem aos Estados Unidos, onde todas as escolas e todos os artistas sobreviventes podiam ser ouvidos ao mesmo tempo, que eu percebi a sorte que Francis Newton havia tido: essa era uma época de ouro para o jazz, em grande parte porque os ultraboppers dos anos 1940 haviam se reunido e renovado o mainstream musical. E foi só em minha segunda viagem, em 1963, que percebi o quão rápido o tsunami do rock’n’roll havia levado tudo embora. O Birdland havia fechado as portas. Durante quase todos os 20 anos seguintes, o jazz mal existia para os jovens, a não ser no meio universitário, como parte de uma cultura elevada e de adultos – algo como a música clássica, só que com menor número de adeptos. O público que restava interessado nas performances ao vivo sofria a oposição emergente de uma nova “forma livre” de jazz, musical­mente radical. O paradoxo é que, com isso, o movimento mais radical e racial­mente militante do jazz foi politicamente isolado de suas bases constitutivas afro-americanas.

Nessa época, minha vida estava mudando. Minha esposa, Marlene, alega que a pedi em casamento num show de Bob Dylan. O casamento e os filhos pequenos, inevitavelmente, puseram fim aos hábitos noturnos desregrados de Francis Newton, embora não às resenhas de shows e discos. Mas já não era tão divertido, a não ser na impactante e perturbadora primeira visita à Inglaterra de Ray Charles, que ouvi pela primeira vez entre os poucos bran­cos em um canto de um grande baile de rock’n’roll em Oakland, na Califórnia, em meio a um grupinho de brancos, quando ele ainda era conhecido apenas do público negro. Eles não dançaram muito enquanto Ray Charles cantava. Agora não só uma grande estrela pop, mas também um santo inovador, o quarto na linha sucessória formada por Lester Young, Billie Holiday e Charlie Parker, e certamente um monstre sacré, ele “trabalhava” a platéia no Finsbury Park Astoria, com sua “santificada” voz de blues, num estilo que combinava efeitos do showbiz com emoção e muita alma.

Ainda fico arrepiado ao lembrar de mim ouvindo aquele homem corcunda, magro, infeliz e cego, enquanto ele arrebatava a platéia ao dizer “eu já fui cego, mas agora consigo ver”. Aquela noite, além do meu espetacular fracasso em reconhecer o potencial dos Beatles (nunca tive tempo para os Stones), permanece como a última lembrança dos anos de Francis Newton cobrindo a “cena” para os leitores do New Statesman.

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Este ensaio de Eric Hobsbawm (1917 – 2012) foi publicado originalmente na revista Serrote nº 6 e se encontra disponível no seguinte endereço eletrônico: http://www.revistaserrote.com.br/2012/10/codinome-francis-newton-por-eric-hobsbawm/
1. Referência à revolução húngara de 1956 contra o domínio soviético. [N. do T.]

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ERIC HOBSBAWM (1917) é autor de clássicos da historiografia contemporânea, como a tetralogia A era das revoluções, A era do capital, A era dos impérios e A era dos extremos. Sua obra sempre andou de par com a militância no Partido Comunista inglês, o que tornou Hobsbawm um dos principais pensadores críticos do marxismo, assinando inclusive a organização da monumental História do marxismo. A paixão pela música também inspirou seu trabalho acadêmico, notadamente com A história social do jazz e Pessoas extraordinárias: resistência, rebelião e jazz.

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