Amigos do jazz + bossa

terça-feira, 31 de agosto de 2010

OS BRUTOS TAMBÉM AMAM


Apelidado de “O Ravel do Saxofone”, por causa da doçura com que interpretava baladas, Benjamin Francis Webster nasceu no dia 27 de março de 1909, em Kansas City, Missouri. Dono de uma personalidade forte e complexa, capaz de praticar os atos mais ternos e os mais execráveis, seu fraseado refletia essa dualidade, podendo soar meigo ou agressivo, romântico ou iracundo, dependendo do estado de espírito do momento. Daí porque recebeu outros apelidos menos lisonjeiros, como “The Brute” (O Bruto) ou “The Frog” (O Sapo).

De qualquer maneira, e para além de qualquer discussão sobre a sua personalidade errática, é certo que ele inscreveu o seu nome entre os grandes nomes do jazz e, em matéria de influência, são poucos os saxofonistas que conseguem superá-lo. Há um certo consenso entre a crítica especializada, que o coloca em um patamar ligeiramente abaixo de Coleman Hawkins e Lester Young, dentre os saxofonistas surgidos na era do swing, no que se refere à importância para o desenvolvimento do saxofone jazzístico. Entre os músicos ligados ao jazz moderno, apenas Charlie Parker, John Coltrane e Sonny Rollins podem ombrear-se a ele.

Ainda na infância, aprendeu a tocar piano – durante algum tempo, ganhou a vida como pianista de filmes mudos, em Oklahoma e no Texas, e nessa qualidade atuou nas orquestras de Brethro Nelson e de Dutch Campbell – e violino. Somente em 1930, quando já contava com 21 anos, é que começou o aprendizado do saxofone alto, graças a Budd Johnson, que lhe ensinou os rudimentos do instrumento. Com uma dedicação férrea, aliada a um talento superlativo, Webster superou os obstáculos do início tardio e, em pouco tempo, já era um dos mais requisitados músicos do sul dos Estados Unidos.

Vieram, então, trabalhos na Young Family Band (na qual atuava o jovem Lester Young) e nas orquestras de Jap Allen, Gene Coy, onde trocou o sax alto pelo tenor, e de Blanche Calloway, com quem fez as suas primeiras gravações. Em 1931, juntou-se à orquestra de Benny Moten, onde conheceu os futuros astros Count Basie e Walter Page. Tornou-se o principal solista da banda e responsável direto pelo sucesso de músicas como “Lafayette” e “Moten Swing”, gravadas em 1932.

A partir daí, teve passagens vitoriosas pelas big bands de Fletcher Henderson, Benny Carter, Cab Calloway, Teddy Wilson, Andy Kirk e Willie Bryant. Também estudou teoria musical e harmonia na Wilberforce University e passou algum tempo na banda do violinist Stuff Smith, em 1938. No final daquele ano, tocou com o trompetista Roy Eldridge, em Nova Iorque. Ali pôde acompanhar o pianista Teddy Wilson, em algumas das célebres gravações da diva Billie Holiday, como, por exemplo, em “What a Little Moonlight Can Do”.

Nesse período, Webster já mantinha uma relação bastante instável com a bebida, o que fazia dele uma versão sulista de Dr. Jekyll e Mr. Hyde. Quem o conheceu pessoalmente, relata que Ben, sóbrio, era uma pessoa terna, gentil e afetuosa. Mas, quando bebia, tornava-se violento e bastante agressivo – não era raro vê-lo metido em alguma confusão. Em 1935, teve uma breve passagem pela orquestra de Duke Ellington, substituindo temporariamente Barney Bigard, mas sem maior repercussão. Contudo, a breve convivência serviu para aproximá-lo do ídolo – e influência confessa – Johnny Hodges, a quem admirava intensamente.

A sua segunda incursão pelas hostes elingtonianas foi absolutamente distinta. O Webster que ali ingressou em 1940 era um músico maduro e calejado, inteiramente senhor do seu instrumento e extremamente seguro de si. Não demorou muito para que se tornasse o primeiro tenorista da orquestra, diretamente responsável pela ótima repercussão de músicas como “Conga Brava”, “Cotton Tail”, “Jack The Bear”, “Harlem Air Shaft”, “Sepia Panorama” e “All Too Soon”. A popularidade conseguida ali fez do saxofonista um astro e um paradigma para inúmeros jovens músicos, que tentavam imitar-lhe o estilo.

A big band de Ellington foi decisiva para que Webster depurasse a sua própria forma de tocar e abandonasse, definitivamente, as inflexões à Coleman Hawkins, a quem era acusado de imitar. Além disso, a orquestra contava com o talento do contrabaixista Jimmy Blanton, que ajudou a modernizar a sonoridade da banda, sendo que muitos críticos se referem a esse período como “A Era Blanton–Webster”. O temperamento explosivo do saxofonista acabou por acarretar a sua saída da orquestra, em 1943, após uma briga com o líder, que colocou Paul Gonsalves em seu lugar.

A partir de então, Webster, que se mudou para Nova Iorque, passou a liderar seus próprios grupos, além de participar de concertos e gravações ao lado de Raymond Scott, Jay McShann, Big Sidney Catlett, Stuff Smith, Bob Wilson e John Kirby. Webster também era presença assídua nos clubes da Rua 52 e, por conta da natural interação com músicos mais jovens, como Charlie Parker, Dizzy Gillespie e Bud Powell, assimilou com bastante facilidade o idioma do bebop, transitando com maestria por entre as intrincadas veredas harmônicas do estilo.

A partir do terço final dos anos 40, participou de diversas edições da caravana Jazz at the Philharmonic, do empresário Norman Granz, que viajava o mundo apresentando grandes nomes do jazz. Webster passaria os próximos 10 anos excursionando com regularidade com Granz e, durante uma dessas excursões, em 1948, fez as pazes com o antigo patrão Ellington – tanto é que voltou a tocar em sua orquestra, por alguns meses, naquele mesmo ano.

Na década de 50, o saxofonista foi “adotado” por algumas das maiores cantoras da época, encantadas com a maciez de seu toque. Vieram, então, diversos trabalhos com Billie Holiday, Dinah Washington, Ella Fitzgerald e Carmen McRae. Os cantores também não ficaram imunes ao poder de sedução do fraseado de Webster, que acompanhou ninguém menos que Frank Sinatra, Joe Williams e Jimmy Witherspoon, cuja versão de “Ain’t Nobody’s Business (If I Do)”, gravada durante o Monterrey Jazz Festival, em 1959, é considerada definitiva.

Dentre os músicos com quem tocou naquele período estão nomes ilustres como Stan Getz, Mundell Lowe, Charlie Parker, Benny Carter, Roy Eldridge, Barney Kessel, Michel Legrand, Buddy Rich e outros. Em 1953, lançou pela Verve o LP “King Of The Tenors”, considerado um dos pontos altos de sua carreira, secundado pelo pianista canadense Oscar Peterson, que, juntamente com o trompetista Harry Sweets Edison, se tornaria um dos seus mais constantes parceiros musicais ao longo das próximas décadas. Entre os destaques do álbum, uma descomunal versão de “Tenderly”.

Em mais uma demonstração de prestígio, em 1956 Webster foi convidado por ninguém menos que o grande Art Tatum, para acompanhá-lo no oitavo volume da série “Group Masterpieces”, com o apoio do baixista Red Callender e do baterista Bill Douglass. Outro momento marcante foi o disco “Coleman Hawkins Encounters Ben Webster”, que reúne as duas lendas vivas do saxofone. Gravado em dezembro de 1957, para a Verve, Hawkins e Webster desfiam standards como “Tangerine” e “It Never Entered My Mind”, escoltados pelos soberbos Oscar Peterson, Herb Ellis, Ray Brown e Alvin Stoller.

Em dezembro daquele ano, Webster participou de um especial para a rede de TV CBS, intitulado “The Sound of Jazz”, que conta com as presenças de luminares como Count Basie e Billie Holiday. Ali, pela primeira e única vez na história, reúne-se para uma gravação a Santíssima Trindade do Saxofone da Era do Swing: Coleman Hawkins, Lester Young e Ben Webster brindam a audiência com uma comovente versão de “Fine and Mellow”.

Em 1958, o saxofonista foi uma das principais atrações do Newport Jazz Festival, em um memorável tributo a Duke Ellington, no qual foi acompanhado por Billy Strayhorn, Oscar Pettiford e Sonny Greer, três das mais talentosas “crias” musicais do maestro. Em 1959, dividiu os créditos do álbum “Gerry Mulligan Meets Ben Webster” com o incensado baritonista, então no auge da fama e do prestígio.

Os anos 60 começaram auspiciosos para Webster. Apresentações em festivais pelo mundo inteiro, participação em álbuns de artistas como Johnny Hodges, Helen Humes, Richard “Groove” Holmes, Anita O`Day e Oliver Nelson e lançamento de uma série de ótimos discos em seu próprio nome eram acontecimentos quase triviais.

Um desses álbuns merece especial atenção em sua portentosa discografia, por conta de suas inúmeras qualidades: trata-se de “Soulmates”, que marca o encontro de Webster com o jovem pianista austríaco Joe Zawinul. Vinte e cinco anos mais jovem que o parceiro, Zawinul era considerado uma das maiores revelações da época, e assombrava o mundo do jazz com seu talento, como um dos mais destacados integrantes do sexteto de Cannonball Adderley.

Apesar da diferença de idade e da formação díspar – Webster veio do swing e Zawinul era muito ligado à Third Stream de John Lewis – o saxofonista e o pianista se tornaram amigos bastante próximos, chegando a dividir, durante alguns meses, um apartamento em Nova Iorque. Consta que Coleman Hawkins costumava visitar a dupla e os três músicos varavam as madrugadas em animadas jams caseiras – para o provável deleite dos vizinhos.

O álbum em questão foi gravado para a Riverside, entre 20 de setembro e 14 de outubro de 1963, no Plaza Sound Studios, e conta com as luxuosas presenças de Richard Davis e Sam Jones, se revezando no contrabaixo, e Philly Joe Jones na bateria, além da luminosa participação de Thad Jones, no cornet, em quatro de suas oito faixas. A bolacha foi produzida por Orrin Keepnews e tem como um atrativo a mais as elegantes liner notes, a cargo de um fleumático Bill Evans.

O disco abre com uma relaxada versão de “Too Late Now”, da dupla Burton Lane e Alan Jay Lerner, na qual o fraseado musculoso de Webster transmite aconchego e calor. O apelido de “Ravel do Saxofone” é mais do que justificado e a sessão rítmica consegue ser enfática, mesmo economizando a quantidade de notas – em uma deliciosa apropriação do velho ditado “menos é mais”. O lirismo comedido de Zawinul, que se espelha em pianistas sucintos como Tommy Flanagan ou Hank Jones, é um dos pontos que merecem destaque.

Na exuberante faixa-título, Webster mergulha nas pantanosas águas do blues, com toda potência e vigor, no que é ajudado, sobremaneira, pela caudalosa execução de Sam Jones. A introdução, a cargo de Philly e Zawinul – em seguida os outros instrumentos vão se agregando – é antológica. Thad também participa do set, esbanjando uma categoria invulgar e uma energia contagiante.

O antigo patrão não poderia ficar de fora e a impactante interpretação de “Come Sunday”, de Ellington, é de causar arrepios. A maravilhosa introdução antecipa o clima de opulência sonora que o quarteto consegue imprimir a essa balada. Davis, ora usando o arco, ora a técnica do pizzicato, consegue expressar o abandono e o desencanto das histórias de amor mal sucedidas. Se o jazz alguma vez adotou a estética gótica, esta faixa é o seu melhor exemplo.

Outro tema de autoria de Webster, “The Governor” faz uma releitura modernizada do swing. Aqui quem dá as cartas é o saxofonista incisivo, quase rude, que tinha na enorme potência sonora e na emissão cheia de vibrato as suas características mais visíveis. Instigados pela energética atuação do líder, Philly, Thad e Zawinul se entregam ao tema com a avidez de quem participa de uma acalorada jam session e a performance de Sam Jones, infatigável, é um capítulo à parte.

Zawinul contribui com a infecciosa “Frog Legs”, hard bop vibrante e anabolizado com nada parcimoniosas pitadas de blues. Sua execução, espaçada e percussiva, revela a forte influência de Red Garland. Webster exibe um completo domínio das formas mais modernas de jazz e Thad, sempre surpreendente, é possuidor de uma sonoridade igualmente rica e encorpada. Fantástica a atuação Sam Jones, que extrai do seu contrabaixo um som volumoso e robusto, ideal para acompanhar os vigorosos sopros de Thad e de Ben.

Na dolente “Trav’lin’Light”, clássico do repertório de Lady Day, Webster pode demonstrar o proverbial esmero na construção de um clima lírico e envolvente, com uma sonoridade que é, a um só tempo, áspera e aconchegante. O piano intimista de Zawinul e o sofisticado approach de Davis, um dos mais talentosos contrabaixistas de todos os tempos, ajudam a criar a atmosfera lânguida e altamente romântica.

“Like Someone In Love”, de Johnny Burke e Jimmy Van Heusen, recebe um arranjo delicioso, em tempo médio, cheio de swing e altamente estimulante. O versátil Davis elabora um verdadeiro tratado de elegância e fluidez e o sopro de Ben, áspero, intenso, crispado e meio rascante, funciona como um merecido elogio à destreza. A atuação de Zawinul, que explora com maestria e delicadeza toda a riqueza melódica do tema, também é notável.

Apesar do título enigmático, “Evol Deklaw Ni” – na verdade, um acróstico de “In Walked Love” – é um blues cadenciado, de estrutura moderna e quase minimalista. Mais uma vez, o baixo robusto de Sam Jones merece audição atenta, assim como o excepcional timing de Philly, cujo solo, breve, porém marcante, ressalta a característica marcial de sua percussão. O diálogo entre Thad e Webster é um bálsamo auditivo, uma saudável conjugação de frescor e relaxamento.

Apesar de bem menos badalado que álbuns como “King Of The Tenors” ou “Gerry Mulligan Meets Ben Webster”, que desfrutam do confortável status de clássicos, este “Soulmates” guarda consigo aquela espécie de encanto que transforma uma obra despretensiosa e aparentemente corriqueira em uma verdadeira apoteose do sublime. Por isso mesmo, indispensável!

Em 1964, com alguma dificuldade para trabalhar regularmente e desencantado com o cenário musical norte-americano, Webster resolveu aceitar um convite para uma temporada de um mês no clube Ronnie Scott`s, em Londres. Animado com a ótima receptividade, decidiu se mudar em definitivo para a Europa, estabelecendo-se, primeiramente, em Copenhagen, na Dinamarca. Também morou em Estocolmo, na Suécia, e em Oslo, na Noruega, e, entre 1966 e 1969, fixou residência em Amsterdã, na Holanda.

Adaptou-se perfeitamente ao novo ambiente e tocava exaustivamente, não só com músicos europeus, como Niels-Henning Ørsted Pedersen, Tete Montoliu, Alex Riel, Hugo Rasmussen ou Cees Slinger, mas também com outros expatriados norte-americanos, como Warne Marsh, Benny Carter, Bill Coleman, Don Byas, Kenny Drew, Teddy Wilson, Albert “Tootie” Heath, Charlie Shavers, Red Mitchell, Carmell Jones, Brew Moore, Clark Terry, Buck Clayton, Dexter Gordon e Earl Hines, entre outros.

Em 1971, Webster se reuniu pela última vez à orquestra de Duke Ellington, para uma série de concertos em Tivoli Gardens, na Dinamarca. Seu prestígio e sua popularidade mantiveram-se em alta durante todo o tempo em que residiu no Velho Continente. Ele conservou a rotina de gravações, concertos, apresentações em festivais pelo mundo até praticamente o final da vida. O saxofonista faleceu na cidade de Amsterdã, na Holanda, no dia 20 de setembro de 1973. Seu corpo foi enterrado no cemitério de Nørrebro, em Copenhagen, cidade que quase dez anos antes o havia acolhido de maneira tão calorosa.

Pouco depois da sua morte, seus herdeiros criaram a Ben Webster Foundation, mantida com parte dos royalties de seus discos. A fundação tem como principal finalidade apoiar a disseminação do jazz na Dinamarca e nos Estados Unidos e anualmente concede a jovens músicos o Ben Webster Prize. A família também doou a coleção particular de gravações de Webster para o departamento de música da University Library of Southern Denmark, em Odense.

Em 1974, Webster foi indicado, postumamente, para integrar o Down Beat Hall Of Fame, na votação da crítica. Sua influência permanece tão viva quanto a sua música e saxofonistas de gerações e estilos tão diversos quanto Eddie ”Lockjaw” Davis, Lew Tabackin, Paul Gonsalves, Harold Ashby, Frank Foster, Sonny Rollins, Flip Phillips, Georgie Auld, John Coltrane, Charlie Ventura, Scott Hamilton, Branford Marsalis, David Murray, Archie Shepp e Bennie Wallace são, em maior ou menor intensidade, tributários do seu estilo vigoroso e lírico.

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sexta-feira, 27 de agosto de 2010

CONFESSO QUE OUVI: NESTE SÁBADO, TARDE DE AUTÓGRAFOS NO PROJETO "PERTENCES DA CASA"




Neste sábado (28/08), terei a honra de participar do "Projeto Pertences da Casa", no Restaurante Marisco, a convite do produtor (e amigo querido) Celijon Ramos, para lançar naquela casa o livro "Confesso que ouvi".

Haverá música ao vivo e estarei lá a partir das 13:30, para uma animada tarde de autógrafos, com a inestimável presença dos amigos. Se você gosta de boa música e de um bom papo, o "Pertences da Casa" é a opção certa!

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

OS VERÕES POLARES




À estupidez que inebria os corações,
Vassalos de outros corações...
Às badaladas inconclusas do sino da capela,
Que anunciam o pesar nauseabundo...
Ao descompasso palpitante que acende
A chama pueril que insiste em não queimar...
À solidão, desdenhosa em seu desamparo,
Que persevera em me fazer companhia...
Ao resultado métrico do poema,
Tão profícuo e tão inútil...
À metáfora obstinada e submersa
Que revela o quão patéticas são as grandes aptidões,
À empatia piedosa com os que sofrem,
Imbuída da mais solene hipocrisia...
Ao amadurecimento das idéias brilhantes,
Que apenas apodrecem nas mentes dos covardes...
Ao fetiche precário do assassino hesitante,
Preso ao corcel arredio da docilidade...
À frivolidade e ao descompromisso engajados,
Tão insensíveis à arte...
Aos canalhas asilados no purgatório da mediocridade,
Pois eles um dia herdarão o reino dos céus...
Às horas vadias e noites sôfregas,
Que se escondem sob as montanhas escarpadas do desvario...
À neblina, periódica e imberbe,
Cuja frouxidão deixa atravessar, incólumes, as embarcações...
Aos percursos opostos, paralelas do imponderável,
Que derramam sobre os meus olhos a sombra dos ciprestes...
Aos hipocondríacos, aos endinheirados, aos compreensivos,
Aos militantes, aos militares, aos exonerados,
À sociedade, à futilidade, à necessidade,
Ao pai das invenções e ao país do futebol,
Aos verões polares e às flores de plástico,
Aos horizontes precários e às máscaras mortuárias,
À cultura milenar, aos ancestrais e descendentes,
Ao teatro do oprimido e à fogueira das vaidades,
Aos oligofrênicos, aos nefelibatas, aos pragmáticos,
Aos exploradores, aos esfomeados, aos misericordiosos,
Às almas, aos corpos, ao sêmen,
Eu rogo que parem
E descansem em paz!
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Clifton Anderson, nascido em 05 de outubro de 1957, em Nova Iorque, é um dos trombonistas de maior prestígio da atualidade. Sobrinho de Sonny Rollins, desde 1983 é um dos destaques da banda que acompanha o lendário saxofonista. A paixão pela música vem de berço: seu pai tocava órgão em uma igreja local e a mãe, Gloria Rollins Anderson, que faleceu em 2008, era cantora e pianista amadora.
Após assistir ao filme “The Music Man”, onde há uma cena com uma orquestra de trombones liderada por Robert Preston, o garoto manifestou à mãe o desejo de tocar o instrumento. Glória contou ao irmão famoso sobre o desejo do sobrinho, e Sonny deu ao pequeno Clifton o seu primeiro trombone, quando este tinha apenas sete anos. Mais tarde, aos 12 anos, o garoto decidiu investir com afinco na carreira musical. Até então, Anderson se dividia entre a música e o tênis, outra de suas paixões.
Os primeiros estudos musicais foram feitos na renomada Fiorella LaGuardia High School of Music and Art e, a partir daí, não parou mais de tocar. Estudou com Simon Karasick e Dave Schechter, na State University of New York, onde passou cerca de um ano. Em seguida, matriculou-se na Manhatan School of Music, onde se graduou em música, no ano de 1978, e teve como colega de turma o talentoso pianista Kenny Kirkland.
Uma das suas primeiras experiências profissionais foi integrar a “The World of Trombones”, orquestra criada e liderada por Slide Hampton, na qual atuaram outros jovens e talentosos trombonistas, como Steve Turre, Doug Purviance, Robin Eubanks e Conrad Herwig. A influência de J. J. Johnson é visível no seu fraseado, embora também se possam perceber ecos de Frank Rosolino, especialmente na forma adocicada com que toca baladas. A admiração pelo tio e pela mãe pianista é enorme. Anderson costuma dizer que “há um pouco da minha mãe e também de Sonny em cada nota que eu toco”.
Além de exímio trombonista e compositor, Anderson é um disputado produtor e arranjador, tendo atuado em diversos musicais da Broadway, como “Dreamgirls” e “Nine”. Também desenvolve uma renomada carreira como educador musical em escolas de Nova Iorque. Sua execução é envolvente e extremamente sofisticada e, no currículo, registra atuações ao lado de luminares como Wallace Roney, Frank Foster, Dizzy Gillespie, Geri Allen, McCoy Tyner, Clifford Jordan, Lester Bowie, Barry Harris, T. S. Monk e Muhal Richard Abrams.
Convidado pela Duke University, foi artista residente daquela prestigiosa instituição, entre 1999 e 2001. Como pesquisador musical, possui enorme afinidade com os ritmos afro-caribenhos, como a salsa, o calipso e o reggae. Também é bastante disputado por estrelas do mundo pop, tendo gravado com Paul Simon, Dionne Warwick, Wyclef Jean, Billy Ocean, Stevie Wonder e Mighty Sparrow. Produziu elogiados álbuns "Without a Song: The 9/11 Concert", de 2006, “Sonny, Please”, de 2007, e “Road Shows”, de 2008, que estão entre os melhores que o tio Sonny Rollins lançou nos últimos 20 anos.
Anderson tem apenas dois álbuns gravados como líder, sendo que “Decade”, lançado pela Doxi Records, é considerado o seu mais importante trabalho até agora. A produção de Sonny Rollins é o melhor selo de qualidade deste disco, que conta ainda com alguns dos melhores músicos contemporâneos. Ali estão presentes Larry Willis e Stephen Scott (piano), Bob Cranshaw e Christian McBride (baixo acústico), Al Foster e Steve Jordan (bateria), Kenny Garret (sax alto), Eric Wyatt (afilhado de Sonny Rollins, sax tenor) e Kimati Dinizulu (percussão). As gravações foram feitas entre 10 e 28 de dezembro de 2007.
Com os dois pés muito bem assentados na tradição bop e no blues, Anderson é um músico de enorme personalidade, altamente versátil e um inspiradíssimo compositor, assinando seis das dez faixas, incluindo as excelentes “So Wrong About You”, “Deja Blu” e o calipso “Aah Soon Come”, tributário da clássica “St. Thomas”, talvez o mais conhecido tema de Rollins.
A lindíssima versão de “I’m Glad There Is You”, com um arranjo minimalista e percussão orientalizada – a cargo de Foster – e a swingante releitura de “If”, antigo sucesso da banda pop Bread, merecem uma audição mais atenta. Destaque-se, ainda, a notável performance do grupo em “Noble”, também de autoria do líder, na qual a atuação do trombonista pode ser definida como vulcânica.
O standard “I'm Old Fashioned”, com uma irresistível levada bop, e a incandescente “Stubbs”, feita em homenagem ao falecido saxofonista John Sttublefields, apresentam a pegada vigorosa de Anderson, à vontade nos tempos mais acelerados. Em “Z”, os méritos recaem sobre o exuberante trabalho de Garret, num trabalho que concilia desenvoltura e complexidade, e sobre a robusta sonoridade que McBride extrai do seu contrabaixo.
A sofisticada balada “We'll Be Together Again”, tocada em dueto com o pianista Scott, é um dos momentos mais sublimes do álbum, com os dois músicos interagindo com muito lirismo e criatividade. Na época, a mãe de Anderson estava hospitalizada em estado grave e a canção foi gravada em sua homenagem, daí a enorme carga emotiva que a reveste. Por tamanhas qualidades, “Decade” é, justamente, considerado um dos melhores álbuns de 2008, e uma singular amostra do talento desse grande trombonista.

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sexta-feira, 20 de agosto de 2010

CONFESSO QUE OUVI




Caros amigos do JAZZ + BOSSA,
Acaba de sair da gráfica o livro "Confesso que ouvi", no qual faço um apanhado dos posts publicados aqui no jazzbarzinho. Reproduzo abaixo o texto dos agradecimentos e, novamente, peço desculpas aos amigos se olvidei algum nome. Como atrativo, a orelha do livro foi escrita pelo valoroso Capitão John Lester, o prefácio ficou a cargo do "mestre dos mestres", o querido Pedro "Apóstolo" Cardoso, e a apresentação foi escrita pelo amigo (e ídolo) Augusto Pellegrini.
O lançamento é mais uma iniciativa da Editora Azulejo, um empreendimento maranhense que tem por proposta fomentar as letras - especialmente no âmbito jurídico - no estado do Maranhão. Quando eu conseguir formular uma estratégia de distribuição razoavelmente eficaz, ponho aqui no blog as informações sobre como será possível adquiri-lo.
Agradeço, do fundo do coração, a todos os que, com suas visitas e comentários, tornam o jazzbarzinho a experiência mais sensacional que já tive a honra de vivenciar nos últimos tempos!!!!
PS.: Clique na foto para ampliar e depois use o zoom para ler os textos!

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AGRADECIMENTOS


Embora não pareça, a feitura de um livro nunca é um trabalho solitário. Ninguém escreve para si mesmo, pois a escrita sempre se realiza sob a perspectiva da existência do outro. Há no ato de escrever, portanto, uma pretensão à completude, que se materializa, apenas e tão-somente, se e quando as idéias do autor se encontram com o destinatário das palavras que brotam sobre o papel.
Feita a conexão, dá-se a magia da leitura e o livro passa, de fato, a existir. Agora não mais como mero objeto inanimado, mas como um sujeito vivo que sussurra aos olhos do leitor aquilo que o autor escreveu. Portanto, o meu primeiro agradecimento vai para aquele que é a razão da existência de qualquer texto ou livro: o leitor. Torço para que sejam muitos e para que não sejam tão rigorosos com este modesto escriba.
Agradeço também a todos os companheiros que integram a atual diretoria da AMATRA XVI e que dignificam, por sua postura aguerrida, o ofício cotidiano de construir o movimento associativo: Paulo, Veloso, James, Cadu, Gustavo, Maurílio, Saulo, Márcia, Manoel Joaquim e Jaime.
Minha mais profunda gratidão a toda a magistratura trabalhista maranhense, nas pessoas das desembargadoras Márcia Andréa Farias da Silva e Ilka Esdra Silva Araújo, amigas queridas e que conduzem, com a sabedoria e a generosidade tipicamente femininas, a administração do Tribunal Regional do Trabalho da 16ª Região.
Aos magistrados (e “cabras-da-peste” da melhor estirpe) Francisco Xavier de Andrade Filho, Fernando Luiz Duarte Barboza e Alisson Almeida de Lucena, cujo inestimável auxílio, sempre com muita seriedade e presteza, torna a gestão à frente da Vara do Trabalho de Pinheiro-MA um ofício menos árduo e solitário.
A todo o corpo funcional da Vara do Trabalho de Pinheiro-MA, incluindo também os estagiários, vigilantes e zeladores, cuja competência, responsabilidade, dedicação exemplar e compromisso com o múnus público são motivo de grande orgulho e me fazem crer que uma prestação jurisdicional efetiva e célere não é utopia.
Também gostaria de expressar os meus mais sinceros agradecimentos a todos aqueles que, com a sua participação, ajudam a fazer do blog JAZZ + BOSSA + BARATOS OUTROS uma das experiências mais prazerosas e estimulantes que já me foi dada a honra de viver. Obrigado, meus queridos amigos Sérgio Sônico, Olney Figueiredo, André Tandeta, Mauro Hottbeatjazz, Pituco, Esther Cidoncha, Paul Brasil, Edú (com acento mesmo), Andréa Lyon, Vagner Pitta, M. J. Falcão, O Pescador, Valéria Martins, Nydia Bonetti, Hector Aguillera, Sofia Urko, Francisco Araújo, Predador, Dade Amorim, Edinho, Salsa, Érico Peixoto, Lollipop, Caio Garrido, On The Rocks, Takechi, Maysa, Don Oleari, Francisco Grijó, Murilo Barbosa, Sérgio Rivero, Fabrício Vieira, Dr. Krapp, Fátima Cristina (minha comadre e uma das maiores incentivadoras para que eu criasse o blog), Tobias Serralho, Paula Nadler, Cynthia Kremer, Frederico Bravante, Adriana Godoy e todos os demais freqüentadores do jazzbarzinho (peço perdão se esqueci algum nome).
Minha mais profunda gratidão aos meus compadres e amigos fraternos Bruno Motejunas, Celijon Ramos, James Magno Farias e Washington Torreão, sempre presentes em todos os momentos de minha vida e sempre a postos para dar de si aquilo que mais possuem: a sua enorme generosidade e sua inquebrantável afeição.
Ao grande decano do jazz nas terras guajajaras, o paulista mais maranhense do pedaço Augusto Pellegrini, baluarte na luta pela boa música e que, entrincheirado nas rádios e nos palcos, ajuda a compor a trilha sonora de nossas vidas.
Ao incansável pesquisador Mário Jorge Jacques, cujo “Glossário do Jazz” é obra de referência e absolutamente indispensável para qualquer um que deseje se aprofundar nas maravilhosas veredas do jazz.
Ao fraterno amigo João Bouéres, que me apresentou ao primoroso repertório da grande canção americana e em cuja casa ouvi pela primeira vez artistas fundamentais como Johnny Hartman, Mel Tormé, Bobby Short, Mahalia Jackson, Lena Horne e tantos outros.
Ao querido José Domingos Raffaelli, bastião da decência e da integridade no jornalismo cultural, provavelmente o maior conhecedor de jazz em atividade no Brasil, testemunha ocular e auditiva de todos os grandes momentos do jazz aqui em Pindorama e além-mar e que, tão generosamente, divide de bom grado os seus enciclopédicos conhecimentos com os amigos do blog JAZZ + BOSSA.
Ao amigo John Lester, intrépido comandante da nave Jazzseen (www.jazzseen.blogspot.com), um dos blogs de jazz mais espetaculares da internet brasileira e que, gentilmente, elaborou o belíssimo texto que emoldura a orelha deste livro.
Last, but not least, aos queridos Pedro “Apóstolo” Cardoso e Matilde, um dos casais mais adoráveis e cativantes que já tive o prazer de conhecer e que muito me honram com a sua amizade, estima e consideração.


terça-feira, 17 de agosto de 2010

A CAVALGADA DAS VALQUÍRIAS


Poucas coisas poderiam assustar mais um homem do medievo que a aterradora visão de um drakkar se aproximando, rápida e sorrateiramente, de um porto ou cidade litorânea. A embarcação, cuja tradução significa, literalmente, “navio-dragão”, por causa do seu formato, era o veículo típico dos vikings, civilização que habitava a região da Escandinávia, englobando o que hoje é a Suécia, a Noruega e a Dinamarca.

Os vikings eram guerreiros natos e navegadores habilíssimos. A bordo de suas longas, porém ágeis, embarcações, saqueavam tudo o que encontravam pela frente, especialmente mosteiros situados à beira-mar e pequenas cidades costeiras, sobretudo na região do Mar Báltico. A coragem proverbial impeliu-os a singrar os gelados mares do norte da Europa e a cruzar o Atlântico, descobrindo, no caminho, a Islândia e a Groenlândia.

Os litorais do que hoje conhecemos como Rússia, França e Inglaterra também sofreram com as invasões vikings. Há historiadores que acreditam, até mesmo, que eles foram os primeiros europeus a desembarcar na América, em algum local situado entre o norte dos Estados Unidos e o sul do Canadá. Embora pudessem ser brutais, quando resolviam atacar uma determinada localidade, os vikings também eram hábeis comerciantes e possuíam uma civilização bastante sofisticada.

Dominavam a escrita, tinham uma agricultura e uma pecuária razoavelmente desenvolvidas e dispunham de uma metalurgia bastante avançada, o que explica, em parte, o sucesso de seus empreendimentos militares. Os vikings eram reconhecidos como excelentes fabricantes de armas, e as utilizavam com idêntica maestria.

Donos de uma mitologia rica e fascinante, os vikings eram politeístas e acreditavam em vários deuses. O principal deles era Odin, o todo-poderoso, que havia criado a terra e os homens. O deus mais popular, todavia, era seu filho, o bravo Thor, o Deus do Trovão, sempre disposto a encarar uma boa briga e que, via de regra, vivia enredado em alguma confusão arranjada pelo dissimulado Loki. Os deuses nórdicos viviam em Asgard, uma espécie de Olimpo louro e de olhos azuis.

A guerra era um elemento muito importante na formação de um viking. Eles acreditavam que os guerreiros mais valentes, mortos em combate, eram recolhidos dos campos de batalha pelas Valquírias, belas e corajosas guerreiras, e levados para Valhala (cuja tradução seria algo como “O Salão dos Mortos”), uma espécie de paraíso reservado apenas para aos mais bravos e honrados.

Inspirado pela mitologia nórdica, o compositor alemão Richard Wagner escreveu a ópera “Die Walküre” (A Valquíria), que integra a ambiciosa tetralogia “O Anel do Nibelungo”. A passagem mais popular da ópera é conhecida como “A Cavalgada das Valquírias” e abre a primeira cena do terceiro ato. Seu estilo grandiloqüente e intenso faz parte do imaginário popular, em grande parte por conta de ser o fundo musical de uma das cenas mais impactantes de “Apocalipse Now”, a personalíssima releitura de Coppola para o inferno da Guerra do Vietnã, baseada no romance “O coração das trevas”, de Joseph Conrad.

Invertendo a ordem histórica, no século XX as terras que pertenceram aos vikings foram invadidas por uma horda de homens de além mar. Ao invés de armas, sujeitos como Sahib Shihab, Warne Marsh, Benny Carter, Don Byas, Kenny Drew, Red Mitchell, Carmell Jones, Brew Moore, Clark Terry e Dexter Gordon, entre outros, portavam saxofones, trompetes, baquetas, contrabaixos e retribuíram, mil anos depois, a suposta visita que os vikings teriam feito à sua América natal.

Mas para não decepcionar o espírito desbravador de seus predecessores, também o jazz foi invadido por um viking. Niels-Henning Ørsted Pedersen conservou dos ancestrais a audácia e a tremenda perícia e, embora não fosse navegador, fazia com que os ouvintes viajassem em sua sonoridade poderosa, rica e pulsante. Sem dúvida alguma, inscreveu seu nome entre os maiores nomes do contrabaixo jazzístico, ombreando-se, em técnica e habilidade, a Charles Mingus, Ray Brown e Oscar Pettiford.

Pedersen nasceu no dia 27 de maio de 1946, em Osted, cidadezinha localizada na ilha dinamarquesa de Zealand. A musicalidade veio de berço, já que o pai era organista da igreja local e seus irmãos mais velhos eram músicos amadores. Seu primeiro instrumento foi o piano, que começou a tocar ainda na infância. No início da adolescência, Pedersen tocava em uma banda de dixieland com os irmãos e alguns amigos, chamada “Don Camilo and His Feetwarmers”. Um desses amigos, Ole Kock Hansen, também era pianista e acabaria tomando seu lugar nos teclados da banda. Como curiosidade, Hansen seria o pianista do primeiro álbum solo de Pedersen, “Jaywalkin’”, gravado em 1976, para a Steeplechase.

Assim, NHØP, como é carinhosamente conhecido no meio jazzístico, viu-se obrigado a optar pelo contrabaixo. A troca acabou sendo um ótimo negócio para o garoto, que, com apenas 13 anos, logo se revelou um verdadeiro fenômeno. A fim de aperfeiçoar a sua técnica, estudou com o renomado contrabaixista Oscar Hegner, integrante da orquestra do Royal Theater, e já no ano seguinte, aos 14 anos, integrou-se a uma banda de jazz de Copenhagen, chamada Jazzkvintet. Em seguida, tocou algum tempo no trio do pianista Bent Axen, onde chamou a atenção do público e da crítica para seu trabalho.

Em 1962, aos 15 anos, começou a se apresentar profissionalmente como o baixista regular do tradicionalíssimo Montmartre Jazzhus, clube mais importante da Dinamarca. Seu primeiro trabalho foi acompanhar ninguém menos que Bud Powell, em uma temporada dinamarquesa, que durou de fevereiro a abril daquele ano. A partir de então, construiu um portfólio que o coloca, seguramente, entre os mais prolíficos músicos de jazz de todos os tempos.

Virtualmente, todos os grandes músicos norte-americanos – estabelecidos ou apenas de passagem pela Dinamarca – foram acompanhados pelo jovem NHØP. A lista impressiona pela quantidade e pela qualidade: Ben Webster, Art Farmer, Joe Henderson, Lucky Thompson, Donald Byrd, Kenny Dorham, Johnny Griffin, Bill Evans, Albert “Toot” Heath, Brew Moore, Joe Pass, Don Byas, Duke Jordan, Stuff Smith, Horace Parlan, Teddy Wilson, Lee Konitz, Warne Marsh, Stan Getz, Jackie McLean, Roy Eldridge, Ray Bryant, Louie Bellson, Jimmy Smith Dizzy Gillespie, Herb Geller, Roland Kirk, Sonny Rollins, Joe Albany, Chet Baker, Dexter Gordon, Freddie Hubbard, Count Basie, entre incontáveis outros.

Count Basie, aliás, ficou tão impressionado com a habilidade do rapaz que o convidou para juntar-se à sua orquestra. Receoso de ter que enfrentar problemas legais nos Estados Unidos, por conta de sua pouca idade – 17 anos na época do convite – NHØP recusou a oferta e continuou no seu país. Além do emprego fixo no Montmartre, ele fazia parte da prestigiosa Danish Radio Orchestra, onde permaneceu de 1964 a 1982, e gravava com intensidade para o selo dinamarquês Steeplechase, fundada por Nils Winther em 1972.

Também trabalhou com alguns dos nomes mais importantes do jazz europeu, dentre eles, Tete Montoliu, Alex Riel, Jean-Luc Ponty, Palle Mikkelborg, Stéphane Grappelli, Louis Van Dyke, Philip Catherine, Martial Solal, Niels Lan Doky, Ulf Wakenius, Svend Asmussen e Michel Petrucciani, entre outros. Acompanhou as cantoras Ella Fitzgerald, Tânia Maria, Karin Krog e Maria João e o pianista canadense Paul Bley. Sua versatilidade permitia que trabalhasse tanto ao lado de um gigante do bebop quanto de expoentes do free jazz mais radical, como Archie Shepp, Albert Ayler, John Tchicai e Anthony Braxton, com a mesma desenvoltura.

Um dos seus mais constantes parceiros era o pianista Kenny Drew, ao lado de quem gravou dezenas de álbuns, muitos deles no formato de duo. Outra associação importante, e que projetou seu nome para além do continente europeu, foi com o também pianista Oscar Peterson, cujo trio NHØP integrou, a partir de 1971, no álbum “Great Connections” (MPS), ocupando o lugar que já havia pertencido a sumidades como Ray Brown e Sam Jones.

Os dois já haviam tocado juntos no ano anterior, quando Niels substituiu o então baixista de Peterson, o tcheco George Mraz, em uma turnê pela extinta Tchecoslováquia. O baixista, que havia fugido do país e se estabelecido nos Estados Unidos, estava proibido de retornar à terra natal e NHØP foi recrutado para o posto. Quando Mraz deixou o Oscar Peterson Trio, o baixista dinamarquês foi uma escolha natural e a associação profissional se transformou em uma sólida amizade. Entre muitas idas e vindas, os dois tocaram juntos por quase trinta anos e legaram ao mundo grandes álbuns e apresentações inesquecíveis.

Peterson, seguramente o mais técnico e hábil discípulo de Art Tatum, tinha um enorme respeito por seu jovem baixista. Perguntado sobre quem seria melhor, Ray Brown ou Niels Pederson, o pianista respondeu, certa vez: “Esta é uma pergunta injusta e impossível de responder, porque se trata de músicos completamente diferentes em suas concepções musicais. Ray é, essencialmente, o mais fantástico integrante de uma sessão rítmica com quem já toquei. Niels, como solista, é extremamente lírico em seu toque e, sem dúvida, o melhor solista do mundo em seu instrumento”.

O baixista também compunha – “My Little Anna” e “The Puzzle” são seus temas mais conhecidos – e fazia arranjos, muitos deles dando interpretações jazzísticas a temas folclóricos dinamarqueses. Com centenas de participações em álbuns alheios, NHØP possui uma discografia relativamente modesta, sob o aspecto quantitativo, em seu próprio nome. Além dos álbuns em que divide os créditos com o amigo Kenny Drew, destacam-se “Double Bass” (Steeplechase, 1976), onde Pedersen e Sam Jones atuam em duo, secundados por Billy Higgins (bateria), Albert “Tootie” Heath (percussão) e Philip Catherine (guitarra), e “Friends Forever” (Milestone, 1995), ao lado da pianista Renee Rosnes, no qual o baixista homenageia o amigo Kenny Drew.

“Those Who Were” se enquadra entre os seus mais belos e cativantes trabalhos. O álbum foi gravado para a Verve, em maio de 1996, nos Estúdios Focus, na Dinamarca, com produção do pianista Niels Lan Doky. Acompanham o baixista, o guitarrista Ulf Wakenius e os bateristas Victor Lewis e Alex Riel, que se revezam nas baquetas. O disco conta com as participações especiais de Johnny Griffin no sax tenor (em duas faixas) e da cantora sueca Lisa Nilsson, em uma faixa.

O repertório eclético, traz standards, temas de autoria do líder e leituras de músicas tradicionais dinamarquesas. Abrindo o disco, uma hipnótica versão de “Our Love Is Here to Stay”, dos irmãos Gershwin, uma mostra da habilidade melódica e do fraseado doce e lírico do baixista. Wakenius usa a guitarra acústica de maneira bastante sóbria. A quase imperceptível percussão de Lewis serve como um complemento sonoro para as graciosas harmonias do líder.

A lisérgica “Derfor Kan Vort ØJe Glædes” é baseada no folclore dinamarquês e sua estrutura reflexiva remete aos álbuns impressionistas da ECM. Lewis, mais uma vez, apresenta uma batida minimalista. Em “With Respect”, Wakenius usa a guitarra elétrica, com destreza e muito swing. A abordagem do trio é moderna, lembrando as incursões mais jazzísticas de Pat Metheny. A pegada de Pedersen é vibrante, concisa, uma verdadeira aula de senso rítmico e seus improvisos são paradigma de inteligência musical. Lewis maneja sua bateria com uma energia contagiante.

“Those Who Were” tem a participação da cantora Lisa Nilsson nos vocais e Riel substitui Lewis com igual competência. É uma balada simples e direta, de autoria de NHØP e da cantora, valorizada pela voz intimista de Nilsson e pelo clima caloroso que o baixista impõe a seu toque. Outra balada, a viajante “Friends Forever”, traz um arranjo despojado e um soberbo trabalho do inventivo Wakenius na guitarra acústica, que impregna a seu fraseado uma discreta tintura flamenca.

Mostrando que domina com muita intimidade o idioma bop, Pedersen apresenta sua composição “The Puzzle”, simplesmente irretocável. A extrema perícia do baixista, com suas harmonias alucinantes, e a participação de Griffin, com seu sopro vitaminado e imerso no blues, fazem deste um dos temas mais empolgantes do álbum. Na guitarra elétrica e emulando craques como Pat Martino e Barney Kessel, o encapetado Wakenius se esmera em solos de alta complexidade e elevadas doses de swing.

“Wishing and Hoping” flerta com a bossa nova e é uma das mais charmosas faixas do disco. A simplicidade da interpretação do trio, com destaque para a bateria calorosa de Lewis, remete aos grandes momentos da música brasileira. A suntuosa versão de “You and the Night and the Music”, da dupla Howard Dietz e Arthur Schwartz, com Grifffin em estado de graça, é outro momento de rara inspiração. A sonoridade de Pedersen é rica e sua capacidade de engendrar atmosferas harmônicas de rara beleza parece inesgotável.

A animada “Guilty, Your Honour”, com seu clima descompromissado e alegre, encerra o álbum com um astral festivo e deixa no ouvinte uma agradabilíssima sensação de bem estar. A nota triste é que este seria um dos últimos discos de Pedersen como líder, que somente gravaria mais um álbum em seu próprio nome: “This Is All I Ask” (Verve), de 1998, que conta com uma rara participação de Oscar Peterson como sideman. Em 2007 seria lançado “The Unforgettable NHØP Trio Live”, também para a Verve, reunindo gravações feitas pelo trio do baixista entre 1999 e 2005.

O baixista trabalhou, como freelancer, durante toda a década de 90 e nos primeiros anos do sáculo XXI, com participações em álbuns de Biréli Lagrene, Toots Thielemans, Paquito D’Rivera, Richard Galliano e muitos outros. Foi agraciado com o Nordic Council Music Prize, em 1991, e durante anos lecionou no Rytmiske Musikkonservatorium, em Copenhagen. Sua técnica inovadora, comparável à de Scott LaFaro pela inventividade, incluía um uso revolucionário da mão direita e a utilização de captadores especiais, que davam ao seu timbre uma característica toda original de densidade e extensão.

NHØP faleceu prematuramente, no dia 19 de abril de 2005, em decorrência de um ataque cardíaco. Tinha apenas 58 anos e deixou uma obra registrada em mais de oitocentas gravações. Ecos do seu estilo inovador e ousado podem ser sentidos em grandes baixistas contemporâneos, como John Patitucci, Brian Bromberg e Christian McBride, todos confessadamente influenciados por ele. Guerreiro de grande valentia nas lides jazzísticas, “O Viking”, como também era conhecido, certamente descansa no Valhala reservado aos grandes contrabaixistas do jazz, ao lado de outros monstros como La Faro, Pettiford, Brown, Mingus, Vinnegar e Blanton.

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quinta-feira, 12 de agosto de 2010

PLAY IT AGAIN, VON!

É impossível não simpatizar logo de cara com o sorridente coroa que, em mangas de camisa, estampa a capa do álbum “Doin’ It Right Now”. As fotos que ilustram o disco, tiradas em uma oficina ou num antigo depósito, parecem revelar uma pessoa simples, alegre e de bem com a vida. Seu nome é Earl Lavon Freeman e embora não esteja entre os músicos mais conhecidos do público, ele é considerado um dos saxofonistas mais influentes de todos os tempos. Diga-se, de passagem, que todos os que conviveram com ele são unânimes em afirmar: Von, como é mais conhecido, é a simplicidade em pessoa. Vamos saber um pouco mais sobre sua vida e sua trajetória profissional?

Ele nasceu no dia 03 de outubro de 1922, em Chicago, Illinois, e a música era algo essencial na casa dos Freeman. O avô materno tocava guitarra, o pai era um policial apaixonado por jazz, que costumava gastar boa parte do salário na compra de 78 rotações de Guy Lombardo, Louis Armstrong e Fats Waller (de quem era amigo pessoal), e a mãe, dona de casa e guitarrista amadora, cantava e tocava com o coral da igreja. Três dos filhos do casal seguiram a carreira musical: Lavon, George e Eldridge, mais conhecido pelo apelido Bruz.

Aos sábados e domingos, um dos programas favoritos da família era assistir aos shows das orquestras de swing que se apresentavam no Regal Theater. Nesse ambiente tão fecundo, tocar era algo tão natural quanto comer ou respirar. Inicialmente, o pequeno Lavon recebeu aulas de piano – dadas por uma tia – quando contava com apenas dois anos. Certa feita, a família recebeu a visita de Fats Waller, que não se fez de rogado e tocou alguns números, para deleite de todos. Durante muito tempo, o orgulhoso Vonsky – como era chamado em casa – costumava se exibir para os vizinhos do bairro dizendo: “Fats Waller tocou nesse piano”.

Aos sete anos, improvisou o seu primeiro saxofone, usando um bocal de madeira e a campânula do gramofone de casa. Apesar das ameaças da mãe, de castigá-lo com rigor se o visse fazendo tal peripécia, o garoto aproveitava os momentos em que o pai saía para trabalhar, para praticar com o seu prosaico instrumento. O pai, aliás, costumava complementar o orçamento doméstico trabalhando como segurança em clubes e boates, e assim fez amizade com Coleman Hawkins, fato que teve enorme impacto sobre o pequeno Von, que chegou a conhecer pessoalmente o famoso saxofonista.

Pouco depois, já dominava o clarinete e o saxofone c-melody, mais tarde trocado pelo tenor. Aluno da DuSable High School, onde recebia educação musical formal, a cargo do diretor musical Walter Dyett, o garoto também estudava harmonia, pelas mãos do professor Bryant Jones. Entre seus colegas de turma, dois seriam músicos de renome: o saxofonista Gene Ammons e o trombonista Benny Green. O precoce Lavon começou a participar de suas primeiras gigs quando tinha apenas 12 anos, em clubes da cidade natal. Chegou a despertar a atenção do lendário Earl Hines, que o teria convidado para se integrar à sua big band, mas preferiu dar continuidade aos estudos.

Aos 16 anos, juntou-se à orquestra de Horace Henderson, irmão menos famoso de Fletcher Henderson, na qual permaneceria de 1939 a 1940, quando foi convocado pela Marinha. Entre 1941 e 1945 serviu às forças armadas e, durante esse longo período, sempre atuou em bandas e orquestras da corporação, sendo que pelo menos uma delas, a Hellcats Jazz Band, adquiriu bastante notoriedade. De volta à vida civil, foi um dos integrantes da banda do célebre Pershing Hotel Ballroom, um dos mais famosos clubes de Chicago, onde atuava na companhia dos irmãos George (guitarra) e Bruz (bateria).

Ali, teve a oportunidade de acompanhar algumas das maiores estrelas do jazz e do blues, de passagem pela cidade, como Charlie Parker, Lester Young, Roy Eldridge, Dizzy Gillespie, Don Byas, Ike Quebec, Jimmy Witherspoon, Dexter Gordon, Teddy Edwards e Jimmy Reed. Pelo menos duas sessões com Parker foram gravadas e lançadas em disco, posteriormente: “Bird Seed”, pela Stash, e “One Night In Chicago”, pela Savoy.

Parker, juntamente com Coleman Hawkins e Lester Young, compõe a tríade de saxofonistas que mais o influenciaram em seus anos de formação. Sobre essas influências, o próprio Von esclarece: “De Hawk eu tomei emprestada a potência e a sonoridade encorpada. De Pres, eu tentei pegar o lirismo. De Bird, eu tentei captar a inteligência musical. Todo mundo tocava bebop, mas Bird era o bebop em pessoa”. Mesmo reconhecendo as influências recebidas, ele é enfático quanto à necessidade do músico em ter a sua própria identidade: “Você tem que ter a sua própria voz. Essa é a única maneira de tocar jazz”.

De 1948 a 1950, Freeman também tocou com o pianista e bandleader Sun Ra, tendo sido um dos fundadores da “Arkestra”. Ele chegou a tentar a sorte em Nova Iorque, onde estavam os conterrâneos Wilbur Ware e Wilbur Campbell, no início da década de 50. Fez alguns testes para a Riverside, tocou em alguns clubes, mas a repercussão foi mínima e ele preferiu voltar para Chicago, tendo sido um dos precursores da chamada Chicago School of Tenor Saxophone, juntamente com luminares como Gene Ammons, Ira Sullivan (que também era um trompetista de primira linha), Johnny Griffin, John Gilmore, Fred Anderson e Clifford Jordan.

De volta à cidade natal, montou seus próprios grupos, apresentando-se em todo tipo de casa de espetáculo, incluindo casas de strip-tease. Um dos pianistas que passou por sua banda foi o fabuloso Ahamad Jamal, nos primórdios de sua carreira. O pianista, aliás, sempre demonstrou enorme carinho pela família Freeman e disse, certa vez: “Eu tive o prazer de trabalhar com Von, George e Bruz e, certamente, considero essa família como parte integrante da minha história musical”.

A primeira vez em que Von pôs os pés em um estúdio foi em 1954, acompanhando um grupo vocal chamado The Maples, para o selo Blue Lake. Em 1956, gravou com Andrew Hill – que era o pianista de sua banda e que havia substituído Jamal – em um single que incluía “After Dark” e “Down Patrick”, para o pequeno selo local Ping Records. Na banda, além de Vonsky e Hill, estavam Pat Patrick no sax barítono, Malachi Favors no contrabaixo e Wilbur Campbell na bateria.

No final dos anos 50, Freeman acompanhou os cantores de blues Jimmy Witherspoon, em gravações para a Vee-Jay, e Edward “Bunky” Redding, para a mitológica Chess Records. Também tocou com a orquestra de Al Smith, onde despontava o jovem pianista Horace Parlan, e participou de gravações sob a liderança de Milt Trenier, para a Cadet.

No início da década seguinte, Freeman já havia construído uma sólida reputação no meio musical de Chicago e foi um dos primeiros músicos locais a entender as idéias revolucionárias de Ornette Coleman. Descrito pela crítica como “um vanguardista em trajes de mainstream”, sua postura em relação ao nascente free jazz acabou por influenciar uma talentosa geração de jovens músicos, como o próprio Malachi Favors, o pianista Muhal Richard Abrams e o trompetista Lester Bowie, que iriam criar a Association for the Advancement of Creative Musicians (AACM) e o irreverente Art Ensemble of Chicago.

Apesar de sua importância, Vonsky somente gravou o primeiro álbum como líder aos 49 anos de idade, graças ao empenho de Rahsaan Roland Kirk, seu admirador confesso, que o levou para a Atlantic e produziu o disco. “Doin’ It Right Now” foi gravado em 1972, nos estúdios da Atlantic, em Nova Iorque. Ao lado do saxofonista, alguns dos mais renomados músicos de Chicago: o pianista John Young, o baixista Sam Jones e o baterista Jimmy Cobb.

A faixa de abertura, “The First Time Ever I Saw Your Face”, é um monumento sonoro espetacularmente sublime e pertence àquele tipo especial de canção cuja beleza transcendente flerta com o indizível. A suavidade e a ternura que Freeman extrai do saxofone encontram poucos paralelos entre os tenoristas, emulando a sonoridade aveludada de um Lucky Thompson ou de um Lester Young. Folk em sua origem e gravada por nomes como Roberta Flack, Elvis Presley e Mel Tormé, é a obra musical mais conhecida do poeta e compositor inglês Ewan MacColl. Este, aliás, detestava a maioria das versões feitas para sua música – costumava se referir a elas como “A câmara dos horrores” – mas certamente aprovaria o trabalho do quarteto. Destaque também para o dedilhado etéreo do pianista, outro esmerado artífice de sentimentalidades.

De andamento mais acelerado, “White Sand” é uma composição de Freeman e possui raízes muito bem assentadas no bebop mais ortodoxo, embora se apresente com uma roupagem modernizante, com um discretíssimo sabor latino em alguns momentos. Improvisos cheios de dissonâncias – cortesia do líder e de Young – ajudam a moldar a personalidade inquieta do tema. Cobb tem a chance de exibir sua vigorosa batida. Na inclassificável parte final, a influência do free jazz se faz sentir, mas sem exageros ou hermetismos.

A belíssima “Lost In A Fog”, de Dorothy Fields e Jimmy McHugh, que Coleman Hawkins havia gravado em 1934, recebe um arranjo introspectivo, emulando a atmosfera ellingtoniana de “Mood Indigo”. Freeman imprime um contorno abstracionista ao seu fraseado, tornando a canção tão hipnótica que deixa o ouvinte com a sensação de que a trilha sonora do céu não deve ser muito diferente daquilo que está sendo tocado.

Em “Portrait Of John Young”, outro tema do líder, a abordagem é visceral, rascante. A performance de Freeman, que abusa dos registros médios, é abrasiva, robusta, e a influência de Charlie Parker é visível, transitando entre as cambiantes harmonias do bebop e a furiosa energia do hard bop. Destaque para o swing sem arestas de Young, discreto e vibrante, com um solo que mostra que um virtuose não é, necessariamente, aquele que toca as notas mais rápidas, mas sim aquele que as coloca de forma mais certeira.

Na faixa que dá nome ao disco, também de sua autoria, Freeman e o pianista Young se apresentam de maneira absolutamente desconcertante. Suas abordagens pagam tributo aos cânones do bebop e, ao mesmo tempo, rejeitam todos eles. Há algo de Ornette Coleman na forma com que o líder expele as notas, de maneira aparentemente desencontrada, e na maneira como mastiga os acordes e reelabora o blues. O baixo de Jones tem qualquer coisa de espectral, soando enviesado, como se atrasasse as notas em alguns momentos. Fragmentária, oblíqua, cheia de idas e vindas, repetições e riffs insanos é, certamente, é a mais radical do álbum.

“Sweet And Lovely”, de Gus Arnheim, Harry Tobias e Jules Lemare, é uma balada densa, executada de forma sóbria e romântica. O seu clima etéreo, quase camerístico, remete, mais uma vez, ao fraseado tranqüilo de Lester Young. Soberbo o trabalho de Jones, alinhavando a melodia com uma sensibilidade rítmica arrebatadora. O pianista Young, um dos mais atuantes da cena musical de Chicago, percute as teclas com suavidade e lirismo, nesta que é uma das mais belas faixas do álbum.

“Catnap” e “Brother George”, ambas de Freeman, completam o álbum. A primeira é um verdadeiro frenesi harmônico, rápida e dardejante, com a gigantesca sombra de Parker e Powell se projetando, altaneiramente, sobre o saxofonista e o pianista. A segunda é, seguramente, a mais vertiginosa do disco. Trata-se de um hard bop de primeira, visceral e extremamente próxima ao que de melhor foi produzido pela Blue Note nos anos 50 e 60, com direito a um explosivo solo de Cobb.

Não há informações sobe uma eventual influência de Freeman sobre Sonny Rollins ou John Coltrane, mas é uma hipótese que não pode ser descartada, já que a troca de informações entre músicos de primeira linha sempre foi muito freqüente. É provável que tenham tocado juntos várias vezes e conversado intensamente sobre os respectivos universos musicais. O certo é que Freeman – mais velho que os dois – jamais desfrutou, sequer, de um milésimo da popularidade dos primeiros, o que é uma tremenda injustiça.

Nada melhor, para mudar essa situação, do que ouvir muitas e muitas vezes este fabuloso “Doin’ It Right Now”. Relançado em 2000 pela Koch, o disco passa ao largo do experimentalismo que caracterizaria alguns dos trabalhos posteriores de Vonsky e permite fazer essa associação entre o trabalho de Freeman e a obra de Trane ou de Rollins. Dificilmente alguém vai conseguir ficar indiferente – sem dúvida, ele pertence àquela seleta categoria de álbuns verdadeiramente essenciais.

Embora seja reverenciado entre seus pares, a discografia de Vonsky é composta de poucos títulos, lançados por selos como High Note, Nessa, Delmark, Southport, Steeplechase, Affinity e Premonition. Via de regra, seus álbuns são recebidos com entusiasmo pela crítica especializada, como o excelente “Von & Ed”, de 1999, no qual divide os créditos com o saxofonista Ed Petersen, e “The Great Divide”, de 2004.

Nesses discos, é comum a participação de gente como Clifford Jordan, Muhal Richard Abrams, Charles Fambrough, Wilbur Campbell e Hal Russell, por exemplo. Vonsky tem sido presença constante em festivais ao redor do mundo, e sua performance no Berlin Jazztage Festival, em 2002, foi considerada antológica pelos que tiveram a honra de assisti-lo.

Von é pai do saxofonista Chico Freeman, que herdou do pai o talento musical, mas que possui personalidade suficiente para não querer imitá-lo. Aliás, as maiores influências de Chico são John Coltrane e Sam Rivers. Pai e filho gravaram diversas vezes juntos, inclusive um elogiado álbum ao vivo, gravado no clube Blue Note de Nova Iorque. Os dois também dividiram os créditos de um disco com o pianista Ellis Marsalis e seus filhos, Wynton e Branford. O álbum, apropriadamente intitulado “Fathers & Sons”, foi lançado pela Columbia em 1982.

Indagado porque motivo jamais abandonou a cidade natal, Freeman respondeu com uma sinceridade e uma simplicidade desconcertantes: “Eu amo Chicago. E Chicago me ama”. Em 2002, a cidade expressou esse amor designando uma rua com o nome do saxofonista – a Honorary Von Freeman Way – e em 2003, a Northwestern University concedeu-lhe o título de Doutor Honoris Causae. Também foi laureado com um prêmio concedido pela National Academy Of Recording Arts & Sciences, por sua contribuição para o jazz. Além disso, Von é uma das presenças mais regulares a se apresentar no tradicionalíssimo Chicago Jazz Festival, um dos mais importantes do mundo.

Desde 1982, Freeman comanda uma animada jam session no clube New Apartment Lounge, em Chicago, sempre às terças-feiras, a partir das 22h30min. Via de regra, está acompanhado pela sua banda atual, que inclui o guitarrista Mike Allemana, o baixista Jack Zara e o baterista Michael Raynor, mas por ali já se apresentaram nomes conhecidos, como os pianistas Jodie Christian e Jason Moran, o baixista Cecil McBee, o saxofonista David Murray, o trompetista Charles Tolliver e o baterista Jack DeJohnette.

Em seus périplos pelos estúdios, seja como líder, seja como acompanhante, pôde tocar ao lado de feras como Warne Marsh, Roscoe Mitchell, Horace Parlan, Vic Sproles, Kenny Barron, Gerry Allen, Greg Osby, Kenny Wheeler, Tommy Flanagan, Dave Holland, Eddie De Haas e Kevin Eubanks. A visibilidade conseguida nos últimos 20 anos, que inclui uma matéria de capa na prestigiosa Down Beat Magazine, rendeu-lhe convites para gravar com artistas como Yusef Lateef, Louis Smith, Kurt Elling, Steve Coleman e Jimmy McGriff, entre outros.

A música continua sendo a sua grande paixão e suas palavras revelam a sabedoria de quem já percorreu uma longa estrada, mas ainda demonstra fôlego para muitas aventuras: “Tocar é o que me fez preservar a sanidade. Eu sempre tentei tocar da melhor maneira possível e até hoje eu procuro fazer isso. Eu simplesmente pratico o dia inteiro. Às vezes nem eu mesmo sei o que estou tocando, mas o segredo é esse: se você deseja mesmo tocar um instrumento, você tem que se dedicar ao máximo e o tempo todo, senão acaba perdendo a habilidade”.

Freeman tampouco se incomoda com a ausência do sucesso em larga escala e seu estoicismo é comovente: “É claro que se você consegue ficar famoso, isso é ótimo. Ter um ou dois sucessos ajuda tremendamente! Mas se você não conseguir, não esquente a cabeça e continue tentando. Eu adoro ver os caras mais velhos simplesmente tocando, apenas pelo prazer de tocar. Tem um monte de caras veteranos que vem me assistir e que não conseguiram fazer sucesso em suas carreiras. Mas eles não desistem. Muitos dizem que é por minha causa que continuam a tocar e que eu sou um exemplo para eles”.

Todos os anos, o saxofonista é presença certa na New Year's Eve Battle of The Tenors, disputada no clube Green Mill. Às vésperas de completar 90 anos, Freeman demonstra uma disposição de fazer inveja e credita o entusiasmo juvenil ao imenso amor que tem pelo jazz. A longevidade parece ser uma característica familiar – a mãe morreu aos 103 anos – e Von tem se esmerado em manter essa tradição, fazendo aquilo que melhor sabe fazer: tocar saxofone e encantar platéias de Chicago, Nova Iorque, Los Angeles, Berlim e de onde quer que o convidem.

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