Amigos do jazz + bossa

quarta-feira, 29 de junho de 2011

ANARRIÊ! ALAVANTU! VIVA SANTO ANTÔNIO, SÃO JOÃO, SÃO PEDRO E JULIAN PRIESTER!



Nascido no 29 de junho de 1935, em Chicago, Julian Anthony Priester é um trombonista e compositor dos menos badalados. Mas hoje, durante os festejos dos seus 76 anos bem vividos, ele já declarou que vai deixar de lado a timidez e meter o pé na jaca. Afinal, hoje também se comemora o dia de um dos santos mais queridos e cultuados do catolicismo: São Pedro, o guardião do céu!

A festa vai ter muito mingau de milho, curau, vatapá, torta de camarão seco, pé-de-moleque, arroz doce, canjica, paçoca, bolo de fubá, cuscuz, pamonha e cocada. A Caninha da Roça mandou um carregamento de 50 litros da “mardita” prá animar a rapaziada. A fogueira já foi acesa e daqui a pouco o povo vai dançar ao som do Boi da Maioba, do Boi de Maracanã e Boi de Pindaré, que já confirmaram presença. No encerramento, show com Papete, Chico Maranhão e Alcione, a Marrom.

A barraquinha de seu Priester, montada bem no meio do Arraiá da Cidade dos Ventos, foi toda decorada com bandeirinhas, boizinhos, balões e fotos de São João, Santo Antônio, São Pedro e São Marçal. Foguetes, traques e bombinhas pipocam por todos os lados, assustando os menos familiarizados com aquela confusão. Os amigos estão todos convidados e enquanto se deslocam para o arraial, é bom ir conhecendo um pouco mais da vida desse grande músico.

Priester começou a estudar piano com dez anos, influenciado por um irmão mais velho que tocava trompete e que seguiu carreira militar. Um ano depois, abandonou o instrumento para se dedicar ao violino, ao sax barítono até que, por fim, descobriu  o trombone. Estudante da famosa “Du Sable High School”, ele foi aluno do exigente Walter Dyett, violinista e educador musical dos mais afamados e que foi professor de muitos músicos da cidade, como Dinah Washington, Nat King Cole, Gene Ammons, Von Freeman e muitos mais.

Capitão do exército e considerado um disciplinador, Dyett marcou época no meio musical de Chicago. O aprendizado foi importantíssimo para Priester, que sempre reconheceu a importância do antigo mestre em sua formação. Segundo ele, “as coisas que aprendi naquela época foram muito úteis na minha carreira, quando eu realmente pude colocá-las em prática. Durante os shows, eu não ficava assustado com o ritmo acelerado da banda, e realmente devo muito àquele professor em particular”.

No início dos anos 50, o adolescente Julian começou a carreira prodissional, tocando com artistas ligados ao blues e ao R&B, como Muddy Waters, Dinah Washington e Bo Diddley. Embora ainda não tivesse completado 18 anos, o jovem trombonista era freqüentador assíduo dos clubes de jazz e costuma tocar com artistas em visita à cidade, como Max Roach, Clifford Brown, Sonny Stitt. O cenário jazzístico local era dos mais alentados e o Priester costumava jamear com portentos como Johnny Griffin, Von Freeman, Ira Sullivan, Clifford Jordan, Walter Perkins, Eddie Harris, Wilbur Ware e muitos outros.

Seu primeiro empregador fixo foi na orquestra do pianista e bandleader Sun Ra, com quem permaneceu durante os anos de 1953 e 1954, e a primeira grande oportunidade surgiu em 1956, quando se juntou à big band de Lionel Hampton, que o levou para Nova Iorque. Lá chegando, o trombonista passou por alguns apuros. É que a orquestra de Hamp havia sido convidada para uma excursão de cerca de um mês na Austrália, dividindo os holofotes com a orquestra de Stan Kenton.

Os produtores, no entanto, não tinham dinheiro para bancar as passagens e as hospedagens de duas big bands completas e levaram apenas metade de cada uma delas. Por ser dos músicos mais novos, Julian ficou em Nova Iorque, sem dinheiro, sem emprego e sem lugar para ficar. Por sorte, um conhecido seu, o saxofonista Eddie Chamblee, soube da situação e ofereceu-lhe trabalho na banda da cantora Dinah Washington, com quem atuou até o ano de 1958.

No ano anterior, seu amigo Johnny Griffin o havia apresentado ao produtor Orrin Keepnews, que o levou para sua gravadora, a Riverside Records. Ali, Priester foi um destacado múdico de apoio, registrando presence em álbuns de gente como Bobby Timmons, Philly Joe Jones, Chet Baker, Kenny Dorham, Blue Mitchell, Wilbur Ware, Kenny Drew e do próprio Griffin. Ainda naquele período, Julian montou um grupo com o trombonista Slide Hampton, fortemente influenciado pelo trabalho da dupla J. J. Johnson e Kai Winding.

Em 1959, Priester foi contratado por Max Roach, em substituição ao talentoso Ray Draper, um dos poucos jazzistas modernos a sominar a tuba. Decidido a dar uma nova sonoridade à sua banda, o baterista chegou a uma formação bastante ousada, que além de Julian também incluía os excelentes Booker Little e George Coleman.

Sob a liderança de Roach, Julian participa de gravações históricas, como “Rich Versus Roach” (Mercury, 1959), “Percussion Bitter Suíte” (Impulse, 1961) e do politizado “We Insist! Freedom Now Suíte” (Candid, 1960). Considerado um clássico do jazz engajado, o disco foi objeto do documentário “Noi Insistiamo – We Insist” (1965), dirigido pelo italiano Gianni Amico, no qual Priester aparece em diversas cenas.

Por intermédio de Roach, o trombonista conhece e se torna amigo do multiinstrumentista Eric Dolphy, com quem trabalharia em diversos contextos e que se tornou uma grande influência em sua forma de tocar. Ainda no ano de 1959, Priester participou do filme “Cry Of Jazz”, documentário dirigido por Edward Blank, com música da autoria de Sun Ra.


No ano de 1960, o trombonista teve a oportunidade de gravar pelo selo “Riverside” seu primeiro álbum como líder, o excelente “Keep Swingin”. As gravações foram realizadas no dia 11 de janeiro, no Reeves Sound Studios, Nova Iorque, e Priester teve a seu lado uma banda de peso, onde brilhavam o saxofonista Jimmy Heath (que participa de cinco das oito faixas), o pianista Tommy Flanagan, o contrabaixista Sam Jones e o baterista Elvin Jones.

Heath é o autor de “24-Hour Leave”, um blues em tempo médio de levada contagiante. A pegada de Priester é robusta, volumosa, fazendo um belíssimo casamento com o saxofone do autor do tema, também bastante encorpado. O refinado Flanagan não perde a classe e constrói harmonias com a mesma volúpia dos seus parceiros dos sopros, fazendo uma releitura toda particular da sintaxe do blues.

O álbum dá amplo espaço à veia composicional do líder, responsável por quatro temas. O primeiro deles é “The End”, hard bop sacolejante e com acento latino bastante evidenciado, em especial por causa do sotaque percussivo imposto por Jones. A perícia do jovem trombonista impressiona e mesmo tocando em velocidade supersônica ele consegue soar de maneira bastante melodiosa.

O quarteto (Heath não participa desta faixa) faz uma leitura arrojada de “1239A”, tema de autoria do saxofonista Charles Davis. Audacioso, Priester constrói uma abordagem instigante, expelindo as notas de maneira furiosa, exuberante e, em muitos momentos, meio enviesada. A sonoridade oblíqua de Flanagan e o contrabaixo rotundo e opulento de Sam Jones também ganham bastante visibilidade.

O standard “Just Friends”, composição de John Klenner e Sam Lewis, ganha uma roupagem acelerada e swingante. Com a volta de Heath ao grupo, sobressai-se bastante o duelo entre trombone e sax tenor, ambos rápidos, precisos e fluentes. Elvin “Dínamo” Jones pontua o ritmo com potência e um fabuloso sentido de tempo – como sempre, seu trabalho com os pratos é antológico.

O trombone, mais que qualquer outro instrumento de sopro, possui uma sonoridade moleque e irreverente. Como sempre afirma o amigo Sérgio Sônico, o som do trombone remete a gafieira. Essa atmosfera meio anárquica do trombone se evidencia com mais nitidez quando usado no solene ambiente do blues – é o caso da empolgante interpretação de “Bob T's Blues”. Perceba-se o precioso contraste entre o majestático dedilhado de Flanagan e o sopro brincalhão de Priester, que também assina o tema. Outro ponto alto é a espetacular performance de Sam Jones, ponto de equilíbrio entre o piano e o trombone.

Em “Under the Surface”, outro tema composto por Priester, o quinteto mostra os pontos de tangência entre o discurso melódico simples e direto do hard bop com as estruturas nada lineares do jazz de vanguarda. Na balada em tempo médio “Once in a While”, de Bud Green e Michael Edwards, o lado mais lírico e derramado do trombonista, cuja sonoridade é tépida e acolhedora, se deixa aflorar de maneira plena. O romantismo do líder encontra em Flanagan e, sobretudo, na lesteriana interpretação de Heath, parceiros dos mais empáticos, tornando esta uma das faixas mais saborosas do álbum.

Para encerrar em grande estilo, a animada “Julian’s Tune”, na qual transparece o prazer quase físico que o trombonista esbanja ao tocar. Seu sopro é vibrante, alegre e cativante. A sessão rítmica compartilha com o líder a mesma energia e o resultado é uma interpretação colorida e vivaz, com amplo destaque para o banquete percussivo construído por Elvin. Se o ouvinte de jazz é fã da sonoridade marcante do trombone, pode comprar esse disco sem susto. Mestre J. J. Johnson certamente aprovaria com louvor!

Após “Keep Swingin”, Priester ainda gravaria, no mesmo ano, mais um álbum pela Riverside, o sensacional “Spiritsville”. 1961 foi um ano marcante, no qual Julian participou de vários álbuns de extrema importância na história do jazz, como “Straight Ahead” (Candid), da cantora Abbey Lincoln, então casada com Roach, “África/Brass” (Impulse), de John Coltrane, e de “Booker Little And Friends”, de Booker Little (Bethlehem), que faleceria no dia 05 de outubro daquele ano, pouco mais de um mês depois de concluídas as gravações.

Em 1962 Julian deixou o grupo de Roach, a fim de trabalhar exclusivamente como músico freelancer, prestando serviços principalmente à Blue Note. Nessa condição, participou, ao longo daquela década, de álbuns de Freddie Hubbard, Stanley Turrentine, Tommy Turrentine, Cal Tjader, Blue Mitchell, Andrew Hill, Donald Byrd, Art Blakey, Lee Morgan Joe Henderson, McCoy Tyner, Sam Rivers, Lonnie Smith e Duke Pearson. Em 1963, acompanhou o grande Ray Charles em sua excursão pelo Brasil.

Em 1969 foi contratado para tocar na orquestra de Duke Ellington, com a qual gravou a “New Orleans Suite” (Atlantic, 1970). A experiência durou apenas seis meses mas foi marcante para o trombonista, que certa vez declarou: “Durante aqueles seis ou sete meses, eu aprendi mais que nos últimos dez ou quinze anos. Duke usava a orquestra como se fosse um instrumento. Ele manipulava as vozes individuais para criar a música. Uma vez ele me disse: 'Eu não sei o que escrever para você'. Acho que a minha constante busca de novas idéias acabou por não permitir que eu me adaptasse à banda, pois Duke não conseguiu imaginar algo que em que eu pudesse aplicar o meu estilo”.

Ainda em 1970, desligou-se da orquestra do Duque, para se juntar à banda de Herbie Hancock. O pianista vivia um momento de intensa aproximação com o fusion e seu sexteto, além de Priester, incluía o trompetista Eddie Henderson, o saxofonista Bennie Maupin, o contrabaixista Buster Williams e o baterista Billy Hart. Foi um período de intenso trabalho para o trombonista, que participou de álbuns como “Mwandishi” (Warner, 1970), “Crossing” (Warner, 1971) e “Sextant” (Columbia, 1973), muito bem-sucedidos comercialmente mas bastante criticados pelos puristas.

Julian deixou o grupo de Hancock em 1973, mas voltaria a tocar sob a liderança do pianista por ocasião do Festival de Jazz de Newport de 1976. Fez alguns trabalhos com os saxofonistas Billy Harper e Azar Lawrence, com o organista Johnny Hammond Smith e com o flautista Bobbi Humphrey. Em 1974 fixou-se em San Francisco, onde montou um grupo de música eletrônica experimental, ao lado do contrabaixista Henry Franklin.

Influenciado pelo Miles Davis de “Bitches Brew” e com um estilo mais próximo do fusion e do rock, Julian lançou, o álbum “Love Love” (ECM, 1974), que chegou a galgar boas posições nas paradas de jazz. Priester ainda lançaria um segundo álbum pelo selo alemão, “Polarization”, de 1977, considerado pelo crítido inglês Richard Wiliams, da Melody Maker, “um dos álbuns de jazz mais notáveis do ano”.

Priester continuou a trabalhar como freelancer ao longo da década de 70, participando de alguns espetáculos musicais na Broadway e tocando com freqüência na orquestra do Radio City Music Hall, ao mesmo tempo em que liderou alguns pequenos grupos. Dentre seus trabalhos mais destacados daquele período, podem-se enumerar participações em álbuns de Maynard Ferguson, Eddie Henderson, Red Garland, Reggie Workman, Chick Corea, George Gruntz, Ran Blake, Jane Ira Bloom, Jean-Luc Ponty e Maria Muldaur.

Em 1979 foi contratado pelo Cornish College of the Arts, de Seattle, e iniciou ali uma longa e prolífica carreira de educador musical, ensinando composição e história do jazz. No ano seguinte, Julian integrou-se ao grupo do contrabaixista inglês Dave Holland e ali se manteve até 1985, tendo participado dos álbuns “Jumpin’ In”, “Seeds Of Time” e “European Tour”. Ao longo dos anos 80, o trombonista voltaria a tocar, com certa assiduidade, na Arkestra do velho amigo Sun Ra.

Fortemente influenciado por J. J. Johnson e Jimmy Cleveland, Julian é um aplicado herdeiro da tradição bop e admite também a presença de Dizzy Gillespie, Charlie Parker, Thelonious Monk e Clark Terry em seu cadinho de cultura musical. A partir dos anos 90, foi um assíduo colaborador da Liberation Music Orchestra, big band criada e liderada pelo contrabaixista Charlie Haden, e também realizou trabalhos ao lado de Steve Coleman, Lester Bowie, Jerry Granelli, Sam Rivers e Kenny Wheeler.

O trombonista passou por um grande susto em 2000, quando foi obrigado a fazer um transplante de fígado, felizmente bem-sucedido. A volta ao trabalho foi comemorada em grande estilo, com o lançamento, em 2002, de “In Deep End Dance”, pela Conduit Records. Nos últimos anos, Priester tem mantido uma elogiada associação com o baterista Jimmy Bennington e o álbum “Portraits And Silhouettes” (selo That Swan!), assinado pela dupla, recebeu uma menção honrosa por parte do site All About Jazz como um dos melhores álbuns de 2007. Ainda naque ano, Priester foi um dos destaques da 30ª edição do Chicago Jazz Festival.

O eclético trombonista se mantém em intensa atividade até os dias de hoje. Em sua agenda há espaço para as parcerias mais inusitadas, como o álbum “Monoliths & Dimensions” da banda de avant-metal Sunn O))) – é isso aí, com esse monte de parêntesis mesmo – lançado em 2009. Naquele ano, o incansável Julian participou de “Alice”, um tributo à pianista e harpista Alice Coltrane.

De acordo com o catedrático Pedro Cardoso, o Apóstolo do Jazz, Julian “é capaz de colorir sua sonoridade de forma bem variada, com fraseado e timbres que chegam a lembrar a trompa, ainda que sempre busque a opção de aprofundar a “nota” em curso na frase, sem maneirismos ou ultra-velocidade. Claro que quando necessário ao longo de seus improvisos, Priester é bem capaz de ser veloz, desde que não sacrifique o fraseado, a nota, o discurso, a melodia”.


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Postagem dedicada ao amigo e ídolo Pedro "Apóstolo" Cardoso, que faz aniversário hoje, cercado de amigos e de sua família maravilhosa. Tudo de bom, meu Mestre, nesta data especial, com muita paz, saúde, alegria e toneladas do melhor jazz!


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domingo, 26 de junho de 2011

CONECTANDO AS PESSOAS ATRAVÉS DA MÚSICA


Esse é o lema do movimento Playing For Change. Uma idéia absurdamente simples, levada a cabo pelo engenheiro de som Mark Johnson. Andando pelas ruas de Nova Iorque, onde vive e trabalha, ele se deu conta da força e da energia da música nascida nas ruas, pelas mãos e vozes de centenas de músicos anônimos que lutam pela sobrevivência diária e ajudam a colorir o mundo com um pouco de beleza e sensibilidade.

Johnson imaginou que um documentário com os artistas de rua poderia ser interessante, mas a idéia só começou a ganhar forma após assistir a uma interpretação de Stand By Me, cantada e tocada por Roger Ridley, um artista de rua que se apresentava em Santa Monica, na Califórnia. O engenheiro gravou a apresentação e passou a correr mundo, levando consigo um pequeno estúdio móvel, coletando imagens de outros artistas de rua, que cantavam ou tocavam tendo como base original a performance de Ridley.

O resultado é um dos vídeos mais emocionantes despejados na internet, onde grandes artistas de rua mostram que o talento e o amor à música não dependem de superprodução ou artifícios para brotar. O cantor cego Grandpa Elliot, que se apresenta nas ruas de Nova Orleans, o ótimo Cesar Pope, um cavaquinista que ganha a vida nas ruas do Rio de Janeiro, o violoncelista russo Dimitri Dolganov, que toca nas praças de Moscou, o cantor Clarence Bekker, cuja voz poderosa ecoa pelos becos de Amsterdã, são alguns dos destaques. A câmera de Johnson percorre ruas da França, México, Venezuela, Holanda, Itália, Congo, Espanha, África do Sul e muitos outros países, em uma deliciosa viagem musical e, sobretudo, sentimental.

O vídeo já foi assistido mais de 30 milhões de vezes no Youtube e rendeu um CD/DVD chamado “Songs around the world”, que conta com a participação de artistas consagrados, como Bono Vox e Manu Chao, e apresenta um repertório com canções que conclamam à paz, ao respeito e à tolerância entre os homens. O projeto culminou ainda com uma turnê mundial chamada “Playing for Change Band”, que se apresentou em Belo Horizonte, São Paulo e Paraty, no Bourbon Festival. Uma iniciativa que ajuda a restaurar a fé na humanidade e na arte, como forma de transformação e entendimento. Assistam ao vídeo, pois é simplesmente maravilhoso!

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quarta-feira, 22 de junho de 2011

FALANDO, ISTO É, TOCANDO FRANCAMENTE



Situada em um ponto quase eqüidistante entre o Atlântico e o Pacífico, Kansas City, no estado do Missouri, é um dos maiores celeiros de grandes músicos de jazz. Ali nasceram figuras seminais como Melba Liston, Chris Connor, Ben Webster, Bennie Moten, Curtis Counce e muitos outros. Além dos músicos nascidos ali, a cidade recebeu de braços abertos músicos oriundos de outras partes do país, como Count Basie, Lester Young, Buck Clayton, Coleman Hawkins, Jay McShann, Andy Kirk e uma infinidade de outros grandes nomes. Embora tenha nascido na Kansas City do estado do Kansas, foi na cidade homônima do Missouri que Charlie Parker, que havia se mudado para lá na infância, iniciou a sua brilhante trajetória musical.

Por tudo isso, não é à toa que a cidade designa um estilo bastante próprio dentro do jazz, sinônimo de alegria, vigor e malemolência, um contraponto aos estilos mais ácidos e ferozes praticados em cidades como Nova Iorque, Chicago ou Detroit. Nativo da cidade, Frank Wellington Wess é, sem dúvida alguma, um dos nomes mais importantes da história do jazz produzido ali e seu nome se inscreve entre os mais importantes saxofonistas da fase de transição entre as eras do swing e do bebop.

Nascido em 04 de janeiro de 1922, o aprendizado musical começou aos dez anos, quando começou a estudar sax alto. Morava então em Sapulpa, no estado de Oklahoma, para onde a família havia se mudado em 1931. Em 1935, nova mudança, desta feita para Washington DC, que na época possuía um cenário musical bastante promissor. O amor pelo jazz crescia, na proporção em que a música de orquestras como as de Chick Webb, Earl Hines e Duke Ellington invadia a casa da família Wess pelas ondas do rádio.


Na nova cidade, Frank continuou os estudos musicais, freqüentando a Dunbar High School, onde concluiu o ensino médio em 1937 e também fez parte de sua orquestra. Um dos seus grandes amigos daqueles tempos era o pianista Billy Taylor, um dos mais célebres representantes do jazz praticado na capital dos Estados Unidos. Logo em seguida, ingressou na Howard University Music Conservatory, onde cursou música, durante o biênio 1937/1938. Já relativamente conhecido no meio jazzístico de Washington, ele trabalhou em diversas orquestras, como a da cantora Blanche Calloway, e permaneceu na cidade até 1941, quando foi convocado pelo exército.

Eram os tempos da II Guerra Mundial e Wess serviu em diversos países do norte da África, como Libéria, Marrocos, Argélia e Senegal. Ele jamais entrou em combate – felizmente, pois as tropas alemãs que lutavam na região eram comandadas pelo temível marechal Erwin Rommel, a Raposa do Deserto – e fez parte de um sem número de bandas militares, adicionando a seu cartel novos instrumentos, como o sax tenor, a flauta e o clarinete. Na corporação, Frank viveu suas primeiras experiências como bandleader e arranjador, e teve a honra de acompanhar a lendária cantora Josephine Baker em diversos concertos para as tropas aliadas baseadas em solo africano.

Frank permaneceu no exército até 1945, quando foi dispensado e retrornou aos Estados Unidos. A partir daí, viriam trabalhos com Billy Eckstine, Eddie Heywood, Lucky Millinder e Bull Moose Jackson. Em 1949, decidiu aprofundar os estudos de flauta com Wallace Mann, integrante da National Symphony. Depois, foi estudar com Harold Bennett, flautista da Metropolitan Opera de Nova Iorque, o que o obrigou a se fixar na cidade.

Em Nova Iorque, Frank se matriculou na Modern School Of Music, onde se graduou em flauta, em 1952. Em agosto do ano seguinte, Wess foi contratado pela orquestra de Count Basie, assumindo o sax tenor que anteriormente pertencera a Paul Quinichette. A associação com Basie foi longa e prolífica, resultando em dezenas de gravações e incontáveis concertos, em países como Suécia, Noruega, Dinamarca, Inglaterra, Japão, Itália, Alemanha, Bélgica, Holanda, Portugal, Suíça, Espanha e Canadá. Após adquirir confiança, ele também passou o sax alto e a flauta, instrumentos que dominava com absoluta maestria.

Ao mesmo tempo, Frank dava início a uma belíssima carreira solo, liderando vários pequenos conjuntos e construindo uma sólida carreira fonográfica. Suas primeiras gravações como líder datam de dezembro de 1954, para a pequena for Commodore Records, à frente de um afiado quinteto, do qual faziam parte o trombonista Benny Powell, o pianista Jimmy Jones, o contrabaixista Oscar Pettiford e o baterista Osie Johnson. Em seguida, viriam álbuns por selos como Savoy, Enterprise, Progressive, Uptown, Prestige/Moodsville, Pablo, Concord, JVC, Town Crier, Koch e Chiaroscuro.

Na orquestra de Basie, ele ajudou a popularizar a flauta no jazz e abiscoitou diversas vezes o prêmio de melhor flautista do ano da revista Down Beat, tanto na votação do público quanto da crítica. Graças aos arranjos de Thad Jones e, sobretudo, Neal Hefti, Frank se tornou decisivo para moldar a personalidade sonora da big band, reconhecível aos primeiros acordes pela espontaneidade e vibração extremas. Segundo o venerável Luiz Orlando Carneiro, ele “acabou por ganhar mais fama como flautista do que como saxofonista tenor de rara elegância, inspirado improvisador, descendente estilístico de Lester Young”.

Durante os onze anos em que permaneceu com o Conde, Wess se tornou bastante próximo do também saxofonista, e xará, Frank Foster. Os dois construiriam uma sólida amizade e uma parceria musical que atravessaria as décadas seguintes, proporcionando aos fãs do jazz momentos verdadeiramente sublimes. A associação com Basie perdurou até 1964, quando decidiu partir para outros projetos. Estabelecido em Nova Iorque, Wess fez parte do New York Jazz Quartet, criado pelo pianista Roland Hanna, e liderou suas próprias formações.

Atuando como um dos mais requisitados músicos de apoio dos anos 50 e 60, o nome de Wess pode ser lido nos créditos de álbuns de Harry “Sweets” Edison, Osie Johnson, Joe Newman, Kenny Clarke, Milt Jackson, Al Grey, Etta Jones, Kenny Burrell, Billy Taylor, Sarah Vaughan, Big Joe Turner, Urbie Green, Mal Waldron, Thad Jones, John Coltrane, Buck Clayton, Tony Bennett, Gene Ammons, Ray Charles, Howard McGhee, Pee Wee Russell, Houston Person, Elvin Jones, Ahmad Jamal, Ernestine Anderson, Johnny Hodges, Jimmy McGriff, Oliver Nelson, Roland Kirk, Shirley Horn, Lee Morgan, King Curtis e uma infinidade de outros grandes nomes.

Um dos seus momentos mais memoráveis como frontman pode ser captado no álbum “The Frank Wess Quartet”, gravado no dia 09 de maio de 1960, para a Moodsville, uma subsidiária da Prestige. Se dividindo entre o saxofone tenor e a flauta, Frank lidera um grupo formado por Tommy Flanagan no piano, Bobby Donaldson na bateria (pouco conhecido, mas com trabalhos ao lado de Edmond Hall, Andy Kirk e Buck Clayton) e por seu companheiro na orquestra de Basie, Eddie Jones, no contrabaixo.

A faixa que abre o disco é “It's So Peaceful in the Country”, de Alec Wilder, e a atmosfera relaxada sugerida no título da canção é mantida pelo quarteto. A flauta de Wess passeia com suavidade e leveza pelos acordes, destilando um tênue sabor oriental em alguns momentos. O delicado trabalho de Donaldson com as escovas é dos mais convincentes e o piano de Flanagan, insinuante e discreto, é um dos muitos acertos do arranjo.

Em seguida, é a vez do blues “Rainy Afternoon”, de autoria do líder, que aqui maneja o sax tenor com indiscutível autoridade. Como exige a tradição do blues, a sonoridade de Wess é pesada, rascante e se mostra fortemente influenciada pela escola texana, mas ele também exibe as qualidades de grande improvisador. A ótima integração da sessão rítmica é outro ponto a ser ressaltado, sendo que do ponto de vista das atuações individuais a de Flanagan merece ser apreciada com bastante atenção.

Em “Star Eyes”, de Don Raye e Gene DePaul, o quarteto vai buscar inspiração na música latina e entrega uma versão alegre, com ênfase no aspecto rítmico, com mais uma bela atuação de Donaldson. Mais uma vez com a flauta, Wess é uma usina de criatividade e bom gosto. Sua interpretação é leve e colorida, mas ao mesmo tempo sóbria e totalmente avessa a estrépitos.

A balada “Stella by Starlight”, composta por Ned Washington e Victor Young, recebe um arranjo sutil, quase melancólico. Wess evoca a forte influência de Lester Young, para construir uma apaixonada sonoridade ao tenor. A carga emocional é compartilhada com Flanagan, cujo dedilhado econômico desemboca em uma interpretação na qual os espaços e os silêncios possuem quase tanta importância quanto os acordes escolhidos.

James Van Heusen e Johnny Burke estão presentes com a lindíssima “But Beautiful”. O arranjo delicado passa a impressão de fragilidade e abandono, sensação reforçada pela abordagem impressionista de Wess. A flauta se equilibra entre a desolação e a esperança, a percussão minimalista emula, ainda que intuitivamente, a batida da bossa nova que em pouco menos de quatro anos conquistaria a terra de Tio Sam e as harmonias sofisticadas ao piano remetem ao universo jobiniano de composições como “Falando de amor” ou “Lígia”.

Cativante balada em tempo médio, “Gone with the Wind” foi composta por Allie Wrubel e Herbert Magidson. Wess tem uma atuação inesquecível, extraindo do sax tenor uma sonoridade macia, sem arestas ou efeitos. A última faixa do album é “I See Your Face Before Me”, de autoria de Arthur Schwartz e Howard Dietz. O grupo elabora uma versão dançante, que se desenvolve a partir da percussão cativante de Donaldson e que cresce em intensidade e emoção com a entrada do piano, sempre cristalino, de Flanagan. O líder maneja a flauta com habilidade incomum e transforma uma melodia aparentemente simples em uma experiência sonora marcante. Não é à toa que a crítica especializada costuma dizer que a flauta jazzística se divide em antes e depois de Frank Wess.

A partir da segunda metade da década de 60, Frank fez parte do cast de músicos da rede de televisão ABC, atuando nas orquestras de programas bastante populares como o Saturday Night Live, o Dick Cavett Show, o David Frost Show e o Sammy Davis Jr. TV Show. Ao lado do velho amigo Foster, Wess liderou o quinteto chamado Two Franks, presença cativa nos clubes da Grande Maçã. Outra associação importante foi na big band de Clark Terry, ele próprio um ex-integrante da orquestra de Basie.

Mostrando não ter nenhum tipo de preconceito musical, Wess participou do coletivo Jazz Composer's Orchestra, grupo criado pelo trompetista Michael Mantler em meados dos anos 60 e que congregava artistas ligados ao jazz de vanguarda. A orquestra lançou um álbum homônimo em 1968 e Frank toca sax alto, dividindo os créditos com uma série de jovens músicos que, nos anos seguintes, se tornariam figuras de proa do jazz, como Gato Barbieri, Carla Bley, Ron Carter, Don Cherry, Larry Coryell, Andrew Cyrille, Richard Davis, Eddie Gomez, Jimmy Knepper, Steve Lacy, Roswell Rudd, Steve Swallow, Lew Tabackin, Cecil Taylor, Randy Brecker, Reggie Workman, Pharoah Sanders, Ed Blackwell, entre outros.

Durante os anos 70 e 80, a agenda de Wess continuou bastante lotada, tendo atuado em álbuns de medalhões da música pop, como Aretha Franklin, Roberta Flack, The Sisters Sledge, Stevie Wonder e George Benson. Durante todo o ano de 1972, Frank percorreu os Estados Unidos, ministrando palestras, conferências e oficinas, dentro de um projeto promovido pela IAJE – International Association for Jazz Education, que objetivava resgatar a trajetória das big bands, com ênfase nos aspectos técnicos como arranjo e composição. Grandes nomes marcaram presença nesse projeto, como Clark Terry, Gary Burton, Frank Foster, Bob Wyatt e Bill Watrous. Ele também esteve envolvido em outros projetos de relevantes, como a banda Dameronia, criada pelo baterista Philly Joe Jones e pelo trompetista Don Sickler, com o objetivo de resgatar as composições do genial Tadd Dameron.

Frank também fez parte das orquestras de Woody Herman e Toshiko Akiyoshi, tendo escrito arranjos para ambas. No final da década de 80, criou uma big band com diversos ex-integrantes da orquestra de Count Basie, tais como Harry “Sweets” Edison, Joe Newman, Snooky Young, Al Grey, Benny Powell, Marshal Royal e Billy Mitchell. A banda gravou álbuns bastante elogiados pela crítica, como “Entre Nous” (Concord, 1990) e “Dear Mr Basie” (Absord, 2003).

Em ambientes eminentemente jazzísticos, Wess não perdeu a antiga mania de trabalhar como um alucinado e nos últimos vinte anos tem atuado, seja como líder, seja como sideman, ao lado de Kenny Barron, Bill Charlap, Gerald Wilson, Rufus Reid, Dakota Stanton, Benny Carter, Frank Sinatra, Mel Tormé, Louie Bellson, John Pizzarelli, Gene Harris, John Bunch, Lionel Hampton, Howard Alden, Dexter Gordon, Sonny Stitt, Milt Hinton, Dick Hyman, Grady Tate, Frank Vignola, Jon Faddis, Jerry Dodgion e Hank Crawford, entre muitos mais.

Durante quase dez anos, foi o principal tenorista da Carnegie Hall Jazz Band e também excursionou com a Dizzy Gillespie Alumni Big Band. Em 1995 lançou pela Chiaroscuro o excelente álbum duplo “Surprise! Surprise!”, que contou com as participações especiais de três lendas vivas do jazz: Flip Philips, Jimmy Heath e Frank Foster. Em 2004, Wess foi eleito o flautista do ano, pela Jazz Journalists Association, entidade que congrega críticos e jornalistas ligados ao jazz (em 2009 ele voltaria a abocanhar o prêmio). No ano seguinte, ele fez uma temporada à frente da Juilliard Jazz Ensemble, formada por alunos daquela prestigiosa instituição.

Wess também já foi laureado por algumas das mais importantes instituições de ensino dos Estados Unidos, por sua relevante contribuição para o desenvolvimento do jazz. Dentre as muitas escolas e universidades que já lhe renderam homenagens, estão a Cornell University, a Notre Dame University, a Oberlin University e a University Of New Hampshire. Em 2007 ele foi agraciado com o American Jazz Masters Fellowship, concedido pela The National Endowment For The Arts, provavelmente a mais importante honraria que um músico de jazz pode almejar.

Lúcido e cheio de vitalidade, Frank continua trabalhando de maneira infatigável, se apresentando em casas noturnas e festivais pelo mundo, como o de Estoril, o de Berna, o de San Sebastián, o de Monterey, o de Chicago e o tradicional Charlie Parker Jazz Festival, em Nova Iorque. Em 2006 lançou o badalado “Hank And Frank”, pela Lineage Records, no qual dividia a liderança com o lendário pianista Hank Jones. Três anos depois, a dupla repetiria a dose com o não menos primoroso “Hank And Frank 2”, que recebeu da revista Down Beat  impressionantes cinco estrelas, cotação máxima daquela que é considerada a mais importante publicação sobre jazz do planeta.

Em março de 2011, participou de um concerto em homenagem ao recentemente falecido James Moody, realizado no Blue Note de Nova Iorque e que também contou com as ilustres presenças de Lew Tabackin, Kenny Barron, Cyrus Chestnut, Paquito D'Rivera, Roberta Gambarini, Antonio Hart, Jimmy Heath, Lewis Nash e David Sanborn, entre outros. O valor arrecadado no evento foi integralmente doado à James Moody Scholarship for Newark Youth, entidade voltada para apoiar jovens músicos carentes. Para deleite dos fãs do jazz, Wess continua a trilhar sua extraordinária trajetória musical com o apetite de um iniciante.

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quinta-feira, 16 de junho de 2011

ONDE ESTÁ A MÚSICA?


  
Os modos gentis e o temperamento cordato renderam a Kai Winding o apelido de “O cavalheiro do jazz”. Mas esse dinamarquês que fez carreira nos Estados Unidos e foi uma das figuras mais importantes da primeira geração do bebop era mais que um homem de hábitos refinados e personalidade cativante. Era também um dos mais técnicos, exuberantes e talentosos trombonistas que despontaram nos anos 40. Embora seja pouco lembrado atualmente e, de certa forma, tenha ficado à sombra do amigo e parceiro J. J. Johnson, seu nome está gravado no panteão dos grandes personagens do jazz e sua influência se estende até os dias de hoje.

Kai Chresten Winding nasceu no dia 18 de maio de1922, na cidade de Arhus, Dinamarca. O pai era funcionário da General Motors e em 1934 foi transferido, obrigando a família a se mudar para os Estados Unidos. Os Winding fixaram residência em Nova Iorque e na nova cidade, o jovem Kai travou contato com o jazz e com o som contagiante das big bands, que espalhavam aquela música contagiante pelas ondas do rádio.

Foi durante aquele período que Kai descobriu as suas inclinações musicais, adotando o acordeão como seu primeiro instrumento. Autodidata, costumava praticar ouvindo as canções no rádio e, em seguida, tentava reproduzi-las no instrumento. Em 1936 optou pelo trombone e em pouco tempo já era capaz de tocar com bastante desenvoltura, seguindo os passos de seus ídolos Trummy Young e Jack Teagarden. Recebeu aulas do conhecido trombonista e educador musical Don Reinhardt, fez parte de algumas orquestras da Stuyvesant High School, onde cursou o ensino médio, e no final da década de 30 já estava na estrada, atuando como profissional

Seu primeiro emprego foi na orquestra de Shorty Allen. Em seguida, viriam trabalhos nas big bands de Sam Donahue, Sonny Dunham (ao lado de quem entrou em um estúdio de gravação, pela primeira vez, em 1942) e Alvino Rey. Como muitos músicos daquele período, Kai sentia enorme desconforto ao tocar os arranjos lineares e, de certa forma, previsíveis das orquestras de swing. Kai conheceu outros jovens músicos de espírito tão inquieto e que buscavam impor ao jazz uma nova linguagem e a música que faziam recebeu o nome de bebop.

Eram eles Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Thelonious Monk, Bud Powell, Kenny Clarke, Joe Guy, Charlie Christian e outros mais, que se reuniam no Minton’s Playhouse, uma modesta casa noturna do Harlem cujo diferencial era a ampla liberdade que os músicos tinham para tocar e improvisar à vontade. As jams no clube se estendiam pela madrugada e muitos músicos saíam de suas apresentações nas orquestras e iam para lá, munidos apenas de seus respectivos instrumentos e uma infatigável vontade de tocar.

Ao lado de J. J. Johnson, outro freqüentador assíduo do Minton’s, Kai foi o primeiro músico a transpor para o trombone as inovações harmônicas advindas com o bebop. Em 1942, Winding foi recrutado pela Guarda Costeira e na corporação fez parte de uma orquestra comandada por Bill Schallen.  Com essa orquestra ele gravou, em 1944, vários  V-Discs (uma espécie de LP) destinados a entreter os soldados norte-americanos que lutavam na II Guerra Mundial.

Dispensado na primavera de 1945, Winding foi trabalhar em uma banda chamada Manor All Stars, liderada pelo trompetista Roy Stevens. Naquele mesmo ano, Kai se casaria com Marie Emery, sua primeira esposa, e viveria uma breve, porém marcante, experiência profissional. Benny Goodman, um dos mais bem sucedidos bandleaders da época, tinha grande respeito pelo bebop e por seus artífices, e também costumava participar de gigs no Minton’s. Admirador da sonoridade de Kai, Benny contratou o trombonista para a sua orquestra, onde também pontuavam os grandes Stan Getz e Mel Powell, em outubro daquele ano.

Winding fez a sua primeira gravação como líder em dezembro de 1945, para a Savoy, liderando um sexteto formado por Stan Getz, Shorty Rogers, Shorty Allen, Iggy Shevack e Shelly Manne. Em janeiro de 1946 o trombonista deixou a orquestra de Goodman, para logo em seguida se juntar à big band de Stan Kenton, onde tocou com ases como Vido Musso, Bob Cooper, Eddie Safranski e Shelly Manne. No ano seguinte, mais uma mudança e Kay foi tocar com o saxofonista Charlie Ventura. Entre 1948 e 1949 fez parte do grupo do pianista Tadd Dameron, dividindo as atenções com o virtuose Fats Navarro.

Como sideman, Winding ia, pouco a pouco, construindo uma sólida reputação e tomou parte em gravações de Vido Musso, June Christy, Neal Hefti, Coleman Hawkins, Al Haig, Ray Brown, Lester Young e George Wallington, entre outros. Também participou de uma das primeiras edições dos Metronome All Stars, onde também atuavam Dizzy Gillespie, Buddy De Franco, Charlie Parker, Charlie Ventura, Lennie Tristano, Billy Bauer, Eddie Safranski e Shelly Manne, com arranjos e regência de Pete Rugolo.

O trombonista esteve presente no célebre noneto liderado por Miles Davis, que em 1949 deu ao mundo o fabuloso álbum “Birth Of The Cool”. Na época, ele fazia parte da banda liderada pelos saxofonistas Brew Moore e Gerry Mulligan, bastante ativa em clubes da Rua 52, como o Royal Roost e o Birdland. Nos anos 50, Kai passou a liberar seus próprios conjuntos e em 1954 montou, com J. J. Johnson, um combo cuja formação era inédita até então, com dois trombones à frente. A parceria durou até 1956 e rendeu álbuns preciosos como “Live At Birdland” (RCA-Victor, 1954), “Jay And Kay Quintet” (Prestige, 1954) e “Trombone For Two” (Columbia, 1955).

No mesmo período, Kai foi contratado por Hugh Hefner, proprietário da revista Playboy e grande fã de jazz, para ser o diretor musical dos clubes que mantinha em Nova Iorque. Após o fim da parceria com Johnson, ele montou um sexteto com seis trombones, que gravou intensivamente para a Impulse entre 1956 e 1961. Naquele ano, Winding recebeu um convite do produtor Creed Taylor, que o levou para a Verve.
Seus discos para a gravadora fundada por Norman Granz fizeram grande sucesso de público, misturando elementos de música latina, country, soul e bossa nova com o jazz e interpretando canções de músicos ligados à música pop, como Johnny Cash, Henry Mancini e as duplas John Lennon e Paul McCartney, Burt Bacharach e Hal Davis ou Jerry Leiber e Mike Stoller. Os arranjos geralmente ficavam sob a responsabilidade do maestro Claus Ogerman ou do saxofonista Oliver Nelson e algumas de suas gravações, como "More", tema do filme "Mondo Cane", e "Watermelon Man", de Herbie Hancock, chegaram a figurar no Top 30 das paradas pop.

De qualquer forma, mesmo tendo enveredado por searas mais comerciais, Kai jamais abandonou o jazz ou sofreu qualquer arranhão em seu prestígio. De fato, seja como sideman, ele pode exibir um cartel dos mais vistosos, pois ao longo da carreira dividiu palcos e estúdios com alguns dos maiores nomes do jazz, como Lee Konitz, Serge Chaloff, Max Roach, Cecil Payne, Howard McGhee, Zoot Sims, Georgie Auld, Gerry Mulligan, Artie Shaw, Buck Clayton, Phil Urso, Horace Silver, Warne Marsh, Milt Hinton, Billy Taylor, Herbie Mann, Brew Moore, Budd Johnson, Fats Navarro, Red Rodney, Gene Krupa, Al Cohn, Percy Heath, Art Blakey, Mundell Lowe, Ernie Royal, Urbie Green, Woody Herman, Paul Chambers, Kenny Burrell, Roy Eldridge, John Lewis, Charles Mingus, Tal Farlow, Oscar Pettiford, Red Garland, Bill Evans, Roy Haynes, Jimmy Cleveland, Melba Liston, Phil Woods, Jim Hall, Roland Kirk, Hubert Laws, Jerome Richardson, James Moody e uma infinidade de outros mais.

Um dos discos mais espetaculares de Winding, onde ele está muito bem acompanhado pela alma gêmea musical, J. J. Johnson, é “The Great Kai & J. J.”. Lançado pela Impulse, o álbum foi gravado entre os dias 04 e 09 de novembro de 1960 e reedita a parceria que causou furor nos meios jazzísticos da década anterior. A sessão rítmica é extraordinária: Bill Evans no piano, Paul Chambers ou Tommy Williams no contrabaixo e Roy Haynes ou Art Taylor na bateria.

O disco abre com a feérica “This Could Be the Start of Something Big”, de Steve Allen, onde os dois trombonistas destilam energia e swing abrasadores. O diálogo entre os dois, primeiramente no estilo pergunta e resposta e em seguida em uma vocalização em uníssono, é uma primorosa demonstração de técnica e sentido harmônico. Atenção para a batida infalível de Haynes, quase um metrônomo.

A doce “Georgia on My Mind”, pérola de autoria de Hagy Carmichael, merece um arranjo primoroso, com Kai fazendo a primeira voz e Johnson entrando em seguida. Nos solos, a expertise técnica superior desses dois ases se evidencia ainda mais. O clima etéreo é obra e graça de Evans, pianista para quem o adjetivo lírico parece ter sido especialmente inventado.

Quando Winding e Johnson montaram o seu quinteto, muitas vozes se levantaram contra o que era visto como uma verdadeira heresia: não era possível montar um pequeno conjunto com dois trombones na linha de frente. É uma meia verdade: de fato, um combo com dois trombones é uma heresia, salvo se os trombonistas envolvidos forem os excepcionais Kai e J. J. As evoluções que esses dois mestres elaboram em “Blue Monk”, de Thelonious Monk, são uma prova cabal disso. E a emocionante introdução feita por Evans é de tirar o fôlego.

Em “Judy”, composição de Johnson, mais uma formidável dose de histamina. Hard bop sacolejante e assobiável, é um tema bastante melódico. O primeiro solo fica a cargo do autor, e a sua sonoridade é mais encorpada. O som de Kai é mais escorregadio, graças ao ótimo uso da surdina. Solista dos mais engenhosos, Evans extrai faíscas em suas intervenções e o fraseado opulento de Chambers casa-se à perfeição com o som da dupla de trombones.

“Alone Together”, de Arthur Schwartz e Howard Dietz, é revisitada em um arranjo em tempo médio. J. J. se encarrega do primeiro solo, seguido por Kai, e ambos extraem dos seus instrumentos uma sonoridade quase lamentosa, outonal. O grande Art Taylor, dono de uma técnica irrepreensível, reforça a atmosfera sombria com uma percussão discreta e espaçada.

A sacolejante “Side by Side”, composta por Harry Woods, vem a seguir e retoma a animação típica da Era do Swing. J. J. emenda um solo fabuloso, repleto de variações harmônicas, preparando o terreno para a performance do parceiro, ainda mais arrebatadora. Como de hábito, a sessão rítmica providencia um acompanhamento esmerado e descontraído. Chambers e Haynes, em especial, se desdobram na ancoragem para que os dois solistas possam brilhar. O passeio de Evans pelas regiões mais agudas do teclado é memorável.

“I Concentrate on You”, de Cole Porter, recebe um arranjo típico de uma jam session, irreverente e relaxado. Com arranjo de Kai, que se responsabiliza também pelo primeiro solo, o quinteto se mostra muito à vontade para se divertir com as mais diversas possibilidades harmônicas. Bill Evans emenda um solo portentoso, vibrante e complexo. Atente-se para a atuação de Haynes, que impõe um pouco de latinidad em sua percussão, tornando o tema ainda mais rico.

O blues “Theme from Picnic”, de autoria de George Duning e Steve Allen, é executado em um saboroso tempo médio. Os solos são distribuídos na seguinte ordem: primeiro J. J. e Kai em seguida. O de J. J. é mais robusto e o de Kai, outra vez com a surdina, é mais cadenciado. O trabalho de Taylor com as escovas é uma aula de bom gosto e precisão.

“Trixie” foi composta por Johnson e possui uma atmosfera toda particular, remetendo às labirínticas composições de Monk. Sua base é o blues, mas podem-se perceber influências do gospel e uma discreta aproximação com o jazz de vanguarda. É o tema mais complexo do álbum, com solos de J. J. e Kai, respectivamente. O piano de Evans consegue conciliar harmonias arrojadas com a velha técnica dos acordes blocados popularizada por Red Garland.

“Going, Going, Gong!”, é o único tema de autoria de Winding e tem um discreto acento oriental, em grande medida por conta da percussão exuberante de Taylor, que em alguns momentos usa um gongo chinês para dar colorido à faixa. Kai e J. J. duelam em velocidade estonteante e o bom-humor da dupla remete às composições de Henri Mancini para o cinema.

Fechando o disco, a melancólica “Just for a Thrill”, de Don Raye e Lil Hardin Armstrong, tem um acento bluesy delicioso. A atuação dos líderes prima pela sobriedade, com J. J. entrando em cena em primeiro lugar e Kai pouco depois. O dinamarquês usa a surdina como um delicioso complemento, sem excessos ou exibicionismos. O breve solo de Evans vem embalado em uma pegada de blues bastante generosa. Para quem não está familiarizado com o som especialíssimo de Winding, esse disco é mais do que recomendado.

Em 1968, ele deixou a Verve e assinou com a A&M/CTI, por onde lançou apenas um álbum, “Israel”. Voltando ao ambiente jazzístico, Kai está à frente de um sexteto da pesada: J.J. Johnson no trombone, Herbie Hancock no piano, Eric Gale na guitarra, Ron Carter no contrabaixo e Grady Tate na bateria.  No final da década de 60, Winding co-liderou uma big band com Urbie Green, outro trombonista de primeira linha. Na década seguinte, ele repetiria a dose, desta feita à frente do “Giant Bones”, onde a liderança era compartilhada com o genial Curtis Fuller.

Entre 1971 e 1972, ele integrou um grupo all-star chamado “Giants of Jazz”, no qual também tocavam Dizzy Gillespie, Sonny Stitt, Thelonious Monk, Al McKibbon e Art Blakey. O grupo participou de vários festivais pelo mundo e legou à posteridade o fantástico “The Giants of Jazz” (Atlantic), gravado ao vivo no Victoria Theatre, em Londres, no dia 12 de novembro de 1972. Segundo o crítico Scott Yanow, trata-se de uma “sessão histórica e superlativa”.

Os anos 70 encontraram um Winding bastante ativo. Foi membro da All-Star Big Band, comandada pelo legendário Lionel Hampton. O trombonista foi uma das atrações do Festival de Newport de 1972, à frente de uma banda onde atuavam Flip Phillips e Zoot Sims. Continuou a gravar com freqüência para selos independentes, como Sonet, Glendale, Storyville e Black & Blue, sendo que um dos seus trabalhos mais relevantes da época foi o disco “Trombone Summit”, (MPS, 1980), onde se reúne com três trombonistas de peso: Albert Mangelsdorff, Bill Watrous e Jiggs Whigham.

Em 1982, Kai se reuniu pela última vez com o velho camarada J.J. Johnson, para uma apresentação no Aurez Jazz Festival daquele ano. Morando desde meados dos anos 70 na Espanha, na companhia da terceira mulher, Eleanor Winding, o trombonista levava uma vida confortável e podia se dar ao luxo de só tocar quando realmente quisesse. Presença constante em festivais pela Europa e na plenitude de sua criatividade, ele era um homem saudável que raramente ficava doente.

Durante alguns exames de rotina, feitos por causa de uma dor de cabeça intermitente, ele recebeu o diagnóstico de um câncer no cérebro. Bem-humorado e apaixonado pela vida, Kai era uma das personalidades mais queridas no mundo do jazz. Segundo Eleanor, ele "amava as cores, a natureza e a melodia. Ele sempre manteve o espírito jovem e acreditava que cada dia de vida era uma grande aventura". Após uma batalha de cinco meses contra a doença, ele faleceu no dia 06 de maio de 1983, em Nova Iorque. Suas últimas palavras à esposa foram: “Onde está a música?”.

Kai foi o grande homenageado do Kool Jazz Festival, realizado em junho daquele ano. A semente musical continua viva na família. Seu filho, o pianista e arranjador Jai Winding, é um respeitado músico de estúdio e já trabalhou com grandes nomes do jazz e da música pop, como Diane Schuur, Bee Gees, George Benson, Barbra Streisand, Julian Lennon, Michael Jackson, Cher, Madonna, America, The Eagles, Kenny Loggins, Boz Scaggs, Donna Summer e muitos outros.

Para o querido Pedro "Apóstolo" Cardoso, "Kai Winding foi bastante influenciado pelos mestres Jack Teagarden e Trummy Young mas, sem dúvida e ao lado de J.J.Johnson, foi dos primeiros músicos na adaptação do trombone para o “bebop”. Sua sonoridade, desprovida de vibrato, influenciou toda a seção de trombones da “máquina” de Stan Kenton dando-lhe seu timbre original. Foi um excelente técnico e conseguiu contribuir de maneira decisiva para que seu instrumento, o trombone, tivesse suas possibilidades reconhecidas no painel moderno do jazz".



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terça-feira, 14 de junho de 2011

MEU CORAÇÃO É A LIBERDADE...



Jovem. Bonita. Talentosa. A guitarrista Emily Remler despertava a admiração das pessoas e caminhava para se tornar uma das mais importantes e influentes vozes do jazz dos anos 90. Em pouco mais de dez anos de carreira, havia conseguido se impor em um mundo eminentemente masculino como o jazz instrumental, usando apenas a sua excepcional habilidade com o instrumento. Era respeitada por músicos do quilate de Joe Pass, Herb Ellis, Charlie Byrd, Jim Hall e Larry Coryell. Sua morte prematura, ocorrida em 04 de maio de 1990, em Sidney, Austrália, chocou a comunidade jazzística e provocou uma lacuna que, até hoje, não foi preenchida.

Emily nasceu em Nova Iorque, no dia 18 de setembro de 1957, e foi criada em Englewood Cliffs, Nova Jérsei. Ela começou a tocar guitarra com apenas 10 anos e seus heróis na época eram guitarristas de rock, como Jimi Hendrix, Keith Richards, Jimmy Page, Eric Clapton e Jeff Beck. A paixão pelo jazz, surgida graças à audição dos discos de Miles Davis, John Coltrane, Clifford Brown e, sobretudo, Wes Montgomery, arrebatou-a ainda na adolescência. A desenvoltura e o progresso rápido nos estudos musicais lhe valeram um presente e tanto: uma preciosa guitarra Gibson ES-330, que lhe foi dada pelo irmão mais velho.

Decidida a investir na carreira musical, Emily foi estudar no renomado Berklee College of Music, em Boston, de 1974 a 1976. Enfrentou preconceitos, mas superava as adversidades com determinação e muita disciplina. Ensaiava e estudava com uma intensidade quase feroz e desde aquele período convenceu-se de que uma mulher, para vencer no competitivo e seleto clube dos músicos de jazz devia se esforçar muito mais que um homem. Ela costumava dizer que “tinha que ser duas vezes melhor que um homem para conseguir um emprego”.

Graduada em 1976, com apenas 18 anos, Emily deixou Berklee e se mudou para Nova Orleans, onde tocou em diversas bandas de jazz e blues da região. Inicialmente, formou com o então namorado, o também guitarrista Steve Masakowski, um grupo de fusion chamado Four Play, que chegou a gozar de alguma visibilidade no cenário local.

Fã de blues, de música indiana e da bossa nova, ela costumava passar horas ouvindo discos de Johnny Winter, B.B. King, Ravi Shankar, Luís Bonfá, João Gilberto e Célia Vaz. Essa multiplicidade de referências musicais seria muito importante nos primeiros tempos da carreira profissional. Remler também continuou os estudos musicais, agora pelas mãos de Hank Mackie, um conhecido guitarrista de Nova Orleans.

Seu envolvimento com o jazz cresceu e ela passou a acompanhar grandes nomes que se apresentavam na cidade, como o pianista Michel Legrand e os cantores Robert Goulet e Nancy Wilson. Esta última gostou tanto da cantora que a levou para Nova Iorque. Na banda de Nancy, Remler se apresentou em locais de grande prestígio, como o Carnegie Hall e o Avery Fisher Hall.

De volta a Nova Orleans, Emily continuou a rotina, trabalhando com uma banda de R&B chamada Little Queenie and the Percolators e integrando a orquestra do Fairmount Roosevelt Hotel. Em 1977, ela soube que o grande Herb Ellis estava na cidade para realizar alguns concertos e decidiu procurá-lo, a fim de receber algumas lições.  

Herb conta como foi o encontro: “eu estava em Nova Orleans a trabalho, quando fui procurado por aquela jovem, que não parecia ter mais que 20 anos, que gostaria de estudar comigo. Eu pedi a ela que tocasse alguma coisa e quando ela começou a tocar, eu não acreditei no que estava ouvindo. Eu simplesmente deixei de pensar nela como uma garota e tive a certeza que ela seria um dos maiores nomes da guitarra de qualquer era. Ela conseguia tocar qualquer coisa”.

Ellis convidou a jovem guitarrista para participar da edição do Concord Jazz Festival do ano seguinte, na Califórnia. Emily quase não acreditou, quando pisou no palco e tocou ao lado dos Great Guitars, grupo integrado por Ellis, Charlie Byrd e Barney Kessel e Tal Farlow. Durante o festival, Emily pôde conhecer e tocar com feras como os baixistas Monty Budwig e Ray Brown e o baterista Jake Hanna. Sua atuação recebeu elogios por parte da crítica e lhe assegurou alguma notoriedade. Também lhe rendeu o convite para participar de outros shows com os Great Guitars, em Washington.

Depois dessa experiência, a mudança para Nova Iorque foi inevitável e na nova cidade, a guitarrista atuou em alguns espetáculos na Broadway e montou seu próprio grupo, com o baixista Eddie Gomez e o baterista Bob Moses. Sem esquecer as raízes roqueiras, ela chegou a fazer alguns shows com a banda punk The Stereotypes.

Durante esse período, ela foi convidada pelo baixista John Clayton para acompanhá-lo nas gravações do álbum “It’s All In The Family”, para a Concord. Foi a primeira vez em que ela entrou em um estúdio de gravação e sua performance chamou a atenção do produtor Carl Jefferson, fundador e principal executivo da gravadora.

O primeiro álbum como líder, gravado para a Concord em 1981, foi “Firefly”, que contava com as participações de Hank Jones no piano, Bob Maize no baixo e Jake Hanna na bateria. No mesmo período, Emily fazia apresentações consagradoras em festivais como o Concord Jazz Festival (agora como líder), Newport e Berlim (neste último, liderando uma banda formada pela saxofonista Jane Ira Bloom, pelo baixista Harvie Swartz e pelo baterista Daniel Humair).

No mesmo ano em que gravou o primeiro disco, Remler se mudou para Los Angeles. Um dos seus principais trabalhos foi no espetáculo Los Angeles “Sophisticated Ladies”, estrelado pelo ator e dançarino Gregory Hines e que se manteve em cartaz por quase um ano. O respeitado crítico Leonard Feather  a escolheu como “Woman of the Year” e ainda em 1981 ela se casaria com o pianista jamaicano Monty Alexander. O casamento perduraria até 1984.

Profissionalmente, ela encarava novos desafios, tocando com Larry Coryell, Ray Brown, Rosemary Clooney, David Benoit, Hank Crawford e Astrud Gilberto. Em 1985, foi eleita Guitarrista do Ano, em eleição realizada pela revista Beat Jazz. A dedicada Remler não esquecia a importância da educação musical formal e foi estudar composição com Aydin Esen e Bob Brookmire. Realizou excursões pelos quatro cantos do planeta, em países como Japão, Canadá, Alemanha, França, Holanda, Austrália e Nova Zelândia.

Após “Firefly”, Emily lançou mais cinco discos pela Concord: “Take Two”, de 1982, “Transitions” de 1983, “Catwalk” de 1984, “Together” (em duo com Larry Coryell), de 1985 e “East To Wes”, de 1988. Ainda em 1988, passou uma temporada na Duquesne University, em Pittsburgh, na qualidade de artista residente. No ano seguinte, foi agraciada com o Berklee's Distinguished Alumni, concedido a ex-alunos que se destacaram no cenário musical. Enveredou pela área de educação musical, lançando os vídeos instrucionais “Bebop & Swing Guitar” e “Advanced Latin & Jazz Improvisation”.

1989 foi um ano de transição. Após oito anos na Concord, Emily assinou com a Justice Records por onde gravou aquele que seria seu último álbum: “This Is Me”, lançado postumamente. O álbum marca uma aproximação da guitarrista com o fusion e conta com participações de expoentes do estilo, como os tecladistas David Benoit e Russ Freeman e o baterista Jeff Porcaro. Vários brasileiros atuam no disco, como a cantora Maúcha Adnet, o percussionista Café e o baterista Duduka da Fonseca.

Em 1990, Emily fazia uma turnê pela Austrália e estava hospedada na casa do trompetista Ed Gaston, em Sidney, quando, no dia 04 de maio, sofreu um ataque cardíaco fulminante. Algumas pessoas chegaram a aventar a hipótese de overdose de heroína, pois Emily há muito lutava contra a dependência química, mas a autópsia confirmou que a morte decorreu de causas naturais.

Embora tenha vivido apenas 32 anos, Emily deixou como legado uma obra rica e bastante marcante. Pode ser considerada, juntamente com Mary Osborne, o principal nome feminino da guitarra jazzística. Os seis álbuns que lançou como líder mostram uma intérprete extremamente habilidosa, inventiva e dotada de enorme personalidade.


Todas essas qualidades podem ser observadas no formidável “East To Wes”. Ao lado de Emily, uma sessão rítmica poderosa: Hank Jones no piano, Buster Williams no contrabaixo e Marvin “Smitty” Smith na bateria. As gravações foram feitas em Nova Iorque, durante o mês de maio de 1988 e a produção ficou a cargo de Carl Jefferson.

A faixa escolhida para abrir o disco é a fervilhante “Daahoud”, de Clifford Brown, provavelmente a composição mais conhecida do lendário trompetista. O ataque de Remler é implacável, furioso, visceral. A sessão rítmica se articula com idêntica vibração, com destaque para as atuações vertiginosas de Jones e Smith.

Tido como um dos temas seminais do cool jazz, “Snowfall”, do bandleader Claude Thornhill, recebe um arranjo sóbrio, onde os silêncios são um componente fundamental. O minimalismo da líder é quase hipnótico e contrasta com a performance vulcânica da faixa anterior. Emily se revela uma intérprete versátil, engenhosa e capaz de se adaptar aos mais diversos climas sonoros. Destaque para o contrabaixo algo solene de Wiliams.

O clima volta a ferver em “Hot House”, jóia da ourivesaria Sonora de Tadd Dameron. Dono de um swing incontestável e mestre em criar atmosferas rítmicas eletrizantes, Williams tem aqui uma de suas atuações mais memoráveis, tanto nos solos quanto no acompanhamento. Emily não se mostra intimidada por estar cercada tantos monstros sagrados. Sua técnica refinada é posta a serviço das frenéticas harmonias do bebop de maneira bastante natural, e mesmo a impressionante velocidade do seu dedilhado possui uma lógica bem definida e se encontra plenamente contextualizada, jamais resvalando para uma vulgar exibição de virtuosismo.

Na encantadora “Sweet Georgie Fame”, homenagem de Blossom Dearie ao grande cantor britânico, o quarteto mescla a cadência valsa retilínea da valsa com as harmonias imprevisíveis do jazz, com um resultado dançante e cheio de frescor. “Ballad for a Music Box” é uma composição de Emily, elegante e com uma atmosfera impressionista que, em alguns momentos, remete a compositores eruditos modernos, como Ravel e Debussy.

A agitada “Blues For Herb” é mais uma composição da guitarrista, que funde elementos do blues com a imprevisibilidade do bebop, com Emily esticando as notas com fúria e vigor. Seu fraseado cru lembra os melhores momentos do George Benson dos anos 60, quando ele ainda era um dos mais talentosos e originais guitarristas do período. A pulsação de Smith é vigorosa, explodindo em uma profusão de ritmos que contagia os parceiros e garante a profundidade indispensável a um blues genuíno

A releitura de “Softly, as in a Morning Sunrise”, de Oscar Hammerstein II e Sigmund Romberg, é das mais originais. Executada em tempo médio, a canção se desenvolve em torno do vertiginoso diálogo entre guitarra e bateria, com um resultado empolgante. Remler é muito aguerrida e seus solos evidenciam a intensidade emocional de quem que vive e respira música 24 horas por dia. A conferir também os improvisos contagiantes de Jones e Wiliams.

Em “East To Wes”, Emily formula uma verdadeira declaração de amor ao ídolo maior Wes Montgomery. Usando a técnica que consagrou Wes, Remler dispensa a palheta e toca com o polegar, conseguindo alcançar uma sonoridade bastante pessoal. O tema tem um discreto tempero de bossa nova e a interpretação do quarteto concilia enorme dinamismo com uma atmosfera de total relaxamento.

Lamentavelmente, a bela Emily nos deixou, quando sequer havia completado 33 anos. Sua obra merece ser conhecida, inclusive porque boa parte dos seus discos pela Concord se encontra fora de catálogo. Certamente está fazendo bastante sucesso nas concorridas jams celestiais, onde os neons jamais se apagam e o Bourbon nunca termina. Afinal, uma frase ajuda a compreender o seu amor e a sua dedicação ao jazz: “Por fora eu posso parecer apenas uma garota judia de Nova Jérsei, mas por dentro eu sou um negão de 50 anos, com um polegar enorme”.

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