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terça-feira, 30 de agosto de 2011

A FÚRIA CATALÃ




Alguns escrevem Vicente. Mas para ser fiel à originalíssima grafia catalã, seu nome correto é Vicenç. Vicenç Montoliu y Massana, mais conhecido no mundo do jazz como Tete Montoliu. Este fabuloso pianista nasceu em Barcelona no dia 28 de março de 1933, em uma família extremamente musical. Seu pai, também chamado Vicenç, foi membro da Banda Municipal de Barcelona e da Orquestra del Gran Teatro del Liceo, nas quais tocava clarinete, saxofone e oboé.

A mãe, Ângela Massana, era uma grande fã do jazz norte-americano e desde muito cedo incutiu no pequeno Tete o amor pela música de Fats Waller, Art Tatum, Earl Hines e Duke Ellington. Embora tivesse nascido cego, o garoto desde a mais tenra idade demonstrou possuir uma assombrosa vocação musical. Aos cinco anos começou os estudos de piano clássico, com Enric Mas, emu ma instituição voltada para crianças cegas. A seguir, foi estudar com a renomada professora Petri Palou.

Segundo Tetê, as perspectivas fora da música eram bastante sombrias, por causa de sua deficiência visual. Bem-humorado, certa vez comentou: “ou eu me tornava músico ou ia acabar vendendo bilhetes de loteria”. A loteria, no caso, é a chamada “La Quiñela”, que na Espanha é vendida por deficientes físicos. Decidido a escapar desse destino, aos treze anos entrou para o “Conservatório Superior de Música de Barcelona”, onde estudou piano, órgão, além de harmonia, solfejo e composição.

O curso foi um grande desafio, pois para tocar Tete só podia usar, basicamente, a mão esquerda, uma vez que a direita era usada para ler as partituras em Braille. De qualquer modo, ele soube superar os obstáculos e graduou-se com louvor em 1953. Mesmo antes de se graduar, Montoliu costumava participar de gigs no Hot Club de Barcelona e o saxofonista Don Byas, que na época morava na capital da Catalunha, foi o primeiro grande músico a perceber que ali havia um talento genuíno e tomou-o sob sua proteção.

Os dois tocaram juntos diversas vezes e Byas se tornou uma espécie de conselheiro do pianista mal saído da infância. No final da década de 40, Tete já comandava o seu próprio grupo, apresentando-se com freqüência nos clubes de Barcelona. Em 1954 ele entrou pela primeira vez em um estúdio, tendo feito algumas gravações para a Philips, na Holanda, durante uma série de apresentações que fazia naquele país. No ano seguinte, o lendário Lionel Hampton fez alguns concertos na cidade e durante sua permanência ali, pôde assistir a um concerto de Tete e seu grupo.

O entusiasmo de Hampton foi tamanho que ele chegou a declarar que o jovem catalão era “o melhor pianista de jazz da Europa”. Tete foi convidado a se juntar à orquestra do vibrafonista e com ela excursionou pela Europa, além de ter participado de algumas gravações com a big band. O pianista ia firmando seu nome no cenário europeu, tendo feito alguns shows na França durante aquele período.

Grande admirador de Fats Waller, Tete não ficou imune aos pianistas modernos. John Lewis, Horace Silver e Oscar Peterson foram alguns dos  nomes que exerceram sobre ele maior influência e ajudaram a modelar o seu estilo. Em 1958, ele tocou no Festival de Cannes, liderando um trio que incluía o baixista Doug Watkins e o baterista Art Taylor. Outros grandes músicos com quem tocou naquela época foram Dizzy Gillespie, Donald Byrd e Kenny Clarke.

No ano seguinte, foi uma das atrações da primeira edição do Festival de Jazz de San Remo, na Itália. Em 1960 foi contratado pela “Blue Note” européia e realizou concertos em Berlim e Frankfurt, juntamente com Albert Mangelsdorff, Chet Baker, Sahib Shihab, Herb Geller e Benny Bailey. Ainda naquele ano, fez o concerto de inauguração do clube “Whiskey Jazz”, em Madri, juntamente com o seu trio, formado pelo baixista Pedro Iturralde e pelo baterista Peer Wyboris.

A década de 60 flagra o pianista trabalhando e viajando incessantemente. Apresentações em Frankfurt, Copenhague e no “Molde Jazz Festival”, na Noruega e concertos ao lado de figuras como Roland Kirk, Dexter Gordon, Herb Geller, Ben Webster, Lucky Thompson, Stephane Grapelli, Benny Golson, Kenny Dorham, Niels-Henning Orsted Pedersen (então com 17 anos), Anita O’Day e Archie Shepp eram uma constante. Em 1961 e 1962, Tete Montoliu foi eleito “Melhor Pianista Europeu de Jazz”.

Em 1965, o pianista montou um novo trio, juntamente com o baixista Eric Peter e o baterista Billy Brooks. O grupo, atração fixa do clube Jamboree, em Barcelona, realizou diversas gravações para o selo “Concentric” e participou de uma série de festivais pela Europa, como o de Antibes, o de Jean-les-Pins e o de Bolonha. O Tete Montoliu Trio recebeu no Jamboree vários músicos norte-americanos de passagem pela Espanha, como Art Farmer, Dexter Gordon, Booker Erwin, Donald Bird, Lee Konitz e Lucky Thompson, entre outros.

Em 1966 Tete se estabeleceu na Holanda, trabalhando sobretudo em orquestras de rádio e de televisão. No ano seguinte, fez uma excursão de três meses pelos Estados Unidos, à frente de um trio que contava com os ótimos Richard Davis, no contrabaixo, e Elvin Jones, na bateria. A década de 70 se inicia no mesmo ritmo frenético. Temporadas na Iugoslávia, ao lado do fabuloso trompetista Dusko Gojkovic, apresentação no festival de Pori, na Finlândia (como curiosidade, nesse show o então jovem Chick Corea pilotava a bateria) e concertos na Alemanha, França, Inglaterra e Bélgica.

Chegando ao ano de 1972, encontramos o pianista gravando com Ben Webster. 1974 foi um ano bastante marcante. Primeiro, porque Tete acompanhou o saxofonista Johnny Griffin em uma extensa temporada pela Europa. Logo em seguida, Montoliu excursionou com Joe Henderson, consolidando seu nome como referência primordial do jazz europeu. Um dos seus trabalhos mais interessantes naquele período foi no álbum duplo “In The Tradition” (SteepleChase, 1974), sob a liderança do vanguardista Anthony Braxton.

Em 1975, mais uma turnê com outra lenda do jazz, Dexter Gordon, e lançamento do álbum “Tate a Tete at La Fontaine, Copenhagen” (Storyville), no qual divide a liderança com o grande Buddy Tate. O pianista esteve presente na edição daquele ano do Festival de Jazz de Konsberg, na Noruega, à frente de um trio formado por Niels-Henning Orsted Pedersen e Albert “Tootie” Heath.

No ano de 1977, tocou com George Coleman no “Ronnie Scott’s Club”, em  Londres, e no “Paull’s Club”, em Bruxelas. Em 1979, voltaria ao célebre clube inglês, desta feita dividindo os créditos com o fabuloso guitarrista Joe Pass. Naquele ano, Tete realizou o sonho de se apresentar no “Palau de la Musica Catalana”, verdadeiro templo da música erudita localizado em Barcelona. Ainda em 1979, participou do North Sea Festival, na Holanda e do Festival de Monterrey. A década viu nascer uma extraordinária seqüência de álbuns, fruto da parceria do pianista com o selo dinamarquês SteepleChase.

Em 1980, Montoliu percorreu a Europa em turnê com o saxofonista Jackie McLean, seguida por excursões ao Canadá e aos Estados Unidos, onde gravou, nas dependências da Berkley School of Music”, o álbum “Boston Concert”. Seus parceiros mais habituais naquele início de década eram os baixistas Herbie Lewis e John Heard e os bateristas Billy Higgins e Albert “Tootie” Heath. Naquele mesmo ano, a morte de seu grande amigo abalou-o profundamente. Em homenagem ao amigo, Tete realizou uma série de apresentações em Barcelona.

Velhos camaradas, como Johnny Griffin, Joe Henderson e George Coleman, lendas vivas do jazz, como Sonny Stitt, Slide Hampton, Jerome Richardson, Eddie "Lockjaw" Davis, Max Roach, Milt Jackson, Hank Jones e Bobby Hutcherson e jovens talentos como Ralph Moore, Randy Brecker, Roy Hargrove e Jesse Davis tiveram a honra de dividir os palcos e estúdios com Montoliu. Em 1982, ele foi o grande homenageado do Festival de Jazz de San Sebastian.

Tete fez uma apresentação consagradora  no “Carnegie Hall”,  em 1985, mesmo ano em que recebeu homenagens especiais nos festivais de Andorra e Nice. No ano seguinte, participou do Festival de Jazz de Madrid juntamente com o saxofonista Harold Land e foi um dos destaques do Festival de Jazz de La Habana, em Cuba. 1987 marca o reencontro do Catalão com Dizzy Gillespie, com quem se apresenta em duo, na França. No mesmo ano, temporadas em Buenos Aires e no Canadá. No ano seguinte, outro momento especial: apresenta a sua suíte “Monkiana” no Teatro Real de Madri.

Em 1989, Tete se apresenta com a Orquestra Ecos del Bebop e sai em excursão com o grande Paquito D’Rivera. Aquele ano marca o encontro do pianista com o fabuloso Mundell Lowe, para as gravações dos álbuns “Sweet’n Lovely – Volumes I & II”. Ambos foram gravados em sessão única, no dia 30 de setembro, em Barcelona e foram lançados pelo selo catalão Fresh Sound.

O final da década é marcado pela série de álbuns chamada “The Music I Like To Play”, gravados apenas ao piano, sem acompanhamento, para o selo italiano Soul Note. Ali é possível perceber, em sua plenitude, aquilo que Sylvio Lago classifica de “estilo dotado de diversas propriedades, com cores harmônicas brilhantes, toucher percussivo e de intensa expressão individual, que revela uma personalidade artística extremamente poderosa, repleta de idéias brilhantes e intensas”.

Tete deu as boas vindas aos anos 90 em grande estilo e fazendo aquilo que melhor sabia fazer: lançou o elogiado “The Man From Barcelona”, pela Timeless, secundado pelos ótimos George Mraz e Lewis Nash. À frente do seu novo trio, composto pelo baixista Hein Van de Gein e pelo baterista Idris Muhammad, e tendo como convidado especial o vibrafonista Bobby Hutcherson, Montoliu se apresenta na abertura dos Jogos Paraolímpicos de Barcelona, em 1992.

No ano anterior, Tete havia feito a sua segunda gravação para uma gravadora norte-americana, o sensacional “Spanish Treasure”, para a Concord (o primeiro disco para um selo dos Estados Unidos foi “Lunch In LA”, de 1979, para a Contemporary). O “Tesouro Espanhol” foi gravado no dia 27 de junho de 1991, em Tóquio, no Japão, e o pianista está amparado por uma sessão rítmica soberba: Rufus Reid no contrabaixo e Akira Tana na bateria.

Uma trepidante versão de “Israel”, de John Carisi, abre o disco, mostrando toda a intimidade do pianista com o idioma bop. Descendente direto de Bud Powell, Tete possui uma articulação de idéias das mais fluentes e em sua execução há espaço, inclusive, para formas mais próximas ao jazz de vanguarda. A afinidade com o baixista e o baterista é imediata e remete aos trabalhos do catalão para a SteepleChase, onde geralmente se via acompanhado pelos excelsos Niels-Henning Orsted Pedersen e Albert “Tootie” Heath.

Versátil, Tete consegue impor-se também pelo lirismo de seu toque, característica que o aproxima de nomes como Bill Evens e Tommy Flanagan. Essa faceta pode ser muito bem observada em baladas como “Don't Blame Me”, de Dorothy Fields e Jimmy McHugh, “What's New?”, de Robert Burke e Johnny Haggart, ou em “Like Someone in Love”, de Johnny Burke e Jimmy Van Heusen. Em todas elas se pode perceber o cuidado harmônico extremo, a riqueza de timbres, o dedilhado repleto de sutilezas e o esmero formal quanto aos mínimos detalhes da execução. Mais que um pianista, Montoliu é um verdadeiro ourives de sonoridades.

O clássico “Tricrotism” ganha uma versão endiabrada, com amplo destaque para Reid, que se mostra um herdeiro dos mais dignos do legado de Oscar Pettiford, autor do tema. A agilidade e a leveza de Montoliu e o som rico e arredondado de Reid, criam uma química perfeita, exemplo muito bem acabado de que no jazz as sonoridades mais distintas podem conviver lado a lado. A percussão de Tana, notável pela delicadeza e pelo apurado senso de tempo, é fundamental para a atmosfera de cumplicidade na diversidade.

“Mysterioso”, de Thelonious Monk, merece um arranjo evocativo, que ao um só tempo subverte a ortodoxia do blues e expõe as entranhas do estilo em toda a sua inteireza. Não haveria o jazz se não fosse o blues, parece nos advertir o Sumo Sacerdote do Bebop. Montoliu transita pelas regiões fronteiriças dos dois estilos com enorme competência e familiaridade, como se tivesse nascido e se criado às margens do Mississipi. O excepcional trabalho de Tana, que cria um clima sombrio e quase opressivo, também merece ser destacado.

O trio se reencontra com as flamejantes harmonias do bebop em “Our Delight”, petardo de autoria de Tadd Dameron. O discreto Reid faz as bases para o inflamado diálogo entre Tete e Tana, dois verdadeiros gigantes em seus respectivos instrumentos. O baterista responde com vigor e dinamismo às investidas do pianista, nada menos que explosivo em suas intervenções. A velocidade estonteante e a potência demolidora sugerem um improvável duelo entre um furioso Art Tatum e um indomável Elvin Jones, sob as bênçãos plácidas de Ray Brown.

A interpretação de “The Way You Look Tonight”, gema de autoria de Dorothy Fields e Jerome Kern, realça os aspectos dançáveis da canção, com uma levada irresistível e uma discretíssima inflexão de valsa. Tete é um solista brilhante, que consegue sempre surpreender na escolha dos acordes, dos timbres, do arcabouço melódico. Quando o ouvinte imagina que o pianista vai acelerar o andamento, ele diminui o ritmo, quando se pensa que ele vai enveredar pelos registros mais graves, o catalão se aventura nos agudos – aqui o adjetivo monumental talvez não seja suficiente para qualificar o brilho de sua execução.

“All of You”, a imortal composição de Cole Porter, ganha um arranjo que se poderia classificar de brejeiro. Se Ernesto Nazareth tivesse enveredado pela seara do jazz, é provável que o resultado se aproximasse da versão engendrada pelo trio. Tudo aqui é harmonioso e encantador – da percussão infalível de Tana à profusão de notas que, por vezes, jorram do piano. O casamento entre opulência e minimalismo é dos mais felizes e  é bom que se diga que Tete não abre mão de um discurso melódico coerente – todas as notas que usa são absolutamente certeiras e indispensáveis à articulação do tema.

A versão de “All Blues”, emblemática composição de Miles Davis, ganha contornos de valsa e um toque lúdico, sobretudo em função do uso recorrente dos registros mais agudos do piano. Em outra atuação marcante, Tana desconstrói a batida típica do blues, incorporando a ela discretos elementos de R&B e do jazz de vanguarda. Reid tem uma pegada sinuosa e ao mesmo tempo robusta, adequando-se às modulações do pianista e ao dinamismo do baterista de maneira absolutamente precisa. Um álbum irrepreensível, que se alinha, com todos os méritos, entre os melhores trabalhos de um pianista genial.

Ainda em 1992, Montoliu se apresenta no Festival Internacional del Castell de Perlada, como solista convidado da Orquestra Sinfônica de Cadaqués, onde interpreta a suíte “Porgy and Bess”, dos irmãos  Gershwin. Durante as comemorações dos seus 60 anos, em 1993, recebe uma comovente homenagem por parte dos organizadores do Festival Internacional de Jazz de Barcelona. O concerto, realizado no “Palau de La Musica Catalana”, contou com as participações de Johnny Griffin e Roy Hargrove.

Em 1994, percorreu o Oriente Médio em uma turnê que passou pelo Egito, Jordânia e Síria. No final do ano, o pianista fez uma memorável apresentação no Festival de Jazz de Terrasa, na sua adorada Catalunha, em duo com o saxofonista Joe Henderson. No ano seguinte, mais uma maratona de apresentações em festivais de jazz pela Europa, como os de Gasteiz, Marciac, Genebra e Junas (França, com Horacio Fumero e Peer Wiboris). Durante o Festival de Sevilha, Tete e seu trio convidam o veterano saxofonista francês Guy Laffite.

Montoliu chegou à sua centésima gravação como líder em 1996 e comemorou o feito com o álbum “Free Boleros”, onde, ao lado da cantora Mayte Martin, do percussionista Nan Mercader e do baixista Horacio Fumero, interpreta uma série de clássicos do bolero, com um indisfarçável acento jazzístico. Grande fã da música brasileira, Tete também lança um álbum inteiro dedicado às canções do maestro Tom Jobim, “Interprets Antonio Carlos Jobim” (1996), para a gravadora Melopea Records.

O ano também é marcado pelas comemorações pelo aniversário dos seus 50 anos como músico de jazz e o pianista é homenageado pelaSociedad General de Autores com um concerto no Teatro Monumental de Madri, onde estiveram presentes Alvin Queen, Gary Bartz e Tom Harrell, entre outros. A nota triste é que naquele ano tão fecundo o pianista recebeu o diagnóstico de um câncer.

No ano seguinte, embora bastante debilitado, ele ainda encontrou forças para participar do Festival de Jazz de Terrasa e para se apresentar, em março, no Palau de La Música Catalana, em um recital de piano solo. O concerto, realizado no dia 21 de março, foi gravado e posteriormente lançado em cd pela gravadora DiscMedi. Tete Montoliu morreria apenas três dias depois, no dia 24 de março de 1997, em Barcelona.

O pianista recebeu várias condecorações e homenagens durante sua longa carreira, com destaque para a “Creu de Sant Jordi de La Generalitat de Catalunya” e a “Medalla de Oro del Ayuntamiento de Barcelona”. Torcedor do Barcelona ganhou do clube de coração a insígnia de “Oro Y Brillantes del Football Club de Barcelona”.

O incansável Pedro Cardoso, nosso querido Apóstolo do Jazz, ensina que Tete “foi, sem dúvida, bem influenciado pela arte de Bud Powell e de Al Haig e, de alguma forma por Lennie Tristano, ainda que tivesse desenvolvido ao longo de sua trajetória um estilo e uma “linguagem” muito pessoais, com base em uma pulsação percussiva, com articulação nítida e forte inclinação por toques golpeados com rapidez; em alguns solos nota-se certa descontinuidade, acentuadas “escapadas” da estrutura em desenvolvimento, assim como farto ludismo na exploração de figuras bluesy”.

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sexta-feira, 26 de agosto de 2011

O LEGADO DA CONFISSÃO



O sono desapareceu

E a madrugada transcorre sob as bênçãos da bondade leviana

Sem beleza ou verdade,

É ela apenas uma insensata forma de expiação

O inócuo anteparo da morte

A lantejoula que adorna o traje severo dos anos

Visto o meu manto salpicado de hera

E em meio a golfadas e oferendas

Escuto rumores sobre brevidade tragicômica da existência

O sono postergado é como a fome interrompida 

É como o brilho opaco de uma manhã sem sol

Recolho-me à angústia que revira o estômago,

E caminho a esmo, murmurando o cântico vazio

A chuva intermitente pune a minha trajetória perplexa

Avoco para mim a dissidência íntima

O desacordo frente a mim mesmo,

O fogo fátuo perece no âmago da penumbra furiosa

Fazendo gritar em mim a inocência impura

Resistir é esquecer

E me resguardo com a empáfia do burocrata.

Que venham a brutalidade e a desordem!

Que venham até o cais os barcos incendiados!

É preciso que se dê nome aos dias e às noites

Hoje é necessário que a tranqüilidade seja humilhada

É preciso dar um basta à quietude

Os reféns do desejo, os hóspedes da vontade

É preciso vê-los arder,

Impõe-se agora silenciar a canção da glória

Escarrar na face da sutileza

Engravidar de ódio os modos gentis

Somente quando os escalpos tremularem sob os céus de abril

E o sangue preencher os sulcos do caminho

A nossa desconfiança será justificada

Esmagar os cacos da sabedoria,

Vergastar a polidez e a virtude,

Compreender o inominável...

Não, não haveremos de ser caridosos

Nem responderemos ao chamado da hora mínima

O beijo de Caim, a sedução do pária

Manterão abrandado o coração exangue

Embebedemo-nos na lógica absurda da nossa animalidade

Celebremos a hipocrisia outonal, os disfarces enrugados

E quando as entranhas quedarem expostas

E o alumbramento for o reverso da penitência

Quebraremos o aquário onde moram os homens

Ouçamos, então, o barulho nefando dos rabiscos na areia

Atentemos para a dicção dos mentecaptos

Ouçamos seu discurso amorfo,

Sua loquacidade vívida sobre o nada...

O meu tempo é vão e corre amordaçado

Suplico pela desatenção emprestada

E retribuo com a incontinência da verdade

Ah! caminho inexato,

Percorro-te qual um espelho de sombras

Sou fóssil desperto pela textura dos faróis

Vivente desolado e titubeante

Com as mãos estendidas para o trapézio

Cuja rede ausente é o quanto há por demais em mim


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Salvatore “Sal” Nistico, o robusto saxofonista tenor norte-americano, nasceu na cidade de Syracuse, estado de Nova Iorque, no dia 02 de abril de 1938. Tinha apenas 09 anos de idade quando iniciou seu aprendizado e sua prática no sax alto. Em 1954, quando contava com 16 anos, mudou para o sax tenor, instrumento com o qual iniciou a carreira profissional, tocando em diversos grupos de “rhythm & blues” da Costa Leste.

Nistico ganhou notoriedade no mundo do jazz graças ao patrocínio de dois dos maiores expoentes do sax tenor: Sonny Rollins e Gene Ammons, admiradores confessos do seu estilo e, curiosamente, duas de suas influências mais perceptíveis. Outros saxofonistas também foram bastante importantes em sua formação, especialmente os tenoristas Vido Musso  e Sonny Stitt, além do indefectível Charlie Parker.  

Em 1959 ingressou no grupo “The Jazz Brothers”, liderado pelos irmãos Chuck (trompetista e compositor) e Gap (pianista e arranjador) Mangione. Em 1962, Sal foi contratado pelo bandleader Woody Herman, para ser o principal solista da sua orquestra. Honrando a tradição de sempre contar com tenoristas de primeira linha, Woody recrutou o jovem Nistico para ocupar o lugar que pertenceu a luminares como Flip Phillips, Stan Getz, Zoot Sims, Al Cohn, Gene Ammons e Billy Mitchell. O jovem de apenas 22 anos permaneceu ali até 1965, quando integrou-se à “máquina de swing” de Count Basie.

A associação com Basie durou apenas cinco meses, mas foi de extrema valia. Nistico aparece no documentário “Count Basie And His Orchestra”, produzido para a televisão pela “20th Century Fox” em 1965, para série sobre “big bands”.  Na ocasião a banda de Basie contava com Sam Noto, Marshall Royal, Bobby Plater, Al Grey, Freddie Green e o “mágico” baterista Sonny Payne, entre outros. Foi ali também que Sal conheceu o arranjador Sammy Nestico, de quem era primo distante.

Sal estreou como líder em “Heavyweights” (Jazzland, 1961), acompanhado por Nat Adderley (trompete), Barry Harris (piano), Sam Jones (contrabaixo) e Walter Perkins (bateria) e considerada uma das suas melhores gravações. Apesar de bastante jovem – sequer havia completado 23 anos – ele se mostra bastante à vontade no papel de líder da sessão e não se deixa intimidar pela presença de músicos bem mais experientes.

No ano seguinte, foi a vez de “Comin’ On Up”, cujas gravações foram realizadas no dia 17 de outubro de 1962 e que foi lançado pela Riverside. A seu lado, o trompetista Sal Amico, o pianista Barry Harris, o contrabaixista Bob Cranshaw e o baterista Vinnie Ruggiero. A produção ficou a cargo de Orrin Keepnews, que também havia produzido o álbum anterior.

O disco abre com “Cheryl”, composição de Charlie Parker executada com uma vitalidade quase brutal pelo quinteto. Tudo aqui conspira para tornar sua audição um memorável acontecimento, desde a vigorosa pulsação imposta por Ruggiero até os arrojados solos de Harris, um mestre no idioma bop. Nistico elabora uma abordagem complexa, conjugando muita física com fluência de idéias, mostrando que não estava imune à grandiosa influência de Coltrane.

“Ariescene” é um tema de autoria de Paul Fontaine, interpretado em tempo médio, com uma atuação hipnótica do líder, que navega nas águas do post-bop com competência e autoridade. Em seguida, é a vez de “By Myself”, uma canção pouco conhecida da dupla Arthur Schwartz e Howard Dietz, onde brilham o elegante Harris e o irrequieto Amico.

Compositor inventivo, o líder comparece com a tórrida faixa tema e com a não menos empolgante “Samicotico”. A primeira é um bebop rápido e fumegante, com citações a “Cherokee” e um duelo arrebatador entre Nistico e seu xará Amico. A segunda incorpora elementos da música afro-caribenha, especialmente o mambo, e faz um amálgama com as harmonias enviesadas do bebop. Nesta, vale destacar o dedilhado hipnótico de Harris, que mergulha na tradição cubana e sacoleja com extrema perícia e malemolência.

A interpretação de “Easy Living”, gema de autoria de Leo Robin e Ralph Rainger, é emotiva e cálida, mostrando o lado sentimental do saxofonista, capaz de imprimir beleza e lirismo nas baladas, sem jamais entregar-se ao “fácil” ou ao pastoso. A atuação de Harris também deve ser ouvida com bastante cuidado, especialmente por conta da delicadeza do seu fraseado.

Para encerrar, um petardo da lavra de Miles Davis, “Down”, um blues pesado e musculoso, veículo mais que propício para a sonoridade encorpada e profunda de Nistico. Para alegria dos jazzófilos, “Comin’ On Up” foi lançado em cd, reunindo na mesma edição o não menos brilhante “Heaviweights”. A nota triste fica por conta da exclusão de “Just Friends”, que consta da versão em LP de “Heavyweights”, por falta de espaço no cd.

Após sua saída da orquestra de Count Basie, Sal resolveu tentar a sorte na Europa, estabelecendo-se na Suécia. Mas voltou a atuar, em diversas ocasiões, com o ex-patrão Woody Herman, participando de várias excursões patrocinadas pelo Departamento de Estado Norte-americano, entre 1967 e 1970.

A partir dos anos 1970, o saxofonista passa a residir em Los Angeles, tocando de 1974 até 1978 em diversas formações e ao lado diversos músicos de ponta: Terry Gibbs, Don Ellis, Tito Puente, Buddy Rich, Chuck Israels, Benny Bailey, Al Cohn, Walter Bishop, George Coleman, Carl Fontana, Nat Pierce, Michael Moore, Nat Adderley, Stan Tracey e Slide Hampton.

Com este último realizou temporada na Europa, além de participar de diversos concertos e da gravação de “Summit Big Band”, uma formação numerosa, composta por músicos americanos e europeus e dirigida por Slide Hampton e pelo trompetista Dusko Gojkovich, maior nome do jazz da antiga Iugoslávia. Destaque também para o álbum “Three Generations of Tenor Saxophone” (JHM), no qual Nistico divide os créditos com o fenomenal Johnny Griffin e com o saxofonista alemão Roman Schwaller.

De volta à Europa, Nistico associou-se a Benny Bailey em 1978, ao lado de quem montou um quinteto que se apresentava com regularidade em clubes da Alemanha. Retornando aos Estados Unidos no ano seguinte, passou a atuar como solista “freelancer”, como em 1980, quando integrou-se ao “National Jazz Ensemble” sob as liderança do baixista Chuck Israels. Como sideman, seu nome aparece nos créditos de álbuns de Mel Tormé, Buck Clayton, Sarah Vaughan, Curtis Fuller, Helen Merrill, Lionel Hampton e muitos outros.

Sal é considerado um velocista do sax tenor, capaz de tocar sem o mínimo esforço, um “bopper” excelente, com total controle da digitação e da respiração nos tempos mais rápidos e fraseado em “legato”, com idéias próprias e muito bem estruturadas, melódicas em qualquer andamento. Sua discografia, ainda que não tão vasta, reserva-nos bons momentos, distribuída em selos como Milestone, Ego, Bee Hive, Horo Hill e Red Records.

Em 1974, o saxofonista fez parte do quarteto do baterista Buddy Rich, com quem já havia trabalhado na década anterior. O grupo era integrado, ainda, pelo pianista Kenny Barron e pelo baixista Anthony Jackson. Nistico gravou na Itália, em 1975, o álbum “Jazz A Confronto” (Horo Hill), no qual se faz acompanhar pelo guitarrista brasileiro Írio de Paula e pelo pianista italiano Enrico Pieranunzi. O quinteto é completado pelo contrabaixista Alessio Urso e pelo baterista Afonso Vieira, o Afonsinho, mineiro de Cataguazes e amigo de infância do nosso querido Olney Figueiredo, o Figbatera.

No ano seguinte, Sal dividiu os créditos do disco “Swiss Radio Days” com o clarinetista Tony Scott e em 1978 foi a vez de “Neo Nistico”, para o selo Bee Hive, onde lidera um time de músicos formidáveis: Nick Brignola (sax barítono), Ronnie Mathews (piano), Sam Jones (contrabaixo) e Roy Haynes (bateria). O sopro potente de Nistico também pode ser ouvido no álbum “Nightbird”, de Chat Baker, gravado em 1984, em Nova Iorque, para a jazz World.

Nistico faleceu no dia 03 de março de 1991, em Berna, na Suíça, onde residia, em decorrência de um infarto fulminante. Tinha apenas 53 anos e era casado com a cantora Rachel Gould. Seu ultimo registro fonográfico foi “Empty Room”, de 1988, lançado pela Red Records, onde lidera uma sessão rítmica formada exclusivamente por músicos italianos: a pianista Rita Marcotulli, o baterista Roberto Gatto e o contrabaixista Marco Fratini.

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É sempre uma honra poder contar com a participação do querido Pedro “Apóstolo” Cardoso. No caso da resenha sobre Sal Nistico, todos os louros devem ser creditados a ele, verdadeiro autor da biografia do saxofonista aqui publicada. Minha participação, circunstancial, se limitou à análise das músicas do álbum “Comin’ On Up” e a algumas poucas informações complementares. Deste disco, foram extraídos os temas “Cheryl” e “Comin’ On Up” e do “Heavyweights” foram incluídas na radiola versões de “Heavyweights” e “Au Privave”.

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segunda-feira, 22 de agosto de 2011

LIBERDADE, LIBERDADE, ABRE AS ASAS SOBRE NÓS!



Imagine alguém ser obrigado a interromper uma carreira brilhante e, durante quase 30 anos, amargar um inferno pessoal feito de abusos de drogas, internações, tratamentos dolorosos e prisões. Agora imagine a força interior de alguém que passa por tudo isso e consegue sacudir a poeira, dar a volta por cima e se tornar um ícone naquilo que faz. Receber as flores em vida, como cantou Nélson Cavaquinho, não é para qualquer um. Frank Morgan as recebeu.

Assim pode ser resumida a incrível história de Frank Morgan,  um verdadeiro documento da crueza e da grandeza da vida. Este saxofonista alto norte-americano, nascido no dia 23 de dezembro de 1933, em Minneapolis, estado de Minnesota, viveu o bastante para reescrever a sua própria história. Sua dramática trajetória pessoal, recheada de provações, sofrimentos e tragédias, é um dos capítulos mais tocantes da história do jazz – felizmente, com um final digno e feliz.

Tudo começou quando Frank ainda estava no conforto da barriga da mamãe. Segundo ele, “quando minha mãe estava grávida, papai costumava sentar ao lado dela e tocava sua guitarra bem pertinho da barriga dela. Assim começou o meu contato com os acordes”. O pai, no caso, era Stanley Morgan, um guitarrista profissional que tocava com o grupo vocal “Ink Spots”, um dos mais populares dos anos 30 a 50. Foi ele que ensinou ao garoto, mal saído das fraldas, os rudimentos da guitarra – o aprendizado à vera começou quando Frank tinha inacreditáveis três anos.

Apesar de tocar com um grupo de grande sucesso de público, Stanley gostava mesmo de tocar jazz e sempre que podia, dava um jeito de participar de alguma jam session. Quando o menino estava com 06 anos, sua família mudou-se para a cidade de Milwaukee, no estado de Wisconsin. Pouco tempo depois, os pais se separaram e o garoto ficou sob a guarda paterna. Os estudos com a guitarra persistiam e tudo levava a crer que a família Morgan iria dar ao mundo mais um guitarrista.

Em 1940, pai e filho se encontravam em Detroit, onde assistiram a uma apresentação da big band de Jay McShann, na qual atuava um altoísta chamado Charlie Parker, então com 19 anos.  Quando o altoísta executou o seu primeiro solo em “Hootie Blues”, o garoto virou-se para o pai e disse: “Escuta, pai, é isso que eu quero tocar e não guitarra”.

Ao final da apresentação, o pai levou o garoto até os bastidores e conseguiu conversar com Parker. Apresentou a ele o precoce Frank, que disse a Parker querer tocar como ele. Bird aconselhou o garoto a dedicar-se ao clarinete, porque isso iria ajudar a sua embocadura e a sua respiração, dando-lhe suporte maior para um eventual aprendizado no sax alto. Os estudos do instrumento perduraram até que Frank completasse 10 anos.

Ter conhecido Parker foi um divisor de águas na vida e na futura carreira do garoto. Segundo ele, “Bird era uma pessoa maravilhosa e são as lembranças dele e de sua música que têm ajudado a sustentar a minha vida e a minha carreira. Ele foi, sem dúvida alguma, um fator primordial para que eu desenvolvesse tamanho amor pela música”.

Após vencer diversos concursos de calouros, ganhou do pai um sax alto e dedicou-se ao novo instrumento com maior afinco, estudando com um saxofonista chamado Leonard Gay. Ele teve uma breve experiência com o sax soprano, mas não gostou da sonoridade e continuou com o slto. Fazendo jus ao título de gênio precoce, Frank era um habitual participante de concursos de calouro e, invariavelmente, vencia todas aqueles que disputava.

No verão de 1947, quando tinha apenas 14 anos, o jovem saxofonista mudou-se, juntamente com o pai, para Los Angeles, na Califórnia, indo estudar na “Jefferson High School”. O pai entrou em contato com Benny Carter, para que desse algumas aulas a Frank, mas Benny informou que não lecionava e indicou Merle Johnston. Este era um saxofonista profissional e professor renomado, que já havia ensinado Jimmy Dorsey e outros grandes nomes do cenário californiano. Morgan atribui grande importância aos ensinamentos de Johnston, especialmente no aprimoramento de sua técnica para os solos.

No ano seguinte, o garoto fez a sua estréia como profissional, tocando no clube “Casablanca”, de propriedade de seu pai. Frank liderava uma banda com 20 integrantes e sua perícia ao instrumento deixava admirados mesmo os músicos mais experientes. Para que se tenha uma idéia da ousadia do garoto, certa feita este procurou ninguém menos que Duke Ellington, oferecendo-se para fazer um teste, a fim de ingressar na banda do genial maestro.

O teste foi realizado momentos antes  de uma apresentação da orquestra de Ellington no “Shrine Auditorium” e o jovem de apenas 15 anos foi aprovado com louvor. No entanto, apesar de ter tocado naquela noite, Frank não pôde integrar-se em definitivo à orquestra, onde substituiria o mitológico Johnny Hodges, que na época estava saindo da banda, por conta da idade. Além disso o pai fazia questão que ele concluísse os estudos e a vida de excursões e shows seria um empecilho para a vida estudantil do jovem.

De qualquer forma, a idade não era impedimento para que o jovem Morgan fizesse história na região de Los Angeles. Aos domingos, ele era um dos mais assíduos participante das jams realizadas no “Club Alabam”, onde teve oportunidade de tocar com figuras do gabarito de Dexter Gordon, Wardell Gray, Conte Candoli, Carl Perkins, Larance Marable, Leroy Vinegar, Josephine Baker e Billie Holiday.

Ainda naquele vitorioso ano de 1948, foi o vencedor de um concurso de jovens músicos, o que lhe permitiu gravar para a RCA Victor, ao lado da orquestra de Freddy Martin. No final da década de 40, Morgan reencontrou Parker, que então passava uma conturbada temporada californiana. O pupilo recorda daquele período: “Ele era uma estrela, era como os Beatles. Nós tocamos juntos em várias ocasiões. Bird sempre era chamado para tocar nas mansões de astros de Hollywood e eu cheguei a participar de algumas dessas gigs”.

O reencontro com Parker não teve repercussões apenas musicais. Como muitos músicos daquela época, Frank também supunha, equivocadamente, que a genialidade de Bird tivesse uma estreita relação com as drogas e o pupilo mergulhou fundo na dependência química. Em uma entrevista ao crítico Gary Giddins, em 1986, Morgan declarou: “Eu imaginava que o estilo de vida do músico de bebop exigia o uso de heroína para ser autêntico”.

Ao saber que seu discípulo estava enveredando pelo perigoso caminho das Parker o repreendeu duramente e se afastou de Morgan. Mas pouco tempo depois, não apenas retomou a amizade como costumava compartilhar com o pupilo agulhas e seringas. Frank lembra da primeira vez que ele e o ídolo se drogaram juntos: “depois que nós estávamos viajando, Bird me falou sobre a morte. Em um sentido trágico, eu acredito que ele pensava que a sua morte poderia ser o melhor exemplo para evitar que os músicos mais jovens sucumbissem às drogas”.

Frank desceu a tal ponto no submundo dos narcóticos que se viu obrigado a traficar e cometer pequenos furtos, apenas para suprir sua necessidade diária de heroína. O alto custo da droga, que às vezes exigia que ele desembolsasse mais de mil dólares por dia, também o impeliu para o estelionato, e nessa época Frank costumava emitir cheques sem fundos às dezenas. Em 1955, foi condenado por esse crime e por porte de entorpecentes, cumprindo a primeira de várias penas na penitenciária de San Quentin. O prejuízo com os cheques sem fundos andava na casa dos 600.000 dólares.

A carreira, que até pouco tempo atrás disparava rupo ao estrelato, agora declinava assombrosamente. O jovem que em 1953 acompanhou o astro Ray Charles em várias ocasiões e que havia tocado com monumentos do naipe de Lionel Hampton, Teddy Charles, Milt Jackson e de Kenny Clarke era agora um homem destruído física e psicologicamente. 1955 foi um torvelinho de emoções. Seu grande ídolo Charlie Parker havia morrido e, da prisão, Morgan tomou ciência do sucesso do seu álbum de estréia, gravado para o selo GNP, nos meios jazzísticos.

Saudado como “o novo Charlie Parker”, Morgan não pôde desfrutar do sucesso de suas gravações e, pouco a pouco, foi se tornando um personagem obscuro e pouco lembrado no cenário musical. Mas no estreito espaço entre os muros e grades do presídio, Morgan era considerado uma espécie de celebridade. Em 1962, ele fez amizade com o grande Art Pepper, que também cumpria pena por posse de narcóticos em San Quentin.

Os dois montaram um grupo, do qual faziam parte outros presidiários como o trompetista Dupree Bolton e o baterista Frank Butler, que costumava se apresentar no presídio, para outros detentos e para os visitantes que, aos sábados, costumavam freqüentar as dependências do presídio. Muitos iam para rever os parentes detidos, mas boa parte dos visitantes queria apenas conhecer detalhes da vida prisional – e ouvir jazz de ótima cepa.

Como recompensa, os músicos recebiam prêmios, como doces, maconha, cortes de cabelo, revistas, boquilhas para os saxofones, discos e até dinheiro por suas apresentações. Frank recorda daquele período difícil: “A melhor banda com a qual toquei na prisão foi a de San Quentin. Art Pepper e eu tínhamos muito orgulho daquela banda. Havia Jimmy Bunn, Frank Butler e muitos outros músicos, alguns conhecidos e outros anônimos. Nós tocávamos todas as noites de sábado, numa programação que chamávamos de “Warden's Tour”. Muitos visitantes pagavam para conhecer as celas, os refeitórios e as salas de exercício, mas a maioria deles ia lá apenas para ouvir a nossa banda”.

Morgan passou quase 30 anos encarcerado. Entradas e saídas de presídios sucederam-se até 1985, quando finalmente ele conseguiu se livrar das drogas. Ele assentiu em participar de um programa de recuperação baseado no uso de metadona e em novembro daquele ano estava formalmente livre tanto do vício quanto de outras repercussões criminais decorrentes de seu envolvimento com as drogas. Nesse doloroso percurso, o apoio da esposa, Rosalinda Kolb, foi fundamental.

O retorno à música foi dos mais auspiciosos e a singularidade de sua trajetória despertou grande interesse da mídia. Ele participou de diversas edições do programa televisivo “Today Show” e sua vida foi contada no programa  “Real Life”, produzido pela rede NBC em 1990, com apresentação de Jane Pauley. Suas histórias renderam também um espetáculo musical denominado “Prison-Made Tuxedos”, que ele mesmo estrelou em 1987. A experiência mostrou-se dolorosa demais, pois o obrigava a recordar os infindáveis dias de sofrimento na prisão.

Por causa das circunstâncias que envolveram seu retorno, a visibilidade recebida por Frank era muito mais acentuada que aquela que, habitualmente, está reservada a um músico de jazz. O saxofonista mereceu até um perfil na revista People, espécie de bíblia das celebridades norte-americanas. Sua primeira temporada em Nova Iorque foi um enorme sucesso de público, que durante três semanas lotou as dependências do Village Vanguard, em 1986.

A tarefa de se readaptar à vida livre não deixou de ser penosa para Frank. Ele conta que temporada no Vanguard foi bastante estranha: “O medo que eu sentia no período em que estive na cadeia desapareceu e eu sentia como se a prisão é que fosse o meu paraíso. Demorou muito tempo para que eu me sentisse confortável em liberdade e pudesse encarar a vida de frente. Depois do meu primeiro solo no Village Vanguard as pessoas aplaudiam tão alto que eu me assustei. Se alguém chegasse ali e gritasse ‘Bu!’, eu provavelmente teria saído correndo, implorando para voltar para San Quentin”.

Passada a fase de readaptação, graças ao trabalho intensivo e à recepção calorosa que teve por parte dos colegas, Frank se tornou um dos mais disputados altoístas do final dos anos 80 e de toda a década seguinte. Para fugir à agitação da cidade grande, estabeleceu-se em Taos, no Novo México, saindo de lá apenas para concertos e gravações. Como que para coroar tamanho sucesso, foi eleito, em votação da crítica, o melhor saxofonista alto, em votação feita pela revista Downbeat, em 1991.

Em pouco mais de vinte anos desde o seu retorno, Frank gravou mais de uma dúzia de ótimos álbuns, para selos como Contemporary, Antilles, Telarc e HighNote Records, por onde lançou seus últimos discos, incluindo aí os elogiadíssimos “City Nights” e “Raising the Standard”.

O primeiro disco gravado por Morgan, como líder, foi “Easy Living” (Contemporary, 1985), à frente de um quarteto que inclui o pianista Cedar Walton, o baixista Tony Dumas e o baterista Billy Higgins. Nas palavras do crítico Robert Palmer, do New York Times, o disco era “uma das maiores surpresas daquele ano e um verdadeiro deleite musical”.

Em suas empreitadas fonográficas, o saxofonista teve a seu lado alguns dos maiores nomes do jazz, das mais diversas gerações: Terry Gibbs, Joe Henderson, McCoy Tynner, George Cables, Cedar Walton, Wynton Marsalis, Red Rodney, Monty Alexander, Hank Jones, Kenny Burrell, Rufus Reid, Roy Haynes, Mulgrew Miller, Ron Carter, Al Foster, Billy Higgins, Curtis Lundy, Lewis Nash, Buster Williams, Roy Hargrove e muitos outros.

Uma ótima oportunidade para se comprovar as qualidades de Morgan é no estupendo “Yardbird Suite”, homenagem feita por ele ao eterno ídolo e que está disponível em cd. Gravado nos dias 10 e 11 de janeiro de 1988, para a Contemporary, este é um dos pontos altos da carreira do saxofonista. No auge da forma técnica, ele lidera um quarteto do mais alto gabarito, com Mulgrew Miller no piano, Ron Carter no contrabaixo e Al Foster na bateria.

O repertório é excepcional, com composições de autoria de Bird ou temas que ele tocava habitualmente. E é exatamente com “Yardbird Suite” que o grupo inicia os trabalhos, em uma interpretação feérica e explosiva. A sonoridade de Wess é menos crua ou adstringente que a de Parker, mas seus improvisos são igualmente caudalosos. O entusiasmo de Miller, o caçula da turma e que então despontava para o mundo do jazz nos indefectíveis Jazz Messengers, é quase palpável. Seguros e muito bem entrosados, Carter e Foster garantem uma base das mais sólidas, além de se arriscarem em solos apoteóticos.

“A Night in Tunisia”, de Dizzy Gillespie e Frank Paparelli, vem a seguir e traz à memória a seminal parceria entre Bird e Diz. Despindo o tema de sua veia “oriental”, o arranjo prioriza o conteúdo eminentemente bopper. A velocidade que Morgan imprime à sua execução é impressionante e o trabalho da sessão rítmica consegue harmonizar-se com tamanho dinamismo, sem prejuízo da fluidez e da inventividade. O formidável domínio que Miller possui do idioma bop merece ser apreciada com atenção redobrada.

“Billie's Bounce” é outro tema parkeriano e sua estrutura é cadenciada e firmemente arrimada no blues. Muito swing por parte dos quatro, com interpretações sensacionais de Carter e de Miller. “Star Eyes”, balada de Don Raye e Gene DePaul, recebe uma versão onde o flerte com a bossa nova é bem pronunciado. Exibindo enorme fluência e a articulação típica de quem domina todas as nuances do instrumento, Morgan navega por águas tranqüilas. Seu fraseado é sutil e melodioso, na linha de um Benny Carter, e passa ao ouvinte uma atmosfera de paz e relaxamento.

“Scrapple from the Apple” é mais um petardo da vigorosa oficina de Bird. Com um leve tempero de samba e rápidas citações a “Stranger In Paradise” e “Milestone”, a interpretação do quarto é um dos pontos altos do álbum. Morgan improvisa com a ferocidade de quem desceu ao inferno e voltou para contar a história, e seus solos possuem aquela caudalosa força motriz que torna o jazz uma forma de expressão musical tão visceral. Miller, exibe a autoridade e a ousadia de quem, em pouquíssimo tempo, se tornaria um dos nomes mais importantes do piano contemporâneo, conjugando ímpeto criativo e fluidez de idéias em uma execução irretocável.

Parker jamais gravou “Skylark”, esplendorosa parceria dos geniais Hoagy Carmichael e Johnny Mercer. Ao gravá-la, Morgan consegue passar ao ouvinte a sensação que qualquer tributo digno desse nome deveria ter como uma regra de ouro: o homenageado certamente assinaria embaixo  e aprovaria sem pestanejar a versão do quinteto. O sopro cálido e gentil do líder revela alguém que não se deixou abater pelos percalços da vida e jamais perdeu a sensibilidade. Sua doçura é comovente e o lirismo da sua performance é como uma delicada carícia sonora.

Parker comparece também na faixa de encerramento, a sacolejante “Cheryl”. Morgan é perícia, é agilidade, é paixão, é jazz em estado puro. Mas o líder também é generoso e dá bastante espaço para que a sessão rítmica possa brilhar. Nesse quesito, a atuação de Miller é impecável. Referências a Monk, Tristano, Ellington e Powell podem ser percebidas em seu toque, além de um rigoroso aproveitamento dos silêncios. Revisitar a obra de um gênio não é tarefa simples. Sempre há o risco de se escorregar pelo caminho da auto-indulgência ou da obviedade, coisas que passam ao largo deste álbum, que dignifica qualquer discoteca jazzística.

Guindado à condição de monstro sagrado do jazz, Morgan não deixou que o sucesso – tardio, porém merecido – lhe subisse à cabeça. Tocou nos mais importantes festivais do mundo, teve ampla liberdade para gravar seus discos da maneira que bem entendeu e, sobretudo, desfrutou de um reconhecimento raro por parte do público, da crítica e de outros colegas de profissão. Wynton Marsalis, por exemplo, chegou a declarar que “não há por aí ninguém melhor do que Frank no sax alto. O som que ele produz é repleto de alma, ardente e atemporal”.

Quem quiser conhecer o trabalho do saxofonista em riqueza de detalhes pode assistir ao formidável DVD “A Tribute To Charlie Parker – Birdmen & Birdsongs”, lançada pela “Storyville”, com direção de Stanley Dorfman e produção de Ben Sidran e Clive Woods. Ali, ao lado do trompetista Red Rodney, do pianista Monty Alexander, do baixista Rufus Reid e do baterista Roy Haynes, Morgan interpreta diversos temas de autoria de Parker, em um concerto gravado ao vivo, em janeiro de 1990 no “Palais Des Festivais”, em Cannes.

Em 1998 Frank viveu um novo drama pessoal, ao sofrer um AVC, quando se preparava para tocar no Flint Jazz Festival, em Michigan. Os prognósticos médicos foram sombrios: ele não voltaria a tocar novamente. A doença não seria obstáculo para quem havia passado por tanto sofrimento e em apenas seis meses, Morgan já estava gravando e se apresentando em festivais pelo mundo. Sua receita: muita fisioterapia e doses ainda maiores de força de vontade.

Infelizmente, no começo de novembro de 2007, quando excursionava pela Europa em uma turnê com o pianista Rein de Graaff, Morgan recebeu o diagnóstico de um câncer no colón. Ele voltou aos Estados Unidos e começou o tratamento, mas a doença abateu-o pouco mais de um mês depois, no dia 14 de dezembro daquele ano, em Minneapolis onde morava desde meados dos anos 90.

O último álbum de Morgan é um verdadeiro canto de cisne. Trata-se do duo entre ele e John Hicks, que faleceria em maio de 2006, intitulado “Twogether” (HighNote), gravado em novembro de 2005, durante uma temporada da dupla no clube Jazz Bakery, em Los Angeles. Em uma entrevista, revelou um pouco da sabedoria musical acumulada ao longo dos anos: “Eu demorei muito para aprender que o silêncio é nosso amigo, não inimigo. O silencio é o melhor amigo de um músico. É ele que dá sentido àquilo que tocamos”.

Na mesma entrevista, revelou a sua admiração por outros grandes saxofonistas como Charles McPherson, Sonny Fortune, Kenny Garrett, Donald Harrison e James Spaulding. Para o notável Pedro Cardoso, Morgan “é um virtuose no saxofone alto, dotado de absoluto controle de respiração e de digitação mesmo em ‘up-tempo’, que domina com total autoridade técnica e de fraseado, construído com lógica e pleno respeito à linha melódica original ou parafraseada”.

Para o Apóstolo do Jazz, o estilo do saxofonista é claramente ancorado no blues, mas foi sendo “paulatinamente depurado, até alcançar o exemplo virtuoso e perfeito da construção original sempre tangente à linha melódica, que ele entrecorta com fragmentos rítmicos aumentando a tensão e a intensidade de suas interpretações”.

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