Amigos do jazz + bossa

sábado, 30 de junho de 2012

POEMA ÉPICO




É o Mar,

Por certo é o Mar!

O Mar de Camões

O Mar de Pessoa,

É a ele que me lançarei...

Haverei de construir com minhas próprias mãos

A nau que me conduzirá aos confins do oceano mais profundo

Madeiras e cordames e velas e metal

Fundidos na estrutura hígida e flutuante

Lançar-me-ei ao Mar

Sem arroubos e nem temeridades,

Lançar-me-ei ao Mar

Sem titubeios ou tergiversações...

Lançar-me-ei ao Mar

Lançar-me-ei ao mais desconhecido dos rumos

Tripulante de mim mesmo,

Hóspede das tempestades

Refém das calmarias

Lançar-me-ei ao Mar

Não temerei o escuro profundo,

A ignomínia dos selvagens

A pusilanimidade dos ilhéus

Não temerei a imensidão purpúrea

A âncora é a raiz do navegante

A raiz transportável, vinculante, demiúrgica

Serão os oceanos o meu domínio incontestável

Todos eles!

Sou herdeiro de Posseidon, irmão do hipocampo e do tritão

Minha morada é o salitre

O sargaço é fruto da minha semeadura

O arrebol é meu norte e o plâncton, meu nutriente

Barlavento, proa, calado, convés

Flotilha, velame, bombordo, timão

Tenho a sintaxe náutica na ponta da língua

E o sal dos oceanos escorre-me pelos cabelos

Deixai-me ir

Deixai-me ir ao encontro do meu destino

Retirai-me os grilhões,

Retirai-mos

Deixai-me ir que estou pronto

Deixai-me construir a minha nau

Deixai-me singrar até os confins do oceano mais profundo

Dai-me a liberdade

Concedei-me o Mar que é meu por direito

Deixai-me ir e alcançar o Mar

O Mar de Camões

O Mar de Pessoa

O Mar que é meu destino

Deixai-me percorrer os costões

As íngremes falésias

Os proeminentes arrecifes

Deixai que os ventos inflem as velas

Deixai-me ir

Deixai-me

Porque só o Mar

Ele, e apenas Ele,

É grande o bastante para acomodar a minha dor.


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O trompetista Sam Noto nasceu no dia 17 de abril de 1930, em Buffalo, estado de Nova Iorque. Tendo estudado trompete desde a infância e feito parte de diversas orquestras escolares da cidade natal, ele começou a tocar profissionalmente aos 17 anos, em bandas de R&B da cidade de Buffalo e seu entorno. Suas primeiras influências foram Fats Navarro, Dizzy Gillespie e Miles Davis.

Em busca de melhores oportunidades profissionais, ele se muda para a Califórnia no início da década de 50. Após cumprir o circuito de clubes e tocar com alguns expoentes do West Coast Jazz, ele foi descoberto pelo pianista e bandleader Stan Kenton, que o contratou em 1953. Noto passou cinco anos na orquestra de Kenton e participou de gravações históricas, como “Contemporary Concepts” (1955), “Kenton in Hi-Fi” (1956) e “Cuban Fire!” (1956), todos pela Capitol Records. Sua primeira gravação como líder foi feita no ano seguinte, também para a Capitol.

Ele deixou o posto em 1958, para seguir carreira como freelancer, exibindo em suas credenciais participações em álbuns e concertos de jazzistas de peso, como Frank Rosolino, Anita O'Day, Claude Williamson, Curtis Counce, Carl Fontana, The Hi-Lo's, Louie Bellson, Oscar Peterson, Buddy Rich, Don Menza, Lennie Niehaus, Bud Shank, Bill Perkins, Bob Fitzpatrick, Bill Catalano, Mel Lewis, Richie Kamuca, Charlie Parker e muitos mais.

No ano seguinte, excursionou pela Europa, com uma banda liderada pelo baterista Louie Bellson e pela cantora Pearl Bailey. De volta aos Estados Unidos em 1960, ele volta a tocar por alguns meses com Kenton. Entre 1964 e 1965, foi integrante da orquestra de Count Basie, saindo para montar o próprio clube, na sua cidade natal, chamado Renaissance, em 1966, onde se apresentava todas as noites com seu grupo, do qual faziam parte os irmãos Tom e Joe Azarello (respectivamente, contrabaixista e pianista), o saxofonista Joe Romano e o baterista Al Cecchi.

O empreendimento não foi muito bem sucedido e ele voltou a trabalhar exclusivamente como músico profissional, retornando à orquestra de Basie em 1967. No ano seguinte, se muda para Las Vegas, onde atua como trompetista nas orquestras de diversos cassinos, hotéis e casas noturnas. Ali faz amizade com o lendário trompetista Red Rodney e com ele monta uma banda que faria algum sucesso nos clubes de jazz da Capital do Jogo.

Durnte os anos 70, Noto teria uma rápida passagem pelo “The National Jazz Ensemble”, cujo fundador e diretor artístico era o baixista Chuck Israels. A orquestra, formada com o intuito de preservar a obra e a memória de compositores dos primórdios do século XX, como Jelly Roll Morton, Duke Ellington e Louis Armstrong, chegou a gravar alguns discos ao longo daquela década e por ela passaram figuras do primeiro escalão do jazz, como Bill Evans, Jimmy Knepper, Lee Konitz, Sal Nistico e o então jovem Tom Harrell. Os arranjos ficavam a cargo de craques como Gil Evans, Hall Overton e David Berger.

Noto permaneceria em Las Vegas até 1975, quando recebeu uma ótima oferta de emprego em Toronto, no Canadá, como músico e arranjador de uma rede de TV. No país vizinho, não demorou a ser reconhecido pala comunidade jazzística e fez parte da orquestra do trombonista Rob McConnell. Ao mesmo tempo, firma-se como um dos principais músicos do cast da gravadora Xanadu, participando de dezenas de gravações naquela casa, sob a liderança de craques como Al Cohn e Dexter Gordon.

Um dos pontos culminantes da parceria entre Noto e a Xanadu está registrado no estupendo álbum “For Sure”, sob a liderança do pianista Kenny Drew. As sessões de gravação foram realizadas nos dias 16 e 17 de outubro de 1878 e além do líder e de Noto, o grupo é composto pelo saxofonista Charles McPherson, pelo baixista Leroy Vinnegar e pelo baterista Frank Butler. Morando na Europa desde 1961, Drew aproveitou-se de uma rápida passagem pelos Estados Unidos para gravar dois discos naquela ocasião: o já mencionado “For Sure” e “Home Is Where The Soul Is”, em formato de trio e também com Vinnegar e Butler na seção rítmica.

A faixa-título abre os trabalhos na melhor tradição do hard-bop, com McPherson entregando o primeiro solo de maneira energética e articulada. A seguir, entra Noto, que se mostra um improvisador ousado e fluente, um legítimo representante da escola de Kenny Dorham ou Blue Mitchell. Seu sopro é febril, pulsante, cheio de vibrato e possui uma enorme extensão. Butler é um baterista de enormes recursos, capaz de executar viradas rápidas e de acrescentar uma dinâmica quase selvagem aos contextos em que atua. Como um anfitrião generoso, Drew assume uma postura essencialmente rítmica, embora durante o seu solo ele improvise com ferocidade e convicção.

Logo em seguida é a vez da balada “Mariette”. Obliqua e dissonante, ela guarda algum parentesco com as composições de Thelonious Monk. Mostrando ser bastante versátil, Noto exibe grande domínio nos andamentos mais lentos e usa a surdina para dar um timbre mais agudo ao seu trompete. Suas frases são curtas, diferentes, por exemplo, das de um Miles Davis, que preferia alongar as notas para criar climas mais sombrios. O dedilhado de Drew, envolvente e acolhedor, cria uma atmosfera de puro lirismo.

Novamente o hard-bop dá o tom, agora em “Arrival”, uma poderosa conjugação de riffs assobiáveis e batida infecciosa. A introdução fica a cargo do voluptuoso Butler e, em seguida, os demais instrumentos se agregam à bateria. O brilhantismo das intervenções de McPherson, um intérprete sempre fogoso e instigante, e a enxurrada criativa de Noto, que se revela um verdadeiro ás nos registros mais graves, são os principais destaques da faixa.

“Blues Wail”, um blues sincopado de autoria do líder, possui uma levada contagiante, com uma marcação impecável de Vinnegar. A abordagem do pianista, bastante ortodoxa no início, com notas espaçadas e uso dos registros graves, se desenvolve em um crescendo e incorpora ao blues as notas velozes e as harmonias transversas típicas do bebop. McPherson é um improvisador astuto e tributário da mais nobre linhagem parkeriana. Seus solos jamais são lineares ou previsíveis e seus diálogos com o trompetista, outro músico exuberante e que também passa ao largo da obviedade, são dos mais empolgantes.

A climática “Dark Beauty” talvez seja o tema mais conhecido de Drew. Trata-se de uma balada sombria, dotada de uma beleza árida, cuja melodia sofisticada e exótica guarda paralelo com as composições do irrequieto Charles Mingus. O piano de Drew é pendular, bruxuleante e oscila como a chama de uma vela. Ele e Noto, mais uma vez com o trompete assurdinado, interagem com uma intimidade quase sobrenatural, de maneira a criar um arcabouço melódico de contornos impressionistas.

O encerramento fica por conta da tórrida “Context”, petardo sonoro de alta volatilidade. O hard bop direto e sem invencionices do quinteto pega na veia, com uma melodia empolgante, citações a “Four”, de Miles Davis, e formidáveis atuações de Drew, McPherson e Noto. A maior referência aqui é o trabalho dos notáveis combos dos anos 50 e 60, especialmente os quintetos de Horace Silver e de Max Roach/Clifford Brown e, óbvio, os Jazz Messengers. Um disco que se alinha entre os mais relevantes dos anos 70 e um verdadeiro marco na história de todos os envolvidos.

Sam Noto também lançou, pela Xanadu, quatro álbuns em seu próprio nome, ao longo da década de 70, nos quais se faz acompanhar por sumidades como Barry Harris, Leroy Vinnegar, Sam Jones, Billy Higgins, Ronnie Cuber, Monty Budwig e Jimmy Rowles. Ainda em 1978, Noto fez parte do grupo de músicos da Xanadu que se apresentou no Festival de Montreux, cujo concerto foi transformado em LP: “Xanadu at Montreux”. Ao lado do trompetista, estavam Dolo Coker (piano), Ronnie Cuber (sax barítono), Sam Jones (contrabaixo), Frank Butler (bateria), Sam Most (flauta) e Ted Dunbar (guitarra).

No final dos anos 70, Noto montou um grupo com o baterista Joe La Barbera e seu irmão, o saxofonista Pat La Barbera, outro expatriado norte-americano então vivendo e trabalhando no Canadá. O quinteto costumava se apresentar com regularidade em clubes da região de Toronto e Buffalo, bem como em festivais de jazz ao longo do território canadense.

Durante toda a década de 80 o trompetista manteve-se em constante atividade. Um dos momentos de maior repercussão naquele período foi no álbum “Hip Pocket” (Palo Alto, 1981), sob a liderança do saxofonista Don Menza (dobrando no alto e no barítono), e que foi gravado ao vivo no clube  Carmello's. A sessão contou ainda com as participações de Shelly Manne (bateria), Andy Simpkins (contrabaixo), Frank Strazzeri (piano), Sal Nistico (sax tenor) e Carl Fontana (trombone).

Ainda naquela década, Noto protagonizou um eletrizante duelo com outro virtuose do trompete, o endiabrado Woody Shaw. Shaw e o saxofonista Joe Henderson, que na época co-lideravam um grupo, foram contratados para uma temporada de algumas semanas no clube Bamboo, em Toronto. Ocorre que, às vésperas dos concertos, Henderson teve um impedimento e não pôde cumprir a agenda. Noto foi chamado às pressas e ele e Woody reeditaram as célebres batalhas de trompetes dos anos 40 e 50, como aquelas estreladas por Fats Navarro e Howard MgGhee ou Roy Eldridge e Charles Shavers. Quem assistiu àquelas apresentações, jamais esqueceu.

O enciclopédico John Lester, comandante em chefe do blog Jazzseen, analisa o estilo de Noto nos seguintes termos: “Ele me lembra um Clifford Brown ligeiramente bêbado, com aquele som encorpado e redondo, rascante e doce, capaz de, em momentos imprevisíveis de lucidez, desferir saraivadas de semifusas alucinadas do bocal de seu trompete. (...) Apesar de ser um músico superior do bebop, Noto nunca recebeu o reconhecimento que merece”.

No ano 2000 o trompetista se mudou para Fort Erie, Ontário, mas até hoje se mantém ativo, como músico de estúdio, compositor e arranjador. Ele costuma se apresentar com seu quinteto em clubes de cidades como Toronto, Buffalo e Nova Iorque. Sua última gravação como líder, “Now Hear This”, foi feita em 1999, para o selo independente Supermono. No disco, o veterano trompetista está à frente de um quinteto integrado por alguns dos principais nomes do jazz canadense: o saxofonista Kirk MacDonald, o pianista Mark Eisenman, o contrabaixista Steve Wallace e o baterista Bob McLaren.

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segunda-feira, 25 de junho de 2012

O PALADINO DAS CAUSAS NOBRES




Conhecida como Cidade dos Ventos, talvez a particularidade de sua geografia possa explicar as razões pelas quais Chicago tenha produzido uma quantidade impressionante de notáveis saxofonistas. De precursores como Gene Ammons, Yusef Lateef e Von Freeman (os dois últimos ainda estão na ativa, apesar de nonagenários) passando por músicos de gerações mais novas, como John Gilmore, Ira Sullivan, Johnny Griffin, Charles Davis e John Jenkins, todos parecem ter sido inspirados pelos ventos gelados que cortam a cidade e quando resolvem soprar, o couro come pra valer!

Nascido naquela cidade no dia 02 de setembro de 1931, Clifford Laconia Jordan se inscreve nessa tradição com muita galhardia e um imensurável talento. Estuda piano na infância, mas sem muita convicção - “Era uma espécie de acordo compulsório, pois minha mãe queria que eu fosse pianista”, como revelou em uma entrevista. Todavia, aos 13 anos, influenciado pela sonoridade aveludada de Lester Young, ele decide trocar o teclado pelo saxofone tenor.

Apesar da troca de instrumentos, a mãe de Clifford o estimulava e não apenas isso, o apresentava aos grandes nomes do jazz que precederam – ou mesmo anteciparam – o bebop. Assim, o jovem apaixonado por Charlie Parker, Bud Powell e Dexter Gordon foi levado a conhecer a obra de precursores como Johnny Hodges, Erroll Garner e Coleman Hawkins.

O garoto fez todo o ensino médio na afamada DuSable High School, e teve como colegas ou contemporâneos, os já citados Griffin, Gilmore e Jenkins, além do futuro baixista Richard Davis. Naquele tempo, fazer parte da banda da escola era sinal de prestígio e contava muitos pontos entre as garotas. Ele recorda: “Ser músico era algo que dava status, todo mundo olhava pra você. Com um sax nas mãos você podia fazer o que quisesse. Muita gente queria fazer parte da orquestra da DuSable, mas o diretor sabia separar o joio do trigo. Se ele percebesse que você não sabia tocar, ele expulsava você do ensaio, imediatamente. Ele não admitia brincadeiras”.

Concluído o ensino médio, suas primeiras experiências profissionais foram em bandas de R&B da região, mas ainda em Chicago ele teve a oportunidade de tocar com grandes nomes do jazz e do blues de passagem pela cidade, como Max Roach, Dizzy Gillespie, Sonny Stitt e Willie Dixon.

Já estabelecido como um respeitado músico local, Jordan aceitou o convite de Max Roach, para se juntar a seu quinteto, ocupando o lugar de ninguém menos que Sonny Rollins. O novo emprego acarretou a mudança para Nova Iorque, em 1957, e as oportunidades de trabalho se multiplicariam na nova cidade. Ainda naquele ano, uma nova mudança e o saxofonista entra para o badalado quinteto de Horace Silver, em substituição a Hank Mobley.

Silver havia sido o pianista do álbum de estréia de Jordan, gravado em março de 1957 (“Blowing In From Chicago”, Blue Note), no qual o saxofonista divide os créditos com o conterrâneo John Gilmore em um eletrizante duelo de tenores, na melhor tradição daqueles protagonizados por outras duplas formidáveis, como Gene Ammons e Sonny Stitt, Al Cohn e Zoot Sims ou Johnny Griffin e Eddie “Lockjaw” Davis.

A associação com a Blue Note renderia ainda mais dois álbuns, todos de 1957: “Cliff Jordan”, onde o saxofonista está secundado por Lee Morgan (trompete), Curtis Fuller (trombone), John Jenkins (sax alto), Ray Bryant (piano), Art Taylor (bateria) e Paul Chambers (contrabaixo), e “Cliff Craft”, onde lidera um quinteto integrado pelo trompetista Art Farmer, pelo pianista Sonny Clark, pelo baixista George Tucker e pelo baterista Louis Hayes.

Dividindo-se entre o trabalho com Silver e a liderança de seus próprios grupos, Jordan consolida seu nome como um dos mais confiáveis músicos do hard bop, participando de gravações sob a liderança de Sonny Clark, Sahib Shihab, Paul Chambers e Lee Morgan, entre outros. Sua performance no álbum “Further Explorations by the Horace Silver Quintet” (Blue Note, 1958), é impressionante, sobretudo por causa do contraste entre a sua sonoridade musculosa e a abordagem mais lírica do trompetista Art Farmer, que também participa da sessão.

Algum tempo depois, ele vai trabalhar com o trombonista J. J. Johnson, em 1959, permanecendo naquela banda até 1961. Uma das formações daquele grupo, aquela que incluía o trompetista Freddie Hubbard, o pianista Cedar Walton (que nos anos vindouros se tornaria um dos mais assíduos parceiros de Jordan), o baixista Arthur Harper e o baterista Albert “Tootie” Heath, é considerada por Johnson “a melhor banda que já liderei. Eu sempre tive vontade de montar um grupo com três instrumentos de sopro”.

Após a sua saída do sexteto de J. J., Clifford monta um quinteto com o trompetista Kenny Dorham. Naquele período, já havia iniciado a sua parceria com alguns selos ligados à gravadora Fantasy, como Riverside e Jazzland. O primeiro disco desta nova fase, gravado para a Riverside, foi “Spellbound”, de 1960, e ali o piano fica a cargo do amigo Cedar Walton. Como curiosidade, o disco foi produzido por Cannonball Adderley, que na época era diretor artístico da gravadora e havia produzido álbuns de figuras importantes como James Clay, Chuck Mangione, Budd Johnson e Dexter Gordon.

Gravado nos dias 28 de dezembro de 1961 e 10 de janeiro de 1962, o álbum “Bearcat” é um dos pontos altos na carreira fonográfica de Jordan. Com produção de Orrin Keepnews, o disco foi lançado pela Jazzland e conta com as participações de Cedar Walton no piano e dos pouco conhecidos Teddy Smith (atuou com Horace Silver e Joe Henderson), no contrabaixo, e J. C. Moses (integrante do “New York Contemporary Five”, grupo ligado ao jazz de vanguarda, onde atuavam Archie Shepp, John Tchicai e Don Cherry), na bateria.

“Bearcat” (homenagem a um amigo de infância de Jordan), faixa de abertura composta pelo líder, é um hard bop vigoroso, embora seu andamento não seja dos mais rápidos, que flerta com o soul jazz. Na execução algo oblíqua do saxofonista há ecos de Coltrane e Wayne Shorter. Walton tinge de blues a sessão e seus improvisos se caracterizam pela justaposição rigorosa dos acordes, pelo brilhantismo das modulações e pela multiplicidade de timbres.

Jordan assina cinco das sete faixas. A que vem em seguida é “Dear Old Chicago”, emocionante homenagem à cidade natal, com andamento de valsa e elementos harmônicos típicos do hard bop. Com atuações destacadas de Walton, Moses e Smith na seção rítmica, todos seguros e confiantes, o espaço para os solos fica praticamente todo reservado ao líder. Apesar da influência primordial de Lester Young, a sonoridade de Clifford é mais próxima à de saxofonistas como Sonny Rollins. Seu timbre é áspero, por vezes rascante, e seu sopro é sempre volumoso e febril.

O único standard do disco é a fabulosa “How Deep Is the Ocean?”, de Irving Berlin. A principal característica desta versão é a leveza, presente sobretudo na abordagem relaxada de Jordan. Com um arranjo em tempo médio e uma graciosa condução melódica a cargo de Walton, também responsável por um dos solos mais encantadores do disco, a canção flui de maneira espontânea, distante da atmosfera solene e até mesmo sisuda de outras interpretações.

A rápida “The Middle of the Block” é um tema fogoso, agitado, eletrizante, indomável. O legado harmônico do bebop se faz sentir em sua inteireza, não apenas por conta do dedilhado nervoso e inquieto de Walton, mas, principalmente, por causa das endiabradas intervenções do líder. Seu ataque é vigoroso, seu discurso é inflamado, seu fraseado é impecável e sua dinâmica é notável. O quarteto é de uma coesão e de um entrosamento raros e o trabalho de Moses é de grande impacto rítmico.

“You Better Leave It Alone” é um blues progressivo e inebriante, com uma percussão meio quebrada, que às vezes parece fora do tempo, mas que só acrescenta personalidade ao tema. Walton injeta a furiosa energia do R&B ao tema e seus diálogos com Moses são empolgantes. Jordan transita entre a ortodoxia ancestral do blues e a efervescência do soul e do R&B com ousadia e veemência. Smith tem amplo espaço para mostrar seus dotes de solista, improvisando com volúpia e uma técnica exemplar.

A balada em tempo médio “Malice Towards None” é uma composição do trombonista Tom McIntosh. Mais uma vez, Moses adota uma abordagem rítmica transversa, pouco usual e fortemente influenciada pelas estruturas dissonantes do jazz de vanguarda. O contraste da percussão de Moses com o piano acadêmico de Walton e com a placidez da marcação de Smith é um dos pontos altos desta faixa, que conta ainda com uma exibição esplendorosa do líder.

Última faixa do álbum, “Out-House” é um soul jazz volátil, que poderia perfeitamente fazer parte do repertório de um Cannonball Adderley. O quarteto devende com entusiasmo o tema, construído à base de riffs infecciosos e dotado de um groove capaz de chacoalhar até mesmo uma estátua. Fazendo a síntese entre o lirismo de Lester Young e a impetuosidade de Coleman Hawkins, Jordan traz uma sonoridade ora adstringente, ora aveludada, fazendo transições entre graves e agudos com a autoridade de quem domina completamente o seu ofício.

Em 1963 Clifford volta a atuar com Max Roach e realiza alguns trabalhos ao lado de Eric Dolphy, Clark Terry, Andrew Hill e do altoísta Sonny Redd. No ano seguinte, Jordan e Dolphy voltariam a se encontrar, desta feita no sexteto de Charles Mingus, que incluía, ainda, o trompetista Johnny Coles, o pianista Jaki Byard e o baterista Dannie Richmond. Com esse grupo, Mingus faz uma de suas mais importantes e aplaudidas excursões pela Europa, que resultou em álbuns como “Mingus in Europe”, “Live in Oslo” e “Live in Stockholm, 1964”.

Em 1965, Clifford assina com a Atlantic e em seu primeiro trabalho pela nova gravadora, faz uma homenagem ao lendário bluesman Leadbelly, no álbum “These Are My Roots”. Ainda naquela década, Jordan fez parte das orquestras do cantor de R&B Lloyd Price e do soulman James Brown. Em 1967, o saxofonista excursionou pela África e pelo Oriente Médio, juntamente com o pianista Randy Weston, em uma turnê patrocinada pelo Departamento de Estado Norte-americano.

No ano seguinte, Jordan criou o seu próprio selo, a Frontier Records, por onde gravariam nomes consagrados do jazz, como Wilbur Ware, Pharoah Sanders, Cecil Payne e Ed Blackwell, entre outros. Extremamente politizado e engajado nas causas dos negros norte-americanos, Clifford sempre procurou usar a música como meio de promover a inclusão social. No final dos anos 60, foi marcante a sua ligação com entidades de apoio a jovens carentes de Nova Iorque, como o Henry Street Settlement, a Bed-Stuy Youth in Action e o Pratt Institute, onde deu aulas e ministrou diversas oficinas.

Em 1968, o saxofonista exerceu o cargo de diretor musical do grupo de dança Dancemobile Performing Act, fundado no ano anterior pelo coreógrafo colombiano Elco Pomare. Em 1969, Jordan decidiu se fixar na Europa, por conta da escassez de trabalho que afligia os músicos de jazz em seu próprio país. Ele fixou residência na Bélgica, com a mulher e a filha, e participou intensamente do circuito europeu de festivais de jazz.

No velho continente, chegou a tocar com o trompetista Don Cherry e com o saxofonista Pheroah Sanders, conhecidos por suas ligações com o free jazz. De volta aos Estados Unidos em 1971, Jordan realizou várias apresentações ao lado do trio do pianista Cedar Walton, complementado pelo baterista Billy Higgins e pelo baixista Sam Jones, formação de tamanha excelência que era chamada de “Magic Triangle” pela crítica especializada da época.

Clifford também enveredou pelas artes cênicas, interpretando o papel do ídolo Lester Young no espetáculo musical “Lady Day: A Musical Tragedy”, baseado na vida da diva Billie Holiday e encenado na Brooklyn Academy of Music, em 1972. O roteiro e os diálogos foram escritos por Aishah Rahman e o score musical ficou a cargo de Archie Shepp, Stanley Cowell e Cal Massey.

A convivência com Shepp despertou novamente em Jordan o interesse pelo jazz de vanguarda e no ano seguinte ele lançou, pelo selo italiano Strata East, o elogiado “Glass Bead Games”, tendo como acompanhantes o pianista Stanley Cowell e os velhos parceiros Billy Higgins e Sam Jones. Como bem elucida o catedrático John Lester, “apesar das arriscadas aventuras musicais que experimentou com músicos do free jazz, como Don Cherry, Clifford nunca esqueceria suas sólidas origens no blues e no bebop, daí seu discurso musical ter permanecido sempre acessível e sedutor”.

Os anos 80 flagraram Jordan trabalhando intensamente, acompanhando nomes como Dizzy Gillespie, Kenny Clarke, Art Farmer, Philly Joe Jones, Wilbur Ware, Freddie Redd, Carol Sloane, John Hicks, Richard Davis, David “Fathead” Newman, Dizzy Reece, Tommy Flanagan, Jimmy Heath, Slide Hampton, Barry Harris, Mal Waldron e Junior Cook, ao lado de quem gravaria o inspirado “Two Tenor Winner” (Criss Cross Jazz, 1984).

Integrou o quarteto “Eastern Rebellion”, ao lado do seu fundador e velho parceiro Cedar Walton, e fez inúmeras excursões pela Austrália, Japão e Europa, tocando em países como Dinamarca, Noruega, Áustria, Itália, Finlândia, França e Suécia. No Velho Continente, apresentou-se ao lado de diversas orquestras, como a Hamburg Radio Big Band, da Alemanha, a Metropole Orchestra, da Holanda, e a UOMO New Music Jazz Band, da Finlândia.

Sempre a postos para defender as causas mais nobres, foi um dos mais ativos membros da Jazz Foundation of América, entidade que se notabilizou por prestar auxílio médico, ambulatorial e financeiro a músicos de jazz em dificuldades. Também foi uma das atrações do concerto comemorativo da independência do Senegal, em 1980, ao lado de Dizzy Gillespie e Kenny Clarke.

Quatro anos depois, recebeu o “BMI Jazz Pioneer Award”, concedido pela poderosa BMI, sociedade que congrega compositores, produtores e editores musicais dos Estados Unidos. Em 1990, aceitou um novo desafio: liderar a orquestra do clube Condon’s, em Manhattan, atração fixa das segundas-feiras e criada nos moldes da Thad Jones-Mel Lewis Orchestra, que durante anos animou as noites do Village Vanguard naquele mesmo dia da semana.

Clifford morreu nas dependências do Beth Israel Medical Center, em Manhattan, Nova Iorque, no dia 27 de março de 1993, em conseqüência de um câncer de pulmão. Sua contribuição para o jazz pode não ser tão significativa quanto a de outros tenoristas, como Dexter Gordon, Sonny Rollins ou John Coltrane, mas ele deixou um legado de integridade e dedicação às causas da música, da cidadania e da inclusão social.

Não por acaso, sobre ele escreveu o crítico Robert Levin: “Clifford Jordan toca com uma concepção imaginativa e vital. Ele é um músico consistente e sua obra é das mais significativas. Ele está, sem dúvida alguma, entre os saxofonistas tenores mais importantes do jazz moderno”. Boa parte dos seus quase 40 álbuns como líder, distribuídos por selos como Vortex, Muse, SteepleChase, Criss Cross, Bee Hive, DIW e Mapleshade ainda se encontram em catálogo e merecem uma conferida

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segunda-feira, 18 de junho de 2012

LÁ VEM SEU CHINA NA PONTA DO PÉ!




Existem vários “elos perdidos” entre a herança legada por Louis Armstrong e a revolução harmônico-melódica encarnada por Dizzy Gillespie. Certamente, o mais célebre deles é o pequeno grande Roy Eldridge, o “Little Jazz”. Mas também há outros candidatos a esse título, como Hot Lips Page e Jonah Jones. Outro trompetista muito bem cotado nessa corrida é o genial Buck Clayton, a quem os críticos britânicos Richard Cook e Brian Morton, autores do “The Penguin Guide For Jazz Recording”, qualificam de “uma síntese da história do trompete e dono de um tom brilhante, com uma facilidade aparentemente ilimitada para a improvisação melódica”.

Wilbur Dorsey Clayton nasceu na cidade de Parsons, no Kansas, no dia 12 de novembro de 1911. Seu pai, Simeon Oliver Clayton, tocava trompete semiprofissionalmente e foi com ele que o pequeno Buck recebeu as primeiras lições ao instrumento, quando tinha apenas seis anos. Além de músico, Simeon era editor de um jornal voltado para a comunidade negra, chamado “The Blade”, e pastor de uma igreja batista. Sua esposa era professora e tocava órgão.

Foi acompanhando a mãe nas liturgias que o garoto mergulhou nas águas da música negra americana, como o blues, o gospel e os spirituals. Na adolescência, o jovem aprofundaria os estudos com Bob Russell, integrante da orquestra de George E. Lee. Como todo jovem trompetista da época, o espelho pelo qual Clayton se mirava era Louis Armstrong e o dixieland foi a base dos seus primeiros contatos com o jazz. Mais tarde, agregou o talentoso Cootie Williams, um dos pilares da orquestra de Duke Ellington, ao seu rol de influências.

Após concluir o ensino médio, em 1929, Buck se profissionalizou e passou a tocar em várias orquestras de baile do seu estado natal. Todavia, insatisfeito com os rumos da carreira, em 1932 ele decidiu tentar a sorte em Los Angeles. Seu primeiro emprego foi na banda de Earl Dancer, um produtor de espetáculos musicais que também era comediante e cantor, mas Clayton também chegou a fazer parte, por um breve período, da orquestra de Duke Ellington. Na Califórnia, ele aproveitou para aperfeiçoar-se nos estudos musicais, sob a tutela de Mutt Carey.

Quando a primeira versão de King Kong foi feita, em 1933, os agentes do estúdio RKO, que produziu o filme, fizeram um grande recrutamento entre os músicos negros que atuavam na região da Central Avenue, a fim de que atuassem como figurantes, no papel de nativos da ilha onde o gorila gigante habitava. Clayton tentou a sorte em um desses testes, mas foi rejeitado, porque tinha olhos verdes e sua pele, segundo os agentes, não era suficientemente escura. O trompetista, em sua autobiografia (escrita em 1986, em parceria com Nancy Miller Elliott), comentaria o episódio com uma ironia certeira: “Eu era claro demais para ser negro e negro demais para ser branco”.

Em 1934, ele foi contratado para montar uma orquestra de jazz em Xangai, na China. A viagem e a própria vida no Oriente eram uma aventura grandiosa, mas Clayton não fugiu ao desafio. Conseguiu arregimentar alguns músicos norte-americanos e com eles partiu para a China. Com o nome de “Harlem Gentlemen”, a orquestra fez um enorme sucesso no Canidrome Ballroom, em Xangai, que na época era uma possessão francesa. Os motivos pelos quais Clayton optou por uma mudança de vida tão radical permanecem particularmente obscuros.

Alguns historiadores afirmam que Buck aceitou essa proposta de trabalho por causa das vantagens financeiras prometidas pelos produtores a ele e ao pianista Teddy Weatherford, seu companheiro na empreitada. Outros defendem a tese de que o verdadeiro motivo foi uma agressão sofrida pelo trompetista, por parte de alguns soldados brancos que o teriam espancado covardemente. Farto da opressão e do racismo, Clayton teria visto na oferta de trabalho uma excelente oportunidade para deixar os Estados Unidos.

O certo é que durante os cerca de dois anos em que permaneceu no território chinês, com direito a temporadas em cidades como Hong Kong e Taiwan, Buck ajudou a popularizar o jazz naquele país e sua parceria com o compositor Li Jinhui, um dos músicos chineses mais respeitados daquela época, é considerada um marco na história da música popular chinesa. Clayton encontrou no Oriente o respeito e o tratamento digno que lhe eram negados em seu próprio país.

Consta que um dos mais assíduos freqüentadores do Canidrome Ballroom era o general Chiang Kai-shek, ex-presidente da República da China e futuro presidente da China Nacionalista, instaurada na ilha de Formosa após a chegada ao poder dos comunistas liderados por Mao-Tse Tung, em 1949. Embora tivesse uma carreira sólida no Oriente, o trompetista foi obrigado a regressar aos Estados Unidos, em 1936, por conta da iminência de uma guerra entre China e Japão (que seria deflagrada em 1937, após a invasão japonesa à região da Manchúria).

De volta a Los Angeles, ainda em 1936, o trompetista atuou em algumas orquestras de clubes locais, como o Sebastian’s Cotton Club e o Club Araby. No início do ano seguinte, recebeu uma oferta de trabalho do bandleader Willie Bryant, mas teria que se mudar para Nova Iorque. Durante a viagem, Clayton passou por Kansas City e, naquela cidade, ele foi convidado por Count Basie para se juntar à sua orquestra, atração fixa do Reno Club. Buck não pensou duas vezes e desistiu da proposta anterior, ocupando, dessa forma, o lugar de Hot Lips Page, que havia deixado o emprego poucas semanas antes.

A máquina de swing de Basie ganhava uma de suas vozes mais poderosas e de maior personalidade. E, além de excepcional instrumentista, Buck também era um compositor inspirado e um notável arranjador. No final de 1937, o próprio Basie acabou por se mudar para Nova Iorque com sua orquestra, graças ao sucesso que seus discos faziam pelo país – e a contribuição do trompetista para esse salto de popularidade é inegável.

Clayton teve, então, a oportunidade de tocar com algumas das mais legendárias figuras do universo jazzístico da época, como Billie Holiday (que costumava dizer que Clayton era “o homem mais bonito que já caminhou pela face da Terra”), Billy Eckstine, Eddie Durham, Benny Goodman, Teddy Wilson e Lester Young, seu companheiro nas hostes da orquestra de Count Basie.

A união com Basie perduraria até 1943, quando Clayton foi convocado para servir às forças armadas. Embora os Estados Unidos estivessem mergulhados na II Guerra Mundial, o trompetista não foi enviado para as frentes de batalha, sendo designado para uma base próxima a Nova Iorque, Camp Kilmer, o que lhe possibilitava, nos dias de folga, ir tocar na orquestra de outro grande bandleader da época, Sy Oliver.

Retornando à vida civil em 1946, Clayton montou um pequeno grupo, com o qual se apresentava regularmente no Café Society, e fez parte da banda do cantor Jimmy Rushing, atração fixa do Savoy Ballroom. Além disso, ele complementava o orçamento escrevendo arranjos para pequenos grupos, como o do guitarrista Howard Alden, e para orquestras, como as de Benny Goodman, Harry James e do ex-patrão Count Basie.

A partir daquele ano, Clayton se tornaria uma das figuras de maior destaque do projeto Jazz at the Philharmonic, excursionando pelos Estados Unidos ao lado de gênios como Lester Young, Roy Eldridge, Coleman Hawkins, Oscar Peterson, Buddy Rich, Illinois Jacquet, Red Callender, Barney Kessel, Dizzy Gillespie e Charlie Parker, sob o comando do produtor Norman Granz. São desse período as suas primeiras gravações como líder, para o selo H. R. S.

Em 1949, Clayton decide se estabelecer na Europa e fixa residência em Paris. Na capital francesa, monta um grupo com o clarinetista Mezz Mezzrow e o pianista Earl Hines, cujas gravações para o selo Vogue são consideradas clássicas. Foi a partir delas que o crítico inglês Stanley Dance criou a expressão “mainstream jazz”, a fim de definir aquela música que incorporava elementos do bebop e do swing e que era, ao mesmo tempo, relevante do ponto de vista artístico e bem sucedida do ponto de vista comercial.

O tratamento dispensado pelo público europeu aos músicos de jazz deixou o trompetista encantado. Em uma entrevista, ele chegou a declarar: “Eles te tratam como um verdadeiro artista. Eles sabem tudo sobre você. Onde e quando você nasceu, quando foram feitas as suas primeiras gravações, em que bandas você atuou. Se duvidar, os fãs europeus sabem mais sobre a sua vida do que você mesmo”.

Por conta da receptividade, Clayton faria várias excursões pela Europa durante os anos 50, quase sempre ao lado de Mezzrow. Em 1953, por exemplo, a dupla passou pela Itália e ali teve a honra de dividir os palcos com ninguém menos que Frank Sinatra. Em dezembro daquele ano, Buck iniciou uma série de álbuns para a Columbia, com produção de George Avakian e John Hammond, curiosamente o homem que, na década de 30, ajudou a orquestra de Count Basie a se tornar conhecida nacionalmente. A associação perduraria até 1956 e essas gravações são consideradas verdadeiras obras-primas pela crítica especializada.

Durante suas temporadas européias, Clayton costumava gravar com sessões rítmicas locais. Dentre essas gravações, destacam-se os discos para a Gitanes, de 1953 (ali, ele se fez acompanhar pelos franceses Michel de Villiers no sax tenor, Andre Persiany no piano, Jean-Pierre Sasson na guitarra e Gerard Pochonet na bateria) e de 1966, onde ele dividiu os créditos com o saxofonista Hal Singer e o cantor Joe Turner (a sessão rítmica é formada por Bernard de Bosson, no piano, Mickey Baker na guitarra, Roland Lobligeois no contrabaixo e Wallace Bishop na bateria). Esses álbuns foram lançados em cd em 2007 e fazem parte da série Jazz in Paris.

Clayton costumava se cercar de alguns dos maiores nomes do jazz em seus discos, como Charlie Parker, Dexter Gordon, Kai Winding, J. J. Johnson, Joe Bushkin, Ruby Braff, Nat Pierce, Coleman Hawkins, Trummy Young, Dickie Wells, Jo Jones, Mel Powell, Milt Hinton e Sir Charles Thompson. Em 1955, Clayton fez uma ponta no filme “The Benny Goodman Story” e, coincidentemente, dois anos depois, em 1957 depois seria membro da banda do clarinetista, que era atração fixa do elegante clube do Hotel Waldorf-Astoria, em Nova Iorque.

Buck foi o responsável por uma das mais notáveis apresentações da edição de 1956 do Newport Jazz Festival, à frente de uma banda co-liderada por ninguém menos que Coleman Hawkins e J.J. Johnson. Em 1958, o trompetista foi uma das atrações da Feira Mundial, realizada em Bruxelas, na Bélgica, onde atuou ao lado do veterano Sidney Bechet. A década de 60 marca a parceria de Clayton com outros veteranos, como o clarinetista Pee Wee Russell e o guitarrista Eddie Condon. Com o primeiro, realizou diversas gravações e com o segundo excursionou pelo Japão, Austrália e Nova Zelândia.

Outra parceria importante foi com o saxofonista Buddy Tate, outro egresso da big band de Count Basie, ao lado de quem gravou dois álbuns para o selo Swingville (uma subsidiária da Prestige Records). O primeiro deles, “Buck & Buddy”, foi gravado no dia 20 de dezembro de 1960, com produção de Esmond Edwards e engenharia de Rudy Van Gelder. No acompanhamento, os ótimos Sir Charles Thompson (piano), Gene Ramey (contrabaixo) e Mousey Alexander (bateria).

Para abrir os trabalhos, o quinteto interpreta a inflamada “High Life”, composição de Clayton que tem um pé no swing e outro no bebop. O piano febril de Thompson faz uma soberba incursão pelo blues e pelo boogie woogie, resgatando a antiga técnica stride, tão característica da década de 20. Trompete e saxofone engendram diálogos eletrizantes, calcados em improvisos furiosos e em passagens tecnicamente perfeitas. A percussão alucinada de Alexander e a condução precisa de Ramey asseguram um suporte rítmico à altura da eloqüência harmônica de Vlayton e Tate.

A balada “When a Woman Loves a Man”, de autoria de Bernie Hanighen, Gordon Jenkins e Johnny Mercer, tem uma atmosfera que remete aos anos 30, realçada pelo sopro nostálgico do líder, que impõe uma sonoridade prenhe do mais puro romantismo. O uso bem dosado da surdina chama a atenção para a sua versatilidade e para a sua capacidade de explorar tanto os registros graves quanto os agudos com igual perícia. Destaque para a abordagem comedida de Alexander e para as sutilezas melódicas criadas por um inspirado Thompson. É a única faixa de que Tate não participa.

Em seguida, é a vez de “Thou Swell”, criação da dupla Richard Rodgers e Lorenz Hart. O arranjo é sincopado e gracioso, resultando em uma execução leve, ensolarada, na qual os músicos parecem tão à vontade quanto em uma animada jam session. A abordagem de Clayton possui uma ferocidade inata, uma espécie de vitalidade interior que inflama e entusiasma seus companheiros, como se os conclamasse para uma batalha. Por sua vez, a levada de Thompson é despretensiosa, sem floreios ou excessos. Imerso na tradição bop, o solo de Tate é de um lirismo melodioso e, ao mesmo tempo, repleto de nuances harmônicas.

Executada em um inebriante tempo médio, “Can’t We Be Friends?”, a composição mais conhecida de Kay Swift e Paul James, recebeu um arranjo despojado. A luminosa introdução fica a cargo de Clayton, que aqui volta a fazer uso da surdina, e Ramey. Aos poucos, se juntam à dupla os demais instrumentistas, merecendo atenção as luxuosas intervenções de Thompson. Os solos de Tate são construídos com delicadeza e sua sonoridade, encorpada e vibrante, guarda alguma semelhança com outros ilustres predecessores, em especial Ben Webster e Coleman Hawkins.

O blues “Birdland Betty” é o segundo tema composto por Clayton. Trata-se de um formidável petardo sonoro, com direito a sopros em uníssono, contrabaixo transitando sempre pelas regiões mais graves e um primoroso uso do stride piano por parte de Thompson. Clayton extrai de seu instrumento sons límpidos, sem arestas, mas dotados de uma lógica bastante complexa, enquanto Tate elabora uma abordagem rascante, gutural, repleta de efeitos e com um acento algo primitivo. É como se, ao dialogar, os dois velhos amigos traçassem uma analogia entre a tradição e a modernidade, dicotomia que desde sempre impeliu o jazz a ultrapassar as suas fronteiras histórico-cronológicas.

“Kansas City Nights” é uma homenagem de Buck aos momentos heróicos vividos ao lado de Count Basie. Também é um blues, mas um pouco mais acelerado que o anterior, com Thompson se esmerando nos agudos e pagando tributo aos mestres do blues daquela cidade, em especial ao próprio Basie e ao grande Jay McShann. A polirritmia de Alexander é infecciosa e Tate se mostra um habilíssimo blueseiro, capaz de imprimir um indiscutível conteúdo emocional em suas frases. A pegada robusta de Ramey e a destreza do líder para se manter sempre no registro médio do trompete são detalhes que chamam a atenção do ouvinte.

Uma curiosidade sobre a sessão é relatada nas notas, escritas pelo crítico Joe Goldberg: “As músicas foram gravadas em meio à pior tempestade de neve que Nova Iorque já tinha visto nos últimos vinte anos. O baterista Mousey Alexander, por exemplo, teve uma enorme dificuldade para chegar até o estúdio. Por conta dos percalços, Buck não estava muito animado com o que poderia resultar de uma gravação naquelas circunstâncias. Mas foi só os músicos começarem a tocar seus respectivos instrumentos que o líder da sessão esqueceu os problemas. Num instante, ele estava sorrindo e batendo os pés, reações que, certamente, vão ser as mesmas de todos aqueles que ouvirem este disco”.

Os anos 60 ainda reservariam muitas aventuras musicais a Clayton, como as gravações com o lendário trompetista britânico Humphrey Lyttelton (“Buck Clayton with Humphrey Lyttelton and His Band”, PID, 1964). Por causa de problemas com o sindicato dos músicos da Inglaterra, as gravações tiveram que ser realizadas na Suíça. Outro momento interessante na carreira de Clayton é o álbum “Buck Clayton Meets Joe Turner” (Black Lion, 1966), onde ele divide a liderança com o cantor Joe Turner. As gravações foram feitas em Zagreb, na antiga Iugoslávia, tendo como acompanhantes músicos locais, com destaque para o vibrafonista Bosko Petrovic.

Em 1969, Clayton se apresentou no New Orleans Jazz Festival e, em seguida, foi obrigado a se submeter a uma cirurgia nos lábios, que o deixou afastado dos palcos e estúdios até 1972. Como conseqüência direta desse afastamento, Clayton passou a se dedicar, integralmente, aos arranjos, além de iniciar uma prolífica carreira como educador musical, no Hunter College, em Nova Iorque.

A volta às gravações se deu em grande estilo, com o álbum “A Buck Clayton Jam Session: 1975”, para o selo Chiaroscuro. Liderando uma big band  composta por feras como o trompetista Joe Newman, o trombonista Vic Dickenson, os saxofonistas Buddy Tate, Buddy Johnson, Sal Nistico e Lee Konitz, Clayton está extremamente à vontade e o disco é considerado um dos pontos altos de sua carreira fonográfica. Além disso, conta com uma sessão rítmica de sonhos: Tommy Flanagan no piano, Milt Hinton no contrabaixo e Mel Lewis na bateria.

O trompetista fez uma longa excursão pelo continente africano, em 1977, a convite do Departamento de Estado norte-americano. Dois anos depois, Clayton seria, novamente, obrigado a abandonar o trompete, por conta de seus problemas com a embocadura, voltando a se concentrar na composição e nos arranjos. Escreveu uma autobiografia, intitulada “Buck Clayton’s Jazz World”, juntamente com Nancy Miller Elliott, em 1986.

Ainda naquele ano, montou uma orquestra, que passou a se apresentar com habitualidade nas dependências do Brooklyn Museum, cujo repertório era, essencialmente, calcado em suas próprias composições. Clayton, obviamente, também ficou responsável pelos arranjos e pela regência da big band, formada por músicos de alto gabarito, como o saxofonista Joe Temperley, o trombonista Dan Barrett, o guitarrista Howard Alden e o baterista Dennis Mackrell.

No dia 08 de dezembro de 1991, Clayton faleceu, em Nova Iorque, em decorrência de uma parada cardíaca. Tinha 80 anos e deixou um legado de mais de 100 composições e inúmeros arranjos, escritos para os mais variados formatos.  Calou-se, para sempre, a voz que o crítico britânico Raymond Horricks afirmou, em certa ocasião, que “era capaz de construir frases que pareciam cantar juntamente com a melodia”.

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quinta-feira, 14 de junho de 2012

...MENOS A LUÍZA E O RENÉ THOMAS, QUE ESTÃO NO CANADÁ!




Os óculos de aros grossos davam a René Thomas um aspecto grave e austero. Quem o via pela primeira vez podia imaginá-lo como um rigoroso professor de física ou um compenetrado gerente de banco. Nada mais falso, pois além de ser uma figura bem-humorada e até irreverente, Thomas era “um poeta da guitarra, cujo temperamento, por vezes, chegava a ser deliciosamente errático”, como bem definiu o crítico francês Alain Tercinet.

Esse guitarrista belga nasceu em Liége, no dia 25 de fevereiro de 1926 (embora exista alguma controvérsia acerca do ano, havendo alguns historiadores que afirmam que ele nasceu em 1927). De qualquer forma, 1926 foi um ano maravilhoso para o jazz, pois foi quando vieram ao mundo expoentes como John Coltrane, Bud Shank, Miles Davis e outro grande nome do jazz belga, o saxofonista Bobby Jaspar, que futuramente seria um grande amigo de Thomas e seu parceiro em incontáveis aventuras musicais.

Suas primeiras lições de guitarra foram recebidas quando ele tinha dez anos, pelas mãos de um amigo italiano de sua irmã mais velha, Juliette. Em pouco tempo, influenciado por Django Reinhardt, descobre o jazz e apaixona-se perdidamente pelo estilo. Com apenas treze anos René já acompanhava a cantora Maria Drom e o saxofonista Raoul Faisant. Em 1943 ele entra em um estúdio pela primeira vez, em Bruxelas, quando integrava a orquestra do acordeonista belga Hubert Simplisse.

Com a chegada das tropas norte-americanas à Europa, durante a II Guerra Mundial, houve uma intensa troca de informações musicais e a juventude de países como França, Inglaterra e Bélgica mergulhou de cabeça no jazz. Sempre que possível, esses jovens fãs ouviam os famosos V-discs, com gravações feitas por alguns dos maiores jazzistas da época e que eram distribuídos no front europeu, a fim de entreter os soldados nos intervalos entre os combates.

Quando ainda era um adolescente, Thomas teve a oportunidade de tocar em uma gig com o ídolo Reinhardt. O veterano guitarrista ficou tão impressionado com o talento do rapaz que lhe deu de presente uma foto autografada, com a seguinte dedicatória: “Para o futuro Django”. Ao mesmo tempo, o guitarrista ia apurando a sua técnica em jams com outros jovens músicos belgas como os saxofonistas Bobby Jaspar e Jacques Pelzer (os três formariam o primeiro grupo belga inteiramente voltado para o idioma do bebop, os “Bop Shots”), o baixista Benoît Quersin, o vibrafonista Sadi Lallemand e o pianista Francy Boland (que nasceu na Suíça, mas se mudou para a Bélgica com a família logo após a II Guerra Mundial).

Em 1950, René, Jaspar e Pelzer descobrem o cool jazz, identificando-se, imediatamente, com as intrincadas harmonias criadas por Lennie Tristano e seus seguidores, como os saxofonistas Lee Konitz e Warne Marsh e o guitarrista Billy Bauer. Em 1952, com a morte do pai, René passa a trabalhar na empresa da família, uma pequena fábrica de sacos de aniagem, mas as perspectivas de uma vida burocrática o deixam bastante desconfortável.

O espírito aventureiro e o amor pelo jazz impelem Thomas a se mudar, no ano seguinte, para Paris, então considerada a capital européia do jazz. Ali, o guitarrista iria se sentir em casa, pois muitos dos seus amigos belgas, como Bobby Jaspar e Benoît Quersin, também estavam residindo na capital francesa e ele não demorou a se adaptar ao movimentado cenário jazzístico local, tornando-se um dos mais assíduos freqüentadores das jams que rolavam nos clubes do bairro boêmio de St. Germain-des-Pres.

René tocou com músicos franceses, como os pianistas Martial Solal, Henri Renaud e René Urtreger, os saxofonistas Guy Laffite, Serge Monville e André Ross, os baixistas Jean Marie Ingrand e Pierre Michelot, os bateristas Daniel Humair, Jean-Louis Viale e Pierre Lemarchand e o guitarrista Sacha Distel. Também teve a oportunidade de acompanhar vários músicos norte-americanos estabelecidos ou em visita à França, como Kenny Clarke, Chet Baker e o também guitarrista Jimmy Gourley, que o apresentou ao trabalho de Jimmy Raney.  

O impacto das gravações de Raney, especialmente aquelas feitas com Stan Getz, foi fundamental para que Thomas depurasse seu estilo e adotasse uma nova abordagem. Seu fraseado passou a ser ainda mais fluido e límpido, deixando um pouco de lado a influência de Django em sua forma de tocar. Em abril de 1954 René grava o seu primeiro álbum como líder, para a Barclay. Para a mesma companhia, gravaria o seu segundo LP, em março de 1956. Quase 50 anos depois, os dois discos seriam relançados na série “Jazz in Paris”, da Gitanes, reunidos em um único CD, “The Real Cat”, com uma impecável qualidade sonora.

Embora esses discos tenham despertado a atenção da crítica, nenhum dos dois obteve vendagens expressivas, o que deixou Thomas bastante frustrado. Além disso, seu grande amigo Bobby Jaspar havia se mudado para os Estados Unidos e se fixado em Nova Iorque, fato que o encorajou a tentar a vida na América do Norte. Seu destino seria, primeiramente, o Canadá, onde sua irmã estava morando há algum tempo. Em abril de 1956 ele tomou um navio rumo a Montreal, mas quando a embarcação parou em Nova Iorque, para fazer alguns reparos técnicos, Thomas decidiu permanecer na Meca do Jazz.

O belga causou sensação nos clubes da cidade e se apresentou ao lado de alguns dos mais importantes músicos do período, como Stan Getz, Miles Davis, J. R. Monterose, Jim Hall, Toshiko Akiyoshi, Zoot Sims, Al Cohn, Tal Farlow, Jackie McLean, Jimmy Raney, Cecil Payne, Al Haig e Sonny Rollins, com quem chegou a gravar e a excursionar pelos Estados Unidos. Rollins ficou tão impressionado com a habilidade de Thomas que declarou à época: “René é o maior guitarrista europeu em atividade e eu creio que mesmo nos Estados Unidos seja quase impossível encontrar alguém tão talentoso”.

Somente em 1958 é que Thomas aporta no Canadá, dividindo-se entre Montreal e Quebec. Pesou nessa decisão a possibilidade de se comunicar na língua francesa e também a proximidade com os Estados Unidos, o que lhe permitia se apresentar com freqüência no país vizinho. Em pouquíssimo tempo estava realizando concertos na Sociedade de Jazz de Montreal, à frente de um trio formado pelo baixista Neil Michaud e pelo baterista Jose Bourguignon.

René cumpriu uma extensa agenda de shows no território canadense, além de ter feito diversos trabalhos para o rádio e a TV. Em dezembro daquele ano foi contratado para ser atração fixa do Little Vienna, em Montreal, e na qualidade de anfitrião costumava receber no palco do clube uma infinidade de músicos importantes em turnê pelo Canadá, como Jimmy Giuffre, Jim Hall, J. R. Monterose, Jackie McLean, Duke Jordan e o compatriota Toots Thielemans.

Geralmente trabalhando no formato de trio, Thomas teve a seu lado alguns dos principais nomes do jazz canadense, como os baixistas Stan Zadak, Bob Rudd e Fred McHugh e os bateristas Pierre Beluse, Billy Osborn e Billy Barwick. Em abril de 1960, o guitarrista volta a se reunir com o amigo Bobby Jaspar, para gravar a trilha sonora do filme “La Femme Image”, dirigido pelo cineasta e fotógrafo belga Guy Borremans, que na época também morava no Canadá. O filme é considerado a primeira produção canadense independente e junto com Thomas e Jaspar estão Freddie McHugh (contrabaixo) e George Braxton (bateria).

O ano de 1960 marca, também, a gravação de “Guitar Groove”, o primeiro – e, infelizmente, único – disco de Thomas nos Estados Unidos. Para a ocasião, ele se cercou de músicos extremamente talentosos, como o jovem pianista Hod O'Brien, o contrabaixista Teddy Kotick, o saxofonista J. R. Monterose e o baterista Albert “Tootie” Heath. O álbum foi gravado em duas sessões distintas, realizadas nos dias 07 e 08 de setembro, para a Jazzland, com produção de Orrin Keepnews.

A exuberante “Spontaneous Effort”, de autoria de Monterose, abre o disco e desde a sua introdução, a cargo de um encapetado Heath, o ouvinte percebe que está diante de um tema da melhor linhagem bop. O fraseado elegante de Thomas pontua o tema o tempo inteiro e seus solos são dinâmicos e envolventes, com direito a uma bem-humorada citação ao hit “El Manisero”. Monterose é um saxofonista hábil e de grandes recursos técnicos, e O’Brien, com pouco mais de 23 anos, já se mostra um improvisador criativo e fluente.

“Ruby, My Dear” talvez seja a mais pungente composição de Thelonious Monk e o arranjo elaborado pelo quinteto é ousado, chegando a tomar algumas liberdades harmônicas, mas que não a descaracterizam, Ao contrário, apenas realçam a beleza e o lirismo do tema. A abordagem aveludada de Monterose, tributária da escola de Lester Young, e o dedilhado hipnótico do líder tornam a versão uma das mais arrebatadoras já concebidas.

Monterose não participa de “Like Someone in Love”, composta por Johnny Burke e James Van-Heusen. O quarteto executa a canção com arrojo, desenvoltura, e uma levada em tempo médio irresistível. Os solos de Thomas não são rápidos ou explosivos, pois ele mais se assemelha um artesão de sons. Seus improvisos são sempre melodiosos, como se as notas fossem sendo esculpidas com parcimônia e delicadeza. Kotick e Heath possuem uma abordagem mais inflamada e não hesitam em despejar sobre o tema quantidades astronômicas de histamina.

“MTC” é a segunda composição de Monterose incluída no disco e também se notabiliza pelo andamento rápido, pela exuberância rítmica e pelos improvisos desafiadores, especialmente por parte do saxofonista e do líder da sessão, cuja sonoridade cristalina se impõe mesmo nos tempos mais acelerados. A seção rítmica tem uma atuação incisiva e pulsante, providenciando o alicerce sonoro ideal para os diálogos fulgurantes entre saxofone e guitarra.

Miles Davis comparece com a inebriante “Milestones”, cujo arranjo se notabiliza pelas harmonias imprevisíveis e por uma atuação devastadora de Heath. O baterista é vibrante, energético e contagia os demais companheiros com seu entusiasmo. O sempre afiado Thomas engendra improvisos complexos, esteticamente impecáveis, sem jamais perder de vista a linha melódica, enquanto Monterose mantém uma abordagem solidamente lastreada no melhor da tradição bop.

Na única balada do disco, “How Long Has This Been Going On?”, dos irmãos Gershwin, Thomas se apresenta secundado apenas pelo baixista e pelo baterista. A bordo do trio, sua habilidade nos temas lentos se evidencia com enorme autoridade. Seus arpejos são delicados e suas investigações da melodia, minuciosamente trabalhadas, são repletas de texturas e sutilezas. O lirismo da execução se completa com a sobriedade de Kotick e Heath, que aqui utiliza as escovas com preciosa discrição.

Com uma introdução levemente temperada com um sabor oriental, “Green Street Scene” é mais um petardo da lavra de Monterose. Novamente em formação de quinteto, Thomas expõe suas qualidades de grande criador de harmonias, de forma bastante fiel ao estilo cool que ele tanto preza. Descrito por seus pares como um excepcional guitarrista, seu trabalho ainda permanece em relativa obscuridade, embora esse álbum tenha predicados para figurar, com louvor, entre os mais encantadores da década de 60. O crítico Scott Yanow, além de atribuir nota máxima ao disco, não poupou elogios. Para ele, o líder “está em ótima forma, criando uma sonoridade requintada, por vezes econômica, e um sofisticado fluxo de tons. ‘Guitar Groove’ é, sem dúvida, o mais consistente trabalho de Thomas como líder”.

Em março do ano seguinte, René recebe o “Jazz At Its Best Award”, na categoria de melhor guitarrista, em um concurso promovido pela rádio CBC, de Montreal. Em julho ele volta pela primeira vez à Europa, e não perde tempo. Monta o International Jazz Quintet com os antigos parceiros Bobby Jaspar no sax tenor e na flauta, René Urtreger no piano, Benoit Quersin no contrabaixo e Daniel Humair na bateria. O grupo excursiona pela França e Bélgica, sempre com ótima receptividade por parte do público.

Em agosto, Thomas volta a Montreal e tem a honra de abrir o famoso festival de jazz daquela cidade, juntamente com seu trio formado pelo baixista Freddie Mac Hugh e o baterista Pierre Beluse. Apesar da carreira consolidada no Canadá, ele decide retornar, em definitivo, à Europa, dividindo-se entre a França e a Bélgica. Na terra natal, organiza um novo grupo com Jaspar, desta feita completado por Maurice Vander (piano), Michel Gaudry (contrabaixo) e Jean-Louis Viale (bateria). Face à incompatibilidade de agendas de seus integrantes, a banda foi desfeita no final daquele mesmo ano, após uma bem-sucedida temporada de três meses no clube Blue Note de Bruxelas.

No início de janeiro de 1962, Thomas se reúne novamente a Jaspar, Quersin e Humair, formando o International Jazz Quartet, que com essa formação viaja para a Itália, a fim de realizar alguns shows naquele país.  Mal os quatro aterrissaram em Roma e foram logo convidados a acompanhar o astro Chet Baker em uma gravação. Realizada no dia 05 de janeiro para a RCA, a sessão resultou no disco “Chet Is Back”, que marca o retorno do trompetista ao circuito jazzístico, após ter passado quase um ano preso, em decorrência do consumo e porte de entorpecentes. Contando com a adição do pianista italiano Amedeo Tommasi, o álbum é considerado uma verdadeira obra-prima na discografia de Baker e o sexteto atinge um grau de entrosamento quase telepático.

O guitarrista aproveitou a ocasião para participar da trilha sonora do filme “Una Storia Milanese”, de Eriprando Visconti (sobrinho do renomado Luchino Visconti), composta e executada por John Lewis e gravada no dia 17 de janeiro. O álbum foi lançado pela Atlantic com seu título em inglês, “A Milanese Story”, e também conta com as participações de Bobby Jaspar, Buster Smith e Giovanni Tommaso.

Após a temporada italiana, o International Jazz Quartet segue para a Inglterra, onde se apresenta no célebre Ronnie Scott's Club durante duas semanas. Em março, Thomas e Jaspar voltam à Itália, para uma excursão com Chet Baker, em uma banda que contava com Amedeo Tommasi no piano, Franco Mondini na bateria e Giovanni Tommaso no contrabaixo. Com essa formação, o grupo se apresentou em cidades como Livorno e Lucca.

Thomas permaneceu na Itália por algum tempo tocando em festivais como os de Bolonha e Modena. No primeiro, como acompanhante do pianista Kenny Drew, cujo trio contava com o baixista Giovanni Tommaso e o baterista Larry Ritchie. No segundo, René voltou a se apresentar com Chet Baker, tendo como companheiros de banda Bobby Jaspar (sax tenor), Jacques Pelzer (sax alto), Amedeo Tommasi (piano), Giovanni Tommaso (baixo) e Franco Mondini (bateria).

De volta à França, o guitarrista marcou presença no Antibes Jazz Festival, agora a bordo de um trio com o organista Jimmy Smith e o baterista Donald Bailey. Em outro festival realizado no território francês, o de Comblain, ele se apresenta com o saxofonista Jacques Pelzer, o organista Lou Bennett e o baterista Kenny Clarke. A parceria com Bennett seria uma das mais prolíficas e nos próximos anos os dois trabalhariam juntos em incontáveis ocasiões, inclusive no álbum “Meeting Mr. Thomas”, gravado para a Barclay em março de 1963 e também disponível em CD na série “Jazz in Paris”.

Nas notas desse disco, Bennett fala um pouco do parceiro: “Eu adoro o seu estilo. Ele tem algo de Django, mas assimilou uma porção de coisas novas durante a sua temporada na América. Eu gosto muito da sua sonoridade, que parece vir de um instrumento não eletrificado. Você pode ouvir as cordas quando ele toca. Ele realmente sabe fazer a sua guitarra cantar, parece que está tocando com um arco e não com uma palheta. René sabe criar nuances sonoras e é, de fato, um músico muito especial”.

Em julho de 1968, Thomas cumpre novamente o roteiro dos festivais de jazz italianos. O primeiro deles foi o Palermo Pop Festival, que teve como atrações não apenas astros do jazz, como as orquestras de Duke Ellington e Kenny Clarke-Francy Bolland, mas também da música pop, como Aretha Franklin e os Rolling Stones. Como curiosidade, a brasileira Elza Soares participou daquela edição do festival. Em seguida, René se apresentou no festival de Pescara, desta feita como convidado do pianista Georges Arvanitas.

Até o final da década, Thomas trabalharia exaustivamente, apresentando-se pela Europa como líder de seus próprios grupos ou acompanhando gente do gabarito de Sonny Criss, Jacques Pelzer, Ingfried Hoffmann, Rein De Graaff, Lee Konitz, Charlie Rouse, Frank Dunlop, Kenny Drew, Paul Gonsalves e Lucky Thompson. Concertos e festivais em países como Inglaterra, França, Alemanha, Holanda, Bélgica, Espanha e Suécia eram uma constante na vida do guitarrista.

De meados de 1969 ao final de 1970, manteve um trio de grande sucesso em Paris, juntamente com o organista Eddy Louiss e o baterista Kenny Clarke (logo substituído por Bernard Lubat). De passagem por Paris, Stan Getz assistiu a uma apresentação do grupo no Appolo Club e ficou chapado com o que viu e ouviu, não hesitando em contratá-los. Chamou seu novo grupo de “European Band” e com essa formação gravou, em março de 1971, o álbum ao vivo “Dynasty” (Polydor), durante uma temporada no clube Ronnie Scott’s, em Londres. A produção ficou a cargo de George Martin, famoso por haver produzido vários álbuns dos Beatles.

Ainda naquele ano, Getz e seus comandados se apresentam no Mexico Jazz Festival, na Cidade do México. Após a apresentação, foram todos jantar na casa de João Gilberto, que naquele período desfrutava de um confortável exílio mexicano. Durante o restante do ano, Getz excursiona pela Europa, permanentemente acompanhado por Thomas, fazendo apresentações no Reino Unido, França, Bélgica, Portugal, Holanda e Alemanha.

Em 1972, Getz desfez a “European Band” e Thomas seguiu seu caminho, sempre trabalhando bastante. Tocou nos festivais de Utrecht, na Holanda, e Altena, na Alemanha, juntamente com o antigo parceiro Jacques Pelzer. Ainda acompanhado de Pelzer, René voltou em grande estilo à cidade natal, para se apresentar na primeira edição do Liege Jazz Festival. Durante o festival de Laren, na Holanda, reencontrou-se com o ex-patrão Sonny Rollins e os dois tocaram juntos, após um hiato de quase quinze anos.

René ainda tentou reeditar o trio com Eddy Louiss e Bernard Lubat, em 1973, mas após uma breve temporada na Riviera Francesa, os três decidiram se separar. O guitarrista voltou para Paris, montando um novo grupo, agora com o pianista Raymond Le Senechal. No ano seguinte, reuniu-se mais uma vez ao organista Lou Bennett, tendo Al Jones na bateria. Quando os três excursionavam pela Espanha, Thomas sofreu um infarto fulminante, no dia 03 de janeiro de 1975, na cidade de Santander. Tinha apenas 48 anos.

Ao saber da morte do amigo, Jacques Pelzer teria comentado: “René era o ouvido, o fogo, técnica, a idéia, a musicalidade. Um guitarrista excepcional, com quem tive a honra de conviver e trabalhar por quase 30 anos. Quantas recordações maravilhosas! Adeus, René Thomas, meu eterno amigo”. Embora não tenha obtido em vida o reconhecimento à altura do seu talento, sua influência permanece viva, de alguma maneira, no trabalho de nomes como Larry Coryell, Joe Diorio, John McLaughlin e Philip Catherine, todos seus fãs assumidos.

Toots Thielemans não foi menos econômico nos elogios. Para ele, René “foi um músico inesquecível. Nós tocamos juntos poucas vezes, apenas em jam sessions. Ele era capaz de criar um som encantador, misturando técnica e emoção. Eu jamais esquecerei uma noite, no final dos anos 50, em que ele, que na época morava no Canadá, pegou sua Gibson, ligou em um velho amplificador e, por mais de meia hora tocou versões arrebatadoras de “Star Eyes” e “I’ll Remember April”. Seu toque é uma referência compulsória para qualquer guitarrista. Obrigado por tudo, René”.

Mas talvez o depoimento mais comovente tenha sido de Sacha Distel, ele próprio um excelente guitarrista de jazz. Arrasado com a notícia da morte de Thomas, ele revelou todo o seu carinho e sua admiração em poucas palavras: “René, meu grande amigo! Meu amigo genial! Vida, música e guitarra. Obrigado pelo fantástico concerto que você nos deu. Você certamente está fazendo uma grande festa no céu com Wes e Django!”


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PS.: Infelizmente, este álbum magistral se encontra fora de catálogo. Todavia, quem estiver no Rio de Janeiro pode facilmente encontrá-lo na Reco Records, a melhor loja de cds da Cidade Maravilhosa, afetuosamente administrada pelo querido Sérgio Sônico, personagem do recente livro "Rio Bossa Nova", do Ruy Castro. Basta ir ao calçadão do Leblon, na altura do Posto 12, e encomendar o seu exemplar - e de centenas de outras raridades do jazz e da bossa nova que ele tem em seu acervo. Milan e seu triciclo mágico estão lá todo domingo, a partir das 11:00 e além de ser um profundo conhecedor do jazz e da música em geral, ele também é um tremendo boa praça. Difícil vai ser comprar só um cd!

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