Amigos do jazz + bossa

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

A GRANDE DAMA DA CANÇÃO AMERICANA


Segundo Hemingway, “Pamplona não é lugar para se levar a esposa. Todas as circunstâncias contribuem para que ela adoeça, fira-se ou se machuque, ou para que, no mínimo, leve cotoveladas, ou se derrame vinho em sua roupa; corre-se o risco de a perder ou de acontecer até mesmo todas essas coisas juntas.” Prossegue o extraordinário autor de Adeus à armas, acerca da célebre corrida de touros daquela cidade: “É uma fiesta de homens, e as mulheres causam confusão; nunca intencionalmente, é claro; mas quase sempre provocam ou experimentam aborrecimentos.”

Mais adiante, dá a receita para que uma mulher sobreviva àquela algaravia: “Claro que se ela fala espanhol suficiente para saber que estão brincando com ela e não a insultando, se é capaz de beber vinho dia e noite e dançar com qualquer estranho que a convide, se não se importa com coisas derramadas sobre ela, se adora barulho e música contínuos e ama fogos de artifício, principalmente aqueles que estouram perto dela e queimam suas roupas, se acha lógico ver o quanto se pode chegar próximo a ser morto por um touro, por simples diversão, se não fica resfriada quando se encharca de chuva e aprecia a poeira, gosta da desordem e de refeições irregulares, se nunca precisa dormir e se mantém limpa e arrumada, mesmo sem água corrente, então se pode trazê-la. Mas correrá o risco de perdê-la para um homem melhor que você”.

Mabel Mercer era dessa rara estirpe de mulheres capazes de suportar com galhardia todas as intempéries que podem ocorrer durante os festejos de San Fermin, na bela Pamplona. A primeira dama da canção americana, curiosamente, nasceu no dia 3 de fevereiro de 1900 na severa Inglaterra pós-vitoriana. Filha de uma cantora branca em início de carreira e do cantor norte-americano Warren Mercer, negro que faleceu pouco antes de ver a filha nascer, a pequena foi criada em um convento, onde recebeu educação esmerada.

Aos 14 anos, fugiu do convento para se dedicar integralmente à sua grande paixão: a música. Integrou trupes de vaudeville e a partir da década de 20 percorreu a Europa, que então se refazia dos estragos da I Grande Guerra. No início dos anos 30 se estabelece em Paris e passa a ser uma das atrações mais aclamadas do célebre clube Chez Bricktop. Fez amizade com a nata da intelectualidade que ali pontuava e dentre seus maiores admiradores estavam personalidades como Scott Fitzgerald, Django Reinhardt, Gertrude Stein, Pablo Picasso, Vincent Youmans e Cole Porter. Hemingway, autor de O verão perigoso – romance de onde foi extraído o trecho acima – era outro dos seus inúmeros fãs. Paris era, de fato, uma festa!

Em 1938, na iminência da II Guerra Mundial, outra fuga, desta feita para os Estados Unidos, estabelecendo-se em Nova York. Apresenta-se como atração principal em diversos clubes da Rua 52 e em casas noturnas como o Ruban Bleu, o Tony’s, o Onyx Club e o célebre Café Carlyle. Embora não seja um fenômeno de popularidade, Mabel Mercer é uma unanimidade entre seus pares. Influenciou gerações de cantores e cantoras, de Billie Holiday a Lena Horne, passando por Nat King Cole. Todos eram assíduos freqüentadores dos clubes onde a diva se apresentava.
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Outro herdeiro musical foi o extraordinário Bobby Short, que dividiu com ela diversos espetáculos e dois formidáveis álbuns, ambos gravados para a Atlantic, no final dos anos 60. Foi uma emérita descobridora de talentos, tendo sido a primeira a incluir em seu repertório gemas como “Fly Me To The Moon”, de Bart Howard, “The Best Is Yet To Come”, de Cy Coleman, e “While We’re Young”, de Alec Wilder.

Em 1951 prestou um emocionante tributo ao amigo Cole Porter, ao gravar o álbum “Mabel Mercer Sings Cole Porter” para a Atlantic. No repertório, 13 pérolas do genial compositor (no CD, lançado em 1994, o ouvinte é brindado com 4 faixas bônus) sendo que boa parte delas não é muito conhecida. Embora não seja propriamente uma cantora de jazz e sim uma “saloon singer”, Mabel sempre cantou ou gravou em contextos jazzísticos.

Neste disco não é diferente. Acompanhada dos pianistas Stan Freeman (que já havia tocado com Woody Shaw e Charlie Parker) e Cy Walter (um conceituado pianista dos clubes nova-iorquinos, especialista na obra de Richard Rodgers), que se revezavam nos teclados, além do baixista Frank Carroll (tocou com Art Tatum, Sarah Vaugham e Mahalia Jackson), Mabel exibe toda a sua técnica e refinamento, criando um dos mais belos tributos à obra de Porter. Em duas das faixas bônus, não há a identificação dos músicos e nas outras duas acompanham a cantora os pianistas Jimmy Lyon e Buddy Barnes.

A faixa de abertura é a deliciosa (sem trocadilho) “It’s De-lovely”, com ecos de Scott Joplin e Jelly Roll Morton e uma nostálgica levada de ragtime. A adorável atmosfera de cabaré perpassa todo o disco e em “Down In The Depths”, “Experiment” e “Where or Where” atinge o seu clímax – quase se podem sentir o tilintar do gelo nos copos abarrotados de uísque e o odor dos incontáveis cigarros. “After You, Who” é cantada com reverência, realçando todo o lirismo da belíssima letra.

A cínica “It’s All Right With Me” recebe um tratamento que lembra os vaudevilles dos anos 20, de onde a própria Mabel saiu, com um excepcional trabalho dos pianos de Freeman e Walter – embora não haja menção na ficha técnica, é pouco provável que naquela faixa haja apenas um pianista a tocar, a não ser que o produtor Ahmet Ertegun tenha trazido Lennie Tristano, que na época também gravava pela Atlantic, ao estúdio e não tenha feito o seu nome constar dos créditos do álbum.

Em “Just One Of Those Things” e “From This Moment ”, nas quais não é possível identificar os acompanhantes (há, todavia uma belíssima guitarra entre os instrumentos que a acompanham), estão os momentos mais jazzísticos. Essas duas jóias recebem uma roupagem realmente suingante, com destaque para a bateria, bastante acionada – e correspondendo muito bem à responsabilidade. O ragtime volta à cena na hilariante “Ace In A Hole”, onde o piano é nada menos que magistral. A influência de Mrs. Mercer sobre tantos cantores de jazz está, ali, mais do que explicada!

Baladas clássicas, como “Ev’ry Time You Say Goodbye” e “Use Your Imagination”, são cantadas com graça e leveza, apesar do acentuado sotaque bretão da cantora em algumas palavras, levando o ouvinte a uma viagem sonora rumo ao paraíso das grandes canções. O grande momento do disco, e o mais emocionante, é uma sublime versão de “So In Love”, a mais confessional das canções de Porter. Aqui, Mabel disseca a intimidade de sua alma de forma absolutamente arrebatadora, cantando com uma visceralidade e uma entrega como só as maiores cantoras conseguem fazer. Um disco irretocável, enfim.

Cantora de grandes recursos vocais, de dicção perfeita, de repertório impecável e de gestos contidos, Mabel Mercer é um sinônimo de elegância e, também, de um imenso amor à música. Ao morrer, em 20 de abril de 1984, deixou todos os seus bens para a Mabel Mercer Foundation, dedicada a apoiar jovens compositores em início de carreira. Uma grande mulher, sobre quem Frank Sinatra (mais um dos assíduos espectadores dos clubes onde a cantora se apresentava) disse certa vez: “Mabel Mercer me ensinou tudo o que sei sobre cantar”.


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PS.: Este post é dedicado à menina com o sorriso de raio de sol, que provavelmente jamais levarei a Pamplona por ocasião da Fiesta de San Fermin, eis que não quero correr o risco de perdê-la.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

FEELING THE SPIRIT: A GUITARRA ESPIRITUALIZADA DE GRANT GREEN


Wes Montgomery foi o guitarrista mais badalado dos anos 60. Sua revolucionária maneira de tocar, abolindo a palheta e usando o polegar, causou uma revolução comparável à que Charlie Christian provocou a tornar a guitarra, até então condenada à sessão rítmica, um instrumento da linha de frente dos combos e orquestras dos anos 40. Seus discos pela Riverside e, sobretudo, pela Verve, fizeram um enorme sucesso, alcançando vendas bastante expressivas, mesmo para um mercado restrito como o do jazz.


Bem menos conhecido que o colega de Indianápolis, Grant Green, um guitarrista nascido no dia 06 de junho de 1935, em St. Louis, também pode ser considerado um revolucionário à sua própria maneira. Seu fraseado é absolutamente inconfundível – basta um único acorde para que o ouvinte tenha certeza de quem está tocando. Suas origens musicais estão impregnadas de blues, mas outros estilos da música negra americana também fazem parte de sua formação musical, como o gospel, os spirituals, o soul e o R&B. Enveredou pelo boogie-woogie, pelo funk e até pelo rock, sempre com muita competência e maestria.

Filho de um guitarrista, Green começou a tocar bastante cedo, conciliando as aulas de música na escola com as dicas dadas pelo pai músico. Com inacreditáveis treze anos iniciou a carreira profissional, acompanhando um grupo gospel na cidade natal e arredores. Nos anos 50, tocou em diversas bandas de R&B e acompanhou jazzistas do porte de Jimmy Forrest (com quem fez as suas primeiras gravações, os ótimos “Black Forrest” e “All The Gin Is Gone”, ambos de 1959), Harry Edison e Lou Donaldson (que o viu tocar em um bar de St. Louis, acompanhando o cantor Leo Gooden).

Donaldson, aliás, foi de suma importância na carreira de Green, pois não apenas o levou para Nova Iorque em 1960 como o apresentou a Alfred Lion, fundador e comandante em chefe da Blue Note. Encantado com o talento do guitarrista, Lion providenciou, de imediato, a gravação do primeiro álbum de Green, já na condição de líder da sessão – fato raro na história da companhia, em se tratando de um músico em início de carreira, pois, geralmente, a gravadora punha seus potenciais talentos para gravar como acompanhantes, até que estes tivessem uma boa rodagem no estúdio.

Green não decepcionou o big boss. Em janeiro de 1961 gravou “Grant’s First Stand”, ao lado de Baby Face Willette (org) e Ben Dixon (bt), bastante calcado no blues e a partir daí tornou-se um dos mais prolíficos músicos do cast da Blue Note. A associação com a gravadora renderia dezenas de discos como líder (muitos deles com a formação guitarra-órgão-bateria), centenas de gravações como sideman e perduraria até meados dos anos 70, com uma breve interrupção entre 66 e 68, quando gravou para selos como Verve e Savoy.

Em 1962, Grant recebeu o prêmio de “Best New Star”, concedido pela revista Down Beat. Ele era “o guitarrista” da Blue Note (embora Kenny Burrell também tivesse gravado alguns discos por lá nos anos 60) e durante os anos 60 acompanhou ou foi acompanhado por Jimmy Smith, Larry Young, Brother Jack McDuff, Stanley Turrentine, Sonny Clark, Dave Bailey, Kenny Drew, Yusef Lateef, Wilbur Ware, Ike Quebec, Joe Henderson, John Patton, Hank Mobley, James Spaulding,Herbie Hancock, McCoy Tyner, Elvin Jones, Lou Donaldson e Bobby Hutcherson, entre incontáveis outros.

Embora admitisse ter sofrido alguma influência de Jimmy Raney em seu estilo de tocar, Green sempre fez questão de dizer que sua maior referência era Charlie Parker. Como o ídolo, Grant também teve sérios problemas com as drogas, sobretudo a heroína, fato que atrapalhou bastante a sua carreira – entre 1967 e 1969, Green permaneceu semi-inativo, fazendo poucos shows e gravações, e chegou a ser preso por um breve período, tudo por conta do vício.

Não obstante os problemas pessoais, Green merece estar ao lado dos grandes nomes da guitarra jazzística e para dissipar qualquer dúvidas sobre a sua excepcional musicalidade, basta uma audição de “Idle Moments”, indiscutivelmente um dos melhores álbuns lançados pela Blue Note nos anos 60. Liderando um sexteto sensacional, o guitarrista conta com a preciosa assistência de Joe Henderson (ts), Bobby Hutcherson (vib), Duke Pearson (p), Bob Cranshaw (b) e Al Harewood (bt).

Gravado em duas sessões, nos dias 04 e 15 de novembro de 1963, “Idle Moments” mostra um guitarrista no auge de sua criatividade. Seu toque é sutil, fluido, orgânico, intuitivo, vital. Ao mesmo tempo em que transpira a visceralidade do blues, Green também consegue imprimir às suas gravações aquela espécie de elegância que muitos chamam de perfeição, pois que decorre da simplicidade em estado puro. Não há arestas em seu fraseado, apenas limpidez e graça.

A primeira faixa, que dá título ao álbum, é um monumento sonoro de 14min52s, de autoria de Pearson. Trata-se de um blues impressionista, complexo e de rara beleza, que exige de todos os seis músicos uma conjunção de habilidade, técnica, coesão e sentimento. Hutcherson, com suas divagações harmônicas, perpetra solos inesquecíveis e a guitarra de Green é uma mistura de dolência e fluidez, lamentosa como os cantos dos escravos que sofriam nas plantações de algodão do sul dos Estados Unidos.

Em seguida, “Jean de Fleur”, composição de Green, é a tradução mais que expressiva da influência de Parker em seu modo de tocar. Destaque para o líder, com seus solos devastadores, e para a pujança percussiva de Harewood, com viradas surpreendentes e um trabalho de pratos bastante criativo. O inspirado Pearson contribui ainda com a vibrante “Nomad”, na qual o sax de Henderson é o ponto culminante, com um solo climático, nervoso, que remete às enfumaçadas noites dos clubes de Nova Iorque. A hipnótica guitarra do líder e o refinamento comedido de Pearson também merecem redobrada atenção.

A clássica “Django”, de John Lewis, recebe um arranjo tão sofisticado quanto o seu autor. Green imprime um lirismo comovente ao seu fraseado – é quase como se o próprio Django Reinhardt estivesse executando a música feita em sua homenagem. Henderson executa um dos mais belos solos do álbum e Hutcherson demonstra possuir todas as qualidades para ombrear-se a Milt Jackson como um dos maiores vibrafonistas do jazz. No cd relançado em 1999, pela impecável série “The Rudy Van Gelder Edition”, há takes alternativos de “Jean de Fleur” e “Django”.

Em 1969 Grant voltou à Blue Note e seus álbuns desse período são extremamente calcados no funk e na soul music. O álbum “Green is Beautiful”, de 1970, alcançou um razoável posto nas paradas de R&B e ele foi convidado para compor a trilha sonora do filme “The Final Comedown” (1971). Em 1974, saiu definitivamente da gravadora que o projetou e lançou mais alguns poucos álbuns, por selos como Verve, Muse e CTI. Em 1978, quando passou por diversas internações, Grant já estava bastante debilitado mas, contrariando ordens médicas, continuou a fazer shows e gravações. No dia 31 de janeiro de 1979, sofreu um ataque cardíaco fulminante dentro do próprio carro. Tinha apenas 43 anos e se dirigia à festa de lançamento do disco “Breezin”, do amigo e discípulo George Benson.

Curiosamente, os discos de Green dos anos 70 voltaram a ser procurados, por conta da utilização de suas músicas por DJ’s europeus. Nos anos 90, alguns grupos de R&B e de rap, como Us3 e A Tribe Called Quest samplearam trechos de suas gravações e assim, quase vinte anos após sua morte, os holofotes voltaram a brilhar sobre esse músico genial mas muito pouco reconhecido. A Blue Note reeditou boa parte de sua discografia original e ainda faturou em cima dessa inesperada notoriedade, lançando coletâneas como “Street Funk & Jazz Grooves” e “For The Funk Of It”, cujo repertório é baseado em suas gravações do final dos anos 60 e início dos anos 70.

Após assistir a uma apresentação do guitarrista em um bar, o crítico Dan Morgenstern comentou: “A primeira coisa que o ouvinte percebe na forma que Grant Green toca é o seu notável relaxamento. Sentado no palco, de olhos fechados e pernas cruzadas, Grant parece tão completamente concentrado em sua música que não se perturba com a conversa e os risos dos freqüentadores do bar”. “Idle Moments” traduz de forma perfeita essa relação quase espiritual que Green tinha com a música.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

O FAZENDEIRO DO AR


Provavelmente você jamais ouviu falar em Council Bluffs, que fica no não menos célebre Condado de Pottawattamie, estado de Iwoa. Mas foi ali, naquela cidadezinha do centro-oeste americano, que nasceu, no dia 21 de agosto de 1928, um dos músicos mais líricos, refinados e inventivos do jazz: Arthur Stewart Farmer. No mesmo dia, hora e local, nascia um músico tão talentoso quanto, mas bem menos conhecido: seu irmão gêmeo Addison Stewart Farmer. Ao primeiro, coube desvendar os segredos do trompete, do flugelhorn e do curioso flumpet (um instrumento que mescla o design e as características dos dois anteriores). O segundo foi um disputado baixista, que além do irmão mais famoso, acompanhou Charlie Parker, Miles Davis, Mal Waldron, Sonny Criss e muitos outros.

Art desde cedo revelou um grande interesse pela música e um talento de igual calibre. Na infância e adolescência, passadas em Phoenix, Arizona, estudou piano, violino e tuba, até, finalmente, se fixar no trompete. Em meados da década de quarenta, muda-se para Los Angeles, onde toca nas orquestras de Gerald Wilson, Jay McShann, Roy Porter e Benny Carter. Associou-se durante um bom tempo com o precocemente falecido Wardell Gray e, em 1953, foi convidado por Lionel Hampton para acompanhá-lo em uma turnê pela Europa.

Seu companheiro no trompete da orquestra de Hampton era ninguém menos que o extraordinário Clifford Brown, de quem ficou amigo. De volta aos Estados Unidos, outra mudança, desta feita para Nova Iorque. A sua reputação já era considerável, razão pela qual foi requisitado por músicos do porte de Horace Silver, Art Blakey, Gerry Mulligan, Thelonious Monk, Dexter Gordon, Oscar Pettiford e Charles Mingus. Nessa época, estreita a amizade com o saxofonista Gigi Gryce, com quem haveria de produzir alguns excelentes álbuns.

Outro saxofonista, Benny Golson, seria bastante importante na vida do mais conhecido dos irmãos Farmer. Com efeito, em 1959 ambos se juntam para formar o Jazztet, um dos mais belos combos do início dos anos 60, cuja importância para o jazz pode ser medida pelo número de grandes músicos que por ali passaram: Cedar Walton, Harold Mabern, Albert Heath, Tommy Flanagan, Curtis Fuller, Phil Woods, Jim Hall e George Duvivier. Dentre os músicos descobertos pela dupla Farmer-Golson, destacam-se o pianista McCoy Tyner e o trombonista Grachan Moncour III.

A partir do início da década de 60, Art passa a se dedicar quase que integralmente ao flugelhorn. Em 1963, a perda do irmão e parceiro Addison abala seriamente o trompetista. Mas ele consegue dar a volta por cima e, em 1964, ao lado de Jim Hall, Pete LaRoca e do então iniciante Steve Swallow, gravou o interessante “To Swden With Love”, onde interpretava canções típicas do folclore sueco em ritmo de jazz. Quase dez anos antes, produziu ao lado do amigo e parceiro Gigi Gryce o excepcional “Art Farmer Quintet”, verdadeiro marco em suas carreiras.

A gravação transcorreu no célebre estúdio de Rudy Van Gelder em Hackensack, no dia 21 de outubro de 1955. Gryce assumiu o sax alto e Farmer o trompete, acompanhados pelo sempre presente Addison no contrabaixo, pelo magistral Duke Jordan no piano e pelo lendário Philly Joe Jones na bateria. Todas as músicas do álbum são de autoria do saxofonista, exceto “Forecast”, que abre o disco e que foi composta por Jordan.

Nessa faixa, uma das mais belas do álbum, é possível perceber quão consistente é o fraseado do Farmer trompetista, que elabora solos de extremo bom gosto, sem resvalar para a pirotecnia gratuita. Gryce exibe uma confessa influência de Charlie Parker e também apresenta solos de alta complexidade técnica. Jordan é sempre uma atração à parte em qualquer gravação de que participe e aqui se mostra extremamente inventivo na construção das harmonias.

A balada “Evening In Casablanca”, com sua abertura que remete ao oriente, é bastante fluida, melódica. Jordan se comporta com a fleuma de um lorde inglês durante o tradicionalíssimo chá das cinco – elegância pura. Sax e trompete se amoldam a essa atmosfera lírica com competência e discrição exemplares. O clássico “Nica’s Tempo”, talvez a mais conhecida composição de Gryce, ganha uma versão menos acelerado, bastante cool em sua execução, mas com momentos altamente inflamáveis, como o magistral solo de Philly.

“Satellite” é outro grande momento. Um hard bop melodioso, tocado com muita adrenalina e uma boa dose de lirismo, que poderia ter sido composta por Art Blakey ou Horace Silver. A coesão da banda impressiona e o fôlego de Gryce e Farmer mais ainda. O solo de Jordan é soberbo, de alta complexidade e precisão. As duas últimas músicas refletem bastante a influência de ritmos latinos. Tanto “Sans Souci” quanto “Shabozz”, embora sejam reconhecidamente hard bop de ótima cepa, trazem em seu DNA vestígios das ensolaradas praias do Caribe, em grande parte graças ao excepcional trabalho de Jones. A destacar, na primeira, o ótimo trabalho do Farmer contrabaixista (que o tempo inteiro se mantém firme e discreto) e, na segunda, o belíssimo diálogo dos líderes.

Art Farmer atravessou as décadas de 60, 70, 80 e 90 como um dos mais prolíficos músicos em atividade. Em 1968 mudou-se para a Europa, onde tocou, com regularidade, big band de Kenny Clarke e Francy Boland e na Austrian Radio Orchestra. Ao mesmo tempo, executou mais alguns ótimos álbuns, incluindo um referencial tributo a Billy Strayhorn, chamado “Somethin To Live For”, de 1987. O sopro deste fazendeiro do ar calou-se para sempre o dia 04 de outubro de 1999. Para a sorte de uma infinidade de fãs do jazz, deixou como legado maior uma bem documentada obra em disco, a qual o ouvinte sempre poderá recorrer quando quiser conhecer o verdadeiro significado do adjetivo “lírico”.

sábado, 22 de agosto de 2009

QUATRO ASES E UM CORINGA


Em 1957, Paul Lawrence Dunbar Chambers Jr., no esplendor de seus 22 anos, já era um músico consagrado e bastante experiente – no ano anterior havia sido premiado pela Down Beat com o New Star Critics’ Poll. Nascido em 11 de abril de 1935, na cidade de Pittsburgh, ele começou seus estudos musicais ainda no ginásio, tocando sax barítono – o amor por sons mais graves já se revelava então.
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Em 1948, com a morte da mãe, vai morar com o pai em Detroit, cidade conhecida por seu efeverscente cenário jazzístico e onde troca o saxofone pela tuba – os graves, mais uma vez presentes em sua vida. Finalmente, em 1952, começou a ter aulas com um músico da orquestra sinfônica daquela cidade e se apaixona pelo contrabaixo, instrumento que jamais abandonará, até o fim da vida.

Naquela época, era um incansável ouvinte de jazz, dedicando-se a escutar com avidez os discos de Charlie Parker, Bud Powell, Dizzy Gillespie e outros heróis do bebop. Dentre as principais influências, ninguém menos que Oscar Pettiford, Charles Mingus e Ray Brown. Em 1953 começa a freqüentar os clubes de jazz de Detroit e se integra à cena local, tocando com grandes músicos estabelecidos na Cidade dos Motores, como Kenny Burrell, Barry Harris (de quem também foi aluno), Yuseff Lateef, Thad Jones, Curtis Fuller e outros.
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Antes de se firmar como um dos mais promissores músicos de Detroit, teve que enfrentar a ira paterna, que sonhava para o filho uma gloriosa carreira no baseball. Felizmente para o jazz, o jovem Paul não haveria de trocar o intimismo dos palcos e estúdios pela imensidão dos estádios e o baseball perdeu, assim, um grande rebatedor.

Em 1955, excursionou com o saxofonista Paul Quinichette, que o levou para Nova Iorque. Na Grande Maçã, Chambers logo se inseriu à vida musical, fazendo amizade, tocando e gravando com gente do naipe de Art Taylor, Lee Morgan, Hank Mobley, J. J. Johnson, Donald Byrd e Jackie McLean, que o apresentou a Miles Davis. Encantado com a sua habilidade, o trompetista logo recrutou Chambers para integrar o seu quinteto, que incluía, simplesmente, Red Garland, Philly Joe Jones e Sonny Rollins (que em breve seria substituído por um certo John William Coltrane).

Davis, que podia ser tudo menos bobo, usou essa formação para gravar alguns álbuns que entrariam para a galeria dos mais importantes da história do jazz, como os da célebre tetralogia do gerúndio – Relaxin’, Workin’, Steamin’ e Cookin’. Mais tarde, após trocar Garland por Bill Evans e Wynton Kelly e adicionar a seu combo o talentoso Julian Cannonball Adderley, Miles haveria de cometer um disco quase mítico, mas isso é outra história!

Ao mesmo tempo em que assumia o baixo no combo de Davis, Mr. P. C. (apelido dado por Coltrane) se consolidava como um dos mais disputados músicos dos anos 50/60, gravando incessantemente como sideman, sendo que ocasionalmente atuava como líder. Um dos primeiros discos em seu nome foi o excelente Paul Chambers Quintet, gravado em 19 de maio de 1957 para a Blue Note.

Neste álbum, o coringa Chambers convocou alguns dos mais renomados músicos da época e perpetrou um dos pontos altos de sua pequena, mas altamente recomendável, discografia como frontman. Alinhavam-se ao baixista, Donald Byrd (trompete), Clifford Jordan (sax tenor), Tommy Flanagan (piano) e Elvin Jones (bateria) – uma valiosa quadra de ases, que correspondem plenamente às expectativas que seus nomes suscitam no ouvinte.

O som do contrabaixo de Chambers é sempre articulado, incisivo e melodioso, de uma beleza comovente no acompanhamento e de uma exuberância invulgar nos solos. Esses predicados são uma característica bastante evidente nesta sessão. A primeira faixa, “Minor Run-Down”, foi composta por Benny Golson especialmente para este disco (como também foi a excelente “Four Strings”, esta como homenagem direta ao amigo contrabaixista). É um blues acelerado, com tintura de bebop, no qual Chambers faz uma convincente apresentação do seu estilo e sua quase sobrenatural capacidade para solar. Um delicado trabalho de Philly Joe com as escovinhas e um excelente duelo entre Byrd e Jordan (que se encarrega de um dos mais belos solos do álbum) são outros pontos altos da faixa.

“The Hand Of Love” é de autoria do próprio baixista, na qual o piano de Flanagan baila por sobre a melodia e extasia o ouvinte com a sua admirável delicadeza, no que é auxiliado pelos metais sobremaneira discretos e pelo baixo do líder, menos voluptuoso que em outras faixas. Na outra composição de Golson, “Four Strings”, o versátil Chambers esbanja categoria, desta feita usando o arco com absoluta destreza – outra de suas mais destacadas habilidades. Interessante frisar que essa mesma música é apresentada em take alternativo, onde Chambers, sem abandonar o arco, se utiliza mais da técnica do pizicato, com um resultado igualmente soberbo.

Uma esfuziante versão de “What’s New”, tocada em um surpreendente tempo médio, apresenta ao ouvinte toda a maestria de Donald Byrd na condução de seu instrumento. O trompetista perpetra um solo antológico, com toda a pujança de sua sonoridade, no que é seguido, magistralmente, por Jordan e pelo anfitrião. Em outro standard, “Softly As In a Morning Sunrise”, centrada no colóquio entre Chambers, Jones e Flanagan (os metais não participam da faixa), o líder dá uma aula magna de técnica e harmonização, configurando-se um dos momentos mais sublimes do contrabaixo jazzístico.

Um Donald Byrd endiabrado volta à cena na avassaladora “Beauteous”, outra composição de Chambers, e mostra porque é um dos mais sólidos pilares do trompete hard bopper. Resta a Jordan replicar o trompetista com um solo primoroso, o que evidencia um dos duelos mais emocionantes do álbum. O anfitrião não se faz de rogado e também participa da festa com um solo demolidor, sendo imediatamente seguido pelo piano lânguido de Flanagan e pela bateria vigorosa de Jones – todos absolutamente irretocáveis.

Outro músico que partiu cedo demais, Paul Chambers, que também tinha sérios problemas com a bebida e as drogas, foi abatido pela tuberculose em 04 de janeiro de 1969, quando sequer havia completado 34 anos. Inscreveu-se entre os mais distintos nomes do instrumento, tocando em uma época em que atuavam, no auge da forma, monstros da envergadura de Oscar Pettiford, Charles Mingus, Leroy Vinnegar, Ray Brown, Sam Jones, Curtis Counce, Red Mitchell, Scott La Faro, Percy Heath, Richard Davis e George Duvivier.

Imprimiu a sua marca personalíssima em álbuns históricos, como “Kind Of Blue”, de Miles Davis, “Tenor Madness”, de Sonny Rollins, “Blue Train” e “Giant Steps”, do amigo John Coltrane (que compôs “Mr. PC” em sua homenagem), “Full House”, de Wes Montgomery, e “The Blues And The Abstract Truth”, de Oliver Nelson, para citar apenas alguns dos muitos discos inscritos em seu impressionante currículo.

Um músico notável, sobre quem Herbie Hancock disse certa feita: “Paul Chambers era um grande gênio do baixo. Era incrível. Algumas das coisas que ele fez foram realmente inéditas, ninguém conseguiria imitá-lo. Eram coisas que somente ele poderia realizar, nenhum outro músico seria capaz de fazer o que Paul estava fazendo. Ele era fantástico”. Sábias – e verdadeiras – palavras.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

O APARTAMENTO DE ARLINDO: A TRILHA SONORA DE MUITAS VIDAS


Conheci Arlindo Raposo em meados dos anos 80. Eu havia ingressado recentemente no Curso de Economia da UFMA e, embora nunca tivesse sido seu aluno, acabamos por trabalhar juntos em um projeto da Fundação Sousândrade, onde fui estagiário e ele integrante do corpo técnico.

Sua personalidade afetuosa, bonachona e bem-humorada logo nos cativou a todos e ele aglutinou em torno de si um grupo de jovens futuros economistas: Celijon Ramos, Washington Torreão, Sérgio Martins, Hugo Rabelo, Gilberto Lago, Josinaldo da Luz, Eurípedes Serra, José Reinaldo Barros, Antônio Vieira, Cáritas de Jesus, Ribamar Sá e eu (que acabei trocando a economia pelo direito).

Para além das afinidades político-ideológicas, estreitamos os laços de amizade e criamos então uma pequena confraria, que passou a gravitar em torno do nosso querido mestre, baseada em um elevado sentimento de respeito ao próximo e de cumplicidade recíproca.

O coração generoso de Arlindo acolheu esses jovens universitários cheios de planos e ele e eu nos tornamos amigos bastante próximos. Todos nós freqüentávamos a sua casa e qualquer motivo – por mais bobo que fosse – era razão suficiente para que nos reuníssemos no “apartamento de Arlindo”. Não era raro encontrar por ali artistas, políticos e intelectuais e nos deleitávamos ouvindo a prosa de pessoas que tanto admirávamos.

O “apartamento de Arlindo” era uma espécie de “apartamento da Nara” da minha geração. Da mesma forma que alguns jovens e talentosos músicos se reuniam no apartamento da Nara Leão no final dos anos 50 e ali criaram a Bossa Nova, nós nos reuníamos no “apartamento de Arlindo”. Diga-se, a bem da verdade, que não possuíamos o menor talento musical!

Tínhamos, em contrapartida, uns aos outros. Tínhamos, naquela época, uma segunda casa. Tínhamos um lugar que era um pouquinho nosso também – acolhedor, generoso, alegre, alto-astral – e que era a mais completa tradução da alma do seu dono. Dali, viajávamos com Arlindo, sem escalas, para Cuba e para o México. Conhecemos as majestosas ruínas de Machu Pichu e nos encantamos com a delicadeza do artesanato local, sem jamais sair da sua acolhedora sala de estar.

Naquele lugar tão hospitaleiro discutíamos política com toda a gravidade que o assunto exigia e da sacada daquele apartamento conseguíamos – tantas e tantas vezes – mudar o mundo. Inúmeras foram as ocasiões em que fizemos, a partir do nosso “quartel-general”, a revolução e criamos um novo país – mais justo e solidário. Daquela sala tão aconchegante desfraldávamos as nossas bandeiras e ousávamos sonhar com um mundo melhor.

Mas Arlindo não se contentava apenas em sonhar com esse mundo. Ele ia além dos devaneios bem intencionados daqueles jovens idealistas e praticava, em seu dia a dia, todas aquelas idéias de igualdade, fraternidade, liberdade, integridade e justiça que nós outros – que tão pouco sabíamos da vida – somente éramos capazes de intuir.

Apesar da seriedade de alguns dos temas que davam o tom a boa parte das nossas conversas, o ambiente nada tinha de enfadonho ou sisudo. Pelo contrário, o apartamento de Arlindo sempre significou festa, alto-astral, congraçamento, amizade, alegria, união. Não lembro de ter passado ali um único momento triste – o apartamento sempre transbordava bom humor e felicidade.

Falávamos também de cinema, de música, de literatura. Víamos filmes e, sobretudo, ouvíamos música. Muita música!!!! O melhor da música!!!! João Gilberto, Caetano, Gal, Bethânia, Chico, Nana, Edu, Johnny Alf, Milton, Elis, Gil, Ellington, Chet, Sinatra, Miles, Ella, Billie, Bennett, Jobim... Eram esses – e tantos outros – os nossos companheiros de viagem.

Ali ouvi pela primeira vez o emocionante And His Mother Called Him Bill, tributo do maestro Duke Ellington ao seu fiel escudeiro e amigo Billy Strayhorn, o estupendo songbook dos irmãos Gershwin, na voz de uma iluminada Ella Fitzgerald, e o seminal Pithecanthropus Erectus, obra prima do caudaloso Charles Mingus. Nesse exato momento, a minha memória afetiva se manifesta mais fortemente e vejo, nitidamente, todos nós ali outra vez. Mais jovens, mais próximos uns dos outros, mais esperançosos e menos céticos!

Meu amigo Arlindo não pôde ver o país que sonhou e pelo qual lutou tanto. A sociedade justa, fraterna, igualitária, alegre, generosa, democrática, solidária e despida de qualquer tipo de preconceito que ele tanto ansiava não se materializou até hoje. Pelo contrário. Vive-se atualmente em um país onde o mau é o bom, onde o feio é o bonito, onde o grotesco é o belo, onde a ostentação substitui a solidariedade para com o próximo e a intolerância dá a tônica nos relacionamentos humanos. Nada mais anti-Arlindo.

Que bom seria se nós, que tivemos a honra e o privilégio de compartilhar de sua generosidade, tivéssemos um pouco da sua grandeza e pudéssemos nos dedicar ao outro – ao amigo, ao vizinho, ao colega de trabalho, ao irmão, ao pai, à mãe, à esposa, aos filhos – com a mesma intensidade e o mesmo desapego às pequenas coisas que eram as suas características mais evidentes. Arlindo era um amigo fiel e leal, sempre pronto a estender a mão a quem dela precisasse, sempre disposto a fazer qualquer sacrifício pessoal para auxiliar um amigo em dificuldades.

Drummond certa vez conclamou: “vamos de mãos dadas”. E talvez esse fosse o mote mais adequado a qualquer conversa sobre Arlindo. Essa foi a sua grande lição! “Não nos dispersemos”, parecia ser a frase revelada por seu sorriso sempre posto. Se a vida nos impõe a separação, que combatamos a vida para construir uma outra vida... Nesse embate, ficou a música como a grande aliada. A música que ele tanto amava e que nos tornou mais próximos. A música, a trilha sonora das nossas vidas, tinha no apartamento de Arlindo um santuário e uma fonte inesgotável de sensibilidade e bom gosto.

Aquele apartamento era uma trincheira do bom, do belo, do pleno. Elevemos, pois, os nossos espíritos ao som da música e lembremos um pouco do sorriso terno e gentil do nosso querido amigo. Creio que é dessa forma que ele gostaria de ser lembrado.

Arlindo, não pude lhe dar o último abraço. Não pude estar ao seu lado na hora derradeira. Que você vele por nós, porque numa dessas encruzilhadas da eternidade certamente iremos nos encontrar novamente. Então, talvez, possamos nos abraçar e rir e chorar e contar histórias e ser velhos amigos e irmãos outra vez. Até qualquer dia. Segue em paz, meu irmão!

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Este texto foi escrito no dia 20 de agosto de 2006, ainda sob o impacto da morte do meu querido amigo Arlindo Raposo e permaneceu inédito até hoje. É uma homenagem bastante singela a alguém cuja importância foi capital na minha formação tanto intelectual quanto humanística. Seus conselhos até hoje me fazem uma falta tremenda. Para relembrar os muitos momentos felizes proporcionados por esta excepcional figura humana, algumas canções emblemáticas daquela época: Dora, com Nana Caymmi, Eu e a brisa, com Johnny Alf, e Milagre, com João Gilberto, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia.

Na foto que ilustra o post, Arlindo é o primeiro da direita para a esquerda, de terno claro. Integrou a primeira turma de Economia da Universidade Federal do Maranhão, que teve como patrono o ex-presidente Juscelino Kubitscheck. A cerimônia de colação de grau foi realizada na noite de 12 de dezembro de 1968 e contou com a presença do ex-presidente.

Na noite do dia 13 de dezembro de 1968, quando se realizaria o baile, os formandos foram informados de que naquele mesmo dia Juscelino Kubitscheck foi preso ao descer do avião. Um dos integrantes daquela turma, o economista Milton Freitas, relata o que ocorreu então:

“A festa perdeu todo ânimo, todos se entristeceram. Então, em sinal de protesto, no momento em que deveríamos dançar a valsa, os formandos com seus pares dirigiram-se ao centro do salão, onde fizeram um semicírculo. Todos, de cabeça baixa, fizeram um minuto de silêncio, após o que, puseram a mão direita sobre o peito e entoaram o hino nacional. Em seguida, todos se retiraram cabisbaixos para seus lugares. A valsa não foi dançada.”


No dia 13 de dezembro de 2008, a Universidade Federal do Maranhão e o Conselho Regional de Economia promoveram o baile que não aconteceu naquela noite, quarenta anos antes, e os formandos puderam, finalmente, dançar a tradicional valsa. Infelizmente, sem a presença de Arlindo.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

UM TÍTULO NOBILIÁRQUICO MAIS QUE MERECIDO


A esclerose múltipla ainda é um enigma para a medicina. É uma doença insidiosa, que ataca o sistema nervoso central, destruindo as camadas de mielina que envolvem e protegem os nervos. Suas causas ainda são desconhecidas, embora seja mais comum em mulheres e ocorra com mais freqüência em países de clima temperado. Os principais sintomas são comprometimento da coordenação motora, distúrbios na visão, disfunção urinária, espasmos e contrações musculares, dormência, perda de equilíbrio, tremores e formigamentos pelo corpo. Nos estágios mais avançados, pode causar insuficiência respiratória e até mesmo levar à morte.


A violoncelista inglesa Jacqueline du Pré, morta em 1987, foi uma das vítimas mais célebres da dessa moléstia e sua vida foi contada no emocionante drama Hilary e Jackie, que rendeu a Emily Watson uma indicação ao Oscar de melhor atriz. O ator Richard Pryor e o jogador de futebol Ivaylo Iordanov são outras vítimas famosas da esclerose múltipla. Não existe cura para a doença, mas atualmente os tratamentos são bastante eficientes para retardar seus efeitos e dar ao paciente uma melhor qualidade de vida. Já é possível a um portador da doença ter uma vida saudável e praticamente normal, desde que tome alguns cuidados em relação à alimentação e à prática de atividade física regular.


Infelizmente, quando Columbus Calvin Pearson, Jr. recebeu a notícia de que era portador da esclerose múltipla, em meado dos anos 70, o conhecimento que se tinha da doença ainda era bastante precário e o tratamento era pouco eficaz. Se o nome não é muito familiar, talvez o apelido Duke, dado por um tio apaixonado pela obra de Duke Ellington, ajude o leitor a saber de quem se trata. Sim, Mr. Columbus não é outro senão o fabuloso Duke Pearson, um dos mais notáveis pianistas dos anos 60, além de compositor, arranjador e produtor de primeiríssima linha.


Ele nasceu na cidade de Atlanta, estado da Georgia, no dia 17 de agosto de 1932. Aos cinco anos já tomava as primeiras lições no trompete, instrumento que o acompanhou por toda a adolescência e início da idade adulta e com o qual começou a se apresentar em clubes da cidade natal, no final dos anos 40. Problemas com a dentição forçaram o promissor trompetista a trocar o instrumento pelo piano no início dos anos 50, quando também recebe a convocação para o exército. Ali conheceu Wynton Kelly, sua primeira grande influência ao piano e que o fez esquecer, definitivamente, o trompete. Findo o serviço militar, Pearson começou a tocar profissionalmente em clubes da Geórgia e da Flórida, construindo um nome bastante respeitado naqueles estados.


Em 1959 decide se fixar em Nova Iorque e é contratado para integrar o Jazztet, de Art Farmer e Benny Golson. Pouco depois, Donald Byrd, encantado com suas habilidades, o convida a integrar o seu quinteto, ao lado do saxofonista Pepper Adams. Para o seu lugar, Farmer e Golson convocam um promissor iniciante chamado McCoy Tyner. Em 1961, uma doença afasta o pianista do grupo, sendo substituído pelo jovem Herbie Hancock.


A amizade com Byrd não sofreu qualquer abalo, tanto que no álbum “A New Perspective” Pearson fez os arranjos de várias músicas, inclusive do sucesso “Cristo Redentor”, de autoria do pianista e, segundo ele, composta após uma viagem ao Brasil, acompanhando a cantora Nancy Wilson. O Brasil, aliás, exerceu uma grande influência sobre Pearson, que chegou a gravar com diversos músicos brasileiros, como Hermeto Pascoal, Airto Moreira, Flora Purim e Dom Um Romão.


Contratado pela Blue Note no início dos anos 60, lançou vários discos pela companhia, dentre os quais os elogiados “Sweet Honey Bee” e “The Right Touch”. Além disso, acompanhou Grant Green, Thad Jones, Leo Wright, Johnny Coles e Bobby Hutcherson. Também fez arranjos para álbuns como “A Slice Of The Top”, de Hank Mobley, “Rough ’n’ Tumble”, de Stanley Turrentine, “Lush Life”, de Lou Donaldson, “Srandard”, de Lee Morgan, e “Boss Horn”, de Blue Mitchell. Com a morte de Ike Quebec, em 1963, também acumulou o papel de produtor, permanecendo no cargo até 1971.


Todavia, antes de se associar à célebre gravadora de Alfred Lion, Duke lançou pelo pequeno selo Jazzline (posteriormente encampado pela Prestige) um álbum espetacular, síntese de seu estilo econômico e avesso a pirotecnias. Trata-se do belíssimo “Dedication!”, gravado em 02 de agosto de 1961, no qual o pianista se faz acompanhar de Freddie Hubbard (t), Pepper Adams (sb), Thomas Howard (b), Lex Humphries (bt) e de um extraordinário trombonista chamado Willie Wilson, sobre quem não há maiores informações disponíveis salvo que tocou com o Jazztet por um breve período, que faleceu precocemente em 1963 e que ficou conhecido como “The Forgotten Trombonist”.


O disco abre com uma fabulosa versão de “Minor Mishap”, de Tommy Flanagan, cujo estilo lírico e discreto se assemelha ao de Pearson. Nessa faixa, o voluptuoso Wilson perpetra um solo magistral, o mesmo sucedendo com Adams, e a bateria de Humphries parece um dínamo. “Number Five” é a única composição do líder, um hard bop altamente combustivo, no qual o saxofone de Adams se destaca. A inusitada combinação de trompete, trombone e sax barítono dá a essa gravação uma sonoridade toda própria, difícil de ser encontrada em outros discos da época e todos os arranjos são do líder.


A atuação de Wilson nos standards “The Nearness Of You” e “Time After Time” é um capítulo à parte – seu sopro é melodioso, a um tempo aveludado e energético, capaz de deixar estarrecido o ouvinte com tamanha beleza. Ele também se revela um compositor bastante competente, em “Blues For Alvina”, o que faz com que o fã de jazz lamente ainda mais a perda de um talento tão prodigioso. As ensolaradas “Apothegm”, de Adams, e “Lex”, de Donald Byrd, completam o set, com duas excepcionais atuações de Wilson e de Hubbard – seu solo em “Lex” é sensacional. O álbum foi lançado em cd em 2000, pela OJC.


No final dos anos 60, Pearson liderou a própria big band, por onde passaram, entre outros, Chick Corea, Lew Tabackin, Bob Cranshaw, Mickey Roker, Randy Brecker, Garnett Brown, Julian Priester, Frank Foster e Pepper Adams. Essa verdadeira máquina de swing dividia as noites do Village Vanguard com outra orquestra célebre, a Thad Jones-Mel Lewis Orchestra. No início dos anos 70 deu aulas no Clark College e acompanhou os cantores Joe Williams e Carmen McRae. Todavia, a esclerose múltipla limitou-lhe consideravelmente os movimentos e ao final dessa década já não mais podia tocar. Ele morreu no dia 04 de agosto de 1980, a poucas semanas de completar 48 anos, mas deixou uma obra de enorme relevância. O apelido de Duke, ao final das contas, foi mais do que apropriado.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

O CAMPEÃO MUNDIAL DOS PESOS MÉDIOS


Um turbilhão de oito mil vozes histéricas, sedentas de sangue e violência, tornava o interior do ginásio um ambiente ensurdecedor. O odor de cigarro e suor, o ar quase irrespirável, o calor extremo, a tensão quase palpável, os flashes que pipocavam incessantemente, tudo conspirava para que a noite fosse inesquecível. Sob os urros da multidão ensandecida, os dois contendores subiram ao ringue, cada um deles usando um vistoso roupão e secundado por um numeroso staff. Naquela arena de cerca de 36 metros quadrados, aqueles homens, qual gladiadores modernos, haveriam de se enfrentar até que um deles tombasse. O cobiçado cinturão de campeão mundial desfila nas mãos de uma loura escultural. A sorte estava lançada.


Soa o gongo. Os dois homens, com o olhar resoluto e a expressão pétrea se dirigem ao centro do tablado. São profissionais experientes, dois dos mais brilhantes pesos médios que já subiram em um ringue. O mais alto e esguio, Benny “Honey” Flint, é um pugilista clássico, da escola de Sugar Ray Leonard. Dex “The Punisher” Noonan é mais baixo e atarracado, valente e muito forte, uma versão um pouco menos robusta de Marvin Hagler. O início do round é eletrizante. Dex “The Punisher” encurrala Flint nas cordas logo nos primeiros 30 segundos e impõe ao rival uma intensa saraivada de golpes.


Mas Flint é malandro. Mais experiente, tem apenas 18 nocautes em seu cartel – venceu as outras 19 lutas por pontos. Jamais caiu. É muito técnico e sabe se defender. Como certos peixes que fingem-se de mortos para poder devorar suas presas, ele aparenta ter acusado os golpes. O afoito Dex se preocupa apenas em atacar e se esquece de uma das regras mais elementares da nobre arte: jamais deixe a guarda aberta. A lição vem sob a forma de um potente uppercut de esquerda. O pescoço faz um movimento de noventa graus. Um feixe de músculos de aço impede que a cabeça seja arremessada para longe do corpo. Noonan sente o golpe. São os 20 segundos mais longos de sua vida, até que soe o gongo. Dois potentes jabs e um cruzado de esquerda quase fazem o voluntarioso pugilista de Detroit beijar a lona. Mas ele consegue o tempo que precisava para se recuperar.


O segundo e o terceiro round se sucedem sem grandes momentos. Um direto aqui, um cruzado acolá – o ritmo alucinante do início do combate parece ter deixado mais cautelosos os combatentes. No quarto round, o bailado cadenciado de Flint começa a fazer a diferença. Seus golpes não são muito potentes, mas são bastante certeiros. Dex “The Punisher” começa a arfar. Seus joelhos parecem não ter vontade própria e os braços começam a ficar pesados. A respiração penetra nos pulmões como uma procissão de adagas e o nariz começa a sangrar. O gongo se encarrega de abreviar o suplício.


No quinto assalto, novamente Flint toma a iniciativa. Cada golpe parece ter sido calculado e executado uma centena de vezes. Um direto na altura do supercílio esquerdo faz Dex cambalear e procurar as cordas. Um minuto e quarenta. Dex se recurva em uma posição quase fetal e aguarda o impiedoso castigo. O repertório do adversário é vasto e penosamente certeiro. Um cruzado de esquerda atinge a orelha de Dex – felizmente para ele o golpe não foi tão forte e nem tão preciso. Um minuto e dez segundos. Alguns jabs e um poderoso direto no plexo solar fazem a platéia urrar. A queda parece iminente.


Um pugilista mais afobado teria partido com tudo para cima do combalido Dex. Mas não Flint, o catedrático, o doutrinador, o homem de gelo. Ele é arrogante, mas não estúpido. Sob os apupos da assistência, ele recua pois sabe que se subestimar o adversário pode acabar nas cordas ou, pior, na lona. Refreia o ímpeto e cuida de esperar o melhor momento para o golpe mortal. Alguns socos na altura do fígado e Dex quase não consegue respirar. Trinta segundos. Mais alguns jabs. Dez segundos. Os pulmões de Dex parecem querer explodir. O gongo, finalmente, é acionado. Ele quase não consegue chegar sozinho ao corner.


O trabalho dos técnicos é frenético. Eles agitam os braços e gritam feito desesperados. O olhar de Flint, visivelmente mais inteiro, é atento. Dex mal consegue manter os olhos fixos no velho treinador. São três minutos de um combate desigual. De um lado, um boxeador no esplendor da sua forma física e técnica. O outro, um alquebrado pugilista, cuja força descomunal não tem se mostrado capaz de fazer frente à superioridade do adversário. Um uppercut fura a guarda de Dex e o deixa a mercê de “Honey”. Novamente, uma sucessão de golpes muito bem concatenados vai exaurindo as forças do valente boxeador de Detroit. Seu olho esquerdo é uma massa disforme e os lábios sangram com abundância. O árbitro pára o combate para que Dex possa ser atendido e aqueles preciosos segundos têm um efeito revigorante. Tudo que ele precisa fazer é resistir por mais vinte segundos. E ele consegue, apesar do castigo.


No sétimo assalto, Dex reformula a sua estratégia. Evita o combate direto e se afasta ao máximo do raio de ação do adversário, cuja envergadura permite golpes mais longos. O ritmo da luta cai e os dois homens voltam a se estudar. Benny Flint, que até então exibia o seu fabuloso jogo de pernas de forma ostensiva, começa a se movimentar menos. Pela primeira vez em três ou quatro rounds, recebe alguns golpes mais duros. Um gancho na altura do fígado faz com que ele encoste nas cordas. O orgulho de Nova Jersey acusa o golpe.


Um misto de perplexidade e dor percorre seus olhos. Ele tenta um gancho mas a esquiva de Dex, mais baixo e melhor posicionado no tablado, é mais eficaz. “The Punisher”, cuja queda parecia inevitável, encontra forças para emendar um potente cruzado, que atinge em cheio o maxilar de Flint. Ele cambaleia e tomba sobre as cordas. A multidão delira. Quinze segundos. Uma saraivada de golpes rápidos, mas pouco precisos, é a prova de que Dex, apesar das vinte e seis vitórias por nocaute, ainda tem muito que aprender sobre os mistérios do ringue. Mas pelo menos ele conseguiu impor ao adversário algum dano. O massacre, tido como certo há apenas dois ou três rounds, não se consumou.


Oitavo round. Dois homens extenuados se estudam no centro do ringue. Ambos adotam uma postura escorregadia. Golpes quase frívolos, mal concebidos e pior executados, dão a tônica do pior assalto do combate. Boa parte da luta é consumida em um sonolento clinch. Apáticos, os dois retornam aos corners sem tentar esconder a decepção com os respectivos desempenhos. Nono round e a história parece que vai se repetir, para desespero da platéia, que dá mostras de estar impaciente.


Faltando pouco menos de dois minutos, Flint encaixa um cruzado espetacular e Dex provoca um clinch. São apenas dez segundos, suficientes para que ele recupere parcialmente os sentidos e desfira um sensacional uppercut em Flint. Depois, esquiva-se agilmente de um direto e muda o próprio centro de gravidade, usando o impulso de todo o corpo para desferir um gancho devastador. Flint dobra os joelhos e expele o ar dos pulmões. Está à mercê de Dex, que agora, apesar de exausto, consegue uma seqüência de três socos indefensáveis.


No último deles, Flint tomba no tablado, como uma árvore abatida por um implacável lenhador. Ainda tenta evitar a queda, movendo freneticamente os braços, como se procurasse uma corda invisível para se apoiar. Mas não havia como evitar o tombo. Os calcanhares são a última parte do corpo a tocar o solo, o gran-finale de uma coreografia grotesca. As estruturas do ginásio parecem chacoalhar, por causa dos gritos exaltados da assistência.


O juiz inicia a contagem. 1, 2... Flint não consegue ouvir o barulho da multidão. Seus olhos esgazeados o traem. 3, 4, 5... Tudo o que consegue ver é uma massa indistinta de cores e formas sem sentido. Seus joelhos estão descoordenados e os braços não conseguem se elevar acima da cintura. 6, 7, 8... Com um esforço absurdo, consegue se sentar, mas não encontra forças para levantar. A cabeça pende de lado, como um doloroso apêndice do corpo. 9, 10. O combate acabara. O cinturão dourado agora teria uma longa viagem até Detroit.

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O apelido de “Campeão mundial dos pesos médios” foi dado a Hank Mobley pelo crítico Leonard Feather, que o fez sem qualquer conotação pejorativa. Como admitia o próprio saxofonista, seu sopro não tinha a potência ou o vigor de pesos pesados como Dexter Gordon, John Coltrane ou Sonny Rollins, mas era doce e impregnado de lirismo – uma espécie de Lester Young do hard bop. Nascido em Eastman, Georgia, mas criado em Nova Jersey, Hank começou a tocar saxofone relativamente tarde, aos 16 anos. Contudo, aos 19 já atuava profissionalmente, acompanhando o cantor de R&B Paul Gayten, ao lado de feras como Sam Woodyard, Clark Terry e Cecil Payne. Em 1951 foi convidado por Max Roach para integrar seu quarteto, permanecendo ali por quase três anos e, em 1955, uniu-se aos Jazz Messengers, de Art Blakey e Horace Silver.


Também tocou com Dizzy Gillespie, Tadd Dameron, J. J. Johnson, Lee Morgan, Johnny Griffin, Curtis Fuller, Wardell Gray, Jimmy Smith, Kenny Dorham e Lester Young. Integrou o quinteto de Miles Davis entre 1961 e 1962, tendo participado do ótimo “Someday My Prince Will Come”. Embora não possa ser comparado a Rollins e Coltrane no quesito inovação, Mobley era um dos tenoristas mais confiáveis e um dos mais disputados acompanhantes das décadas de 50 e 60, como demonstram as dezenas de álbuns que gravou para a Prestige e a Blue Note nesse período. Pela gravadora de Alfred Lyon, lançou excelentes álbuns como líder como “Soul Station”, “Roll Call”, “No Room For Squares” e “The Turnaround”.

Um de seus discos menos conhecidos é o “Hank Mobley: Quintet”, de 1957. Uma pena, pois a qualidade da sessão é espantosa. Acompanhando o saxofonista, estão Art Farmer no trompete, Horace Silver no piano, Doug Watkins no baixo e Art Blakey na bateria. Compositor de mão cheia, todos os seis temas são de autoria do líder. A sua atuação, em cada uma das faixas, é soberba daí porque a pecha de pouco inventivo se mostra absolutamente injusta. “Funk In Deep Freeze”, uma de suas mais conhecidas composições, merece especial destaque, sobretudo por conta dos maravilhosos solos de Silver e Farmer.

Outra das acusações mais usuais – e menos verdadeiras – era a de que Mobley era um saxofonista extremamente técnico, mas nada emotivo. Basta ouvir a lindíssima versão da balada “Fin de l’affaire” e o diálogo magistral com Farmer, para que qualquer dúvida se dissipe. O quinteto arrasa nas trepidantes “Wham And They’re Off”, “Startin’ From Scratch” e “Stella-Wise”, executadas com alta dose de adrenalina. Outro ponto alto é o blues “Bass On Balls”, na qual sobressai-se o entrosamento entre Watkins e Silver.

No final dos anos 60, Mobley mudou-se para a Europa, retornando aos Estados Unidos em 72. Nessa época, integrou por pouco tempo a big band de Muhal Richard Abrams e manteve uma breve associação com o pianista Cedar Walton, mas diversos problemas de saúde impediram que o saxofonista tivesse o mesmo reconhecimento que teve na década anterior. A pneumonia abateu-o em 1986, mas o sopro lírico e melodioso desse verdadeiro campeão jamais deixará de ecoar nos ouvidos e corações dos jazzófilos.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

A APOTEOSE DA SUTILEZA


Creed Taylor é um dos mais importantes produtores da história do jazz, tendo começado a trabalhar no modesto selo Bethlehen, nos anos 50. Ainda naquela década, comandou a divisão de jazz da gigante do entretenimento ABC-Paramount, que lançou álbuns de gente como Lambert, Hendricks e Ross, Don Elliot e Kenny Dorham. Por conta dessa bem sucedida experiência, a ABC-Paramount resolveu transformar sua divisão de jazz em um selo próprio, o festejado Impulse, em 1960 e Taylor foi a cabeça pensante responsável pela criação da nova gravadora, por onde passaram, entre muitos outros, John Coltrane, Freddie Hubbard, McCoy Tyner, Art Blakey, Oliver Nelson, Dizzy Gillespie e Gil Evans.

Em 1961, com a compra da Verve pela poderosa MGM, Taylor foi contratado para assumir a mitológica gravadora fundada por Norman Granz e ali foi um dos principais responsáveis pela popularização da bossa nova nos Estados Unidos. Produziu o célebre “Getz-Gilberto”, que vendeu milhões de cópias e revelou ao mundo a cantora Astrud Gilberto, então esposa de João Gilberto. Não satisfeito com tantas realizações, Taylor, em 1970, fundaria mais uma gravadora: a Creed Taylor Incorporations ou simplesmente CTI.

Em uma década francamente hostil ao jazz, Taylor reuniu sob seu comando artistas importantíssimos, como Ron Carter, Jim Hall, Paul Desmond, Milt Jackson, Hank Crawford, George Benson, Joe Farrell, Stanley Turrentine, Freddie Hubbard, Eumir Deodato, Don Sebesky, Stanley Clarke, Kenny Burrell e muitos outros. Muitos deles, adotando uma abordagem fusion, logo se tornaram grandes vendedores de discos e a vocação da CTI para essa controvertida vertente do jazz sempre foi bastante criticada.

Não obstante, o catálogo da gravadora, vendido para a Epic/CBS no início dos anos 80 e atualmente sob controle da Sony BMG, possui álbuns fabulosos, como o “She Was Too To Me”, de Chet Baker, o “Carnegie Hall Concert”, de Chet Baker e Gerry Mulligan e o “Concierto”, obra-prima de Jim Hall. E é sobre esse disco e sobre o extraordinário líder da sessão, o sóbrio, criativo e elegante Jim Hall que se tecerão alguns comentários.

O fabuloso James Stanley Hall, nascido no dia 04 de dezembro de 1930, em Buffalo é um dos maiores guitarristas de todos os tempos, além de compositor e arranjador de raro talento. A música sempre esteve presente em sua vida, já que seu pai era violinista, sua mãe pianista e possuía um tio guitarrista. As primeiras lições vieram por volta dos 10 anos, idade em que ganhou da mãe a primeira guitarra, e aos 15 já tocava profissionalmente. Com a mudança da família para Cleveland, em 1946, matriculou-se no prestigioso Cleveland Institute Of Music, onde aprendeu teoria musical e aperfeiçoou a sua técnica soberba. Charles Christian e Django Reinhardt foram as suas primeiras e mais importantes influências.

Em 1955 mudou-se para Los Angeles, onde deu continuidade aos estudos, com o guitarrista clássico Vincente Gómez e integrou-se perfeitamente à cena West Coast, tornando-se um dos mais disputados músicos locais. A partir daí, Hall acompanhou ou foi acompanhado por músicos do calibre de Chico Hamilton, Jimmy Giuffre, Bob Brookmeyer, Ben Webster, Red Mitchell, Kenny Barron, Pat Metheny, Slide Hampton, Bill Evans, Art Farmer, Hampton Hawes, Sonny Rollins, Paul Desmond, Gerry Mulligan, John Lewis, Ornette Coleman, Ron Carter, Ella Fitzgerald, George Shearing, Zoot Sims, Jimmy Raney, Barney Kessell, Joe Lovano, Mike Stern, Tommy Flanagan, John Scofield, Bill Frisell, Greg Osby, Michel Petrucciani, Wayne Shorter, Tom Harrell, Chris Potter, Christian McBride e Lee Konitz.

Também fez parte da célebre caravana “Jazz At The Philharmonic”, promovida por Norman Granz e quando integrava o trio do saxofonista Jimmy Giuffre, em 1959, participou do documentário “Jazz On A Summer Day”, além de ter participado de diversos álbuns de Giuffre para a Atlantic. Outras associações que merecem registro foram com o pianista John Lewis, com quem gravou o elogiado “Grand Encounter”, de 1956, considerado um marco do chamado Third Stream Jazz, com o saxofonista Sonny Rollins (álbuns como “The Bridge” e “The Standard Sonny Rollins”), com o pianista Bill Evans (“Interplay” e “Undercurrent) e com o saxofonista Paul Desmond (“Glad To Be Unhappy”, “Bossa Antigua” e “Easy Living”) .

Hall sempre foi extremamente aberto às sonoridades vindas de outras latitudes. Esteve no Brasil durante seis semanas em 1960, acompanhando a cantora Ella Fitzgerald, ocasião em que travou seus primeiros contatos com a Bossa Nova. Durante uma temporada européia com Art Farmer, em 1964, gravou, sob a liderança do trompetista, o curioso “To Sweden With Love”, para a Atlantic, no qual composições do folclore sueco são adaptadas para o idioma jazzístico, com um resultado bastante agradável aos ouvidos.

O álbum “Concierto”, gravado entre 16 e 23 de abril de 1975, nos Estúdios Van Gelder, com produção de Creed Taylor e arranjos de Don Sebesky, inscreve-se como um dos momentos mais extraordinários da carreira de Jim Hall e, certamente, é um dos melhores discos gravados durante os anos 70. Dentre os acompanhantes, dois músicos exponencialmente líricos: Chet Baker (trompete) e Paul Desmond (sax alto). Completam o time, o pianista Roland Hanna, o baixista Ron Carter e o baterista Steve Gadd.

Além das três composições originais, o sexteto desfia dois standards e uma versão devastadora do “Concierto de Aranjuez”, de Joaquin Rodrigo. Esta última consome nada menos que 19min14s de pura magia e beleza extasiante. A guitarra elétrica do líder soa como se fosse um violão e o ouvinte é levado a crer que a célebre peça do compositor espanhol foi composta especialmente para Hall. É emocionante ouvir a leveza do trompete de Baker, que fazia então mais uma das muitas tentativas de reerguer a carreira, e nesse exato instante eu paro de escrever a resenha (3min36s), enxugo as lágrimas que escorrem, tímidas, e fico apenas ouvindo.

Findo o período de hipnótico encantamento e voltando ao trabalho, “Two’s Blues”, uma composição de Hall bastante swingante, revela um Chet Baker em excepcional forma, chamando para si a responsabilidade e magnetizando o ouvinte com solos fenomenais. O termo “interação telepática”, muito usado em resenhas sobre discos de jazz, provavelmente foi inventado após a audição de “You’d Be So Nice To Come Home To”, de Cole Porter, sobretudo por conta das performances de Baker e Desmond, ambas irrepreensíveis. O toque aveludado e nada dispersivo do líder faz com que se descubram nessa canção uma série de novas possibilidades harmônicas.

“The Answer Is Yes” é uma bela composição de Jane Hall, esposa do guitarrista, que inicia a execução de forma bastante relaxada. Mais uma vez, Chet rouba a cena, com seu cativante fraseado, algo despojado, enquanto o discreto Hanna executa um solo lindíssimo. Essa atmosfera bem West Coaster remanesce na versão de “Rock Skippin’”, de Ellington e Strayhorn, na qual o diálogo entre Hall e Hanna se sobrepõe.

Na reedição em cd, o ouvinte ainda é brindado com a bela “Unfinished Business”, assinada pela dupla Hall/Carter e calcada sobre um tema folclórico mexicano, com Desmond extravasando o seu costumeiro bom gosto, e com takes alternativos de “You’d Be So Nice To Come Home To”, “Rock Skippin’” e “The Answer Is Yes”. Trata-se de um disco refinado, fundamental, obrigatório e irretocável. Se você tiver que escolher um único álbum para levar para uma ilha deserta, “Concierto” é um fortíssimo candidato.

Hall participou de inúmeros festivais ao redor do mundo, como os de Berlim, Montreux, Monterrey, Úmbria e Newport e até hoje mantém-se atuante, com um frescor e uma vitalidade incríveis. De sua recente discografia, merecem destaque “Jim Hall & Basses”, gravado em 2001 para a Telarc e que apresenta o guitarrista atuando com baixistas do naipe de Charlie Haden, Dave Holland, George Mraz e Christian McBride, e “Hemispheres”, de 2008, onde toca com o discípulo Bill Frisell. Em 2004 recebeu da National Endowment For The Arts o prestigioso título de “Jazz Master”. Atualmente mora em Nova Iorque, ao lado da esposa, Jane, e do cachorro, apropriadamente chamado Django.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

ESTRELANDO: “LONG TALL DEX”


O melancólico saxofonista Dale Turner emocionou platéias do mundo inteiro. O retrato sensível – e por vezes patético – do velho jazzista exilado em Paris, baseado na vida de Bud Powell (mas com alguns elementos de Charlie Parker e Lester Young), foi um dos maiores sucessos do cinema europeu dos anos 80. Dirigido por Bertrand Tavernier, “Round Midnight” se tornou cult e revelou ao mundo o talento de Dexter Gordon à frente das câmeras, além de resgatar da obscuridade a carreira de um dos mais talentosos saxofonistas do bebop.


O gigantesco saxofonista de quase dois metros de altura (daí o apelido “Long Tall Dex”) interpreta com tamanha candura e sensibilidade que foi indicado ao Oscar de melhor ator. Mas essa não foi a sua primeira experiência com as artes cênicas. Nos anos sessenta já tinha interpretado um importante papel na peça “The Connection”, de Jack Gelber, que retrata o cotidiano de viciados em heroína e de pequenos delinqüentes, à margem do sonho americano. Além disso, muitas das situações vividas por Dale Turner não eram propriamente desconhecidas de Gordon, que nos anos 50 teve sérios problemas com drogas, daí porque não deve ter tido maiores dificuldades para criar o personagem.


Dexter Keith Gordon nasceu em Los Angeles, no dia 27 de Fevereiro de 1923, filho do médico Frank Gordon, que tinha como pacientes Lionel Hampton e Duke Ellington. Aos 13 anos inicia os estudos do clarinete, passando aos 15 para o sax alto, até decidir-se pelo sax tenor, aos 17 anos. Teve como companheiros, nas diversas bandas escolares em que tocou, futuros astros do jazz, como o baterista Chico Hamilton e o saxofonista Buddy Collette.


De 1940 a 1943, integrou a orquestra de Lionel Hampton e também tocou algum tempo com Fletcher Henderson, Nat Cole e Harry Edison. Em 1944 toca por um breve período com Louis Armstrong. No mesmo ano, é convidado por Billy Eckstine para compor a sua orquestra, viajando com esta até Nova Iorque, onde tem a oportunidade de tocar com Charlie Parker e Dizzy Gillespie. Até esse período, seu estilo melodioso e lírico era bastante semelhante ao fraseado de Lester Young, seu primeiro ídolo e maior influência.


O contato com os revolucionários Parker e Gillespie, além de outros pais do bebop, como Fats Navarro, Bud Powell, Max Roach e Tad Dameron, alterou sensivelmente as concepções harmônicas de Gordon e abriu-lhe sobremaneira os horizontes musicais. As incontáveis jams nos clubes da lendária Rua 52 fizeram de Gordon, até então um músico competente mas ainda em formação, um improvisador altamente imaginativo, capaz de adaptar para o sax tenor todos os elementos do bebop, transformando-o no mais importante tenorista do estilo. Sua abordagem era absolutamente original para a época, com uma sonoridade espessa, agressiva e bastante rápida, embora fosse também um exímio intérprete de baladas.


Em 1945 fez as primeiras gravações como líder, para a Savoy. Em 1947, já de volta a Los Angeles, um dos passatempos prediletos de Gordon eram as famosas batalhas de saxofonistas, onde enfrentava os grandes amigos Teddy Edwards e Wardell Gray. Esses duelos eletrizavam as platéias que lotavam as casas noturnas de Los Angeles, como o lendário Elks Club, e mobilizavam grandes nomes do West Coast Jazz, como os pianistas Jimmy Rowles e Hampton Hawes, os baixistas Red Callender e Leroy Gray, os bateristas Roy Porter e Chuck Thompson, além de convidados ilustres como o saxofonista Sonny Criss, o trompetista Howard McGhee e o guitarrista Barney Kessell.


Os anos 50 reservaram a Gordon poucas alegrias e muitos problemas, sobretudo por conta da heroína, que lhe rendeu um período na prisão em 1952. Embora tenha feito algumas gravações para a Bethelehem e Boplicity, Dexter viveu um hiato criativo de quase cinco anos, com poucos concertos e apresentações esparsas. Somente saiu da inatividade em 1960, com o excelente “The Resurgence Of Dexter Gordon”, produzido por Cannonball Adderley para a Jazzland (lançado em cd pela OJC).


A partir de 1961 iniciou um retorno aos palcos e estúdios em grande estilo. Foi contratado pela Blue Note, graças à intervenção de Ike Quebec, gravando uma seqüência de discos estupendos, dentre eles os incensados “Doin’ Allright”, “Go”, “A Swingin’ Affair”, “One Flight Up” e “Our Man In Paris”, este ao lado de Bud Powell. Em 1962 mudou-se para a Europa, passando a residir em Copenhagen, onde era uma das atrações mais constantes do célebre clube Montmartre. Retorna com certa freqüência ao país de origem, sobretudo para gravar seus discos para a Blue Note, mas no velho continente lança diversos discos pela cultuada Steeplechase.


Numa dessas ocasiões, Gordon se reuniu ao trompetista Fredddie Hubbard, ao pianista Barry Harris, ao baixista Bob Cranshaw (substituído em uma faixa por Ben Tucker) e ao baterista Billy Higgins para produzir o fabuloso “Clubhouse”, gravado em sessão única no dia 27 de maio de 1965. Trata-se do álbum mais hard bopper do saxofonista, que assina três das seis faixas do disco.


A primeira delas é “Hanky Panky”, que também abre o disco, com sua levada bluesy, mas com um andamento quase marcial. A tórrida “Clubhouse” é a segunda composição do líder, que elabora alguns dos mais memoráveis solos do disco. A integração dos integrantes da sessão rítmica é assombrosa – Higgins, Cranshaw e Harris tocaram juntos no excelente “The Sidewinder”, ao lado de Lee Morgan – e Hubbard intervém com a habitual maestria, construindo um solo complexo e arrebatador.


“Jodi”, originalmente uma balada feita em homenagem à esposa do líder, recebe uma leitura mais acelerada e vigorosa que aquela gravada no “The Resurgence Of Dexter Gordon”. Aqui é o piano de Harris que se destaca, mas a dobradinha Higgins e Cranshaw, que faz um trabalho excepcional, também merece todos os encômios. O quinteto perpetra uma soberba versão de “I’m A Fool To Want You”, de Sinatra, que evoca madrugadas insones e noites à base de cigarros e bourbon, com uma interpretação pungente do saxofonista, que certamente transportou para os seus solos as agruras e as dolorosas experiências que vivera na década anterior. O solo de Hubbard, lírico e altamente emotivo, é outro destaque dessa faixa.


Outra balada, “Lady Iris B.” é interpretada de forma bastante intimista, com direito a um maravilhoso solo de Harris. O sopro de Gordon, nesta faixa, é bastante comedido, com uma sonoridade que, em algumas passagens, assemelha-se à do ídolo Lester Young. O delicado trabalho de Higgins com as escovinhas também chama a atenção. Ben Tucker assume o contrabaixo, para a interpretação de sua composição “Devilette”, um had bop puxado ao blues, com uma levada contagiante a cargo de Harris e um diálogo incandescente entre Dex e Hubbard. Um álbum para ser ouvido sempre e sempre, indispensável nas prateleiras de qualquer fã de Dexter Gordon.


O carismático Dexter Gordon retornou aos Estados Unidos em 1976, ocasião em que foi recebido com entusiasmo pela crítica e pelo público. Na ocasião gravou o célebre “Homecoming”, já pela Columbia, ao vivo no mítico Village Vanguard, ao lado de Ronnie Mathews, Stafford James, Louis Hayes e Woody Shaw. Nos anos 80, teve sérios problemas com o álcool voltou a desaparecer da cena musical, retornando triunfalmente em 86, graças à sua comovente interpretação em “Round Midnight”.


Ele morreu no dia 26 de abril de 1990, mas a sua importância para o desenvolvimento da sintaxe do bebop estende-se até os dias de hoje. Virtualmente todos os tenoristas que lhe sucederam – incluindo-se aí os geniais Booker Ervin, Sonny Rollins e John Coltrane – sofreram sua colossal influência, que pode ser percebida até mesmo em saxofonistas contemporâneos, como Joe Lovano, Kenny Garrett e Joshua Redman.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

TOMMY FLANAGAN: PORQUE O INSTANTE EXISTE...


O reconhecimento por parte de seus pares é inteligentemente unânime. Desde muito cedo, o precoce Tommy Flanagan acostumou-se a ser incensado por outros músicos como um dos maiores entre os maiores. Não que os encômios tivessem sobre a sua personalidade afável e modesta qualquer efeito deletério. Ser chamado de gênio por luminares como Ella Fitzgerald ou John Coltrane jamais afetou a sua simplicidade algo monástica ou demoveu a sua férrea convicção acerca da transitoriedade da glória.


Para o Poeta do Jazz, carinhoso apelido que recebeu em virtude do seu exponencial lirismo, o mais importante de tudo foi, é e será sempre a música. Foi esta arte que ele tão consistentemente empenhou-se em dignificar. Se nesse caminho, prenhe de beleza e exaustão, conseguiu um amplo reconhecimento, tanto melhor. Mas ele continuaria a sua jornada rumo ao absolutamente belo de qualquer maneira. Com ou sem aplausos. Com sem prêmios.


Nascido em 16 de março de 1930, na feérica Detroit, o jovem Flanagan começou a tocar profissionalmente muito cedo. Em 1945, com apenas 15 anos, já era um regular freqüentador do palco do célebre Bluebird, dividindo-o com outros grandes músicos da cena local, como Milt Jackson, Thad Jones, Curtis Fuller, Elvin Jones e Kenny Burrell. Antes de completar 20 anos, já excursionava com Dexter Gordon e Lucky Thompson. Nos anos 50, após cumprir o serviço militar (de 1951 a 1953), realizou alguns trabalhos com Blue Mitchell e Kenny Burrell, até fixar-se em Nova Iorque, em 1956.


A partir daí, seria mais fácil dizer com quais dos grandes músicos do jazz Flanagan não tocou (a rigor, dos grandes mesmo, o pianista não tocou apenas com Charlie Parker, pelo singelo motivo de que Bird falecera em 1955). A lista de músicos que tiveram a honra de tê-lo como acompanhante, além dos já mencionados, é estelar e quilométrica: Oscar Pettiford, Sonny Rollins, J. J. Johnson, Kenny Dorham, Art Farmer, Ray Brown, John Coltrane, James Moody, Benny Carter, Coleman Hawkins, Harry “Sweets” Edison, Wes Montgomery, Dizzy Gillespie, Miles Davis, Freddie Hubbard, Charles Mingus, Gerry Mulligan, Pee Wee Russell, Art Pepper e Ella Fitzgerald (a quem acompanhou por mais de 10 anos).


Influenciado por Bud Powell, Art Tatum e Nat Cole, Flanagan lançou o seu primeiro disco como líder em agosto de 1957, o aclamado “Overseas”, comandando um trio que incluía os excelsos talentos de Elvin Jones e Wilbur Little. Poucos meses antes, havia dividido os créditos do excelente “The Cats” com o velho amigo Kenny Burrell e o novo amigo John Coltrane (a quem haveria de acompanhar no magistral “Giant Steps”, de 1959). Em 1982, Flanagan prestaria uma emocionada e emocionante homenagem a Trane, gravando composições do saxofonista em um álbum denominado, muito justamente, de “Giant Steps”.


Por seus célebres trios passaram os bateristas Elvin Jones, Roy Haynes, Al Foster, Art Taylor e Lewis Nash, e os baixistas Wilbur Little, Tommy Potter, Ketter Betts e Jesper Lundgaard, além do virtuose tcheco George Mraz, ao lado de quem construiu uma belíssima discografia entre os anos 80 e 90. Nos dias 16 e 17 de junho de 1983, Flanagan e outros dois músicos extraordinários reuniram seus admiráveis talentos pela primeira e única vez, para gravar, pela Gambit, um disco espetacular. O nome do álbum é simplesmente “The Trio” e os outros músicos são ninguém menos que Ron Carter e Tony Williams.


Talvez não fosse necessário dizer que os três músicos, mestres em seus respectivos instrumentos, dão o melhor de si em uma gravação tão espontânea que é como se os três estivessem tocando na sala de estar do ouvinte. Provavelmente seria redundante mencionar que a fidalguia, a elegância e o bom gosto na execução, características das mais evidentes entre os três instrumentistas, permeiam todas as faixas. Certamente não há qualquer necessidade de informar que as 14 músicas escolhidas são absolutamente homogêneas do ponto de vista qualitativo. Os brevíssimos 73 minutos e 18 segundos de delicadeza em estado puro são soam aos ouvidos tão ternamente quanto as águas cristalinas de um regato, ao sol tranqüilo de um dia de primavera.


“It Don’t Mean a Thing”, de Duke Ellington, é executada com um swing e uma graça arrebatadores – o baixo de Carter desliza através da melodia, como se fosse um passeio mágico. O calor tropical de “St. Thomas” é abrandado com uma leitura que realça as suas características bop e o implacável Carter, mais uma vez, executa passagens verdadeiramente impossíveis para 99,99% dos contrabaixistas do universo. As arestas de “Misterioso” são aparadas com muita inventividade, mas não há qualquer prejuízo às ousadas concepções harmônicas de Monk – ao fim e ao cabo, o blues emana íntegro como se tivesse sido recolhido diretamente das águas barrentas do Mississipi.


“Milestones” jamais foi executada com tamanha delicadeza, em um dos momentos mais sublimes do disco. Além de Monk e Davis, outros grandes nomes do jazz também tiveram sua obra revista sob o olhar altamente emocional do trio. É o caso de Tadd Dameron, com uma versão cristalina de “Good Bait”, de John Lewis, cuja “Afternoon In Paris” merece uma releitura extraordinária, com um discretíssimo tempero de bossa nova, e de John Coltrane, que tem a clássica “Giant Steps” executada de maneira bastante audaciosa, conferindo ao tema, um dos mais conhecidos do jazz, novas e delicadas tessituras sonoras e ressaltando a elevada capacidade de improvisador do pianista.


Os três músicos também integram ao repertório composições próprias, todas de altíssimo nível. Williams comparece com “Sister Cheryl”, uma balada sofisticada, Carter apresenta uma sacolejante “New Song”, que é puro bebop, e Flanagan contribui com a exuberante “Minor Mishap”, certamente sua composição mais conhecida e que recebe um arranjo devastador. O momento mais emocionante do álbum talvez seja a encantadora versão de “My Ship”, que parece ter sido composta especialmente para a execução sofisticada de Flanagan. Um disco para quem acredita que a poesia do jazz é tão eloqüente e terna quanto aquela que produzem os mais líricos poetas.


O pianista faleceu no dia 16 de novembro de 2001, em Nova Iorque, em decorrência de um aneurisma arterial – já de algum tempo vinha sofrendo de problemas coronários, mas jamais abandonou os palcos e estúdios. Apesar da saúde frágil, Flanagan continuou a realizar, até quase o final de sua vida, as duas habituais temporadas anuais em seu adorado Village Vanguard. Não é de se espantar. Cecília Meireles já havia, alguns anos antes, decantado a matéria de que são feitos poetas como ela e Flanagan:


“Eu canto porque o instante existe
E a minha vida está completa.
Não sou alegre nem triste,
Sou poeta”.

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