Amigos do jazz + bossa

quarta-feira, 25 de abril de 2012

O JAZZ + BOSSA COMPLETA TRÊS ANOS NO AR. PARTICIPE DO NOSSO DESAFIO E GANHE UM DVD!


Caros amigos do Jazz + Bossa,

É com enorme satisfação e uma boa pontinha de orgulho que informo a todos que o blog completa, neste dia 25 de abril de 2012, três anos no ar. Durante esse tempo, fizemos inúmeros amigos no Brasil e pelo mundo, conhecemos um monte de gente bacana e pudemos compartilhar com pessoas maravilhosas o amor pela música e pelo jazz. Portanto, só posso agradecer o carinho e a participação de todos vocês aqui no jazzbarzinho.

E como já é praxe, o Jazz + Bossa lança o seguinte desafio, como parte das comemorações do seu aniversário: a primeira pessoa que acertar três das cinco questões propostas abaixo receberá, em casa e sem qualquer despesa de envio, o excelente dvd, novinho em folha e lacrado, “Milt Jackson And Ray Brown ‘77”, gravado ao vivo no Festival de Montreux.

1 – Qual o nome do livro e do autor de onde foi extraído o excerto abaixo?

“Quando Parker tinha trinta anos, o cenário do jazz devia parecer-lhe uma espécie de salão musical de espelhos, porque todos que pretendiam ser modernos copiavam uma parte do seu estilo em cada instrumento de jazz. ‘L’oeuvre de ce genial improvisateur’, escreve o brilhante André Hodeir, ‘est l’expression la plus parfaite du jazz moderne’. Tal como Louis Armstrong em 1930, Parker dominava o campo todo em 1950. De fato, a amplitude e a riqueza de sua invenção eram tamanhas que decorreram dois estilos mais ou menos opostos da sua maneira de tocar. Nenhum músico até agora teve capacidade para absorver tudo de Parker, muito embora alguns hajam adotado certos aspectos do seu estilo.
Pois Parker possuía a compreensão harmônica e a técnica deslumbrante de Gillespie, e mais um senso rítmico que parece ser mais sofisticado do que o afro-cubano e que contudo permanecia honestamente enquadrado na tradição do jazz. Várias frases melódicas improvisadas por Parker, bem como as mais avançadas harmonias em que elas se baseavam, se tornaram clichês no jazz de 1950; isso ocorreu inclusive nos arranjos das bandas comerciais para dança”.

2 – Quem é o músico que aparece na foto abaixo?



3 – Qual o nome do livro e do autor de onde foi extraído o excerto abaixo?

“Quando o desafio à velha ordem chamado ‘bebop’ surgiu, ninguém, principalmente entre os seus executantes, teria dado crédito à idéia de que era uma proposta comercial. Tratava-se simplesmente de algo revolucionário, aparentemente com uma sonoridade pouco atraente, e tocado, habitualmente, a uma velocidade que não permitia dançar.
O bebop evoluiu de uma forma quase clandestina em meia dúzia de locais. Todos os seus expoentes eram de raça negra e havia uma certa dimensão racial envolvida na experiência. Os músicos negros há muito tempo estavam conscientes de que o seu fraseado – os seus ‘lichs’ e ‘riffs’ – e as suas composições tinham sido apanhadas pelos músicos brancos, e tinham visto essas bandas brancas, muito inferiores, tornarem-se comercialmente bem sucedidas. Um dos objetivos do bebop era criar uma música que o homem branco não pudesse roubar. Embora as origens raciais do jazz nunca tivessem sido completamente determinadas, o facto de o bebop ser uma inovação negra é indesmentível”.

4 – Quem é o músico que aparece na foto abaixo?



5 – Quem é o(a) pianista que toca na faixa postada abaixo?


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A regra é clara: O primeiro que acertar três das questões acima ganha o dvd. Mas a resposta tem que estar totalmente correta, ok? Assim, no caso dos trechos reproduzidos, é necessário que o leitor acerte o nome livro e do respectivo autor para que a questão seja considerada válida. Boa sorte a todos e que comece o desafio!!!!!

domingo, 22 de abril de 2012

QUANDO O APITO DA FÁBRICA DE TECIDOS...





A música brasileira deve muito à Fábrica de Tecidos Bangu, também conhecida como Tecelagem Bangu. Fundada em 1889 no famoso subúrbio do Rio de Janeiro, a fábrica tinha o pomposo nome de Companhia Progresso Industrial do Brasil. A imponente chaminé de quase 60 metros de altura podia ser vista mesmo a grande distância e após a sua instalação, Bangu tornou-se um movimentado bairro, com estação de trem, escolas (uma delas construída pela própria fábrica), hospitais, igrejas e até um clube de futebol, o Bangu Atlético Clube.

A tecelagem foi construída em padrão inglês, com a fachada dos prédios exibindo aqueles charmosos tijolinhos da Terra da Rainha. Ao redor dela, foi uma vila operária, cujas casas também possuíam as fachadas com tijolinhos. A fábrica possuía creche para os filhos das operárias e um moderno ambulatório, onde eram prestados os primeiros socorros em caso de acidente. Também possuía jardins no estilo europeu e lagos artificiais. As trocas de turno eram anunciadas por uma poderosa sirene, que podia ser ouvida a quilômetros.

O cantor Mário Reis, por exemplo, era filho de um dos maiores acionistas da empresa e jamais teve os problemas financeiros que afligiam a grande maioria de seus colegas músicos. Contemporâneo de Mário, o genial Noel Rosa se inspirou no estridente apito da fábrica de Bangu para criar a imortal “Três apitos”. Como se não bastasse, a indústria ainda possuía uma afamada orquestra, integrada por operários e por moradores do bairro.

Pois foi ouvindo, e depois integrando, essa orquestra que um dos nossos mais formidáveis músicos iniciou a sua longa e riquíssima carreira musical. Nascido no dia 23 de agosto de 1934 e batizado com o nome de João José Pereira de Souza, ele foi criado nas ruas de Bangu, apesar de ter vindo ao mundo no bairro do Campo Grande, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. O primeiro instrumento a que se dedicou, ainda na infância, foi o pandeiro.

O pai era pastor presbiteriano e costumava levar o garoto aos cultos da sua igreja, via de regra, animados por um conjunto musical integrado por alguns fiéis. Ali, o pequeno João aprendeu os rudimentos da flauta, do trompete, do saxofone e da tuba, instrumento que tocava na orquestra da Tecelagem Bangu. Ele tinha 16 anos e era considerado um verdadeiro prodígio do instrumento, mas ingressou na fábrica primeiramente como tecelão, juntando-se à orquestra poucos meses depois.

Apesar da habilidade do jovem, a tuba era um instrumento pesado e bastante incômodo. Por esse motivo, nosso herói mudou para o trombone de válvulas e, logo em seguida, para o trombone de vara, instrumento que o acompanharia pelo mundo afora. Dono de um talento quase sobrenatural, João era um freqüentador assíduo do programa de calouros de Ary Barroso, que lhe deu o nome artístico: Raul de Souza.

O veterano compositor e apresentador dizia que João José não era nome de trombonista e como já havia um outro Raul no pedaço (o lendário Raul de Barros), Souza passou a ser conhecido no meio musical como Raulzinho. Começou a atuar profissionalmente nas gafieiras cariocas na primeira metade dos anos 50 e logo em 1957 foi eleito “Músico do Ano”, juntamente com o saxofonista Case, em eleição feita pelo crítico Paulo Santos em seu programa de jazz na Rádio MEC, do Rio de Janeiro. Até então, já havia acompanhado figuras de peso, como Elizeth Cardoso, Altamiro Carrilho e Agostinho dos Santos.

Apesar do prestígio, as incertezas da vida musical o impulsionaram para a vida militar e ele se alistou na Aeronáutica. Destacado para Curitiba, foi integrante da banda da Base Aérea do Bacacheri. Na capital paranaense, além de fazer muitos amigos, como o jovem jornalista Roberto Muggiati, o escritor Dalton Trevisan e o futuro cineasta Sylvio Back, Raul protagonizou um episódio dos mais insólitos.

Muggiti conta que certa noite, após uma apresentação na Boate Tropical, Raul, com o inseparável trombone a tiracolo, resolveu parar às margens de um lago no Passeio Público para pensar na vida. Ali havia alguns pedalinhos e o músico entrou em um deles, indo parar no meio do lago. Começou, então, a tocar o seu instrumento e um búfalo que estava na margem do lago ouviu aquele som e se aproximou.

O animal chegou bem perto do pedalinho e ficou ali, inebriado, com aquela serenata inesperada. Por volta das seis da manhã, Raul terminou o concerto e voltou para casa. Antes, encostou em um bar, onde os boêmios da cidade costumavam amanhecer, e anunciou à perplexa assistência: “Hoje encontrei o meu melhor amigo: um búfalo”. É claro que ninguém levou a sério a história e todo mundo pensou que Raul tivesse tomado umas duas a mais!

Dispensado da aeronáutica em 1963, o trombonista passou um período em São Paulo, tocando em bares e casas noturnas como o Juão Sebastião Bar e a Baiúca. No ano seguinte, voltou ao Rio de Janeiro e logo estava tocando nos grupos dos pianistas Luiz Carlos Vinhas e Sergio Mendes. Com este último, fez as suas primeiras viagens aos Estados Unidos e Europa.

Para complementar o orçamento, Raul também fazia parte da Orquestra Carioca, ligada à tradicional Rádio Mayrink Veiga e onde também atuavam o alagoano Hermeto Pascoal e o gaúcho Radamés Gnattali, este responsável pelos arranjos da orquestra. Em 1965, gravou o primeiro álbum como líder, “À vontade mesmo”, para a RCA-Victor.

Raul era um dos mais assíduos freqüentadores das jam sessions que aconteciam no famoso Beco das Garrafas, em Copacabana. Em boates como Bottles, Little Club e Bacarat, músicos do gabarito de Tenório Júnior, Milton Banana, Antônio Adolfo, Otávio Bailey, Edison Machado, Paulo Moura, Dom Salvador, Durval Ferreira, Sérgio Barrozo, Robertinho Silva, Otávio Bailey, Dom Um Romão, Luiz Eça, Chico Batera, Edson Maciel, Sérgio Mendes, Aurino Ferreira, Hélcio Milito, J. T. Meireles e outros, criavam o poderoso samba-jazz.

O panorama musical brasileiro começa a mudar à medida em que a ditadura militar instaurada em 1964 endurece e começa a perseguir qualquer um que ousasse criticar o regime. Além disso, com a chegada de compositores que também eram cantores, como Gilberto Gil, Chico Buarque, Edu Lobo, Caetano Veloso, Sidney Muller e outros mais, a música instrumental foi ficando sem espaço na mídia, nas gravadoras e até mesmo nas casas noturnas, seu mais tradicional reduto.

Ainda assim, Raul se mantém em atividade regular no país. Toca com Milton Nascimento e em 1966 faz a sua segunda viagem à Europa, acompanhando o pianista Luís Carlos Vinhas. Raul permaneceu em Paris por quase um ano, trabalhando na boate Elephant Blanc e no célebre clube Blue Note, em Paris. Uma noite, ninguém menos que Kenny Clarke, um dos pais da bateria do bebop, apareceu para assistir à apresentação do trombonista, se empolgou e acabou dando uma canja. Souza também trabalhou algum tempo na orquestra do o Cassino de Monte Carlo, no luxuoso principado europeu.

No ano seguinte, já de volta ao Brasil, Raul ingressa no RC-7, banda que acompanha Roberto Carlos, o artista mais bem pago do país, e faz uma ponta no filme “Roberto Carlos em ritmo de aventura”. O trombonista ainda gravaria mais um disco no Brasil, em 1969, à frente do grupo instrumental Impacto 8 (“International Hot”, selo Equipe, com participações de, entre outros, Oberdan Magalhães e Robertinho Silva) mas o reconhecimento foi pífio.

Após passar algum tempo na banda de Gilberto Gil, Raul decide fazer as malas e se mudar para o México naquele mesmo ano, passando cerca de três anos em Acapulco. Em 1972, ele resolve tentar a sorte nos Estados Unidos e se estabelece em Los Angeles. Com a ajuda de músicos brasileiros ali residentes, como Sérgio Mendes, Flora Purim e Airto Moreira, o trombonista vai, pouco a pouco, conquistando o seu espaço no concorrido mercado norte-americano.

Não demorou a ficar amigo do também trombonista Frank Rosolino e em pouco tempo estava tocando e gravando com a nata dos músicos de jazz. Figuras do calibre de Sonny Rollins, Freddie Hubbard, George Duke, Lionel Hampton, Hubert Laws, Sarah Vaughan, Stanley Clarke, Ron Carter, Cal Tjader, Chick Corea, Jimmy Smith e incontáveis outros.

Raul participou das gravações do álbum “Casa Forte”, de Flora Purim e de “Identity”, de Airto, que tinha como convidados especiais os craques Egberto Gismonti, Herbie Hancock e Wayne Shorter. Por intermédio de Airto, Raul conheceu e se tornou amigo de feras como Richard Davis, Jack DeJohnette, Cannonball Adderley e J. J. Johnson, seu ídolo desde os tempos do Beco das Garrafas. Os quatro participariam do primeiro álbum norte-americano de Raul, “Colors” (Milestone, 1974), que teve produção do próprio Airto.

O sucesso do álbum abriu-lhe as portas para o circuito de festivais internacionais de jazz, tendo participado de alguns dos mais tradicionais deles, como os de Montreux e Monterey. Em 1976 Raul assinou com a Capitol Records e seus dois primeiros álbuns pela nova casa, “Sweet Lucy” e “Don't Ask My Neighbors”, contaram com a produção do pianista George Duke.

Raul passou algum tempo em Boston estudando na afamada Berklee School of Music, mas não se demorou por lá, voltando a residir em Los Angeles poucos meses depois. Em 1978, ele foi uma das atrações do Festival de Jazz de São Paulo, apresentando-se em duo com seu amigo Frank Rosolino.

No álbum seguinte, Duke foi substituído por Arthur Wright e o resultado, “Til Tomorrow Comes” (1979), foi decepcionante. Tentando pegar carona na onda Disco que varria o planeta, Raul abandonou completamente o jazz. Ainda assim, o disco foi um fiasco de vendas e acarretou o seu desligamento da Capitol. Sem emprego e com poucas perspectivas nos Estados Unidos, Raul, que já havia sido eleito pela New York City Jazz Magazine um dos cinco melhores trombonistas do jazz de todos os tempos, decidiu voltar para o Brasil no início dos anos 80.

Dividindo-se entre o Rio de Janeiro e São Paulo, Raul chegou a gravar alguns discos, como “Viva Volta” (produção independente de 1986, bancada pelo empresário Romualdo Zanoni, que criou  próprio selo “Inverno e Verão”, para lançar por ele espetáculos gravados ao vivo em suas casas noturnas, incluindo aí craques como Zimbo Trio, Dick Farney e Titi Madi) e “A Arte do Espetáculo” (RGE, 1992), mas a repercussão foi praticamente nula. Raul também atuou em gravações de nomes como Gilberto Gil, Toninho Horta, Djavan, Maria Bethânia, Lisa Ono, Taiguara, João Donato e Tom Jobim.

Somente em 1998 é que consegue chamar alguma atenção para o seu trabalho como líder, ao lançar o disco “Rio” (Mix House / Eldorado), em parceria com o trombonista norte-americano Conrad Herwig. O trabalho da dupla foi comparado pela crítica especializada ao de outra famosa dupla de trombonistas: J. J. Johnson e Kai Winding. Naquele mesmo ano, Raul decide se mudar para a Europa, estabelecendo-se em Paris.

Desde então, Souza tem se mantido em intensa atividade, passando pelo menos seis meses por ano em nosso país. Além das realizações musicais propriamente ditas, Raul também pode se orgulhar de haver inventado um instrumento singular, o Souzabone, um trombone eletrificado e composto por quatro válvulas, uma a mais que o tradicional trombone valvulado.

Ele compôs, juntamente com o pianista Guilherme Vergueiro, a trilha sonora do documentário “Lost Zweig”, de 2002, com direção de Sílvio Back e foi o grande homenageado do Chivas Jazz Festival, em 2004. No ano seguinte, retornou ao Brasil para lançar o álbum “Elixir”, gravado com o seu quarteto em 2004 e lançado aqui pela Tratore, e para participar do lançamento do documentário “Viva Volta”, dirigido pela cineasta Heloísa Passos, que recria a trajetória pessoal e artística de Raul.

O ano de 2006 marca a reunião do trombonista com a gravadora Biscoito Fino e o primeiro fruto dessa parceria pode ser ouvido no CD “Jazzmin”, eleito Melhor Cd Instrumental do Ano de 2007 pela revista “Jazz +”. Dois anos depois, viria ao mundo, pela mesma gravadora, o excepcional “Bossa Eterna”. As gravações foram feitas ao longo do mês de março de 2008, no Rio de Janeiro e o disco surgiu da necessidade de Raul “mostrar como se toca o samba para a rapaziada jovem, para a garotada depois poder improvisar do seu jeito”.

À frente de um quarteto de peso, com João Donato no piano, Luz Alves no contrabaixo e Robertinho Silva na bateria, o trombonista exibe o seu estilo crepitante e cheio de energia. A primeira faixa, “Bossa Eterna”, composição de sua autoria, é um animado samba jazz, altamente dançante, temperado com inflexões tipicamente jazzísticas, mas sem abrir mão da sonoridade vibrante das gafieiras. Robertinho Silva é um monstro e sua percussão, repleta de alternâncias rítmicas, empresta um colorido todo especial ao tema.

A seguir, vem a sincopada “Só por Amor”, parceria das menos conhecidas de Vinícius de Moraes e Baden Powell. A sonoridade de Raul é encorpada, cheia de vibrato e seus graves são repletos de modulações. Robertinho, mais uma vez, realiza um trabalho impecável, agora usando a famosa técnica do samba no prato, popularizada pelo grande Edison Machado.

“Fim de Sonho” é uma típica composição de João Donato. Levada de bossa nova com pitadas de jazz, bolero e ritmos afro-caribenhos, e uma pujança rítmica contagiante. O sopro líder é uma mistura de malandragem e técnica apurada e o contraste entre a abordagem mais solta de Raul e as refinadas harmonias de Donato são capazes de enfeitiçar o mais cético dos ouvidos.

O clássico pré-bossa nova “Balanço Zona Sul”, de Tito Madi, recebe um arranjo alegre, bastante assentado no samba de gafieira, mas com elementos, aqui e ali, do jazz, especialmente nos improvisos. A verve de Raul é sempre espontânea e seus acordes elásticos são a prova mais incontestável de que há mais pontos de contato entre as antigas gafieiras da Praça Tiradentes e os clubes da Rua 52 do que ouvinte menos atento pode captar.

Raul presta uma bela homenagem ao seu parceiro João Donato e constrói um tema bastante fiel ao estilo do pianista em “A La Donato”. É uma bossa nova turbinada, com direito a solos imprevisíveis por parte de Raul, que aqui manuseia o seu Souzabone com uma competência absurda, e de Donato. Este, por sua vez, retribui a gentileza com a ensolarada “Malandro”, samba jazz dolente e ritmado, onde brilha a levada segura de Luiz Alves e o sopro opulento de Souza.

A estonteante “Nuvens” é um dos temas mais belos da música instrumental brasileira. Composta por Durval Ferreira e Maurício Einhorn, já foi gravada por luminares do jazz como Cannonball Adderley e Paquito D’Rivera. A versão do álbum figura, sem nenhuma dúvida, entre as mais belas já realizadas em qualquer época, com a adição da gaita sublime de Einhorn. O diálogo entre o gaitista e o trombonista é enternecedor e, durante os pouco mais de cinco minutos da faixa, o ouvinte é transportado para um universo mágico de beleza e encantamento.

“Lugar comum” é uma parceria de Donato e Gilberto Gil. Canção praieira e de melodia simples, ela ganha uma nova dimensão harmônica pelas mãos do quarteto. Raul apresenta mais um tema de sua autoria, “Pingo d’água”, com sua introdução que flerta com as dissonâncias do free jazz, em um diálogo com Robertinho Silva que lembra as investigações de John Coltrane e Rashied Ali no experimental “Interstellar Spaces” (Impulse, 1967). O tema propriamente dito navega pelas águas caudalosas do samba jazz, com destaque para a percussão infecciosa de Robertinho e para as mirabolantes acrobacias do imprevisível Raul, mais uma vez a bordo do Souzabone.

A faixa de encerramento é “Bonita”, de Tom Jobim. O título da canção diz tudo sobre sua melodia e suas harmonias. Mais ainda sobre a execução impecável do quarteto. O lirismo jobiniano se mantém intacto, mesmo com um andamento pouco mais acelerado que o habitual, graças, sobretudo, ao dedilhado delicado e sereno de Donato. Robertinho Silva explora com argúcia o parentesco entre a bossa nova e o samba tradicional, enquanto Raul tece uma equilibrada teia melódica, na qual convivem de modo fraterno a sofisticação harmônica do jazz e a jovialidade do nosso samba.

Sobre o disco, o crítico Roberto Muggiati escreveu: “Impossível rotular sua música. Samba? Choro? Jazz? Talvez um samba mitológico, dentro da sua cabeça (como aquele dentro da cabeça de João Gilberto), uma espécie de jazzfieira, ele que gravou pela primeira vez com Altamiro Carrilho e a Turma da Gafieira. Ou, atando as duas pontas da sua carreira fonográfica, e incorporando o verdadeiro achado que é o título de seu último CD — e da sua composição que abre o disco — a ‘Bossa Eterna’ de Raul de Souza”.

Casado com a francesa Yolaine, Raul se divide entre a França e o Brasil. Em 2008, participou do Amazonas Jazz Festival e da Virada Cultural de São Paulo, além de ter excursionado pelo país com turnê Circular BR, comemorativa aos seus 55 anos de carreira, acompanhado pelo trio do gaitista Gabriel Grossi. Outro encontro marcante foi o concerto realizado em abril de 2009, ao lado da Orquestra Jovem Tom Jobim, no Memorial da América Latina, em São Paulo, tendo Raul e o saxofonista Hector Costita como solistas convidados, sob a regência de Roberto Sion.

A vontade de desbravar novos caminhos e de levar a sua música aos quatro cantos do mundo levou Raul a aceitar o convite para se apresentar, em 2006, festivais de jazz como o da Ilha da Reunião, nos confins do Oceano Índico, no PopKomm Musik Festival, em Berlin, no Cartaghe Jazz Festival e no Tabarka Jazz, ambos na Tunísia, e no Ete Jazz Festival, em Genebra. A seu lado, os jovens músicos curitibanos Jeff Sabagg no piano, Glauco Solter no contrabaixo, Endrigo Bettega na bateria e Mario Conde na guitarra, que o haviam acompanhado nas gravações de “Jazzmin”.

Raul reconhece que o panorama musical do país é menos hostil à música instrumental do que há alguns anos atrás. Em sua opinião: “O cenário melhorou no Brasil, mas ainda há muito a melhorar. Precisamos descobrir gente nova. O músico brasileiro é diferente. Aqui, nossa música é feita em compasso 2/4, lá, a deles é em 4/4. A gente consegue se virar na deles, mas eles não conseguem tocar bem a nossa”.


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quarta-feira, 18 de abril de 2012

A LUTA CORPORAL


Fosse um boxeador, George Edward Coleman provavelmente seria um peso-pesado capaz de rivalizar com lendas do porte de Joe Frazier, Muhammed Ali ou seu xará George Foreman. Como preferiu ganhar a vida tocando saxofone, e não trocando socos em um ringue, jamais saberemos se ele realmente seria capaz de levar à lona esses gigantes. Mas uma coisa é certa: se existe alguém capaz de simbolizar a expressão “sonoridade musculosa” ao sax tenor, este alguém, certamente, é Coleman.

Esse gigante dos palcos é mais uma cria de Memphis, no Tennessee, onde nasceu no dia 08 de março de 1935.  Começou a se envolver com a música no comecinho dos anos 50 e sua turma era composta de sujeitos como o trompetista Booker Little, os saxofonistas Frank Strozier, Hank Crawford e Charles Lloyd, o baixista Jamil Nasser e os pianistas Phineas Newborn Jr. (o mais velho da turma e espécie de guru da rapaziada) e Harold Mabern. Quase todos estudavam na Manassas High School.

Outro jovem aspirante ao estrelato que andava com essa galera do barulho era o future Rei do Blues B. B. King, que em 1952 convidou o jovem saxofonista, então com 17 aninhos, para se juntar à sua banda. Ao mesmo tempo, George tornava seu nome conhecido no circuito do R&B ao elaborar arranjos para artistas como Ray Charles (como em “Lonely Avenue”, “Drown in My Own Tears” e “I Got a Woman”) e The Moonglows.

Coleman iniciou-se nas artes do sax alto aos quinze anos, profundamente influenciado por Charlie Parker. O amor pelo jazz o fez deixar de lado sua outra paixão, o futebol americano. Ele relata como foram seus anos de formação: “Minha primeira inspiração foi Charlie Parker. Ele foi, provavelmente, o mais talentoso e criativo músico da história do jazz. Eu tive a oportunidade de ouvir um monte de grandes músicos na minha juventude. Stan Getz tinha um som super popular e tocava bastante nas jukeboxes. Dizzy também rolava nas jukeboxes naquela época. Eu praticava esportes, mas gostava mesmo era de música. No meu último ano, desisti de futebol e me direcionei apenas ao jazz”.

Em 1953 Coleman passa a se dedicar exclusivamente ao sax tenor, instrumento que o tornaria conhecido e reverenciado no meio jazzístico. Em seu fraseado, percebem-se ecos de Dexter Gordon, Gene Ammons, Frank Foster e Wardell Gray, suas novas e profundas influências. Após quase quatro anos de prolífica convivência musical, ele deixa a banda de King e, juntamente com o amigo Booker Little, se muda para Chicago, cidade que possuía uma das cenas musicais mais efervescentes da época.

Na Cidade dos Ventos, George toca com luminares do calibre de Gene Ammons, Johnny Griffin, John Gilmore, Von Freeman, Junior Mance, Eddie Higgins, Wilbur Ware e Ira Sullivan. Também foi membro do grupo do baterista Walter Perkins, chamado “MJT + 3”. Sua desenvoltura nas gigs locais coloca seu nome em evidência e ele passa a usufruir do status de astro em ascensão.

Em 1958, outro baterista, o badalado Max Roach, convidou Coleman para se juntar a seu quinteto, numa formação que incluía, ainda, o trompetista Kenny Dorham (logo depois substituído por Booker Little), o pianista Eddie Baker e o contrabaixista Bob Cranshaw (que daria lugar a Art Davis). Além da maior visibilidade e participação em álbuns antológicos como “Deeds, Not Words” (Riverside, 1958), o trabalho com Roach acarretou em nova mudança de domicílio para o saxofonista, que agora iria levar seu talento para a Meca do Jazz.

Em 1959, George deixou o grupo, para integrar o octeto do trombonista Slide Hampton e atuar como freelancer. Nessa qualidade, tocou com feras como Howard McGhee, Jimmy Smith, Lee Morgan, Frank Strozier, Curtis Fuller, Eddie McFadden, Kenny Burrell, Donald Bailey, Ron Carter, Jimmy Cobb e outros. Na banda de Hampton, George integrava um poderoso naipe de metais, juntamente com o líder, o trombonista Julian Priester, o velho amigo Booker Little e o novato Freddie Hubbard, então uma promissora revelação do trompete.

George se manteve na banda de Hampton, com quem fez sua primeira viagem à Europa, até 1962 e reputa ao trombonista o mérito de lhe haver estimulado a veia de compositor e arranjador. Após a saída do grupo, se integrou à banda do organista Wild Bill Davis, mas um telefonema de outro Davis, o Miles, seduziu o saxofonista. O ano era 1963 e fazer parte da banda do então poderoso Miles era o sonho de onze entre dez jovens jazzistas.

Coleman ingressa em um período de transição. Miles estava remodelando a sua banda, em busca de algo completamente novo, e aquele enérgico saxofonista de Memphis lhe causou a melhor das impressões. Não é à toa que, por um breve período, agregou ao seu sexteto outros dois jovens amigos de Coleman, o altoísta Frank Strozier e o pianista Harold Mabern.

Estes não ficaram muito tempo com Miles, que aboliu o sax alto e manteve apenas o tenor na sua formação. Quando finalmente achou os músicos que estava procurando – Herbie Hancock no piano, Ron Carter no contrabaixo e Tony Williams na bateria – Davis voltou a ficar na crista da onda e confirmou-se, mais uma vez, como uma das vozes mais influentes do jazz.

Coleman pode se orgulhar de ter participado de verdadeiras obras-primas do jazz, como “Quiet Nights” (1962), “Seven Steps to Heaven” (1963), “Four & More” e “Miles Davis in Europe” (ambos de 1964) e “My Funny Valentine” (gravado em 1964, mas lançado apenas no ano seguinte), todos para a Columbia. Invariavelmente, a sua sonoridade robusta e cheia de personalidade roubava a cena.

Em meados de 1964, George deixa a banda, sendo substituído por Sam Rivers que, por seu turno, daria lugar, ainda naquele ano, a Wayne Shorter. Todavia, ele não passou muito tempo desempregado e logo após a sua saída, o saxofonista ingressou na banda do lendário Lionel Hampton. Quanto ao tempo que passou com Miles, as lembranças são bastante positivas:

“Eu não quero parecer arrogante ou presunçoso, mas sinto que fui bastante importante para o grupo, durante aquele período. E que realmente dei o melhor de mim em todas as apresentações e nos cinco álbuns que gravei com Miles. Foi uma experiência agradável e que me trouxe muito conhecimento, da mesma forma que aconteceu com todos os grandes músicos com quem trabalhei, incluindo Max Roach”.

Coleman também marca presença em um dos mais importantes álbuns dos anos 60, o formidável “Maiden Voyage” (Blue Note, 1965), sob a liderança do seu ex-companheiro Herbie Hancock. Ao lado deles, os dois outros integrantes da sessão rítmica de Miles, Ron Carter e Tony Williams, e mais o estupendo Freddie Hubbard no trompete.

Como sideman, participa de outro projeto de grande relevo, desta feita tendo Chet Baker como líder, em uma série de cinco álbuns gravados para a Prestige. Conhecidos como “Chet Baker’s Prestige Sessions”, os discos (“Smokin’”, “Groovin’”, “Comin’ On”, “Cool Burnin’” e “Boopin’”) foram gravados entre os dias 23 e 25 de agosto de 1965 e são alinhados entre os melhores trabalhos do trompetista na tumultuada década de 60. No acompanhamento, estão o pianista Kirk Lightsey, o contrabaixista Herman Wright e o baterista Roy Brooks.

Em 1966, George pede dispensa da orquestra de Hampton para se dedicar a seus próprios projetos. Além de montar grupos à sua imagem e semelhança, ele também continua a ser um requisitado acompanhante e registra participações em concertos e discos de sumidades como Tete Montoliu, Elvin Jones, Charles Mingus, Clark Terry, Horace Silver, Betty Carter, Chet Baker, Shirley Scott, Charles McPherson, Richie Beirach, Cedar Walton. Como líder, lança seus álbuns por selos como Verve, Muse, Charly, Timeless, Absord, Evidence, Birdology e Telarc.

Durante os agitados anos 60, o saxofonista também militou incisivamente na luta pelos direitos civis, aproximando-se do casal de atores Ruby Dee e Ossie Davis, dois dos mais destacados ativistas da causa negra. O cinema, diga-se de passagem, é uma das grandes paixões de Coleman, que além de participar das trilhas de diversos filmes, ainda fez pontas em alguns deles.

Foi o caso de “Sweet Love, Bitter” (de 1967, dirigido por Herbert Danska e estrelado por Dick Gregory), baseado na vida de Charlie Parker, cuja trilha foi composta por Mal Waldron e Charles McPherson. Mas ele ainda participaria de outras produções futuramente, como a ficção científica “Freejack”, de 1992, com Emilio Estevez, Mick Jagger e Anthony Hopkins no elenco, ou em “Preacher’s Wife”, de 1996, com Denzel Washington e Whitney Houston nos papéis principais, além de ter aparecido rapidamente em um episódio da série “The Bill Cosby Show” na década de 80.

A partir da década de 70, Coleman inicia uma bem-sucedida carreira de educador musical, ministrando aulas, palestras e oficinas em instituições e órgãos de prestígio como a Juilliard School of Music, a New School University, a Long Island University, a New York University, o Chicago Department of Cultural Affairs e a Mannes School of Music, entre outras. Entre seus ex-alunos há figuras de relevo, como David Sanborn e Eric Alexander.

Sua discografia como líder é bastante concisa, mas seus poucos discos primam pela excelência. Nada do que Coleman lança é irrelevante ou de qualidade mediana. É o caso do formidável “At Yoshi’s”, gravado ao vivo no célebre clube californiano, durante uma temporada realizada em agosto de 1987. Ao lado do saxofonista, os veteranos Harold Mabern (piano), Alvin Queen (bateria) e Ray Drummond (contrabaixo).

Para abrir os trabalhos, a escolhida foi “They Say It's Wonderful”, graciosa balada de Irving Berlin. A canção fisga o ouvinte desde os primeiros acordes e a delicada introdução, a cargo de Mabern e Coleman, antecipa o que virá em seguida: uma execução lírica, magnética, emocionante. A sonoridade encorpada do saxofonista transmite, simultaneamente, calor e placidez. Vale a pena prestar atenção no longo e apaixonado solo de Drummond.

Imortalizada na voz de Billie Holiday, “Good Morning Heartache”, de Dan Fisher, Ervin Drake e Irene Higginbotham, recebe um arranjo comovente. As frases de Coleman são viscerais, dotadas de um romantismo quase cortante. O suporte dado pela sessão rítmica é dos mais compactos, com destaque para o dedilhado límpido e discretamente assentado no blues de Mabern e para as sutilezas percussivas de Queen.

“Laig Gobblin’ Blues” é um tema do próprio Coleman, que se inspirou no soul jazz sessentista de craques como Stanley Turrentine ou Eddie Harris. O blues está presente, na levada ressonante de Queen e Mabern, que se responsabilizam por algumas das mais eletrizantes trocas de compassos do disco. A potência sonora do líder é exposta em toda a sua plenitude, seu ataque é rápido e viril, repleto de influências de tenoristas como Dexter Gordon, Sonny Rollins e John Coltrane.

A infecciosa “Io” é uma composição do pianista Paul Arslanian, que faz uma deliciosa mistura de hard bop, R&B, soul e calipso. A bateria de Queen conduz o ritmo com energia contagiante, enquanto o líder despeja suas notas fulgurantes com entusiasmo e uma certa crueza. Dando uma aliviada na temperatura, “Up Jumped Spring”, de Freddie Hubbard, é um blues que incorpora elementos de valsa. Os ornamentos harmônicos de Mabern são pura elegância, enquanto o líder, cuja abordagem aqui é mais polida e menos rascante, dá uma aula magna de fluência e habilidade técnica.

Segundo tema de autoria do líder, “Father” é uma balada em tempo médio, com uma melodia adorável, embalada em um arranjo dos mais charmosos. A interpretação de George é um misto de volúpia e lirismo, capaz de produzir matizes sonoros delicados e, em seguida, criar harmonias quase guturais. O luxuriante acompanhamento de Drummond, sempre volumoso e cheio de personalidade, também merece ser ouvido atentamente.

“Soul Eyes” é uma das composições mais conhecidas do pianista Mal Waldron e a versão do quarteto é espetacular. São quase dezesseis minutos de uma soberba viagem sonora, com direito a uma marcante citação de “It’s Easy to Remember”, de Lorenz Hart e Richard Rodgers. Mabern, particularmente, tem uma atuação inesquecível, destacando-se pela limpidez de sua digitação, pela clareza de suas idéias e pela sofisticação de sua abordagem.

Um disco excepcional, que traz um Coleman em seu apogeu criativo e que recebeu do site Allmusic 4,5 estrelas. O crítico Michael G. Nastos, ao comentar o álbum escreveu: “O lançamento de uma gravação de George Coleman é um evento instantâneo. Embora ele tenha se mantido bastante ocupado, gravando, escrevendo arranjos e, especialmente, ensinando, os fãs têm tido poucas oportunidades de ouvir seus discos como líder. É especialmente emocionante ouvi-lo ao vivo, em um concerto realizado no então recém inaugurado Yoshi’s, em Oakland, Califórnia, e perceber que ele está no auge de sua capacidade técnica, trazendo à tona uma impressionante gama de idéias harmônicas”.

Embora não tenha tido a mesma visibilidade que outros saxofonistas oriundos dos grupos de Miles Davis – como John Coltrane, seu antecessor, ou Wayne Shorter, seu sucessor – obtiveram, Coleman tem recebido uma merecida atenção por parte da crítica especializada e por parte de seus colegas jazzistas. Em 1979 recebeu o New York Jazz Award, dado pelo New Jazz Audiences, associação que congrega músicos, historiadores e críticos de jazz de Nova Iorque. Em 1997, foi a vez do Lifetime Achievement Award, concedido pela Jazz Foundation of America.

A sua Memphis nativa já lhe prestou alguns emocionantes tributos. Em 1992, o prefeito fez a Coleman a entrega simbólica das chaves da cidade, em reconhecimento ao seu valioso trabalho como intérprete e educador musical. Alguns anos antes, George havia sido o artista homenageado do Beale Street Music Festival, que é realizado ali, anualmente, desde 1978.

O imponente Coleman ainda realizou alguns trabalhos como modelo, aparecendo em campanhas publicitárias veiculadas em revistas como Ebony Magazine e Travel and Leisure. Em 2002 particpou do album “Four Generations of Miles”, ao lado de Ron Carter, Jimmy Cobb e Mike Stern, lançado pela Chesky Records. Ele também pode ser ouvido em álbuns recentes de Bobby Hutcherson, Joey DeFrancesco e Ahmad Jamal.

George raramente gosta das coisas que grava, porque, ao ouvir o resultado, sempre acha que poderia melhorar alguma coisa. Em uma entrevista, falou sobre o seu proverbial perfeccionismo: “Quando ouço uma gravação minha, em 90 por cento dos casos me sinto descontente com aquilo que toquei. Eu sempre acho que poderia ter adotado outra harmonia, que devia ter modificado um acorde em particular ou que poderia ter estudado um pouco mais a melodia, para desenvolvê-la melhor”.

Atualmente, o saxofonista se encontra semi-aposentado e só sai de casa para participar de projetos muito especiais ou quando o pagamento é bastante compensador. Em uma entrevista recente, ele disse: “eu realmente cheguei a anunciar a minha aposentadoria, mas apareceram alguns trabalhos bastante lucrativos e eu acabei reconsiderando. Não sou mercenário, mas o dinheiro é um fato da vida e temos que lidar com ele para viver”.

Para Richard Cook, Coleman é um dos maiores tenoristas surgidos nos últimos 50 anos, sumamente inventivo e dono de uma sonoridade bastante particular. Segundo o crítico britânico, “seu som grandioso e a sensação de placidez que ele transmite, mesmo no calor de uma improvisação inflamada, são características que o tornam um saxofonista diferenciado”.

Após  tanto tempo na estrada, George mantém intacto o amor pelo jazz, especialmente quando se apresenta fora do seu próprio país: “Quando viajo à Europa ou ao Japão eu sinto o apreço do público e vejo como as pessoas ali nos recebem com carinho. Em cidades como Roma, Viena, Berlin, Londres ou Tóquio recebemos um tratamento melhor do que nos Estados Unidos. Ali eu consigo perceber que o jazz está vivo e muito bem. Porque o jazz é uma música muito especial, feita para pessoas especiais”.

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sexta-feira, 13 de abril de 2012

O DEMÔNIO DO MEIO-DIA



Não há nem sombra das flores alegres e pomposas

Que iluminavam as manhãs com seu olor

É como se elas, de repente,

Tivessem se arrependido de despertar

E preferissem sucumbir ao frio e à escuridão

Certa madrugada, as flores simplesmente deixaram de brotar

E cada botão fechado era um pequeno túmulo escarlate...

Nem as fortunas dos homens,

Nem suas orações

Nem seus gritos

Puderam trazer de volta o colorido das flores

Depois, foi a vez das estrelas.

Aquelas pequenas faíscas celestes

Que aqueciam a escuridão do firmamento com seu brilho tímido,

Era como se as estrelas tivessem caducado,

Era como se tivessem cerrado os olhos por toda a eternidade

Nem as fortunas dos homens,

Nem suas orações

Nem seus gritos

Puderam iluminar novamente as noites cataclísmicas

Depois foi a vez do Sol

A matriz essencial da vida

A temperança calorosa que a tudo invade

Com o esplendor inescusável de sua luz

Certa manhã, fazia escuro na hora em que o Sol costumava nascer

E o escuro fez-se assim para sempre.

A penumbra tornara-se a antítese eterna da alvorada

O parto sombrio e desesperador de uma noite interminável

A recusa improrrogável do elemento mais vital

Nem as fortunas dos homens,

Nem suas orações

Nem seus gritos

Puderam demover o Sol do seu intuito de recolher-se

Desde então, tem sido dessa maneira...

Não há mais flores, nem estrelas, nem Sol

Não somos mais capazes de distinguir os dias das noites

Mas persistimos, ainda

Teimosos e irredutíveis,

Obsessivos e infatigáveis.

Ao longe, muito longe,

Às vezes algum de nós vê uma luz pálida

A tremeluzir, frágil e bruxuleante,

Sob o peso da imensidão crepuscular

Aí então sorrimos e damo-nos as mãos

E pensamos, embora não o digamos,

Que a perícia do demônio

Haverá de sucumbir um dia

Pelas mãos impávidas da perseverança


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O trompetista Donald Sleet despontou no final dos anos 50 como um dos mais promissores talentos do hard-bop. Branco em um universo dominado por músicos negros como Miles Davis, Clifford Brown e Art Farmer, Sleet conjugava o intimismo do primeiro, a ferocidade do segundo e a sonoridade delicada do terceiro. Seus primeiros trabalhos como sideman foram registrados em 1959, nos discos “Like Soul!” (World Pacific Jazz), da cantora Gloria Smyth, e “Lenny McBrowne and the Four Souls” (Riverside), do baterista Lenny McBrowne.

Don, como era chamado em casa, nasceu em Fort Wayne, estado de Indiana, no dia 27 de novembro de 1938. Ainda na infância, mudou-se com a família para a cidade de San Diego, na Califórnia, onde iniciou os estudos de piano clássico aos nove anos, tendo o pai como primeiro professor. O patriarca dos Sleet era diretor musical da La Mesa Spring Valley School e a música fazia parte da rotina da família.

Na adolescência, Don resolve trocar o piano pelo trompete e estudou por cerca de um ano com o trompetista Buddy Childers, egresso das orquestras de Stan Kenton, Tommy Dorsey e Woody Herman. O garoto também fez parte da orquestra da escola onde cursou o ensino médio, a Helix High School, e de uma orquestra integrada apenas por jovens da região de San Diego, a Civic Youth Orchestra.

Aos 18 anos, Sleet já havia se tornado membro efetivo da San Diego Symphony. Além da música erudita, o jovem mostrava-se bastante interessado pelo jazz. Seus primeiros ídolos e maiores influências foram Clifford Brown, Maynard Ferguson, Kenny Dorham, Chet Baker e Miles Davis. O amor pelo jazz levou-o se juntar à San Diego State University Jazz Ensemble, orquestra conduzida e dirigida pelo vibrafonista Terry Gibbs.

Ao mesmo tempo, Don montou um sexteto com alguns amigos da cidade, e o grupo costumava ensaiar na sala de estar da casa do trompetista, onde havia um piano sempre afinado. Entre os integrantes da banda estavam o pianista Mike Wofford e o baterista John Guerin, dois músicos que, futuramente, teriam currículos bastante respeitáveis no universo jazzístico.

O baixista Howard Rumsey, um dos proprietários do The Lighthouse, tradicional clube localizado em Hermosa Beach, Los Angeles, assistiu a uma apresentação dos rapazes de Sleet e os convidou a se apresentar ali, aos domingos. A banda venceu duas edições seguidas do Easter Week Jazz Festival, promovido por Rumsey no próprio Lighthouse, em 1956 e 1957, e o trompetista recebeu calorosos elogios da revista Down Beat, em 1956.

Participando de gigs na região de San Diego e Los Angeles, Sleet montou um quinteto em 1958, que atuava com bastante freqüência em clubes como o Snookies, o Shelly's Manne Hole, o Jazz City e o Beacon Inn. O grupo costumava abrir para estrelas do jazz em turnê pela Califórnia, como os Jazz Messengers de Art Blakey e a cantora Billie Holiday.

Em 1960, após uma rápida passagem pela orquestra de Stan Kenton, o jovem de apenas 22 anos fez parte dos Howard Rumsey Lighthouse All-Stars, mas naquele período o grupo já não desfrutava do prestígio que havia tido nos anos 50. Não obstante, o trompetista estava tocando cada vez melhor e a sua evolução musical deve-se, em boa medida, aos estudos de harmonia e improvisação com Daniel Lewis e com o grande Shorty Rogers. Ainda naquele ano, Don voltou a tocar com Lenny McBrowne, tendo participado das gravações do álbum “Eastern Lights” (Riverside).

Em 1961, o produtor Orrin Keepnews, do selo Jazzland, buscava desesperadamente um substituto para seu astro Chet Baker, que cumpria pena de oito meses em Lucca, na Itália, por porte de narcóticos. Ele viu em Sleet, jovem e com pinta de galã de cinema, a oportunidade de lançar no mercado o “Novo Chet Baker”. E o melhor de tudo é que o sujeito tocava uma barbaridade.

Keepnews se empenhou pessoalmente na produção e convocou alguns dos melhores músicos da época para acompanhar a jovem promessa do trompete. No piano e na bateria, nada menos que 2/3 da cozinha de Miles Davis: Wynton Kelly e Jimmy Cobb. No contrabaixo, o também jovem mas muito experiente Ron Carter, que no futuro também seria integrante dos grupos de Miles. E no sax tenor o brilhante Jimmy Heath. O álbum, chamado “All Members”, foi gravado no dia 16 de março de 1961, em Nova Iorque.

Para abri-lo, a faixa escolhida foi a incinerante “Brooklyn Bridge”, parceria entre o saxofonista Clifford Jordan e a bandleader Carla Bley. Embora criado, musical e geograficamente, na Costa Oeste, a abordagem e o fraseado de Sleet se irmanam aos de seus colegas da Costa Leste, fazendo lembrar craques como Blue Mitchell e Kenny Dorham. Ao lado de um bopper de grandes recursos como Heath, o trompetista se mostra ainda mais afiado, soltando frases curtas e agressivas, mas sempre muito bem concatenadas. Destaque para o notável trabalho de Carter com o arco, uma de suas muitas especialidades.

“Secret Love” é uma composição de Paul Francis Webster e Sammy Fain e a interpretação do quinteto é leve e relaxada. A cadência irresistível imposta por Cobb, as harmonias estimulantes propostas por Kelly e a marcação inabalável construída por Carter formam uma formidável base para os solos hipnóticos de Heath e Sleet, cuja sonoridade robusta e energética guarda alguns pontos de convergência com a de Clifford Brown.

A seguir, é a vez de “Softly, As in a Morning Sunrise”, de Oscar Hammerstein e Sigmund Romberg. Mais uma vez, as atenções se voltam para o saxofonista e para o trompetista. O sopro do primeiro é tranqüilo, fluido, técnico, quase cerebral. O do segundo é nervoso, intuitivo, selvagem, absolutamente visceral. Entre um e outro, a ancoragem rítmica inteligente, o domínio harmônico irretocável e as improvisações tecnicamente irrepreensíveis de Kelly tornam esta uma das faixas mais memoráveis do disco.

O trompetista contribui com uma única composição original, “Fast Company”, hard bop certeiro e empolgante, levemente tingido de blues. A introdução explosiva de Cobb anuncia a elevação da temperatura e os desempenhos de Kelly, Heath e do líder apenas confirmam o conteúdo inflamável do tema. Mais uma vez utilizando o arco, Carter é o responsável por um dos solos mais envolventes e bem elaborados da sessão.

Terceiro standard do disco, “But Beautiful” é uma balada de autoria de James Van Heusen e Johnny Burke e o quinteto se sai muito bem em contextos mais calmos. Heath não tem dificuldade para criar uma atmosfera cálida, vaporosa, e seu sopro quase sem vibrato lembra a abordagem de Lester Young. Por seu turno, Sleet adota uma postura contemplativa, se mostrando capaz de enveredar pelos temas românticos com um lirismo digno dos seus ídolos Chet Baker ou Art Farmer.

A faixa que dá nome ao álbum é uma composição de Heath, um blues acelerado, com um refrão pegajoso e uma melodia empolgante. O sopro do trompetista flui com nitidez e veemência, enfatizando os registros médios do trompete, evitando os agudos mais estridentes. Kelly é um exuberante intérprete de blues e suas intervenções são sempre surpreendentes. O autor do tema conserva o clima tórrido, conjugando a impetuosidade de um novato com a excelência técnica de um veterano.

Para encerrar, o quinteto escolheu a labiríntica “The Hearing”, mais um tema composto por Clifford Jordan. Embora não seja propriamente uma ruptura em relação à ortodoxia do hard bop, é sem dúvida a faixa mais ousada do álbum, do ponto de vista harmônico, e, de algum modo, antecipa as inovações que, poucos anos depois, Wayne Shorter iria agregar ao quinteto de Miles Davis. Também aqui Sleet mostra maturidade e desenvoltura e seus diálogos com Heath se pautam pela eloqüência quase solene e pelas linhas melódicas imprevisíveis.

Um disco irretocável, de um músico que poderia ter figurado, sem nenhuma dúvida, no panteão dos grandes nomes do jazz. Ou, como declarou o produtor Orrin Keepnews: “Don tinha talento suficiente para tocar com os músicos da primeira divisão. Esse disco mostra que ele, indiscutivelmente, estava pronto para isso. E no estúdio, em momento algum houve qualquer dúvida sobe quem era o líder da sessão”.

Após sua única gravação como líder, Sleet mergulhou na obscuridade. Um dos poucos trabalhos dignos de registro foi no álbum “My Fair Lady with the Un-Original Cast”, sob a liderança do baterista Shelly Mane, gravado em 1964, para a Capitol. Problemas com drogas, o temperamento arredio e a escassez de ofertas de trabalho contribuíram para que ele jamais obtivesse a visibilidade e o reconhecimento que seu talento prenunciava. Em meados da década de 60 ele chegou a ser internado em uma instituição para dependentes químicos, o célebre Synanon, em Santa Mônica, na Califórnia.

Pelo final dos anos 60 e ao longo da década seguinte, ele sobreviveu à base de trabalhos esporádicos, apresentando-se em pequenos clubes de cidades como Chicago e Nova Iorque, para onde se mudou, em busca de novas oportunidades profissionais. Durante o começo dos anos 70, Don fez parte da banda do tubista Ray Drapper, cuja formação incluía o jovem saxofonista tenor Ernie Watts.

Seu irmão, o baterista David Sleet, quatro anos mais novo, conta que apesar das dificuldades, Don jamais abriu mão de suas concepções artísticas: “Ele era extremamente comprometido com o jazz e chegava a recusar trabalhos musicalmente inferiores. Ele jamais aceitou tocar em batizados ou casamentos, ainda que o pagamento fosse bom”.

Sobre a gravação com Sleet, Jimmy Heath, anos mais tarde, deu alguns detalhes ao jornalista Mark Myers, do site Jazz Wax: “Eu não o conhecia, mas ele fez questão de me chamar. Eu acho que Orrin ajudou na escolha dos músicos e tudo transcorreu muito bem. Don realmente sabia tocar. Sabia mesmo. Ele não chegava a ser um músico excepcional, mas era muito bom”.

A vida difícil de músico freelancer e o envolvimento cada vez mais intenso com as drogas cobraram um alto preço de Sleet. Seu irmão conta que, muitas vezes, ele se viu obrigado a empenhar o seu trompete para pagar contas ou comprar comida, agravando ainda mais a sua penúria, pois sem instrumento não conseguia convites para tocar. Em um depoimento emocionado, o David recorda a intensa luta de seu irmão para se reerguer: “Apesar de tudo, ele jamais se afastou daquilo que mais amava, o jazz. Don era tão talentoso que eu sempre tive a esperança de que um dia as pessoas iriam descobri-lo e valorizá-lo”.

Para Howard Rumsey, Sleet “tinha um estilo parecido com o de Shorty Rogers. Ele não era de falar muito, mas quando falava era agradável e muito entusiasmado. Ele poderia ter ido muito além, mas os problemas com as drogas o desviaram do caminho e ele morreu muito novo. Eu gostaria que ele tivesse gravado mais. Don poderia ter sido um dos maiores músicos da Costa Oeste”.

O crítico Ira Gitler, que escreveu as notas do disco, também fez algumas observações sobre o trompetista: “Don tocava com músicos de primeira linha quando eu o conheci, em Nova Iorque. Eu recordo que ele era um sujeito tranqüilo, gentil e um pouco reservado. Eu havia escrito algumas palavras elogiosas na apresentação do disco e ele ficou bastante grato. Don possuía uma qualidade especial: ele era autêntico”.

Don Sleet morreu na casa onde morava, em Los Angeles, no dia 31 de dezembro de 1986, em decorrência de um câncer no sistema linfático. Ele vinha lutando contra a doença há cerca de três anos, até que finalmente sucumbiu. O irmão relata como foi dolorosa a perda: “A morte de Don me deixou arrasado. Eu sempre fui otimista quanto à sua recuperação e tinha certeza de que ele conseguiria dar a volta por cima e retomar a carreira”.

Amigos de Sleet, como os trompetistas Jack Sheldon e Conte Candoli, prestaram-lhe a última homenagem, tocando em seu funeral, realizado em um cemitério de Hollywood. Até hoje David conserva, e exibe orgulhoso, um exemplar original do LP “All Members”, autografado pelo irmão. A dedicatória é singela, mas muito tocante: “Para o melhor irmão do mundo”.

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