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segunda-feira, 31 de outubro de 2011

RALPH BURNS: ENTRE O JAZZ E O CINEMA


O pianista, compositor, arranjador e diretor de orquestra norte-americano Ralph Burns não é um nome muito conhecido do grande público. Não obstante, é bastante provável que você já tenha ouvido alguma coisa feita por ele, seja em trilhas sonoras para o cinema, seja um arranjo criado para as diversas orquestras por onde passou, seja uma composição sua interpretada por algum ícone do jazz. A expressão “tesouro musical escondido” é perfeitamente aplicável a esse grande músico, cuja obra merece ser descoberta pelos amantes do jazz o mais rapidamente possível.

Ele nasceu na cidade de Newton, no estado do Massachusetts, cuja capital é a refinada Boston, no dia 29 de junho de 1922. Nascido em uma família de cinco irmãos, ele foi o único que conseguiu chegar à idade adulta. Aos sete anos iniciou seus estudos no piano, tomando aulas particulares. Dos 16 aos 17 anos seguiu sua formação no New England Conservatory, em Boston.

Nesse período, iniciou a carreira profissional, tocando com a banda de Bob Adams. Entre 1940 e 1941, Ralph atuou na banda de Nick Jerret, irmão da cantora Frances Wayne, uma das vocalistas da big band de Woody Herman. Burns chegou a morar na mesma casa que Jerret e com seu grupo tocou no Kelly’s Stable, onde foi ouvido por Charlie Barnet, que hesitou em contratá-lo.

Ralph se manteve na orquestra de Barnet por cerca de 01 ano e ali fez os seus primeiros arranjos, quase todos sobre temas de Duke Ellington, destacando-se “Caravan” e “Cottontail”.  Ainda na banda de Barnet, o pianista teve a oportunidade de participar de sua primeira gravação, em 1943: “The Mooche”, também um tema de autoria de Ellington. 

Após sua saída da big band de Barnet, Burns passou uma breve temporada (06 meses apenas) na banda do grande vibrafonista Red Norvo para, a partir do Natal de 1944 e com apenas 22 anos, passar a integrar, como pianista, a orquestra de Woody Herman, em uma formação que incluía Neal Hefti, Shorty Rogers, Terry Gibbs, Jimmy Giuffre, Bill Harris, Flip Phillips, Chubby Jackson e Dave Tough.

Em pouco tempo, ele acumulava também a função de arranjador e foi adquirindo cada vez mais importância como arranjador que não mais atuava como pianista, tanto é que foi substituído nessa função por Tony Aless. Seu primeiro arranjo foi para o tema “Goodmania”, baseado em “Sing, Sing, Sing” e “Don’t Be That Way”, mostrando as influências de Benny Goodman e de Bunny Berigan.  Também arranjou um tema de Duke Ellington, “Happiness Is A Thing Called Joe” para a banda de Herman.

Entre os arranjos elaborados para a big band de Herman e que hoje são considerados clássicos, destacam-se “Caldonia” e “Biju” em 1945, “Lady McGowan’s Dream”, “Summer Sequence” e “Introspection” em 1946 e o espetacular “Early Autumn” em 1947. Como arranjador, ele receberia prêmios como os das revistas Esquire (New Star, em 1946), Down Beat (em 1952 e 1953) e Metronome (1953).

Após ouvir os arranjos de Ralph, o compositor erudito Igor Stravinsky, grande apreciador do jazz, compôs o seu “Ebony Concert” especialmente para a orquestra de Herman. Para o jovem pianista e arranjador, foi uma enorme honra, pois além de Duke Ellington e Charlie Parker, Stravinsky era sua maior referência musical. Burns teve a oportunidade de conhecer pessoalmente o ídolo, graças a um amigo comum, o  compositor Alexis Haieff, aluno de Stravinsky, com quem estudava arranjo e composição.

Enquanto pianista ele lembra tinturas, com vias mais cromáticas de Count Basie, no tornado clássico por Herman, “Caldonia”. Como arranjador, inicialmente Burns foi influenciado pelos arranjos de Fletcher Henderson para a orquestra de Benny Goodman. Na banda de Woody Herman, impôs a seus arranjos um maior refinamento, que lembra os sons de Duke Ellington. Curioso é que na juventude Ralph não apreciava a música da orquestra de Elington, mas após assistir à banda de Ellington no “Ritz” de Boston, em 1939,

“Lady McGowan’s Dream” é o divisor de águas para Burns, em que ele consegue entrosar perfeitamente a melodia com o desenvolvimento harmônico para a orquestração.   Ele soube captar perfeitamente as sonoridades típicas da música clássica de seu tempo, especialmente as de Stravinski por quem tinha predileção, unindo as diferentes seções da orquestra em partes sonoras muito bem articuladas, equilibradas, que mostram com clareza seu espírito altamente inventivo. 

Ralph teve o mérito de captar os novos tipos de linguagem improvisada para renovar a estrutura da “big band” de jazz, sem resvalar um mínimo no desequilíbrio formal, mas destacando a agilidade e a perfeita utilização do todo orquestral, como em “Bijou” (de 1945), com fundo brilhante para a extensão total e o vibrato rouco de Bill Harris no trombone, “Summer Sequence” (de 1946), cujo desenvolvimento nas versões gravadas geraram “Early Autumn” (de 1947), cuja versão mais célebre foi apoiado nos famosos “Four Brothers Sound” (Zoot Sims, Stan Getz, Serge Chaloff e Al Cohn que havia substituído Herbie Stewart).

Em 1947, Ralph foi trabalhar como pianista para o grupo do grande tenorista Charlie Ventura e, em seguida, para o do trombonista Bill Harris, chegando a apresentar-se, no mês de abril, no famoso clube “Three Deuces”, em Nova Iorque Durante a década de 1950 a reputação de Burns, enquanto arranjador e compositor, firmou-se em definitivo, sendo que ao longo dessa década e dos muitos anos seguintes ele colaborou com Billy Strayhorn, Lee Konitz e Ben Webster.

Também escreveu composições para Tony Bennett, Johnny Mathis, Aretha Franklin e Nat King Cole, e foi o responsável pelos arranjos e introduções da seção de cordas nos sucessos de Ray Charles, "Come Rain Or Come Shine" e "Georgia On My Mind" (o hiper-clássico de Hoagy Carmichael), assim como escreveu arranjos para Mel Tormé e para as cantoras Mildred Bailey e Fran Warren, tendo sido diretor musical de ambas.

No ano de 1954, Ralph realizou uma temporada européia, juntamente com a banda de Woody Herman, ao final da qual permaneceu muitos meses em Roma, na Itália, onde trabalhou como atração fixa do clube Bricktop’s. O ano seguinte foi quase que exclusivamente dedicado à composição e ao arranjo para o rádio, a televisão e o cinema, assim como para trabalhos ligados à publicidade. Não obstante, o pianista encontrou tempo para gravar dois discos em seu próprio nome: “Spring Sequence”, espécie de álbum conceitual em que todas as músicas têm a ver com a primavera, e “Bijou”.

Ambos foram gravados ao longo de 1955, para o pequeno selo Period Records, ligado à gravadora Fantasy, e lançados em cd único pela OJC, sob a denominação de “Bijou”. A ordem das faixas obedece à seqüencia dos discos e a produção ficou a cargo do crítico Leonard Feather. Acompanham o pianista os ótimos Tal Farlow, na guitarra, Osie Johnson, na bateria, e Clyde Lombardi, no contrabaixo.

A abertura fica por conta da lânguida “Spring Sequence”, uma composição do próprio líder. Calma e reflexiva, a canção é uma balada com tinturas eruditas e que lembra a bela “Out of Nowhere”. Burns é um pianista sóbrio, econômico até, e a sua abordagem privilegia as sutilezas da melodia, mais que qualquer outra coisa. Um exemplo disso pode ser ouvido na delicada interpretação de “It Might as Well Be Spring”, com um andamento mais lento que o usual e uma utilização inteligente dos silêncios. Farlow, habitualmente um solista feroz, refreia sua impetuosidade e seu toque extravasa lirismo e refinamento.

Em “Spring Is Here”, clássico da dupla Richard Rodgers e Lorenz Hart, recebe um arranjo despojado, no qual se sobressai o diálogo entre Burns e Farlow, uma inebriante mistura de bom gosto e sensibilidade. Em “Sprang”, composição do líder, o quarteto imprime um andamento acelerado, no qual se destaca a percussão frenética de Johnson e as vibrantes intervenções de Farlow, de incontestável viés bop. Nesse quesito, a performance do pianista é um retrato bem acabado de sua versatilidade, pois mesmo formado na escola do swing, Burns consegue imprimir a seu toque a imprevisibilidade e o desassombro harmônico típicos do bebop.

Em seguida, é a vez da camerística “Echo of Spring”, uma curiosa incursão do lendário Willie “The Lion” Smith – em parceria com Clarence Williams – pela seara da valsa. Construída à base de uma delicada linha melódica e temperada com pitadas de blues, a canção tem uma atmosfera impressionista e sugere que Burns não escapou à influência de compositores como Debussy e Ravel.

“Spring in Naples”, executada sem acompanhamento, e “Gina” são resultantes da temporada que o pianista passou na Itália. Provavelmente inspirado pelas belas paisagens da região de Nápoles, Burns incorporou ao primeiro tema alguns elementos das canções napolitanas. A segunda é uma homenagem à atriz Gina Lollobrigida, que despontava na época como uma das grandes revelações do cinema italiano. Ao contrário da homenageada, sempre esfuziante em suas atuações, a canção é delicada e reflexiva, uma balada que traduz o bom gosto e a sofisticação do autor. Importante perceber que mesmo em um ambiente harmônico bastante sóbrio, Farlow consegue articular frases de maneira instigante e criativa.

Para sepultar qualquer dúvida acerca de sua destreza nos andamentos mais rápidos, Burns inicia uma seqüência de quatro temas rápidos, nos quais swinga com extrema perícia. Em “Autobahn Blues”, de sua autoria, ele trafega com autoridade pelo blues e utiliza com maestria a técnica do stride piano, acrescentando ao tema pitadas de bebop. Em seguida, vem a sacolejante “Lover, Come Back to Me”, standard de autoria de Oscar Hammerstein II e Sigmund Romberg, cuja versão acelerada tem um pé no swing e outro no bebop, especialmente por conta das empolgantes improvisações executadas pelo líder e pelo guitarrista.

Na estonteante “Perpetual Motion”, também composta pelo líder, a sintaxe bop se apresenta em toda a sua plenitude. Harmonias complexas, solos inspirados e uma atuação explosiva de Johnson são as características mais evidentes desta faixa. Por fim, encerrando o álbum em grande estilo, Burns emenda uma cativante versão de “Bijou”, uma de suas composições mais conhecidas. Johnson mantém a pegada robusta e o solo de Farlow é arrebatador, mas o que chama a atenção é a performance energética do líder, que esbanja vitalidade e remete a pianistas de grande vigor físico, como Oscar Peterson ou Erroll Garner. Um álbum que faz jus ao talento desse grande artista, cuja criatividade como arranjador acabou por encaminhá-lo para outros projetos, mas que jamais esqueceu a paixão pelo jazz.

Para o crítico Richard S. Ginell, “essas faixas, a maioria assentada em andamentos relaxados, revelam um homem modesto – de maneira alguma um velocista – e não muito ansioso para swingar (embora ele possa fazê-lo, se quiser), estando mais preocupado com o conteúdo harmônico e com as estruturas complexas, fato que, ocasionalmente, pode encaminhá-lo em direção à chamada lounge music”.

Entre 1958 e 1959 ele volta a realizar gravações como líder, para as gravadoras Decca e MGM, sendo que em algumas delas, se fez acompanhar por sessão de cordas. Em 1965 Burns volta a colaborar com Woody Herman, desta feita para escrever-lhe arranjos vocais. A carreira como compositor e arranjador praticamente obscurece a de pianista e a sua atenção se volta, essencialmente, para trabalhos ligados ao teatro, ao cinema e à televisão. O primeiro contato de Burns com o cinema foi em “Earl Carroll Vanites”, uma comédia musical norte-americana de 1945, dirigida por Joseph Stanley. Ali, fazendo uma participação discreta, ele aparece como pianista da orquestra de Woody Herman.

Ao longo da carreira, ele compôs, arranjou ou elaborou a direção musical para dezenas de peças, filmes, comerciais, documentários e assemelhados. Em 1968 compôs a trilha sonora de “Sweet Charity”, musical dirigido por Bob Fosse e estrelado por Shirley MacLaine, adaptação de uma comédia musical da Broadway homônima, que estreou em janeiro de 1966 e que alcançou 600 apresentações. “Bananas”, dirigido por de Woody Allen, em 1971, teve a sua trilha sonora orquestrada por Burns.

No ano seguinte, compôs o score e fez a supervisão musical do sucesso “Cabaret”, dirigido por Bob Fosse e estrelado por Liza Minelli, trabalho que lhe valeu o Oscar de Melhor Trilha Sonora. Em 1974 fez a direção musical de “Piaf”, longa metragem francês dirigido por Guy Casaril, e elaborou, juntamente com Billy Byers, a orquestração do filme “Mame”, com direção de Gene Sacks. Ainda naquele ano, voltou a trabalhar com Bob Fosse, no longa metragem “Lenny”, que retrata a vida do polêmico comediante Lenny Bruce, com Dustin Hoffman no papel principal. Nesse filme, Burns fez a supervisão da trilha sonora, na qual se destaca uma versão de , feita por Miles Davis.

Em “Lucky Lady”, produção de 1975 dirigida por Stanley Donen, Burns fez a supervisão musical e utilizou os clássicos “Empty Bed Blues” e “Ain’t Misbehavin’”, com, respectivamente, Bessie Smith e Fats Waller. Na comédia “High Anxiety”, em que Mel Brooks satiriza o suspense de Alfred Hitchcok (1977), Ralph fez a orquestração da trilha, composta por John Morris.

O segundo Oscar veio em outro trabalho ao lado de Bob Fosse: “All That Jazz”, de 1979. Além de haver composto os temas, Ralph arranjou e conduziu a trilha sonora. Em “First Family”, de 1980 (direção de Buck Henry), Burns adaptou e dirigiu a musica original do grande compositor norte-americano John Philip Souza. No mesmo ano, compôs a trilha de “Urban Cowboy”, dirigido por James Bridges e estrelado por John Travolta, então na crista da onda por conta do sucesso de “Os embalos de sábado à noite”.

“Annie”, de 1981, marca o encontro de Burns com o legendário diretor John Houston. O filme foi baseado em “Little Orphan Annie”, um grande sucesso da Broadway contabilizou 2.377 apresentações no “Alvin Theatre”, iniciadas em 21 de abril de 1977 e encerradas em 02 de janeiro de 1983, com música de Charles Strouse e letras de Martin Charnin. No longa metragem, Ralph elaborou os arranjos e conduziu a trilha sonora, o que lhe rendeu mais uma indicação ao Oscar.

Um dos seus derradeiros trabalhos na área do jazz ocorreu em 1977, com a supervisão musical e a orquestração no clássico “New York, New York”, de Martin Scorsese, estrelado por Robert De Niro e Liza Minnelli. O filme fez grande sucesso de crítica e público e o score foi composto por Burns, juntamente com Fred Ebb e John Kander. Vinte anos depois, ele retornaria brevemente ao jazz, no filme “Midnight In the Garden Of Good And Evil”, longa metragem norte-americano de 1997, com direção de Clint Eastwood e trilha sonora de Lennie Niehaus, para a qual escreveu o arranjo de "Early Autumn" .

Burns também foi o autor ou colaborador de temas e trilhas sonoras para a televisão, destacando-se “Make Me An Offer” (1980 para a televisão), “Golden Gate” (1981), “Pennies From Heaven” (1981), “Side Show” (1981), “Kiss Me Goodbye” (1982), “Lights, Camera, Annie!” (1982), “My Favorite Year” (1982), “The Phantom Of The Opera“ (1983 para a televisão), “Vacation”(1983), “Ernie Kovacs: Between the Laughter” (1984), “The Christmas Star” (1986), “Penalty Phase” (1986), “After the Promise” (1987) e “Sweet Bird of Youth”  (1989). No cinema, destacam-se seus trabalhos nos filmes “Star 80” (1983) “The Muppets Take Manhattan” (1984), “Moving Violations” (1985), “Perfect” (1985), “In the Mood” (1987), “All Dogs Go to Heaven” (1989) e “Bert Rigby, You're a Fool” (1989).

Ao longo da carreira, Ralph recebeu inúmeros prêmios, sendo dos poucos artistas a receber o Oscar, o Emmy e o Tonny, concedidos, respectivamente, por seus trabalhos no cinema, TV e teatro. Todavia, a galeria de premiações poderia ter sido ainda maior, se não fosse o preconceito que teve que enfrentar por conta de sua homossexualidade. O próprio Burns, em uma entrevista para o crítico James Gavin (publicada no artigo “Homophobia In Jazz”, Jazz Times, 2001), afirmou que escondia sua orientação sexual por temer o preconceito que permeava o mundo do jazz.

Ralph faleceu no dia 21 de novembro de 2001, em Los Angeles, Califórnia, em decorrência de uma pneumonia. Para o jornalista britânico Steve Voce, “Burns se manteve bastante ocupado durante os últimos 60 anos. Para que se tenha uma idéia de seu apego ao trabalho, quando ele morreu foram encontrados os manuscritos para um musical em sua mesa. Suas habilidades eram dirigidas à composição de câmara, ao jazz e a manter viva a memória daqueles que realizaram o “Great American Songbook”. Ele foi incomparável, e a natureza atemporal de sua obra vai garantir-lhe a eternidade, juntamente com Ellington e Strayhorn, a quem ele tanto admirava”.

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segunda-feira, 24 de outubro de 2011

O PROFESSOR ALOPRADO



O saxofonista alto, flautista, compositor e arranjador Frank Strozier nasceu em Memphis, estado do Tennessee, no dia 13 de junho de 1937. Filho de um professor de piano, este foi o seu primeiro instrumento, e as lições lhe foram ministradas ainda na infância. Quando tinha 13 anos, descobriu o sax alto e apaixonou-se pelo instrumento. Charlie Parker e Lee Konitz seriam suas influências mais visíveis, mas ao longo dos anos ale acrescentaria elementos de Jackie McLean e Ornette Coleman em sua maneira de tocar.

Ouvinte atento do jazz e do blues, Frank vivia em uma cidade extremamente musical. Na escola, teve como colegas futuros músicos de ponta, entre os quais Harold Mabern, Hank Crawford, George Joyner (que adotaria o nome de Jamil Nasser após se converter ao islamismo), Louis Smith, George Coleman, Booker Little e os irmãos Phineas e Calvin Newborn – os garotos gostavam de se denominar “A Máfia de Memphis”.

O cenário jazzístico da cidade gravitaria em torno desses jovens talentosos e, no futuro, Strozier desenvolveria diversos projetos musicais com quase todos eles, nas mais diversas formações e contextos. Como curiosidade, a primeira vez em que o precoce Frank entrou em um estúdio de gravação foi em 1952, quando tinha apenas 15 anos. Tratava-se de um EP com cinco músicas do cantor de blues Houston Stokes, gravado em Memphis, nos lendários estúdios da Sun Records, e que atualmente se encontra fora de catálogo.

Frank concluiu o ensino médio em 1952 e se mudou para Chicago em 1954, matriculando-se no “Chicago Conservatory Of Music”. Ali, estudou clarinete e se graduou em 1958. Ao mesmo tempo em que levava adiante os estudos, tocou por breves momentos nos grupos de Bill Leen, Edward “Bunky” Redding e Bob Cranshaw. Ainda em Chicago, Strozier ingressou no grupo “MTJ + 3”, liderado pelo baterista Walter Perkins e pelo baixista Bob Cranshaw (daí o nome Modern Jazz Two), onde também atuavam seu conterrâneo e amigo Harold Mabern e o trompetista Willie Thomas.

Durante seu período com o “MTJ + 3”, que perdurou de 1957 até 1960, Strozier marcou presença, como sideman, em algumas gravações para os selos Blue Note, Vee Jay e Riverside, tendo participado de sessões sob a liderança de Booker Little, Johnny Griffin e Wayne Shorter. Frank também criou seu próprio grupo, mas não obteve maior reconhecimento.

Em 1958, quando ainda morava em Chicago, Strozier realizou algumas gravações, com produção de Max Roach, para a Mercury, mas o álbum não chegou a ser lançado. A banda incluía Billy Wallace no piano, Bill Lee no contrabaixo e Vernel Fournier na bateria. A Chicago do fim dos anos 50 era o território de monstros como Von Freeman, Johnny Griffin, John Gilmore, Gene Ammons, Clifford Jordan, John Jenkins e Eddie Harris. O ambiente musical era, portanto, dos mais competitivos e desafiadores para um jovem saxofonista, mas Strozier não estava satisfeito com a pouca visibilidade do seu trabalho. Além disso, o fato de haver gravado um álbum inteiro que não chegou a ser lançado deixou-0 bastante desiludido.

Esses fatores acabaram por influenciar sua decisão de se mudar para Nova Iorque, em 1960. Na Grande Maçã, ele trabalharia algum tempo como “freelancer”, tocando com Lee Morgan, Sam Jones, Joe Zawinul, McCoy Tyner, Booker Erwin e George Coleman. Além disso, pode realizar o sonho de, finalmente, ver suas gravações como líder lançadas em disco, pois naquele ano, o saxofonista lançaria dois álbuns: “Fantastic Frank Strozier” e “Cool Calm And Collected”, ambos para a Vee Jay.

O título, “Fantastic Frank Strozier”, não é mera figura de retórica. Ouvindo esse ótimo disco, não há como contestar as palavras do crítico Ralph Gleason, ao ouvir pela primeira vez o então jovem saxofonista: “nós ainda vamos ouvir bastante esse garoto de Memphis”. Para acompanhá-lo, Strozier chamou o trompetista Booker Little e uma sessão rítmica de peso, formada por Wynton Kelly no piano, Paul Chambers no contrabaixo e Jimmy Cobb na bateria. As gravações foram feitas 09 de dezembro de 1959 e 02 de fevereiro de 1960.

Wynton Kelly contribui com “W. K. Blues”, que abre o disco com uma pegada furiosa. Executada em tempo médio e com uma empolgante sucessão de riffs, a faixa tem como grande atrativo o duelo entre o sax alto e o trompete. Ambos são rápidos, vigorosos e energéticos – dois dos mais dignos herdeiros da tradição bop – e há ecos de Charlie Parker e Clifford Brown na sonoridade de Strozier e Little, respectivamente.

A temperatura permanece elevada em “A Starling's Theme”, de autoria do líder. Solidamente arrimado no hard bop, o tema apresenta ótimas atuações de Chambers, cuja maestria com o arco o coloca em uma posição única entre os baixistas de jazz, e Kelly. Os momentos mais marcantes, todavia, são protagonizados por Strozier e pelo endiabrado Little, cujos solos não apenas refletem um absoluto domínio técnico dos seus instrumentos como apontam caminhos novos para a linguagem jazzística.

Mais um tema de Strozier, “I Don't Know” é um blues com alguns elementos de soul e funk, com uma batida bastante parecida com a imortalizada por Lee Morgan durante os anos 60. Frank tem uma abordagem ácida, estridente, que sugere inconformismo e ousadia. Little é menos radical do ponto de vista estético, mas não menos provocador em sua performance. Kelly se encarrega de assegurar o poderosíssimo groove do quinteto, valendo-se de acordes robustos e de uma sonoridade algo metálica.

“Waltz Of The Demons” possui uma estrutura de valsa, mesclada com inteligência a elementos caros à sintaxe bop. O resultado é um delicioso coquetel sonoro, com amplo destaque para as caudalosas intervenções de Little, autor do tema. A percussão frenética de Cobb e o solo desconcertante de Strozier também merecem uma audição bastante atenta.

“Runnin'” tem um clima monkiano, com direito a andamento pouco ortodoxo, acordes dissonantes e ritmo quebradiço. Composta por Strozier, sua estrutura sinuosa exige dos integrantes do quinteto não apenas perícia técnica, mas grande sensibilidade harmônica e nesse ponto Wynton Kelly é um dos pianistas mais completos da história do jazz. O grupo flerta discretamente com o jazz de vanguarda, e aqui a influência de Parker se materializa com bastante nitidez, sobretudo pela maneira voraz com que Frank ataca o instrumento durante seus solos.

Composição de Leo Diamond e Michael H. Goldsen, “Off Shore” é quase uma balada, com melodia pegajosa e ritmo inebriante. O geralmente impetuoso Strozier cede o lugar a um melodista articulado e fluente. Como uma espécie de contraponto, Little tem um papel bem mais subversivo, do ponto de vista harmônico, lançando frases ágeis e certeiras, que funcionam como labaredas sonoras de enorme volatilidade. Notável perceber a fidalguia de Kelly, que eleva a figura do acompanhante a um novo patamar de dignidade.

“Luck A Deuce” é um blues encorpado, com uma belíssima introdução a cargo de Kelly, Chambers e Cobb. Os sopros soam rascantes, desafiadores, como se houvesse entre Booker e Frank um clima de beligerância no ar – nada mais falso, em se tratando de dois velhos amigos de Mempbhis. Seguindo na vereda do blues, mas de maneira menos ortodoxa, Strozier apresenta a belíssima “Tibbit”, com seus quase dez minutos de entusiasmo, ferocidade e volúpia. O virtuosismo do saxofonista impressiona, tanto pela complexidade técnica de seus solos quanto pelo amplo leque de referências que seu sopro evidencia – podem-se ouvir ecos de Eric Dolphy, John Coltrane e Charlie Parker.

“Just In Time”, de Adolph Green, Betty Comden e Jule Styne, é o único standard presente no disco. A interpretação do quinteto acrescenta alguns elementos do hard bop ao tema, especialmente durante os solos de Strozier e de Little, mas conserva intacta a sua melodia contagiante. A sonoridade opulenta do quinteto deve muito de sua coesão ao trabalho exemplar de Cobb e Chambers – que ainda por cima comete um solo brilhante. Como bônus, o álbum inclui takes alternativos de “Waltz Of The Demons” e “Off Shore”, ambas de altíssimo nível.

Strozier foi contratado pelo baterista Roy Haynes em 1961, permanecendo em seu quarteto pelos próximos dois anos. Em 1962, o saxofonista participou do tributo “Great Jazz Artists Play Compositions Of Bobby Timmons”, gravado para a Riverside Records, ao lado de feras como Nat Adderley, Keter Betts, Ron Carter, Matthew Gee, Louis Hayes, Wes Montgomery, Albert “Tootie” Heath, Julian Priester, Billy Taylor e Clark Terry.

Frank teria uma rápida passagem pelo grupo de Miles Davis, no início de 1963, durante uma temporada de seis semanas no Jazz Workshop, em San Francisco. O saxofonista deve ter se sentido bastante à vontade na banda, pois ali estavam dois de seus mais queridos amigos e parceiros musicais: Harold Mabern no piano, que naquele mesmo ano daria lugar a Herbie Hancock, e George Coleman, que passaria mais tempo com temperamental trompetista, saindo do grupo em 1964, para dar lugar ao genial Wayne Shorter. Ron Carter e Jimmy Cobb completavam o sexteto.

Em 1965, o grande Shelly Manne convenceu Strozier a mudar-se para a Califórnia, a fim de substituir ninguém menos que o espetacular Richie Kamuka. Foram seis anos ao lado do baterista, em centenas de concertos, boa parte deles no Shelly Manne’s Hole, e um sem número de gravações. Durante esse período o saxofonista teve bastante liberdade para se envolver em outros projetos.

Frank participou de inúmeras sessões de gravação, destacando-se as participações em álbuns de Chet Baker, Don Ellis, Nancy Wilson, Carmen McRae, Don Specht e Oliver Nelson. Frank também atuou em trilhas sonoras no cinema e tocou em orquestras e bandas de programas de televisão durante sua longa temporada californiana, mas o espírito inquieto impelia-o para novos desafios.

Assim, em 1971, retornou a Nova Iorque com a cara e a coragem. O cenário jazzístico da época era pouco amistoso e a princípio ele teve que ganhar a vida como professor de ciências em uma escola secundária. Aos poucos, foi retomando a carreira, tocando como “sideman” nas bandas do baterista Keno Duke, do guitarrista Kazumi Watanabe, do pianista Horace Parlan e dos trompetistas Sy Oliver e Woody Shaw.

Strozier também fez parte da “New York Jazz Repertory Company”, orquestra criada pelo trompetista Don Elliot, e na big band de Lew Anderson, ambas dedicadas ao swing e ao jazz tradicional.  Também pode ser ouvido em discos de Sonny Stitt, Steve Allen, Jim Schapperoew, Martin Mull, Stephen Roane, Stafford James e da cantora japonesa Mari Nakamoto.

Outra associação relevante foi com o octeto de seu velho amigo George Coleman, com o qual permaneceu bom período. O reconhecimento pelo trabalho veio antes do previsto e ainda em 1971 ele foi eleito, pela revista Down Beat, como o melhor sax alto daquele ano. Montou um sexteto próprio, com o qual gravou para o selo dinamarquês Steeple Chase, em 1976. O álbum, o elogiado “Remember Me”, traz como novidade a presença da tuba, sob a responsabilidade de Howard Johnson.

O grupo excursionou pela Europa em 1978 e ao retornar aos Estados Unidos, Strozier montou um quarteto com o baterista Louis Hayes, onde marcavam presença o velho camarada Harold Mabern e o baixista Cecil McBee. Com esse quarteto que Strozier passa a ser reconhecido como um autêntico “pós-coltraniano”, técnico, criativo, improvisador brilhante e por vezes genial, marcando essa fase com o álbum “Variety Is The Spice” (Gryphon, 1979), onde suas interpretações dos clássicos “Invitation” e “Stardust” são magníficos exemplos de absoluta maturidade.

Strozier é mais um dos talentosos altoístas surgidos no final dos anos 1950. A princípio, muito ligado ao hard bop, ele é um músico extremamente versátil, capaz de transitar entre o idioma bop e o jazz de vanguarda com igual desenvoltura. Seu fraseado é balançando, fluido e de grande conteúdo emocional, e constrói seus solos com inteligência e articulação. Sua sonoridade é reconhecível aos primeiros acordes e ele sempre foi tido em alta conta por seus pares, especialmente por causa da habilidade para criar idéias constantemente, sem se repetir.

Como muitos outros músicos de sua geração, Strozier jamais obteve maior reconhecimento e sua contribuição dentro do jazz ainda não foi suficientemente aquilatada, mesmo porque é difícil enquadrá-lo em uma escola ou corrente. Sua discografia é pequena, com pouco mais de uma dezena de álbuns, espalhados por selos como Vee Jay, Jazzland, Fantasy, Trident e SteepleChase, sendo que poucos deles estão em catálogo.

O Mestre Pedro Cardoso o considera “um enigmático músico de ‘confluência’, já que seu gosto pelas improvisações e temas com estruturas harmônicas muito bem definidas ligam-no ao bebop, linguagem decididamente ‘parkeriana’, mas, ao mesmo tempo, em seus solos dilata ao máximo cada frase para soar com lirismo (ainda que vigoroso), entremeando-as com frases breves que ultrapassam o hardbop e insinuam experimentações”. 

Frank ainda despertou algum interesse de público e crítica em 1980, ao se apresentar no Town Hall, mas como a carreira como saxofonista não decolou, ele decidiu voltar ao piano, seu primeiro instrumento. Fez alguns shows na região de Westchester, em Nova Iorque, e voltou a lecionar em escolas públicas daquela cidade. Há poucas informações sobre o seu atual paradeiro.

É certo que em meados da década de 80 ele deixou o sax alto, descontente com a pouca repercussão do seu trabalho, para se dedicar ao piano. Montou um trio e recebeu algumas boas críticas, mas não é certo que tenha se mantido em atividade. Mesmo outros músicos tem alguma dificuldade em acompanhar a sua carreira. Em uma entrevista recente, o pianista Ahmad Jamal  se declarou um admirador de suas composições, mas não soube dizer o que  aconteceu a Strozier:

“Ele ainda hoje é professor de biologia, eu acho. Parece que deixou a música, embora ocasionalmente faça apresentações ao piano. Soube que depois de se mudar para Nova Iorque, depois de viver muitos anos na Califórnia e tocar com Shelly Manne, ele ficou enojado com a cena musical. Eu tenho ouvido muitas histórias circulam a esse respeito, de que ele deixou o sax por causa da ausência de mercado – se você pensar bem, não é uma razão tão bizarra, para abandonar o saxofone. Mas a verdade é que Frank sempre quis ser um pianista – ele é um músico brilhante e um grande compositor. Eu gosto de tocar de vez quando um tema seu chamado “Frank's Tune”.”



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terça-feira, 18 de outubro de 2011

UM TROMPETE NO CAFÉ DA MANHÃ



Ernest Harold Bailey é mais um excepcional músico que, apesar do formidável talento, jamais figurou no panteão onde repousam os grandes nomes do jazz. Não obstante, seus fãs formam uma pequena, mas extremamente aguerrida, confraria, para quem a audição dos seus discos é uma experiência litúrgica e fascinante. Dono de uma técnica invejável e versátil como poucos, Bailey é uma espécie de unsung hero, aquela espécie de herói anônimo que apesar de ter realizado grandes feitos, jamais teve sua importância reconhecida.

Benny, como era mais conhecido, nasceu no dia 13 de agosto de 1925, na cidade de Cleveland, Ohio, em uma família onde aflorava a paixão pela música. Seu pai tocava saxofone e a mãe, piano. Este, aliás, foi o primeiro instrumento do pequeno Benny, que começou seus estudos ainda na infância. Após um período dedicado à flauta, ele descobriu o trompete e nunca mais deixou o instrumento.

A educação musical formal foi feita, inicialmente, na East Tech High School, onde fez parte de uma banda chamada Counts of Rhythm, onde também atuavam o contrabaixista Vic MacMillan, que chegou a gravar com Charlie Parker, e o saxofonista e arranjador Willie “Face” Smith, em cujo currículo constam atuações ao lado de Tadd Dameron, Thelonious Monk e John Coltrane. A banda tocava em festas escolares e as gigs eram pagas em cachorro-quente e refrigerante. Bailey recorda: “Nós copiávamos os álbuns de Louis Jordan e tocávamos e bailes”.

Findo o ensino médio, Benny foi estudar no renomado Cleveland Conservatory of Music e também teve aulas com o pianista e compositor George Russell. Já atuando profissionalmente, o trompetista passou, brevemente, pelas bandas de Jay McShann e Bull Moose Jackson. Em 1944, ele e o antigo companheiro Willie Smith foram contratados pelo ator e cantor Scatman Crothers, para atuar em sua orquestra. Com ela, a dupla viajou pelos Estados Unidos de costa a costa, em uma rotina de concertos e gravações que durou alguns anos.

Durante esse período, Bailey participou de uma gig no Majestic Hotel, em Nova Iorque, na qual Tadd Dameron, outro ilustre filho de Cleveland, comandava o piano. Dizzy Gillespie também participava da sessão e ficou impressionado com o talent do jovem trompetista: “Aquilo era diferente de tudo o que eu já havia escutado. Totalmente diferente! No início eu pensei que ele estivesse se perdendo nas notas, mas quanto mais eu ouvia, mais fascinado eu ficava. Fiquei sentado na cadeira, ouvindo o garoto tocar e, realmente, fiquei hipnotizado com o som que ele fazia”.

Em 1948, graças a uma indicação do trombonista William “Shep” Shepherd, outro músico oriundo de Cleveland, Bailey foi chamado para um testa para atuar na big band de Gillespie, que se preparava para excursionar pela Europa. Dizzy, que ainda se lembrava da impressionante performance do jovem alguns anos antes, nem pestanejou e o trompetista foi imediatamente contratado.

O próprio Benny recorda do impacto que a primeira viagem ao Velho Continente teve sobre ele: “Os europeus aceitavam com muita naturalidade a música que nós fazíamos e reconheciam nela algo novo. E nós fomos muito bem recebidos lá, na França, na Suécia, em todos os lugares. Eu adorei aquilo! Adorei as pessoas, o modo de vida delas, tudo. Ali mesmo eu decidi que voltaria à Europa outra vez. Tudo o que eu queria era viver e trabalhar ali”.

De volta aos Estados Unidos, Benny tocou alguns meses com o saxofonista Teddy Edwards, até ser contratado por Lionel Hampton, ainda em 1948. A parceria com o vibrafonista perduraria cinco anos e durante esse período, Bailey se firmaria como um dos principais solistas da orquestra de Hampton, a bordo da qual o trompetista voltou outras vezes à Europa.

Em uma desses ocasiões, em 1951, ele executou um solo tão primoroso em “Cool Train” (composição do pareceiro Willie “Face” Smith, que também fazia parte da big band de Hampton) que deixou impressionado o jovem trompetista Quincy Jones, outro membro da orquestra. Inspirado pela performance, Jones compôs “Meet Benny Bailey”, que se tornaria um verdadeiro standard do jazz.

Em 1953, Benny resolveu deixar Hampton, que novamente estava em turnê pela Europa, e se fixou na Suécia. Ali, fez parte da Swedish Radio Big Band, sob a liderança de Harry Arnold, e tocou com outros músicos norte-americanos então estabelecidos ou de passagem pelo continente europeu, como Stan Getz, Randy Weston, Benny Golson, Count Basie, Phineas Newborn, Ernestine Anderson, Quincy Jones e outros. Quando Quincy Jones montou a sua própria big band, não hesitou em convocar o antigo parceiro para assumer um dos trompetes.

Benny retornou aos Estados Unidos por um curto período, no final de 1960, para uma excursão com a orquestra de Quincy. Na ocasião, aproveitou para gravar o elogiado “Big Brass” para a Candid, liderando um hepteto onde pontuavam Phil Woods, Julius Watkins, Les Spann, Tommy Flanagan, Buddy Catlett e Art Taylor. As gravações do disco ocorreram em novembro daquele ano.

Entre janeiro e fevereiro de 1961 e com uma formação parecida – Osie Johnson substituiu Art Taylor nas baquetas e Spann não participa, dando lugar aos formidáveis Curtis Fuller, no trombone, e Sahib Shihab, no saxofone barítono – Bailey participou do álbum “Rights of Swing”, também para a Candid, desta feita sob a liderança de Woods.

Logo após essa gravação, o trompetista retornou à Europa, agora se estabelecendo na Alemanha. Um de seus primeiros trabalhos ali foi ao lado do inclassificável Eric Dolphy, no álbum “In Europe”, gravado ainda em 1961 para o selo Debut, de Charles Mingus. Em seguida, Benny se juntou à Kenny Clarke-Francy Boland Big Band, com a qual manteria uma prolífica associação até 1973.

Benny pode ser ouvido no poderoso “Soul Eyes: Jazz Live At The Domicile, Minich”, gravado ao vivo no Domicile Club, em Munique, em 1968, e lançado pela Saba, ligada à gravadora MPS. Esse álbum é considerado um verdadeiro clássico e um dos pontos altos de sua discografia. Aqui, ele está acompanhado pelo saxofonista Nathan Davis, pelo pianista Mal Waldron, pelo contrabaixista Jimmy Woode, pelo baterista Makaya Ntshoko e pelo percussionista Charly Campbell.

Em 1969, Bailey participou do disco que lhe deu a maior visibilidade perante as novas gerações. Aos quarenta e quatro anos, ele brilha intensamente no álbum “Swiss Movement” (Atlantic), sob a liderança da dupla Eddie Harris e Les McCann. Gravado ao vivo durante a edição daquele ano do Festival de Montreux, o disco teve vendagens bastante significativas e é considerado um verdadeiro clássico do soul jazz. Naquele mesmo ano, o trompetista foi incorporado à Duke Ellington Orchestra, que se encontrava na Europa para uma turnê comemorativa dos 70º aniversário do bandleader.

Os anos 70 foram recheados de novas oportunidades profissionais. Tuou ao lado de Sarah Vaughan, Sam Jones, Betty Carter, Charlie Rouse, Red Mitchell e Dexter Gordon, com quem chegou a co-liderar um quinteto. Também se apresentou em festivais como Pori, Molde, Montreal, Praga e Antibes. Em 1975, ele tocou novamente em Montreux, juntamente com Gerry Mulligan e com o quinteto de Charles Mingus. A apresentação, que inclui versões de “Take the A Train” e “Goodbye Pork Pie Hat”, está disponível em DVD (“Live in Montreux: 1975”).

Bailey também foi membro da Concert Jazz Band, sob o comando do pianista George Gruntz, por onde passaram craques como Herb Geller, Dusko Gojkovitch, Jerry Dodgion, Woody Shaw, Jimmy Knepper, Joe Farrell, Sahib Shihab, Lew Tabackin, Dom Um Romão, Daniel Humair e Niels-Henning Orsted Pedersen. No final da década, seu parceiro mais freqüente foi o saxofonista Sal Nistico, outro expatriado norte-americano que adotou a Europa como lar.

Na década seguinte, Benny continuou a trabalhar com big bands, formação em que se sente bastante à vontade. O trompetista voltou aos stados Unidos em 1980, fixando-se em Nova Iorque, onde fundou a Upper Manhattan Jazz Society, juntamente com o saxofonista Charlie Rouse. Ele também fez parte do quinteto do pianista Mal Waldron, mas em 1983 decidiu retornar à Europa.

No ano seguinte, ele excursionou pela Europa com a Paris Reunion Band, juntamente com ases como o saxofonista Joe Henderson, o trombonista Grachan Moncur III e o também trompetista Woody Shaw. Já estava, então, estabelecido em Amsterdã, na Holanda, e firmemente engajado no cenário jazzístico da cidade, tocando regularmente com a Conexion Latina, uma banda especializada nos ritmos afro-cubanos, especialmente e salsa e o calipso.

Após quase três décadas sem se apresentar em sua cidade natal, Benny retornou a Cleveland para tocar na edição de 1992 do Tri-C JazzFest. Na oportunidade, o músico foi homenageado pela Câmara de Vereadores da cidade e sua presença mereceu destaque nos jornais locais. Em uma entrevista, confirmou uma história narrada por seu amigo Willie “Face” Smith, de que a primeira coisa que fazia, log ao acordar, era praticar ao trompete: “É verdade. Eu ainda faço isso todos os dias. Antes mesmo de tomar o café da manhã eu tenho que tocar o meu set matinal”.

A discografia de Bailey, como líder, é relativamente pequena. Seus discos foram quase todos lançados por pequenos selos europeus, como Storyville, Sonet, Metronome, SteepleChase, Saba, Freedom, Enja, MPS, Ego, Kick Music, Hot House e Gemini. Em janeiro de 1996, o trompetista entrou no Loft Studio, em Colônia, para gravar o ótimo “I Thought About You”, para o selo alemão Laika Records. Ele estava acompanhado do pianista Frank Wunsch, do baixista Fritz Krisse e do baterista Clarence Becton. O vocalista Wayne Bartlett faz uma participação especial, cantando em duas faixas.

O disco abre com uma ensolarada versão de “Yardbird Suite”, de Charlie Parker. O trompete assurdinado de Bailey faz a abertura em tempo lento, mas à medida em que os outros instrumentos vão se agregando a temperatura aumenta e o resultado é contagiante. Sua execução é sóbria, sem pirotecnias ou floreios, e mesmo seus solos mais intensos e febris jamais perdem a elegância. Wunsch possui uma pegada bastante afinada com o blues e a bateria de Becton é swingante, colorida e altamente melódica. Impõe-se registrar o soberbo trabalho de Krisse e seu solo abrasador.

“I Got It Bad (And That Ain't Good)”, de autoria de Duke Ellington e Paul Francis Webster, merece uma interpretação das mais refinadas, com amplo destaque para a exuberância vocal de Bartlett. Afinado e dono de uma técnica assombrosa, seu timbre grave de barítono consegue ser, a um só tempo, viril e acolhedor, sendo impossível não lembrar do espetacular Johnny Hartman. Grandes atuações de Becton e do líder, que se revela um excepcional intérprete de baladas.

“This One For Trunk” é uma composição de Krisse, feita em homenagem ao contrabaixista alemão Peter Trunk, falecido em 1973. O autor do tema brilha intensamente, realizando evoluções harmônicas com muita precisão e criatividade. O instigante Wunsch também tem uma ótima participação, extraindo do piano uma sonoridade límpida e essencialmente calcada nos aspectos contemporâneos do seu instrumento.

Um arranjo dançante e relaxado traz a lume toda a graça de “Don't Get Around Much Anymore”, uma das mais preciosas composições de Ellington, desta feita em parceria com Bob Russell. Mais uma vez a voz melodiosa de Bartlett merece todos os elogios, em uma performance de extremo bom gosto. O empolgante solo de Bailey, trazendo inflexões típicas da Era do Swing em suas frases, é outro ponto alto desta faixa.

“Prelude to a Kiss” é o terceiro tema de Ellington presente no disco e foi composta a seis mãos, juntamente com Irving Gordon e Irving Mills. A versão do quarteto é intimista, quase sombria. Bailey faz um uso parcimonioso das notas e transmite enorme emotividade em seu sopro, lembrando as apaixonantes interpretações de Chet Baker. O piano minimalista de Wunsch e a percussão recatada de Becton merecem ser ouvidos com toda atenção.

“North Star Street” é uma comovente balada de autoria de Bailey. A belíssima abertura fica a cargo de Wunsch e logo em seguida contrabaixo e bateria se juntam ao piano, pavimentando a entrada para a espetacular entrada do trompetista. Usando a surdina com maestria, Benny destila sofisticação e lirismo, e seu timbre se mantém aveludado mesmo nos registros mais agudos. A destacar também a delicadeza com que Krisse manuseia seu contrabaixo.

“I Thought About You”, bela composição de Johnny Mercer e James Van Heusen, foi gravada por quase todos os grandes nomes do jazz, de Frank Sinatra a Shirley Horn, passando por Coleman Hawkins, Miles Davis, Keith Jarrett e Ray Brown. A releitura feita pelo quarteto é irreverente, com direito a uma abordagem pouco ortodoxa, especialmente por parte de Wundsch, cuja atuação é nada menos que magistral. Todos os músicos executam solos longos e muito bem concatenados, com destaque para o líder e seu indefectível trompete com surdina.

O disco encerra com a esfuziante “Eukalypso”, composta por Wunsch e fortemente calcada nos ritmos afro-caribenhos, embora em diversas passagens a performance do quarteto esteja em sintonia com o hard bop vigoroso de um Horace Silver ou um Art Blakey. O líder demonstra muita personalidade e disposição e ao ouvi-lo é impossível não lembrar das palavras do crítico Richard Cook, para quem Bailey era “um solista esperto, um bopper rápido e ágil, cujos solos eram sempre construídos a partir de longas linhas melódicas”.

Benny já havia ultrapassado a casa dos 70 anos quando gravou esse disco, mas a idade jamais comprometeu a força do seu toque e nem arrefeceu o seu entusiasmo. Um álbum cheio de predicados, feito por um artista que, mesmo na maturidade, ainda tocava com o ímpeto e a voracidade de um garoto.

Bailey se manteve em atividade regular ao longo de toda a década de 90 e nos primeiros anos do novo século. Em 2000 gravou um álbum tributo a Louis Armstrong intitulado “The Satchmo Legacy”, para a Enja, secundado por uma sessão rítmica estelar: John Bunch no piano, Bucky Pizzarelli na guitarra, Jay Leonhart no contrabaixo e Grady Tate na bateria. Sua última gravação como líder foi “I Remember Love”, feita em janeiro de 2003 para a Laika Records, tendo como parceiros o pianista Kirk Lightsey e a Petrasek Epoque String Orchestra.

O trompetista foi encontrado morto em seu modesto apartamento, em Amsterdã, no dia 14 de abril de 2005. Estima-se que ele tenha morrido cerca de uma semana antes. Seu corpo foi levado para o necrotério municipal e a família só soube do ocorrido vinte dias depois. Duas de suas irmãs viajaram para a Holanda, a fim de fazer o reconhecimento do corpo, e depois de ultrapassados os procedimentos burocráticos ele foi, finalmente, cremado no Westgaarde Crematory, no dia 10 de maio.

Benny estava escalado para a edição daquele ano do North Sea Jazz Festival, onde tocaria no dia 08 de julho. Em virtude do seu falecimento, os organizadores do festival realizaram um concerto denominado “Tribute to Benny Bailey”, onde atuaram os músicos do seu último quarteto – Rob van Bavel no piano, Frans van Geest no contrabaixo e John Engels na bateria – e convidados como os trompetistas Joe Wilder e Ack van Rooyen e o saxofonista Ferdinand Povel.

Ao saber da morte do velho amigo, Quincy Jones declarou: “Benny era uma das pessoas mais cativantes que eu conheci. Para mim, ele e Dizzy eram os maiores trompetistas de todos os tempos. Ele tinha um formidável controle da respiração, um alcance sonoro notável e a técnica mais refinada que eu já ouvi em um trompete. Vou sentir saudades de você, Benny”.



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quinta-feira, 13 de outubro de 2011

O DOM DA UBIQÜIDADE



Ubiqüidade, segundo consta dos dicionários, é a capacidade de estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Também chamada de onipresença, ela é uma qualidade perfeitamente associável ao fabuloso pianista, compositor e arranjador John Josephus Hicks Jr., um dos mais talentosos, inventivos e tecnicamente bem dotados de toda a história do jazz. Ao longo de seus mais de 40 anos de carreira, ele faz parte daquele seleto grupo que, como Milt Hinton ou Hank Jones, pode se orgulhar de “ter tocado com todo mundo”.

E quando se fala em “todo mundo”, é todo mundo mesmo! A relação de músicos com quem atuou, seja como líder, seja como acompanhante, é quilométrica: Art Blakey, Hank Mobley, Lucky Thompson, Lee Morgan, Booker Ervin, Woody Herman, Charles Toliver, Sonny Fortune, Betty Carter, Chico Freeman, Arthur Blythe, Pharoah Sanders, Ricky Ford, James Spaulding, Art Davis, Paquito d'Rivera, Idris Muhammad, David Murray, Kenny Barron, Roy Hargrove, Gary Bartz, Al Grey, Frank Wess, Louis Hayes, Buster Williams, Grant Green, George Mraz, Johnny Griffin, Kenny Dorham, Lou Donaldson, Woody Shaw, Jay McShann, Sonny Rollins, Carmen McRae, Freddie Hubbard, Frank Foster, Roy Haynes, Sonny Stitt, James Moody, Archie Shepp, Dinah Washington, Eric Alexander, Elvin Jones, Cecil McBee, Richard Davis, Joe Lovano, Curtis Lundy, Larry Coryell, Harold Ashby, Lester Bowie, David “Fathead” Newman, Frank Morgan, Russell Malone, Joshua Redman, Clark Terry, Ron Carter, Grady Tate e uma infinidade de outros grandes nomes.

Hicks nasceu em Atlanta, na Geórgia, no dia 21 de dezembro de 1941, sendo o mais velho de uma família de cinco irmãos. Seu pai, o reverendo John J. Hicks e sua mãe, Pollie Louise Bledsoe, se mudaram para Los Angeles em meados da década de quarenta, em busca de melhores condições de vida e trabalho e, também, para escapar da vergonhosa política segregacionista que vigorava nos estados do sul.

A mãe de Hicks era pianista amadora e foi com ela que o garoto, ainda na infância, travou o primeiro contato com o instrumento. Fã de jazz, Hicks Sr., que também era profundamente engajado na luta pelos direitos civis, costumava levar o filho para assistir aos concertos dos grandes nomes do jazz que se apresentavam em Los Angeles e foi assim que o garoto pôde ver, ao vivo, as orquestras de Count Basie e Duke Ellington. Em 1953, quando tinha apenas 12 anos, Hicks assistiu a uma apresentação de Art Tatum. A experiência foi uma das mais marcantes em sua vida e decisiva em sua opção de seguir a carreira musical.

Em 1956, quando tinha apenas 15 anos, John se mudou novamente com a família, desta feita para Saint Louis, no estado do Missouri, onde seu pai assumiu a liderança da Union Memorial Methodist Church. Naquela cidade, continuou os estudos musicais e participava ativamente das orquestras e bandas da escola, além de tocar piano nos cultos da igreja comandada por seu pai. Um dos seus melhores amigos daquela época era o jovem Lester Bowie, que mais tarde causaria furor no mundo do jazz de vanguarda, como um dos líderes do Art Ensemble of Chicago.

Concluído o ensino médio, John foi estudar administração na Lincoln University, em Chester County, Pensilvânia. Ele tinha começado a tocar profissionalmente em clubes da região de Saint Louis e já havia adicionado Thelonious Monk e Bud Powell a seu extenso rol de influências, que incluía ainda o próprio Art Tatum, Count Basie e Fats Waller. Por outro lado, o curso de administração se revelou uma experiência frustrante, pois tudo o que Hicks queria era se dedicar à música em caráter integral. Assim, ele se mudou para Boston em 1959, a fim de estudar na prestigiosa Berklee School of Music, onde se graduou em 1962.

Em Boston, o pianista logo atraiu a atanção de grandes nomes do blues e do jazz, tendo excursionado com Little Milton, Albert King, Al Grey, Pharaoh Sanders e Johnny Griffin. Por seu turno, figures de primeira linha como Clark Terry, Miles Davis e Oliver Nelson, que já conheciam Hicks de Saint Louis, o convenceram a tentar a sorte em Nova Iorque, para onde ele se mudou em 1963. Não demorou muito e Hicks estava completamente adaptado à cidade, tocando nas bandas de craques como Kenny Dorham, Lou Donaldson, Johnny Griffin e Joe Henderson. Também excursionou com as cantoras Big Maybelle e Della Reese.

Em 1964, Cedar Walton desligou-se dos Jazz Messengers de Art Blakey, e sugeriu ao baterista que contratasse Hicks para o seu lugar. O pianista fez parte de uma formação que incluía o trombonista Curtis Fuller, o saxofonista John Gilmore e o trompetista Lee Morgan, que naquela ocasião fazia um breve retorno à banda que, seis anos antes, o havia projetado ao estrelato. O trabalho de Hicks com os Messengers pode ser conferido nos ótimos álbuns “’S Make It”, no qual ele divide o piano com o talentoso Victor Sproles, e “Soul Finger”, ambos lançados pela Verve em 1965.

O pianista deu continuidade à educação musical formal, desta feita na Julliard School of Music, onde estudou arranjo e composição. Em 1966 desligou-se dos Messengers, para se unir à cantora Betty Carter, assumindo, além do piano, a direção musical da banda. A parceria encerrou-se em 1968, mas os dois voltariam a trabalhar juntos de 1975 a 1980. Hicks também trabalhou na orquestra do bandleader Woody Herman, onde permaneceu de 1968 a 1970, tendo assumido também a elaboração dos arranjos.

A partir daí, priorizou a formação dos seus próprios pequenos grupos, como o Keystone Trio, seu projeto mais constante entre os anos 80 e 90, no qual se fazia acompanhar do baixista George Mraz e do baterista Idris Muhammad, e o Power Trio, montado no início dos anos 90, com o baixista Cecil McBee e o baterista Elvin Jones. Hicks foi também um dos mais regulares membros da Mingus Dinasty, orquestra criada e liderada pelo baterista Danny Richmond, cuja proposta é manter viva a obra composicional do fabuloso Charles Mingus.

Como muitos músicos de sua geração, Hicks não ficou imune à gigantesca influência de John Coltrane. Segundo o pianista, “há uma ou talvez duas gerações de músicos extremamente influenciados por Trane. E isso não apenas do ponto de vista musical, mas espiritual também. Trane é o nosso Charlie Parker e o seu senso de comprometimento com a música é uma inspiração sempre presente”.

Em 1978 ele gravou para a Charly Records o seu primeiro álbum como líder, “Hells Bells”. Em seguida, viriam dezenas de outros discos em seu próprio nome, para selos como Evidence, DIW, Novus, Red Baron, Milestone, Venus, BMG, Concord, Chesky, Savant, Mapleshade, Landmark e outros. Em 1983 conheceu a flautista Elise Wood, com quem desenvolveria uma prolífica parceria musical. O envolvimento dos dois transcendeu as fronteiras da música e eles se casaram em 2001.

No início dos anos 80, Hicks se tornou muito amigo do contrabaixista brasileiro Nico Assumpção, precocemente falecido em 2001, que havia se mudado para Nova Iorque e começava a ter o seu trabalho reconhecido na Big Apple. Quem conta os detalhes é o saxofonista Ion Muniz, que também morou nos Estados Unidos naquele período: “Ele não foi a Nova Iorque para estudar, Nico já era um baixista do primeiro escalão quando chegou lá, não me lembro do ano, mas creio que foi antes de 1981. (...) Em menos de um mês Nico estava realmente tocando com os gigantes do jazz. Eu lembro que o John Hicks passou a chamar o Nico para todas as suas gigs”.

A partir de meados da década seguinte, o pianista passou a integrar o cast da gravadora High Note, por onde lançou alguns dos seus melhores álbuns, destacando-se os elogiados tributos a importantes nomes do piano jazzístico, como Sonny Clark, Mary Lou Williams, Billy Strayhorn e Erroll Garner.

Outro gigante a merecer uma homenagem de Hicks foi Earl Hines, lembrado no espetacular “Fatha’s Day: An Earl Hines Songbook”. Gravado em sessão única, no dia 20 de maio de 2003, em Nova Iorque, o álbum conta com os talentos de Dwayne Dolphin no contrabaixo e de Cecil Brooks III, que também assina a produção executiva, na bateria.

A faixa de abertura é a sacolejante “Rosetta”, um tema de autoria de Hines, em parceria com W. H. Woode. O arranjo é vivaz e o piano do líder passeia com muita autoridade pela tradição do swing, sem esquecer de adicionar ali pitadas certeiras de blues e de bebop. A retaguarda é segura, criativa e bastante entrosada, com destaque para a batida infalível de Brooks.

A balada “Almost Spring”, composta por L. O. Bass, começa como valsa e, aos poucos, vai adquirindo um indiscutível contorno jazzístico. Hicks extravasa o seu precioso senso melódico, construindo passagens de grande beleza, enfatizando os momentos mais dramáticos do tema com uma empolgante utilização dos graves. Nos momentos mais líricos, seu timbre suave prioriza os silêncios, merecendo atenção mais detida a fascinante atuação de Dolphin.

Como nos outros tributos gravados para a High Note, Hicks acrescenta ao repertório composições próprias e “Remembering Earl and Marva” é a primeira delas. Aqui o líder toca sem qualquer acompanhamento, o que permite ao ouvinte absorver todas as características do seu pianismo cheio de nuances e seu domínio da técnica stride, tão em voga nos anos 20 e 30, quando Hines despontou para o mundo do jazz tocando na banda de Louis Armstrong e liderando suas próprias orquestras. Seu toque trafega com naturalidade entre o minimalismo e a opulência, entre o lirismo e a robustez, sem jamais perder o sentido harmônico.

Em “Serenata”, composta por Leroy Anderson, o arranjo sincopado privilegia o aspecto rítimico-percussivo do piano. Há aqui um discretíssimo acento latino e a performance de Brooks revela um músico de enormes recursos e de extrema versatilidade. O standard “Poor Buterfly”, de John Golden e Raymond Hubbell, recebe um arranjo solene, no qual a sensibilidade e a melancolia se misturam em uma fusão de comovente beleza. O trio demonstra uma interação telepática e a interpretação é pura emotividade.

Fazendo a temperatura subir novamente, Hicks e seus comandados entregam uma estonteante versão de “My Monday Date”, mais um tema de autoria de Hines. A exuberância do arranjo, muito bem assentado no blues, permite ao líder que realize uma verdadeira exibição de gala, onde o virtuosismo técnico se coloca a serviço da música e não o contrário. Não há aqui uma competição de velocidade ou a distribuição de acordes em profusão, mas todos três têm a oportunidade de improvisar e o fazem com maestria, mostrando destreza e equilíbrio em seus solos.

A inebriante “Fatha's Bedtime Story” é mais um tema de Hicks e incorpora elementos da música erudita, em especial de Claude Debussy. Mais uma vez atuando solo, o pianista destila a ternura e a suavidade de uma canção de ninar. Composta a seis mãos por Charles Daniels, Gus Arnheim e Harry Tobias, “Sweet And Lovely” retoma a atmosfera swingante, em mais uma interpretação vigorosa do trio, em especial de Brooks, cujo solo é dos mais consistentes.

“Rhythm Run (Uphill)” é um blues arejado, composto e executado apenas por Hicks, que mais uma vez lança mão do stride piano e demonstra um conhecimento enciclopédico das raízes do jazz, com emulações de blues, ragtime e spirituals. De acordo com as informações contidas no release do álbum, a faixa foi composta de improviso, no próprio estúdio, durante uma pausa nas gravações. Enquanto os companheiros saíam para comer alguma coisa, Hicks, que não estava com fome, sentou-se ao piano e improvisou esse tema. Felizmente, o gravador não havia sido desligado e, satisfeitos com o resultado, o pianista e o produtor Brooks acabaram incluindo a composição no disco.

Piano e contrabaixo se unem em “You Can Depend on Me” e o resultado é uma emocionante versão desse clássico de autoria de Charles Carpenter, Earl Hines e Louis Dunlap. O duo constrói uma atmosfera romântica e arrebatadora, com bom gosto, beleza e discrição. Dolphin elabora linhas harmônicas sofisticadas e Hicks, qual Bill Evans, transpira paixão e lirismo incontidos. Com um pé no blues e outro no ragtime, a encantadora “Twelve Bars For Linton” é uma homenagem de Hicks ao irmão de Erroll Garner, o também pianista Linton Garner, falecido em março de 2003, poucos meses antes da gravação deste álbum.

Para encerrar, outra composição de Hicks, a sóbria “Synopsis”. Trata-se de mais um solo de piano – o mais extenso do cd, com mais de seis minutos de duração – no qual o autor faz uma belíssima investigação sobre as origens do blues, usando dissonâncias típicas de um Thelonious Monk. Um disco elegante e refinado, que a cada audição transporta o ouvinte a novas descobertas sonoras, graças às mãos mágicas do pianista. Não é à toa que o crítico Ken Dryden vaticina: “muitos músicos de jazz aprenderiam bastante sobre como fazer um álbum tributo apenas ouvindo esta gema elaborada por John Hicks”.

Durante a sua carreira Hicks tocou em alguns dos mais renomados palcos do planeta, como o Carnegie Hall, o Lincoln Center, o Kennedy Center, o Ronnie Scott's e o Spivey Hall. Marcou presença em festivais como o de Marciac, da Umbria, do Porto, de Montreal, de Loosdrecht, do Estoril e o North Sea. Seu passaporte registra passagens por países de todos os continentes, tendo se apresentado na Holanda, Japão, Austrália, Israel, Alemanha, França, Inglaterra, Polônia, Itália, Panamá, África do Sul, Canadá, Suécia, Noruega, Dinamarca, Taiwan, Portugal e muitos outros.  

Suas habilidades como compositor podem ser observadas em dezenas de temas que deixou gravados, destacando-se “Naima's Love Song”, feita em homenagem à filha, Naima, cujo nome é, por sua vez, uma homenagem à famosa composição de John Coltrane. Hicks também demonstrava especial predileção pelo formado de duo, tendo gravado assim com Ray Drummond (“Two Of A Kind”, Evidence, 1993), Richard Davis (“The Bassist: Homage To Diversity”, Palmetto Records, 2001) e Frank Morgan (“Twogether”, High Note, lançado postumamente em 2010).

No dia 01 de agosto de 1990 apresentou-se no exclusivíssimo Maybeck Recital Hall, para um concerto de piano solo e o resultado pode ser conferido no sétimo volume da prestigiosa série Live at Maybeck, da Concord. Para o crítico Nat Hentoff, Hicks é “um músico de excepcional consistência, enorme integridade e capaz de evoluir continuamente”. O exigente Richard Cook assinala que o pianista é um virtuose que “possui um raro senso de autoridade, que impõe a tudo o que toca a dignidade de um recital”.

Sua versatilidade permitia-lhe ficar à vontade nos mais diversos contextos, indo do blues ao free jazz, passando pelo swing, pelo bebop, pelo hard bop e pelo mainstream jazz, com igual intimidade. É um dos poucos músicos capaz de gravar, com a mesma desenvoltura, tanto com um veterano bluesman como Jay McShann (“The Missouri Connection”, Reservoir, 1993) quanto com artífices do jazz de vanguarda como Pharoah Sanders, Oliver Lake, Arthur Blythe ou Hamiet Bluiett (em diversos álbuns dos quatro).

Para tristeza dos fãs do jazz, Hicks morreu no dia 10 de maio de 2006, em decorrência de uma hemorragia interna. Sua última apresentação foi feita três dias antes, na St. Mark's United Methodist Church, no Harlem, em Nova Iorque, da qual seu pai havia sido ministro. Nos dias 29 de julho e 05 de agosto daquele ano, o falecido pianista foi homenageado pelo amigo Kirk Lightsey, que realizou com dois concertos, durante a edição do Caramoor Jazz Festival. Hicks estava escalado para participar do festival, mas foi abatido pela doença alguns meses antes.

Nos últimos anos, havia enveredado pela educação musical, ministrando cursos e oficinas em instituições como a New York University e a New School. Sobre ele, o amigo e companheiro de palco e estúdios Cecil Brooks III escreveu: “John Hicks era um embaixador da boa vontade, um ser humano generoso e amável. Era alguém que, apesar de todas as suas realizações musicais e do seu majestoso talento, sempre demonstrava grande humildade e possuía a dignidade de um cavalheiro”.


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