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sexta-feira, 27 de maio de 2011

AGINDO COM DOLO E SEM CULPA



No jargão jurídico, o dolo serve para qualificar certos atos de vontade sob duas perspectivas: a civil e a criminal. No âmbito civil, dolo pode ser entendido como a conduta intencional que, por meio de expediente malicioso ou de artifício semelhante, induz uma determinada pessoa a praticar certo ato jurídico em prejuízo próprio, a fim de beneficiar o agente ou terceiro. A ocorrência do dolo compromete a livre manifestação de vontade daquele que foi ludibriado e é causa de anulação do ato jurídico, isto é, o negócio realizado mediante dolo pode ser desfeito pela vítima do engodo.

Essencialmente, existem duas formas de dolo, no âmbito civil. A primeira delas é o chamado dolus bonus, em que a conduta dolosa não implica em vício do consentimento e o artifício é de baixa magnitude, incapaz de provocar a anulação do negócio jurídico, uma vez que sua prática é socialmente tolerada (quando, por exemplo, um vendedor descreve de maneira exagerada as vantagens de um determinado produto).

A segunda é o chamado dolus malus, no qual o artifício fraudulento engana de maneira tão clara a vítima que o prejuízo é efetivo e não apenas potencial, pois a conduta dolosa viola a boa-fé e torna o negócio jurídico suscetível de anulação. É o que ocorre, por exemplo, quando uma pessoa vende um produto a outra, mas previamente substituiu uma série de peças novas, colocando em seu lugar peças velhas.

A outra forma de se compreender o dolo é sob a égide do direito penal. Dolo é a vontade de praticar determinado ato que o agente tem consciência de ser juridicamente proibido, isto é, age dolosamente o indivíduo que, mesmo sabendo que determinada conduta ou prática é proibida ou significativamente antijurídica, insiste em fazê-lo, assumindo assim os riscos decorrentes de sua ação. O dolo é um dos dois “elementos subjetivos do tipo penal” e leva em conta a intenção, a vontade do agente, conjugando essa vontade com um conteúdo cognitivo prévio, que é a consciência de que a sua ação ou omissão irá, ou poderá, atingir determinado fim ou proporcionar um resultado específico.

O segundo elemento subjetivo do tipo penal é a culpa. O Código Penal Brasileiro trata dela em seu art. 18, inciso II, onde se verifica que o crime culposo ocorre “quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.” Diz-se que o crime é culposo quando o sujeito viola o dever de cuidado a que estava vinculado, age de maneira desatenta ou pratica ato para o qual não possuía aptidão técnica, decorrendo daí um resultado razoavelmente previsível, mas para o qual não concorreu a sua vontade efetiva. Para Paulo José da Costa Jr. no crime culposo “não se censura o agente por ter feito aquilo que não desejava. A reprovação advém do emprego de meios inadequados e perigosos, que produziram o fim não desejado”.

Para além das eventuais repercussões penais, pode-se dizer que na história do jazz diversos músicos tiveram, por assim dizer, uma conduta dolosa. E dentre aqueles que agiram com Dolo, podemos citar: Sonny Stitt, Art Pepper, Gene Ammons, Ted Edwards, Lou Donaldson, Ben Webster, Sahib Shihab, Harry “Sweets” Edison, Les McCann, Junior Cook, Clifford Brown, Sonny Rollins, Howard McGhee, Frank Butler, Sam Noto, Harold Land, Philly Joe Jones, Frank Morgan, Dexter Gordon, Herb Ellis, Arnett Cobb, Blue Mitchell, Red Rodney, Lee Konitz, Sonny Criss, Kenny Dorham, Dupree Bolton, Billy Mitchell, Jimmy Bond, Lawrence Marable e muitos outros.

Não, não, não... Ninguém está a dizer que essas feras do jazz cometeram algum ilícito civil ou penal. Bem, no caso de sujeitos como Frank Morgan, Gene Ammons, Art Pepper ou Dexter Gordon, não é segredo que tenham passado longos períodos de suas vidas na cadeia. Mas quando se fala em agir com Dolo, se quer dizer que todos eles atuaram, seja como líderes, seja como acompanhantes, ao lado de Charles Mitchell Coker, mais conhecido como Dolo Coker.

Dolo é um dos pianistas mais talentosos dos anos 50, 60 e 70, cuja notoriedade junto ao público é inversamente proporcional às suas qualidades de instrumentista superior. Existe alguma controvérsia acerca do seu local em que nasceu: para alguns, teria sido na cidade de Harford, estado de Connecticut. Já outros biógrafos apontam Atlantic City, em Nova Jérsei, como sua cidade natal. O certo é que ninguém diverge quanto ao dia do seu nascimento: 16 de novembro de 1927. O curioso apelido provinha de uma dança típica da região sul dos Estados Unidos e que o pequeno Charles adorava praticar.

Quando ainda era bem pequeno, sua família se estabeleceu na cidade de Florence, no estado da Carolina do Sul. Ali o garoto iniciou seus estudos musicais na Atlanta School of Music, e seu primeiro instrumento foi o saxofone C-Melody, um instrumento que atualmente se encontra em desuso mas que, nos anos 30 e 40, era bastante popular entre os músicos de jazz, situando-se em um ponto intermediário entre o sax tenor e o sax alto. Coker também dominava o sax alto, com razoável habilidade.

Aos 13 anos, quando já freqüentava a afamada Mather Academy, em Camden, também na Carolina do Sul, Dolo resolveu aprender piano e descobriu que ele e o novo instrumento haviam sido feitos um para o outro. A explicação para a permuta foi das mais singelas: “eu apenas intuí que havia mais oportunidades de trabalho para pianistas”, declarou o quase saxofonista. Já devidamente familiarizado com o piano, prosseguiria os estudos na Landis School of Music e no Orenstein's Conservatory, ambos em Filadélfia, com ênfase em composição e regência.

Na Filadélfia, ao mesmo tempo em que aperfeiçoava seu estilo com o pianista Howard Reynolds, Dolo, que quando se mudou para a cidade tinha apenas 16 anos, ia construindo uma ótima reputação entre os músicos locais. Seus parceiros nas gigs que rolavam nos clubes da cidade eram os futuros astros do jazz Jimmy Heath, Benny Golson e John Coltrane. Heath, aliás, foi o seu primeiro empregador e em sua banda Coker aprendeu bastante acerca de composição e arranjo.

Tendo conseguido alguma notoriedade por seu trabalho, ele foi contratado, em 1946, para tocar com o saxofonista Ben Webster. O período com Webster também foi decisivo na formação do pianista. Foram pouco mais de três meses de convivência, mas muito marcantes. “Ele revolucionou completamente a minha maneira de pensar, meus conceitos musicais, tudo enfim. Era um verdadeiro cavalheiro”, revela Coker.

Após um longo período como free-lancer, tocando com Clifford Brown, Howard McGhee e Arnett Cobb, Dolo foi chamado para integrar a banda do formidável Kenny Dorham, em 1955, Daí por diante, acompanharia portentos como Sonny Stitt, Gene Ammons, Lou Donaldson e Erskine Hawkins. O pianista estava tocando com a nata do jazz da época, razão pela qual o Mestre Pedro “Apóstolo” Cardoso observa que “se esses primeiros anos não foram uma bela pós-graduação, escapa-me o título possível”.

Em 1959 mudou-se para San Francisco, a fim de acompanhar o baterista Philli Joe Jones. Entre 1960 e 1961, já estabelecido em Los Angeles, fez parte da banda de Dexter Gordon, que durante 18 meses foi atração fixa do clube Zebra Lounge. Em 1961 Gordon se transferiu para Nova Iorque e o pianista, que já havia consolidado uma boa reputação na cidade, preferiu continuar na cidade dos anjos.

Ali, não apenas montou seu próprio trio como també fez parte do elenco da montagem californiana de “Tha Conection”, musical que narra as desventuras de um grupo de viciados em drogas e que fez enorme sucesso na década de 60. Nos anos, se firmaria como um excelente acompanhante, tocando com alguns dos maiores nomes do jazz, como Herb Ellis, Sonny Stitt, Plas Johnson, Red Rodney, Lee Konitz, Sahib Shihab, Hank Crawford, Blue Mitchell e o grupo Super Sax.

Uma das suas parcerias mais duradouras foi com o trompetista Harry “Sweets” Edison, que se tornaria seu grande amigo e com quem voltaria a trabalhar nos anos seguintes. O pianista também atuou como diretor musical das bandas dos cantores Clyde McPhatter e Ruth Brown. Em 1974 atuou ao lado do trompetista Jack Sheldon e do cantor Richard Boone. O ano marcou também o seu retorno ao grupo de Dexter Gordon. No ano seguinte, uniu-se novamente à banda de Harry “Sweets” Edison, atração fixa do clube The Baked Potato, em Hollywood. Além de Dolo e Sweets, a banda contava com as luxuosas presenças do baixista Larry Gales, do saxofonista Jimmy Forrest e do baterista Earl Palmer.

Dolo tocou algum tempo com o tenorista Teddy Edwards e a partir de meados da década de 70, dedicou-se ao ensino do piano e também passou a escrever roteiros para a televisão. Em 1976 assinou com a Xanadu Records e somente então com mais de 30 anos de profissão, pôde gravar o seu primeiro álbum como líder, “Dolo!”, em 26 de dezembro daquele ano. A seu lado, um quarteto de peso: o saxofonista Harold Land, o trompetista Blue Mitchell, o contrabaixista Leroy Vinnegar e o baterista Frank Butler.

No dia seguinte o mesmo grupo voltou aos estúdios da Xanadu, desta feita para as gravações do ótimo “California Hard”. A única alteração foi a substituição de Land pelo extraordinário Art Pepper. O set começa com “Jumping Jacks”, um tema composto pelo líder, cuja pegada vigorosa se sente extremamente à vontade em um contexto tão inflamável. Pepper troca o habitual sax alto pelo sax tenor, com igual desenvoltura e clareza de idéias. Butler é, sem sombra de dúvida, um baterista de grande talento e bastante familiarizado com a enorme exigência rítmica do hard bop – sua performance é esfuziante e confere enorme peso ao tema.

Com um andamento médio dos mais contagiantes “Gone With The Wind” foi composta por Allie Wrubel e Herbert Magidson (este último tem a honra de ser o autor de “The Continental”, ganhadora do primeiro Oscar de Melhor Canção, em 1934). Pepper no sax alto e Mitchell no flugelhorn formam uma poderosa sessão de sopros e os diálogos entabulados pelos dois demonstram um entusiasmo juvenil e uma enorme fluidez de idéias. Coker mantém uma postura discreta no acompanhamento, mas é um músico inspirado e seu solo mostra personalidade e senso harmônico bastante afiado.

“Roots 4FB” é uma contribuição de Mitchell, cuja atuação exuberante combina técnica apurada, velocidade e senso estético audacioso, ao impor um toque mais próximo ao post-bop contemporâneo de um Woody Shaw. A longa extensão da faixa permite aos membros do quinteto a criação de solos extremamente bem arquitetados, destacando-se os do líder, do infalível Pepper (novamente a bordo do tenor e cujo sopro traz uma deliciosa pitada de R&B) e de Butler, que merece um registro à parte. Sua atuação é explosiva e seu ataque é implacável, extremamente articulado do ponto de vista rítmico e de um vigor estonteante. Basta dizer que dos quinze minutas da faixa, cerca de oito deles são dedicados ao seu solo antológico.

O compositor Art Pepper comparece com “Mr. Yohe”, tema que mescla a alegria da Costa Oeste com o groove característico do soul jazz. Sincopada e com uma atuação soberba de Vinnegar e Butler, a faixa tem nos solos incendiários de Mitchell e do próprio autor alguns dos seus maiores atrativos. Outro ponto alto é a atuação de Coker perfeito em seu acompanhament mas que, no solo, ainda consegue impregnar a essa já bastante saborosa mistura um formidável tempero de blues.

Na balada “Gone Again”, uma preciosidade pouco conhecida de Lionel Hampton, em parceria com Curley Hamner, Curtis Lewis, Coker ministra uma aula de lirismo e sensibilidade. Seu toque exala charme e romantismo, em uma performance enternecedora. Na empreitada, se faz acompanhar apenas de contrabaixo e bateria, em um arranjo sóbrio, que realça tanto suas qualidades de excelente melodista como também de exímio criador de climas harmônicos sofisticados.

A segunda composição de Coker presente no álbum é a avassaladora “Tale of Two Cities”. Hard bop com um pezinho no blues e um groove contagioso, o arranjo é dos mais propícios para o indomável Mitchell, cujo flugelhorn potente e certeiro parece ter herdado o apelo avassalador das trombetas de Gideão. Sem se fazer de rogado, Pepper aceita as provocações do parceiro e extravasa energia e uma técnica irrepreensível, mostrando-se um oponente vibrante e criativo. Coker dá bastante liberdade aos dois companheiros, mas também é um solista de amplos recursos, capaz de executar passagens tecnicamente complexas com naturalidade e sem nenhuma afetação.

O cd traz como faixa bônus uma interpretação solo de “Round Midnight”, uma das mais belas composições de Thelonious Monk. O arranjo é enxuto, quase reverencial, e todas as notas estão em seus devidos lugares, não havendo espaço para exageros ou frivolidades harmônicas. Um disco bastante representativo na carreira de Coker, que se torna ainda mais precioso por mostrar um pouco da memória musical da Xanadu, um dos pequenos selos mais cultuados da história do jazz. O álbum também pode ser entendido com um verdadeiro brado de resistência do jazz acústico de viés bop, estilo que parecia fadado à irrelevância nos anos 70, graças à quase onipresença do chamado fusion no cenário da época.  

A associação com a Xanadu rendeu a Dolo quatro álbuns, dos quais apenas “California Hard” foi lançado em cd. Não obstante, sua ligação com a gravadora permitiu uma maior visibilidade a seu trabalho e rendeu-lhe convites para apresentações na Europa, Japão, África, Oriente Médio, Canadá, Bahamas e em vários outros cantos do mundo. De qualquer forma, seu talento pode ser conferido nas inúmeras gravações em que atuou como sideman, para selos como Roots, Pacific Jazz, Jazzland, Riverside, ABC-Paramount, Muse, Contemporary e na própria Xanadu, onde marcou presença em discos do trompetista Sam Noto, do saxofonista Al Cohn e do flautista Sam Most.

Dolo Coker faleceu no dia 13 de abril de 1983, em Los Angeles, em decorrência de um câncer. Deixou uma obra pouco conhecida, mas íntegra e bastante consistente. Nas palavras do Mestre Apóstolo, “seu estilo é uma ponte entre Art Tatum, Hank Jones e Red Garland, seus inspiradores no início profissional (melhor impossível!) e que lhe permitiram forjar estilo próprio, pessoal, incisivo. Domina as seqüências harmônicas como poucos e é capaz de encadear preciosas frases em legato, com muito swing e inventividade”.

A memória do pianista permanece viva graças à Dolo Coker Scholarship Foundation, organização sem fins lucrativos que tem por finalidade promover o jazz de revelar novos talentos. Situada em Los Angeles a fundação promove competições anuais, ministra oficinas e cursos e concede bolsas de estudo para jovens talentos. Para se ter uma idéia da seriedade da coisa, o vencedor da edição de 2004 do concurso foi o pianista Victor Gould, jovem revelação que em 2006 foi semifinalista da badalada Thelonious Monk Piano Competition e já tocou com luminares como Branford Marsalis, Terence Blanchard, Kurt Elling, Benny Golson e Nicholas Payton.

Nos meses de abril, a fundação também realiza o Tributo Anual a Dolo Coker e promove uma série de concertos que já fazem parte do calendário jazzístico de Los Angeles. Figuras importantes do jazz californiano atual costumam se fazer presentes nesses eventos, a exemplo do cantor Ernie Andrews, do trompetista Gregory Beck, do saxofonista George Harper e dos pianistas Art Hillery e Eliot Douglass, este último um ex-aluno de Coker.


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segunda-feira, 23 de maio de 2011

SAUDADE NÃO TEM IDADE



O trompetista Warren Webster Vaché Jr. pertence àquela categoria de músicos denominada “saudosista”. E com muito orgulho, diga-se de passagem. Ele representa para o trompete, o que seu amigo Scott Hamilton representa para o sax tenor, ao promover o resgate de um estilo de jazz que muitos supunham morto e enterrado. Da mesma maneira que Hamilton, seu repertório está repleto de composições dos anos 20, 30 e 40, período em que a grande canção norte-americana vivenciou o seu apogeu criativo.


Embora sua maior referência sejam as orquestras da Era do Swing, ele não despreza o rico legado do bebop e consegue transitar pelas incandescentes veredas do jazz moderno com muita autoridade e desenvoltura. Essa capacidade de interagir com o jazz clássico e o jazz moderno inspirou o crítico Peter Straub a escrever: “Em termos de trompete, Warren conseguiu se estabelecer em um território dos mais satisfatórios: no exato ponto em que Bunny Berigan se encontra com Clifford Brown”.


Dono de um conhecimento enciclopédico da história do jazz, versátil como poucos companheiros de ofício e extremamente talentoso, Vaché tem sido uma figura importante no cenário jazzístico dos últimos 35 anos, embora tenha muito menos visibilidade que outros músicos da mesma geração como, por exemplo, Wynton Marsalis, Terence Blanchard, Tom Harrell ou Nicholas Payton.


Warren nasceu no dia 21 de fevereiro de 1951, em Rahway, Nova Jersey. Desde bem pequeno o garoto foi exposto ao fabuloso universo da música, pois seu pai, Warren Vaché Sr., era contrabaixista amador e sua mãe, Madeline Sohl, trabalhava como secretária na Decca Records. Seu irmão mais novo, Allan, também enveredaria pela carreira musical e se tornaria um grande nome do clarinete.


O pai era apaixonado por jazz e tocava na banda da New Jersey Jazz Society, além de dar aulas de música e escrever regularmente sobre jazz em um periódico local, mas ganhava a vida como vendedor. Warren Sênior era um tradicionalista, apaixonado pelo jazz clássico e não gostava nem um pouco do jazz feito após a década de 30. O filho recorda que quando chegava em casa com um LP de Miles Davis ou Clifford Brown ele e o pai protagonizavam acaloradas discussões sobre a qualidade artística dos jazz moderno.


O Warren mais velho era tão radical em suas preferências que costumava dizer que o sax tenor não deveria ter lugar em um verdadeiro conjunto de jazz. Mas, de qualquer modo, o patriarca sempre foi um grande incentivador a carreira musical dos filhos e costumava levá-los para assistir às apresentações da sua banda. Curiosamente, os primeiros instrumentos a que Vaché Jr. se dedicou foram o contrabaixo e o piano, que logo foram trocados pelo trompete.


O pai lhe deu as primeiras lições do instrumento, mas o garoto, que tinha apenas sete anos quando começou o aprendizado, revelou-se um verdadeiro prodígio, tanto é que não demorou a fazer parte da orquestra da escola. Após a conclusão do ensino médio ingressou no Montclair State College, em Nova Jérsei. Para sua decepção, o ensino ali era voltado exclusivamente para a música erudita e o jazz não era visto com bons olhos no sisudo ambiente acadêmico da época.


Para não perder o contato com o jazz que tanto adorava, ele foi estudar com o trompetista “Pee Wee” Erwin, oriundo das big bands de Benny Goodman e Tommy Dorsey. “Pee Wee” Ervin é uma figura das mais relevantes na trajetória de Vaché, não apenas como professor mas também como amigo e conselheiro. Todos os dias Vaché percorria os cerca de 50 quilômetros que separam sua cidade natal de Teaneck, onde Ervin mantinha uma loja de instrumentos musicais e dava suas aulas. Segundo o pupilo, seu mentor, além de ser um excelente músico, era “tudo o que eu gostaria de ser: um trompetista profissional capaz de tocar jazz mas também um grande conhecedor de outros estilos musicais”.


No início da década de 70, Warren integrou algumas bandas de Dixieland locais e chegou a se mudar para Detroit, em 1972, a fim de se juntar à banda de Billy Maxted. A experiência não foi das mais felizes, pois ele era obrigado a assumir, também, o trombone de válvula, instrumento com o qual não tinha a menor intimidade.  O emprego durou apenas três semanas e ele preferiu se dedicar apenas ao estudo musical.


Em 1974 graduou-se em música e logo em seguida se fixou em Nova Iorque, em busca de melhores oportunidades profissionais. Um de seus primeiros empregos regulares foi na banda do clube Condonʼs formada por Herb Hall, Vic Dickenson, Bill Pemberton e Connie Kay. Warren também atuou como freelancer, tocando em orquestras de baile e em alguns espetáculos na Broadway, incluindo o musical chamado “Dr. Jazz”, estrelado por Bobby Van e Lola Falana, em 1975.


Naquele mesmo ano, a New York Jazz Repertory Company, comandada pelo produtor George Wein, promoveu um espetáculo em homenagem a Bix Beiderbecke e coube a Vaché a responsabilidade de “interpretar” o lendário cornetista. Sua participação em especiais televisivos nas redes NBC e PBS acabou por chamar a atenção no concorridíssimo cenário musical da Grande Maçã.


O clarinetista Benny Goodman foi um dos primeiros a contratá-lo para a sua banda, que na época reunia uma verdadeira constelação de craques: Bucky Pizzarelli na guitarra, Hank Jones no piano, Urbie Green no trombone, Zoot Sims no sax tenor e Slam Stewart no contrabaixo. Com esse grupo, Vaché viajou pelo mundo e se apresentou, pela primeira vez, na Europa. Pouco tempo depois, Vaché estaria liderando seus próprios grupos. Seu primeiro trio incluía o pianista John Bunch e o baixista Phil Flanigan e manteve-se por muito tempo como atração do clube Crawdaddy.


Seu primeiro disco como líder foi “First Time Out”, gravado em 1976, para o pequeno selo Monmouth. Em seguida, assinou com a Concord, mas sua extensa carreira fonográfica também registra títulos pela Muse, Zephyr, Arbors, Jazzology, Chalenge, Audiophile e Nagel Hayer Records, por onde tem lançado seus últimos álbuns, incluindo o elogiado “2gether”, onde atua ao lado do pianista Bill Charlap e que foi indicado ao Grammy. Nos anos 70 e 80 foi um dos mais freqüentes integrantes da Concord Super Band.


Um de seus álbuns mais consistentes é o ótimo “Iridescence”, gravado em janeiro de 1981 e lançado pela Concord. Os acompanhantes são músicos de primeiríssima linha: Hank Jones no piano, George Duvivier no contrabaixo e Alan Dawson na bateria. O repertório é essencialmente composto de standards do cancioneiro norte-americano, com exceção da faixa título, de autoria do pianista. Nessa gravação, Vaché deixou o trompete de lado para usar apenas o flughelhorn e a corneta, instrumentos que domina com inquestionável autoridade.


Uma interpretação candente de “Softly, As In A Morning Sunrise” abre o disco em altíssimo nível. Trata-se de um saboroso acepipe musical, cuja levada cativa de imediato o ouvinte, que se delicia com a sonoridade refinada de Jones e o sopro caudaloso e intenso do líder, que nesta faixa usa o flugelhorn, instrumento de sonoridade mais arredondada que o da corneta. Os breves solos de Duvivier e Dawson são apurados e tecnicamente perfeitos, merecendo audição mais atenta.


Com um pezinho no blues e outro no dixieland, “Sweet And Slow”, de Harry Warren e Al Dubin, é um tema ao mesmo tempo alegre e nostálgico. O piano de Jones faz um delicioso mergulho nos primórdios da tradição jazzística, com muita classe e o som agudo e cheio de efeitos da corneta de Warren ajuda a transportar o ouvinte para as noites boêmias de Storyville. O trabalho do baterista com as escovas é um primor de delicadeza e senso rítmico.


Mantendo a mesma atmosfera descontraída, o quarteto apresenta uma versão bastante animada de “Between The Devil And The Deep Blue Sea”, tema de autoria de Harold Arlen e Ted Koehler e que integra o score do espetáculo Rhyth-Mania, de 1931. O entusiasmo dos músicos transparece a cada acorde, com destaque para o sopro fluente e jovial do líder, que nessa faixa utiliza a corneta, e também para as valiosas intervenções da dupla Duvivier-Dawson.


“Iridescence” é uma balada sofisticada, que possui a delicada eloqüência das confissões amorosas. Aqui atuam apenas Jones e o líder, e o duo cria um clima envolvente, quase impressionista. Vaché possui um universo de referências musicais dos mais ricos e sua performance reflexiva mostra que ele também foi influenciado por Art Farmer e Chet Baker, provavelmente os mais líricos trompetistas da história do jazz. O minimalismo do arranjo apenas realça a beleza do tema, que se revela uma verdadeira homenagem à sutileza e ao encanto.


Fabulosa composição de Oscar Hammerstein e Jerome Kern, “The Song Is You” recebe uma roupagem animada, com direito a uma performance vulcânica de Dawson. Não menos exuberante, Warren injeta no tema um saboroso tempero bop, com improvisos inflamados, que emulam predecessores ilustres, do naipe de Blue Mitchell ou Lee Morgan. Duvivier funciona como um verdadeiro sustentáculo rítmico e brilha tanto no acompanhamento seguro quanto no solo vigoroso.


“No Regrets”, de Harry Tobias e Ronnie Ingraham, foi gravada por Billie Holiday na década de 30. O inspirado quarteto opta por um arranjo ousado, elegante e que moderniza a canção sem lhe retirar o apelo melódico e a beleza. Há aqui discretas pinceladas de bossa nova e ecos de compositores como Burt Bacharach e Henry Mancini. Ao flugelhorn, o líder destila toda a sua criatividade e distribui fartas doses de histamina, enquanto o impecável Jones ensina o verdadeiro significado da palavra charme.


Imortalizada na voz de veludo de Nat King Cole, “The More I See You” ganha uma versão em tempo médio, vibrante e swingada. Sem muito espaço para improvisações, já que a faixa dura pouco mais de três minutos, o quarteto se preocupa apenas em injetar frescor a um tema tão conhecido. Por isso, a interpretação é leve e arejada, com Jones acrescentando um leve tempero bluesy em sua execução. Warren demonstra um controle absoluto do flughelhorn e seu sopro é dotado de uma alegria genuína, como deve ser uma autêntica jam  session.


Nada melhor que “Autumn In New York” para fechar o disco com chave de ouro. Composta em 1934 por Vernon Duke, a canção tem status de clássico incontestável e foi gravada por Charlie Parker, Billie Holiday, Frank Sinatra, Buddy DeFranco, Stan Kenton, Bud Powell e uma infinidade de outros. O quarteto reinventa o tema de maneira dolente e requintada, com amplo destaque para a interpretação apaixonada do líder e para a suavidade do dedilhado de Jones. Um disco sensacional, feito para agradar tanto os não iniciados quanto os jazzófilos mais exigentes.


Músico dos mais requisitados, seu currículo ostenta trabalhos ao lado de George Shearing, Rosemary Clooney, Scott Hamilton, Phil Woods, Jon Faddis, Houston Person, John Bunch, Dick Hyman, Terrell Stafford, Milt Hinton, Howard Alden, Richard Wyands, Bill Charlap, Maxine Sullivan, Benny Carter, Hank Jones, Jim McNeely, Gerry Mulligan, Andre Previn, Woody Herman, Ruby Braff, Dave McKenna, Bobby Short, Joe Puma, Vic Dickenson, Bob Wilber e muitos outros.


Warren cita como primeiras influências músicos ligados ao jazz tradicional e ao swing, como Louis Armstrong, Buck Clayton, Ruby Braff e Bobby Hackett. Em seguida, viriam se agregar a esse leque de influências músicos ligados às correntes modernas, especialmente Fats Navarro, Roy Eldridge, Clifford Brown e Blue Mitchell. E embora possa parecer surpreendente, ele admite ter sido fortemente influenciado por músicos ligados ao free jazz, como Lester Bowie e Don Cherry, a quem considera um verdadeiro gênio.


O aparecimento de Warren no cenário musical ocorreu num momento bastante conturbado para os adeptos do jazz acústico. O mercado era cada vez mais hostil e as oportunidades de trabalho eram bastante rarefeitas para alguém que não usasse baixo elétrico ou sintetizadores em sua banda. Eram tempos em que artistas como Miles Davis ou Herbie Mann eletrificavam seu som e Wayne Shorter, a bordo do Weather Report, e Chick Corea, comandando o Weather Report, viviam seus dias de pop stars.


Por isso, foi saudado, com justiça, pelo crítico Dan Morgenstern nos seguintes termos: “Representa muito para o jazz, essa música de surpresas contínuas, que ela ainda seja capaz de produzir músicos inclassificáveis como Warren Vaché, que encontra novas formas de expressão e agrega aspectos bastante particulares em seu mergulho na tradição do jazz, tradição que outros músicos esquecem ou negligenciam – e existem até mesmo aqueles que nunca foram expostos a ela. Vaché pode ser eclético,  mas conformista ele certamente não é”.


Uma das grandes paixões de Warren é o cinema, com o qual mantém uma relação bastante especial. Ele foi consultor técnico do filme Cotton Club, dirigido por Francis Ford Coppola, e ensinou o ator Richard Gere – que interpreta um trompetista – a tocar o instrumento de maneira convincente. Em 1985, Vaché fez a sua estréia como ator, no filme “The Gig”, de Frank Gilroy, onde fazia o papel de um músico de jazz. Quatro anos depois, compôs o score do filme “The Luckiest Man in the World”, também de Frank Gilroy.


Além disso, atuou nas trilhas sonoras dos filmes Biloxi Blues (dirigido por Mike Nichols, estrelado por Matthew Broderick e lançado no Brasil com o título “Metido em encrencas”), Simon (dirigido por Marshal Brickman, estrelado por Alan Arkin e lançado no Brasil com o título “O mundo perfeito de Simon”) e The Dain Curse (estrelado por James Coburn e lançado no Brasil com o título “A maldição”), entre outros. No teatro, além de tocar em diversos espetáculos da Broadway, Vaché foi o responsável pela direção musical da peça “Private Lives”, do dramaturgo Noel Coward, em uma montagem de 1983, que tinha no elenco ninguém menos que Richard Burton e Elizabeth Taylor.


Ao longo dos quase quarenta anos de carreira, ele já marcou presença em inúmeros festivais ao redor do planeta, como Newport, North Sea, Perugia, JVC, Playboy, Nice, Marciac, Berlim, Edimburgo, Umbria, Bayonne e Pori, na Finlândia. O trompetista costuma se apresentar em alguns dos principais templos da música, como o Carnegie Hall, o Lincoln Center e o Royal Festival Hall, em Londres.


Seguindo as pegadas do ídolo Clifford Brown, Warren lançou, em 2006, um álbum acompanhado por um conjunto de cordas, o elogiado “Donʼt Look Back” (Arbors). As gravações foram feitas em Glascow, terra do The Scottish Ensemble e os arranjos ficaram a cargo do maestro Bill Finegan. Sobre a experiência, o bem humorado Vaché comentou: “Eu me apresento na Escócia há mais de 20 anos e tenho muitos amigos por lá. Me sinto muito à vontade naquele belo país e as pessoas são muito receptivas. Além disso, um país em você pode beber em uma destilaria diferente todos os dias, por mais de dez anos, certamente merece um lugar especial no meu coração”.


Para deleite dos jazzófilos do mundo inteiro, Warren continua a gravar e excursionar com regularidade e em 2004 lançou o DVD instrucional “I Love The Trumpet”, onde desvenda os segredos do instrumento. Um dos projetos a que tem se dedicado com mais fervor nos últimos tempos é o desenvolvimento de um novo modelo de corneta, próprio para sessão de metais de orquestras de jazz. E como se não bastasse o ritmo intenso de trabalho, ele ainda acha tempo para se dedicar à educação musical, sendo um destacado professor do programa de estudos jazzísticos da Juilliard School of Music. Nada mais apropriado, já que segundo o pianista Jim McNeely, “cada acorde que ele toca é como uma lição sobre a história do trompete”.

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quarta-feira, 18 de maio de 2011

TODOS OS NOMES




É difícil acreditar que um sujeito com o nome de Herbert Jay Solomon tenha feito carreira no mundo do jazz. Imagine a cena: você chega na loja de discos e pede ao vendedor um cd de Herbert Jay Solomon. É bem capaz dele lhe responder, candidamente:

- Olha, disco do Solomon nós não temos. Mas nós temos o cd do Cid Moreira recitando os Salmos, que está muito bom!

De fato, com um nome desses parece mais fácil associar o dito cujo a profissões bem mais prosaicas, como, por exemplo, otorrinolaringologista, professor de matemática ou executivo de uma multinacional. Mas, como diz o velho ditado, “as aparências enganam” e Mr. Solomon se tornou um dos mais queridos e respeitados jazzistas de todos os tempos. É claro que para isso, adotou um pseudônimo bem menos austero: Herbie Mann.

Ele nasceu no dia 16 de abril de 1930, no Brooklyn, em Nova Iorque. De ascendência judia, seus pais eram imigrantes romenos que vieram para os Estados Unidos em busca de melhores condições de vida. Reza a lenda que desde a mais tenra infância o irrequieto Solomon costumava demonstrar suas habilidades musicais percutindo nas panelas, o que causava enorme irritação em Dona Ruth, sua mãe.

Como coração de mãe não se engana, ela, sabiamente, levou o garoto para assistir a uma apresentação de Benny Goodman, em 1939. O garoto ficou tão entusiasmado que nunca mais quis saber do kit de bateria improvisado na cozinha e decidiu: seria clarinetista. Os pais o matricularam na Lincoln High School, onde, além da educação regular, ele também recebia lições de música. Nessa época, descobriu o sax tenor e se apaixonou pela sonoridade do instrumento, sobretudo por causa de Lester Young, que se tornaria objeto de verdadeira adoração.

Sempre atento a novas possibilidades musicais, o garoto foi profundamente influenciado pelos sons afro-cubanos trazidos por músicos como Tito Puente e Machito, mas também não ficou imune aos encantos do bebop criado por Charlie Parker e Dizzy Gillespie. Com apenas 15 anos Herbie teve sua primeira chance como profissional, como membro da orquestra de um resort.

Entre 1948 e 1952 esteve no exército e durante um longo período serviu em uma base militar na Itália, onde fez parte da banda da corporação. Logo após a dispensa, voltou para Nova Iorque e retomou os estudos musicais, agora na Manhattan School of Music, onde se graduou em 1953. Até então, Mann pensava em seguir carreira como saxofonista, mas a concorrência era das mais acirradas, pois figuras como Sonny Rollins, John Coltrane, Johnny Griffin e tantos outros estavam despontando em profusão.

Mas o acaso também produz boas surpresas e foi dessa forma, por mero acaso, que Mann acabou fazendo da flauta o seu principal instrumento. Era 1953 e o acordeonista alemão Mat Matthews estava recrutando músicos para acompanhar a cantora Carmen McRae, então em início de carreira. Matthews precisava de um flautista e Mann de um emprego, por isso se ofereceu para o posto. Em pouco tempo, dominava completamente o instrumento, sendo que treinava os arranjos com o saxofone e somente depois os transcrevia para a flauta.

Desse modo, conseguiu não apenas desenvolver uma sonoridade peculiar como pode ser considerado um pioneiro no que diz respeito à assimilação do idioma bop. Em 1954, Mann deixou o quinteto de Matthews para montar seu próprio grupo e com ele gravou, para a Bethlehem Records, o primeiro álbum como líder, chamado apenas “Herbie Mann Plays”. Ele também tocou flauta na gravação de “Lullaby of Birdland”, feita por Sarah Vaughan, no histórico álbum que a cantora gravou ao lado de Clifford Brown.

Assíduo freqüentador dos clubes da Rua 52, Herbie costumava participar de jams com feras como Milt Hinton, Bud Powell, Art Blakey, Kenny Clarke, Oscar Pettiford ou Tommy Flanagan, e foi, progressivamente, desenvolvendo um estilo mais agressivo. Em 1956 Mann se associou a outro virtuose da flauta, Sam Most, ao lado de quem realizou uma série de concertos.

Em 1957, lançou pela Verve o álbum “The Magic Flute of Herbie Mann”, de onde foi extraído “The Evolution of Mann”, que se tornou um grande sucesso nas rádios novaiorquinas, graças ao disc jockey “Symphony Sid” Torin. Naquele mesmo ano, fez uma vitoriosa excursão à Europa. Durante a segunda metade da década de 50, Herbie gravou diversos discos como líder para a Prestige.

Um deles é o formidável “Just Wailin’”, cuja gravação ocorreu no dia 14 de fevereiro de 1958. Produzido por Bob Weinstock, com engenharia de Rudy Van Gelder, o álbum conta com as presenças do saxofonista Charlie Rouse, do guitarrista Kenny Burrell, do pianista Mal Waldron, do contrabaixista George Joyner (que, posteriormente, se converteria ao islamismo e adotaria o nome de Jamil Nasser) e do baterista Art Taylor.

A primeira faixa é “Minor Groove”, de autoria de Waldron e conduzida em tempo médio pelo sexteto. O tema reza na cartilha do hard bop, com sopros em uníssono e repetição de riffs, mas também guarda uma profunda intimidade com o blues. Mann é um solista arrojado, que não se intimida frente à sonoridade encorpada do saxofone e dialoga de igual para igual com elétrico Rouse. Os solos de Burrell e Waldron mantém-se no mesmo patamar de excelência técnica.

Outro tema composto pelo pianista, “Blue Echo” também envereda pelo hard bop, com um interessante diálogo, no estilo pergunta-e-resposta, entre os sopros e a sessão rítmica. O andamento rápido permite ao líder uma atuação das mais exuberantes, revelando todas as potencialidades da flauta no ambiente jazzístico. O solo de Taylor é uma ótima conjugação de força física e expertise técnica e Rouse se destaca tanto no acompanhamento como nos improvisos ousados. A formidável performance de Burrell, muito à vontade, também merece ser ouvida com atenção.

O guitarrista, aliás, contribui com “Blue Dip”, um blues cadenciado e ligeiro, que flerta com o soul jazz feito por gente como Cannonball Adderley ou Stanley Turrentine. A flauta de Mann é arisca, imprevisível e altamente swingante. Rouse improvisa com vigorosa autoridade e sua sonoridade ríspida faz um ótimo contraste com o fraseado diáfano de Herbie. Burrell, que em alguns momentos ajuda a encorpar a sessão rítmica, se esmera na construção de solos arrebatadores e adota uma postura mais agressiva que o usual.

“Gospel Truth” é um blues mais ortodoxo, com a estrutura melódica muito bem delineada por Joyner e Taylor. O piano espectral de Waldron garante a atmosfera sombria e quase opressiva do tema, que aliás é de sua autoria. Como num jogo de luzes e sombra, a flauta do líder faz o contraponto à austeridade que reina na sessão, iluminando-a com sua sonoridade límpida e radiante. Belíssimas participações de Rouse, com seus agudos lancinantes, e de Joyner, cujo solo é simplesmente estupendo.

Voltando a acelerar, o grupo interpreta a clássica “Jumpin’ With Simphony Sid”, uma homenagem de Lester Young ao célebre radialista Simphony Sid Torin, um dos maiores divulgadores do jazz no rádio norte-americano. A versão do sexteto é esfuziante, feérica, com todos os instrumentistas extravasando alegria, em especial o líder, Burrell e Rouse, cujas execuções podem ser qualificadas como vulcânicas. Waldron injeta um acento bluesy ao tema, fazendo excelente uso das notas mais graves do piano.

O encerramento fica por conta do bop-calipso "Trinidad", composto pelo trompetista Cal Massey. O entusiasmo do líder é quase palpável e ele extrai da flauta um som caloroso e alegre, mostrando uma enorme intimidade com os ritmos caribenhos. A percussão de Taylor é vibrante e sua espontaneidade contagia o grupo, em especial Waldron, reconhecido por sua estreita ligação com o blues. O pianista não se mostra nem um pouco intimidado com o ambiente e mostra muita habilidade, mesmo em um contexto tão pouco usual. Se a palavra indispensável ainda significa alguma coisa no que se refere a discos, este certamente merece o adjetivo.

Pouco tempo depois de lançar “Wailin’”, o flautista mergulharia fundo na sonoridade afro-caribenha, tendo formado uma banda onde pontuavam os percussionistas Ray Mantilla e Carlos “Patato” Valdez. Também compôs “African Suite”, tema que levou o Departamento de Estado norte-americano a convidá-lo para fazer uma turnê pela África, em 1959.

De volta aos Estados Unidos, assinou contrato com a Atlantic Records e seu primeiro disco pela nova gravadora foi “Common Ground”, de 1960. No ano seguinte, Mann gravou o álbum “Live At The Village Gate” e a faixa“Comin' Home Baby” fez um sucesso tremendo, chegando a figurar no Top 30 da parada pop. O disco vendeu mais de 500.000 cópias, tornando-se um verdadeiro fenômeno para os modestos padrões do jazz.

Em 1961 Herbie veio ao Brasil, para uma série de concertos. Ele havia ficado bastante impressionado com a trilha sonora do filme Orfeu Negro e queria conhecer um pouco mais sobre aquela música ao mesmo tempo alegre e sofisticada. Durante o tempo em que esteve no Rio de Janeiro, foi apresentado aos ritmos brasileiros, como o samba e o choro e ao retornar a seu país estava mais que disposto a divulgar a Bossa Nova. Sua paixão pelas sonoridades brasileiras era tamanha que certa vez ele declarou, em uma entrevista, que se tivesse que escolher apenas um único estilo musical para tocar pelo resto da vida seria a música brasileira.

Mann foi, juntamente com Charlie Byrd e Stan Getz, um dos primeiros músicos de jazz a apostar na Bossa Nova e incluiu em seus álbuns temas de Tom Jobim, Roberto Menescal, Carlos Lyra e outros importantes músicos brasileiros. Muitos deles, como Sergio Mendes, Baden Powell e o próprio Jobim, se tornariam seus amigos e parceiros musicais. Foi graças a Mann que Tom começou a cantar, em uma gravação de “Samba de uma nota só”, vertida para o inglês com o título “One Note Samba”, incluída no álbum “Herbie Mann & João Gilberto” (Atlantic, 1965). Além de cantar e tocar piano, Jobim também elaborou os arranjos do disco, que foi gravado no Brasil.

Mas o interesse do flautista por ritmos de outros países não se limitou à Bossa Nova e ao samba. Ele gravou álbuns dedicados à música oriental, à música folclórica do Leste Europeu – talvez por conta de seus ancestrais romenos – e ao reggae. Muitos desses discos fizeram ótima figura nas paradas de sucesso e estima-se que, pelo menos, 25 dos seus álbuns tenham entrado no Top 200, feito dos mais significativos para um jazzista. Além disso, durante os anos 70 mantinha sempre cinco ou seis álbuns entre o Top 20 da parada de jazz.

Herbie também fez várias incursões pelo pop e pelo R&B, tendo lançado, em 1969, o aclamado “Memphis Underground”, ao lado de Larry Coryell, Roy Ayers, Bobby Emmons, Sonny Sharrock e outros. O álbum foi gravado em Memphis e garantiu a Herbie diversos hits nas paradas de sucesso, além de engordar em algumas centenas de milhares de dólares a sua já polpuda conta bancária. Em 1971 foi a vez do polêmico “Push Push”, em cuja capa o flautista aparece peladão. Muito bem sucedido do ponto de vista comercial, o álbum conta com as presenças de Donald "Duck" Dunn, Chuck Rainey, Al Jackson, Bernard Purdie e traz como convidado especial o guitarrista Duane Allman.

Alguns anos depois, em 1975, Herbie conseguiu colocar o hit “Hijack” no topo da lista dos mais vendidos da revista Billboard por três semanas consecutivas. Uma curiosidade é que quem fazia os vocais era a cantora Cissy Houston, mãe da futura pop star Withney Houston. Desnecessário dizer que os puristas abominam seu envolvimento com ritmos considerados “exóticos” ou “comerciais”, mas Mann jamais se afastou completamente do jazz. Uma prova disso é o ótimo “Nirvana” (Koch, 1964), ao lado do trio de Bill Evans (que na época era integrado pelo baixista Chuck Israels e pelo baterista Paul Motian).

Na primeira metade da década de 70, Mann ajudou a criar e trabalhou como produtor da Embryo Records, subsidiária da Atlantic Records e voltada basicamente para o mercado jazzístico. Vários artistas importantes gravaram pela Embryo, como os baixistas Ron Carter e Miroslav Vitous, os saxofonistas Phil Woods, Dick Morrissey e Arnie Lawrence e o guitarrista Atila Zoller. Em 1978 Herbie compôs, para a National Film Board of Canada, a trilha sonora do curta de animação “Afterlife”, dirigido por Ishu Patel.

A vitoriosa carreira de Mann é marcada pelo ecletismo, registrando trabalhos, seja como líder, seja como sideman, com músicos do gabarito de Phil Woods, Carlos “Patato” Valdes, Pete Rugolo, Willie Bobo, Bobby Jaspar, Bill Evans, Roy Haynes, Chick Corea, Candido Camero, Ray Barretto, Herbie Hancock, Sérgio Mendes, Antonio Carlos Jobim, Baden Powell, Miroslav Vitous, Ron Carter, Buddy Collette, Larry Coryell, Michael Olatunji, Billy Cobham, Roy Ayers, Doc Cheatham, Stephane Grappelli, Ben Tucker e uma infinidade de outros.

Durante a década de 80, o flautista se dedicou ao aprendizado da música indiana e realizou temporadas nos clubes novaiorquinos Blue Note, Bottom Line e Village Gate ao lado de Vasant Rai. Esse período marca o fim de sua longa e bem sucedida parceria com a Atlantic e também o seu retornou à música brasileira, especialmente nos discos “Jasil Brazz”, de 1987, e “Opalescence”, de 1988, que contaram com a participação de feras do quilate de Romero Lubambo, Cyro Baptista e Ricardo Silveira.

Em 1991, Mann criou um novo selo, chamado Kokopelli Records, totalmente independente e voltado apenas para o jazz. Com sede em Santa Fé, Novo México, a gravadora lançou álbuns de artistas relevantes, como o saxofonista David “Fathead” Newman, o pianista Les McCann, o guitarrista Cornell Dupree e o pianista Jimmy Rowles. Pela Kokopelli, lançou o disco “Peace Pieces”, um tributo a Bill Evans, do qual fizeram parte, entre outros, o baixista Eddie Gomez e o Randy Brecker.

Durante as comemorações do seu 65º aniversário, Mann realizou uma temporada no Blue Note de Nova Iorque e os concertos se transformaram no álbum “Celebration”. Diversos convidados abrilhantaram a festa, incluindo monstros como Billy Taylor, Duduka da Fonseca, Randy Brecker, Ron Carter, Paquito d’Rivera, Tito Puente, Terell Stafford, Victor Lewis, Nilson Matta e Cláudio Roditi. Em 1996 Herbie tocou com a banda pop Stereolab, em uma versão de “One Note Samba/Surfboard”, incluída no álbum Red Hot + Rio.

As novas gerações puderam ter uma idéia do seu trabalho graças a samplers de suas gravações, feitos por bandas como Sublime e Beatnuts. Sua última aparição pública foi no dia 03 de maio de 2003, durante o New Orleans Jazz and Heritage Festival. Ele morreria poucos meses depois, no dia 1º de julho daquele mesmo ano, vitimado por um câncer de próstata, após uma longa batalha contra a doença. O último disco que gravou foi o ótimo “Beyond Brooklyn”, para o selo Manchester Craftsmen’s Guild, no qual dividiu a liderança com seu velho amigo Phil Woods.


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quinta-feira, 12 de maio de 2011

TRAFEGANDO COM MAESTRIA ENTRE O ERUDITO E O POPULAR





Pianista, arranjador, compositor, diretor musical, educador. Muitas foram as facetas de John Aaron Lewis, certamente uma das figuras seminais do jazz. Não bastasse ter ajudado a criar o cool jazz, estilo que promoveu uma luxuosa releitura do bebop, ter sido um dos principais articuladores da chamada Third Stream, corrente que tentou promover a fusão de elementos da música erudita e do jazz, e ter liderado o Modern Jazz Quartet, ele ainda legou ao mundo composições geniais como “Django”, “Milano”, “Afternoon In Paris”, “La Ronde”, “Rouge”, “Concorde”, “Two Degrees East, Three Degrees West”, “Skating in Central Park” e “Two Bass Hit”.


Todos que conviveram com ele são unânimes em reconhecer a sua gentileza no trato pessoal, sua seriedade como pesquisador musical e sua generosidade. De fato, durante os anos 60 Lewis bancou, de seu próprio bolso, uma orquestra integrada apenas por jovens carentes, chamada Orchestra USA, que chegou a se apresentar no prestigioso Carnegie Hall. Seu prestígio na Atlantic, por onde o Modern Jazz Quartet lançou a grande maioria dos seus discos, era tamanho que a gravadora mantinha dois pianos: um para as gravações regulares dos artistas de seu cast e outro exclusivamente para Lewis.


Nascido no dia 03 de maio de 1920, em La Grange, Ilinois, ainda bem pequeno perdeu o pai e, por essa razão, sua mãe mudou-se para Albuquerque, no Novo México. Com sete anos iniciou os estudos de piano, pelas mãos de uma tia, e em pouco tempo já acompanhava os cultos na igreja batista freqüentada por sua família. A fim de aperfeiçoar seu estilo, começou a estudar com um conhecido pianista da cidade adotiva, chamado Eddie Carson


Embora os estudos de piano fossem essencialmente na seara erudita, o garoto adorava jazz e costumava assistir às apresentações das orquestras de Count Basie e Duke Ellington, espetáculos que o marcariam para sempre. Com 14 anos, chegou a tocar com o grande Lester Young, que na ocasião excursionava pelo Novo México e que fez rasgados elogios à performance do garoto.


Além de extremamente inteligente, Lewis era um aluno bastante dedicado e aos dezessete anos ingressou na University of New Mexico, a fim de estudar música e antropologia. Formado em 1942, o pianista se alistou no exército, onde permaneceu até 1946. Durante o período nas forças armadas, chegou a ser mandado para a Europa – o mundo vivia os horrores da II Guerra Mundial – e ali conheceu o baterista Kenny Clarke, de quem se tornou amigo.


Dispensado em 1945, Lewis se mudou para Nova Iorque, disposto a investir na carreira musical. Instigado por Clarke sobre a efervescência do cenário jazzístico da cidade, uma de suas primeiras providências na cidade foi assistir aos espetáculos de Dizzy Gillespie e Charlie Parker, que vinham mudando a cara do jazz feito na época. Seus primeiros trabalhos foram em clubes da Rua 52, acompanhando o saxofonista Allen Eager e, posteriormente, o trompetista Hot Lips Page.


Não demorou muito e o próprio Dizzy Gillespie o contratou para sua orquestra, em substituição a Thelonious Monk. Ali, reencontrou o amigo Clarke e conheceu o baixista Ray Brown e o vibrafonista Milt Jackson. Lewis permaneceu na big band de 1946 a 1948, e além de pianista, também atuou como arranjador, tendo concebido os arranjos da orquestra na célebre apresentação no Carnegie Hall, em setembro de 1947. O lado compositor também começou a aflorar naquela época e “Two Bass Hit” é fruto de uma parceria com Dizzy.


Durante o período na orquestra de Gillespie, Lewis desenvolveu uma carreira paralela como músico de apoio, acompanhando gente do calibre de J. J. Johnson, Illinois Jacquet, Lester Young, Clifford Brown, Miles Davis, Ella Fitzgerald e Charlie Parker. Até o fim da vida, Lewis dividiria os palcos e estúdios com alguns dos maiores nomes do jazz, como Sonny Rollins, Stan Getz, Charles Mingus, Lou Donaldson, Coleman Hawkins, Benny Golson, Ben Webster, Sonny Stitt e muitos mais.


A identificação musical com Miles Davis foi imediata e os dois começaram a trabalhar juntos. Reuniram-se com outros músicos de idéias musicais parecidas, como o pianista e arranjador Gil Evans, o baterista Max Roach e os saxofonistas Gerry Mulligan e Lee Konitz. Dessas reuniões, quase sempre realizadas no apartamento de Evans, na Rua 55, surgiram as bases do movimento cool, e muitas das composições e arranjos elaborados pelo grupo estão no disco “Birth of the Cool”, um dos mais importantes da história do jazz. Lewis fez os arranjos para “Move” e “Budo”, além de ter contribuído com “Rouge”, de sua própria autoria.


No final da década de 40, Lewis se juntou a Kenny Clarke, Milt Jackson e Ray Brown, a fim de montar um pequeno grupo diferente de tudo o que vinha sendo feito à época. Estava criado o Milt Jackson Quartet, cujo nome posteriormente foi trocado para Modern Jazz Quartet, um dos mais longevos e respeitados combos de todos os tempos. Dois dos membros originais saíram: Brown foi substituído por Percy Heath e Clarke por Connie Kay.


Em 1953 obteve o mestrado em música na Manhattan School of Music, ao mesmo tempo em que o MJQ começava sua carreira fonográfica, lançando seu primeiro álbum, “Django”, pela Prestige. A composição que dá nome ao disco é de autoria de Lewis e é uma homenagem ao guitarrista belga Django Reinhardt. O MJQ se caracterizava pela utilização de elementos da música erudita, mas não abria mão do swing e da pegada jazzística. Como bem observou o crítico Max Harrison, Lewis “foi bem sucedido onde muitos outros falharam, ao transplantar elementos da música clássica para o jazz, sem violentar o estilo”.


Em 1956 o grupo fez uma aclamada temporada no Birdland, além de ter feito uma excursão consagradora pela Europa, juntamente com Miles Davis, Lester Young e Bud Powell. No ano seguinte, o pianista ajudou a montar a Lennox School of Jazz, da qual foi diretor executivo e professor. Ainda em 1957, Lewis compôs a trilha sonora do filme “No Sun in Venice”, dirigido pelo francês Roger Vadim.


Em 1958, Lewis assumiu a direção musical do Monterey Jazz Festival, somente se afastando do cargo em 1982. Em 1959, Lewis e o MJQ criaram a trilha sonora do filme “Odds Against Tomorrow”, dirigido por Robert Wise e estrelado pelo cantor Harry Belafonte. Em 1961 compôs o balé “Original Sin”, para a companhia San Francisco Ballet. Em 1962, criou, juntamente com o crítico musical Gunther Schuller, a Orchestra U.S.A, cujas apresentações e discos contaram com a participação de músicos como Ornette Coleman e Gerry Mulligan. Naquele mesmo ano, mais uma trilha sonora, desta feita para o filme “Uma storia milanese”, do diretor Luchino Visconti.


Além das gravações com o MJQ, a discografia de Lewis inclui diversos álbuns como líder. Um dos mais brilhantes é “Grand Encounter”, descrito pelo Mestre José Domingos Raffaelli como “um dos mais líricos e refinados discos de todos os tempos” e que recebeu 5 estrelas do crítico Scott Yanow, do site Allmusic. Gravado para a Pacific, em 10 de fevereiro de 1956, o álbum conta com um time de primeira. Além do pianista, marcam presença Bill Perkins no sax tenor, Jim Hall na guitarra, Percy Heath no contrabaixo e Chico Hamilton na bateria.


“Love Me or Leave Me”, de Walter Donaldson e Gus Kahn, abre o disco de forma esplendorosa. Seu swing é charmosamente discreto e suas harmonias são de uma delicadeza comovente. Os improvisos de Lewis são refinados e sutis, quase camerísticos, mantendo-se sempre a uma curta distância da melodia. A sobriedade do seu toque contrasta, frontalmente, com os arabescos crepitantes de um Art Tatum ou um Bud Powell.


“I Can't Get Started”, de Vernon Duke e Ira Gershwin, é executada apenas com piano, baixo e bateria. Com um arranjo delicado, quase sussurrante, permite que se percebam as qualidades que fizeram de Lewis uma das figuras centrais do jazz moderno. As frases são econômicas e límpidas, com todas as notas no lugar exato, tudo feito de maneira altamente sofisticada, mas sem um átomo de afetação ou esnobismo. Hamilton tem uma percussão sutil e minimalista, sendo o acompanhante perfeito para a ocasião.


“Easy Living” foi composta por Ralph Rainger e Leo Robin e a versão do quinteto é de uma beleza enternecedora. O destaque absoluto vai para o saxofone envolvente de Perkins, na melhor tradição de Lester Young. Melodioso, cálido e acolhedor, seu sopro tem a suavidade dos melhores intérpretes de balada e o rigor dos melhores virtuoses. Único tema de autoria do pianista, “Two Degrees East, Three Degrees West” é um blues lânguido e insinuante, com uma linha de baixo fabulosa e uma sensacional performance de Hall.


Perkins não participa de “Skylark”, pérola composta por Hoagy Carmichael e Johnny Mercer e que merece um arranjo intimista e levemente tingido de blues. “Almost Like Being in Love”, de Alan Jay Lerner e Frederick Loewe, encerra o disco com classe e elegância, ajudando a fazer deste disco um monumento sonoro, que dignifica a carreira de todos os envolvidos no projeto e dá uma pequena idéia do talento de Lewis como líder e pianista.


Lewis deu aulas na Harvard University e na Manhatan School of Music durante os anos 60 e 70 e foi professor efetivo do City College of New York, de 1975 a 1982. No início da década de 70, ele compôs diversos temas para o seriado televisivo “Night Gallery”, estrelado por Rod Serling e que teve entre seus diretores o então jovem aspirante a cineasta Steven Spielberg. Lewis também recebeu o prêmio de melhor trilha sonora no San Francisco Film Festival, por causa do score do documentário “Cities for People”, de 1975.


Em 1979 gravou o ótimo “Na evening With Two Grand Pianos”, ao lado do soberbo Hank Jones. Em 1985, Lewis criou a American Jazz Orchestra, juntamente com o crítico Gary Giddins e o produtor Roberta Swann. A orquestra se manteve em atividade até 1992 e seu repertório era composto, basicamente, de temas gravados pelas grandes orquestras da Era do Swing, como as de Duke Ellington, Fletcher Henderson e Jimmie Lunceford.


Embora o MJQ tivesse oficialmente encerrado suas atividades em 1974, o grupo voltou à ativa no início dos anos 80, com a sua formação clássica, que incluía Lewis, Jackson, Heath e Kay, que morreu em 1994 e foi substituído por Albert “Tootie” Heath. A banda se manteve em atividade regular até 1999, quando Milt Jackson faleceu. Em 1987 Lewis gravou um disco dedicado às Variações Goldberg, de Bach, em companhia da mulher, a musicista iugoslava Mirjana Lewis.


John Lewis recebeu inúmeras homenagens ao longo da carreira. Em 1989 foi sagrado Cavaleiro das Artes e das Letras, maior honraria concedida pelo governo da França. Em 2001, pouco antes de morrer, recebeu o título de Jazz Master, concedido pela National Endowment for the Arts. De acordo com o crítico Leonard Feather, o pianista era “uma das mentes mais brilhantes já surgidas no jazz. Auto-suficiente e autoconfiante, sabe exatamente o que quer de seus músicos, de suas composições e de sua carreira. Faz tudo com uma consistência incomum, com modéstia e uma indiferença completa às reações da crítica”.


O pianista faleceu no dia 29 de março de 2001, em Nova Iorque, em decorrência de um câncer na próstata. Sobre ele, escreveu o meu querido amigo Augusto Pellegrini: “Ele foi um dos pianistas que melhor souberam ressaltar, com imaginação e bom gosto, as duas principais qualidades do jazz moderno – o balanço e a improvisação. Foi também um dos pianistas mais comoventes de blues em toda a história do piano jazz”.



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