Amigos do jazz + bossa

sexta-feira, 31 de julho de 2009

A CASA DO POETA TRÁGICO


33 anos. Uma idade emblemática para a mitologia cristã. Imolação e sacrifício já marcaram a vida e a morte de um outro homem, muitos séculos antes daquele fatídico 19 de fevereiro de 1972. No caso de Lee Morgan, o fato mais intrigante é que ele não morreu por causa das drogas. A muito custo, havia conseguido se livrar do terrível vício da heroína, com o qual convivera por quase metade da sua curta existência. Um único tiro, certeiro como seus solos devastadores, encerrou a vida e a carreira do mais importante trompetista dos anos 60. A autora do disparo foi namorada Helen More e o local do sacrifício foi a porta do clube Slug’s, de Nova Iorque, onde Lee havia acabado de se apresentar.


Um destino tragicamente diferente daquele que o casal Otto e Nettie Morgan sonhou para o adorado filho caçula. O pequeno Edward Lee, nascido em 10 de julho de 1938, aprendeu os rudimentos da música com a irmã mais velha, Ernestine, cantora e organista de uma igreja de sua Filadélfia natal. Foi Ernestine quem lhe deu o primeiro trompete, um reluzente Martin, e o estimulou a freqüentar o curso de música da renomada escola Jules E. Mastbaum, onde estudaram, entre outros, Red Rodney e o fabuloso Buddy DeFranco. Discos, muitos discos, de Charlie Parker, Miles Davis e Dizzy Gillespie, ajudavam a compor o alegre ambiente familiar dos Morgan e a definir o futuro musical do jovem Lee.

Em 1954, teve aulas particulares com o mitológico Clifford Brown, com quem muitas vezes viria a ser comparado. Talentoso e bastante aplicado, Lee também era, nessa época, tremendamente arrogante. É famosa a história da jam em que o experiente Sonny Stitt deu uma lição no abusado trompetista, que teria dito ao lendário altoísta que tocaria a música que ele quisesse. O implacável Stitt tocou Cherokee em um tom extremamente difícil e altamente veloz. Morgan não conseguiu acompanhá-lo e, humilhado, passou vários meses sem aparecer nos clubes da cidade.

Nesse período de recolhimento, Morgan ensaiava com afinco e disciplina, depurando seu estilo e aperfeiçoando o seu fraseado. Em 1956, tocou algum tempo com Art Blakey, que se apresentava em um clube local, mas não obteve autorização da família para acompanhar o célebre baterista até Nova Iorque. Alguns meses mais tarde, Lee realizaria o sonho de qualquer jovem jazzista: foi aprovado em um teste para integrar a orquestra do ídolo Dizzy Gillespie e se tornou o mascote da companhia. O crítico Nat Hentoff sintetizou o efeito que a aparição de Lee causou no mundo do jazz:

“Todo ouvinte jazz teve algumas experiências tão surpreendentes que são, literalmente, inesquecíveis. Uma das minhas teve lugar durante uma temporada da orquestra de Dizzy Gillespie no Birdland, em 1957. Eu estava de costas para o palco, quando a banda começou a tocar “A Night In Tunisia”. De repente, um trompete se destacou na orquestra, com uma execução tão viva e brilhante que todas as conversas cessaram e aqueles de nós que estavam gesticulando ficaram estáticos, com as mãos estendidas a esmo. Após o impacto daquele trovão, eu me virei e vi que o trompetista era um jovem sideman da Filadélfia, chamado Lee Morgan.”

Lee deixou a big band de Dizzy Gillespie em 1958, quando, finalmente, integrou-se aos Jazz Messengers. Paralelamente, iniciaria uma prolífica carreira solo, gravando incessantemente para a Blue Note, não apenas como líder mas também como um dos mais assíduos acompanhantes da companhia fundada por Alfred Lion. Participou de sessões antológicas, ao lado de John Coltrane, Joe Henderson, Jackie McLean, Benny Golson, Art Farmer, Grant Green, Curtis Fuller, Clifford Jordan, Johnny Griffin, Gene Harris, Elvin Jones, Jimmy Smith, Wayne Shorter e Hank Mobley.

A saída dos Jazz Messengers foi traumática. Morgan e Bobby Timmons, o pianista da banda e compositor do seu maior sucesso, “Moanin”, foram sumariamente demitidos pelo patrão Blakey, por conta da completa incapacidade em cumprir suas respectivas obrigações para com o grupo. Corria o ano de 1961 e, poucos meses depois desse episódio Blakey foi atacado por um traficante, na porta do Apollo Theater. Como resultado da agressão, o trompetista perdeu alguns dentes e se exilou em Filadélfia por quase dois anos. De volta à ativa, a feérica “The Sidewinder”, lançada no álbum de mesmo nome em 1963, escancarou-lhe as portas do mercado fonográfico, tendo alcançado um honroso 25º lugar na parada pop e ficado entre os dez mais vendidos da parada de R&B.

Mas o sucesso comercial apenas era o reverso do pesadelo em que Morgan ainda chafurdava, por conta da terrível dependência da heroína. Até o início da década de 70, quando finalmente se livraria do vício, Morgan se submeteria a situações verdadeiramente degradantes, como fugir de restaurantes para não pagar a conta ou de vender nas ruas cópias de seus LP’s, que ele retirava da sede da Blue Note como uma espécie de adiantamento. Muitos anos antes desses episódios lamentáveis, quando ainda era uma promessa de dezenove anos, o trompetista deu ao mundo uma pequena amostra do seu incomensurável talento.

O álbum se chama “Candy”, a gravação ocorreu em duas sessões distintas (dias 18 de novembro de 1957 e 02 de fevereiro de 1958) e os companheiros de jornada eram o pianista Sonny Clark, o baixista Doug Watkins e o incansável Art Taylor na bateria. O repertório é composto basicamente de standards, sendo que alguns merecem versões eletrizantes, como “Who Do You Love, I Hope”, de Irving Berlin, e “All At Once You Love Her”, de Richard Rodgers e Oscar Hammerstein, na qual o trabalho de Watkins é nada menos que exuberante e os solos do líder são de uma complexidade técnica assombrosa.

A saborosa versão da canção-título é um momento sublime. Taylor exibe muito vigor na condução do ritmo e Morgan simplesmente desmonta e reconstrói o standard de Mack David, Alex Kramer e Joan Withney, com direito a solos altamente criativos. Na lânguida “Since I Fell For You”, de Buddy Johnson, o líder disseca todas as possibilidades harmônicas desta balada em forma de blues, onde o piano de Clark se encarrega de criar uma atmosfera doce e sedutora. Como curiosidade, as duas canções foram compostas em 1945.

Hard bop de excelente safra, com muito groove e altamente energético, é o mote da clássica “C. T. A.”, de Jimmy Heath, executada em tempo bastante acelerado, servindo de veículo perfeito para que o prodigioso trompetista de vazão à sua criatividade aparentemente inesgotável. Em mais uma balada irrepreensível, Morgan incorpora o fraseado delicado e lírico de Art Farmer para encantar o ouvinte, a bordo de uma emocionante releitura de “All The Way”, de Jimmy Van Heusen, em uma interpretação que merece o epíteto de “poema sonoro”. A cativante “Personality”, outra gema de Van Heusen, ganha uma roupagem encantadora, e sobre a performance do líder pode-se dizer que é ensolarada como um dia de verão.

Para além de todos os problemas com as drogas e de todos os percalços em sua carreira, Lee Morgan será sempre lembrado com uma das vozes mais originais do trompete, um músico extremamente criativo e um solista capaz de se expressar de maneira alucinante. Expandiu as fronteiras do jazz ao adicionar à sua receita fartas doses de soul, funk, R&B, tornando-o bastante viável do ponto de vista comercial, mas sem abrir mão da qualidade nem render-se a simples modismos.

O tiro disparado por Helen More, aparentemente inconformada pela iminência de perder o companheiro com quem vivera por quase quatro anos e que ajudara a sair do tormentoso pântano das drogas, deixou órfãos inúmeros fãs do mundo inteiro. Essa jornada de paixão, ciúmes e loucura ainda teria mais um capítulo: depois de assassinar Morgan, a tresloucada Helen deu cabo à própria vida. O jazz perdia um dos seus mais talentosos expoentes mas o seu delirante fabulário ganharia um novo mito – mais uma história de tragédia e violência, ódio e desvario, como tantas outras marcam as incontáveis lendas associadas ao jazz.

terça-feira, 28 de julho de 2009

OS EMOCIONANTES ESCRITOS DO LIVRO DA LIBERDADE


Se existe um saxofonista absolutamente inclassificável dentro do universo jazzístico, ele atende pelo singularíssimo nome de Booker Telleferro Ervin II. Nascido em 31 de outubro de 1930, em Denison, Texas, onde deu os primeiros passos na música tocando trombone nas bandas dos colégios onde estudou. De 50 a 53 esteve na aeronáutica, onde trocou o trombone pelo sax tenor. Estudou no prestigioso Berklee College of Music e começou a carreira profissional em 1956, tocando rhythm and blues na banda de Ernie Fields. Associou-se durante algum tempo ao flautista e saxofonista James Clay e perambulou por cidades como Boston, Portland e Pittsburgh, estabelecendo-se, finalmente, em Nova York, no final da década de 50. Ali fez amizade com o pianista Horace Parlan (com quem gravaria o excelente “Up & Down”, em 1961), que o apresentou a Charles Mingus.


Tocou com regularidade na banda de Mingus, participando de alguns dos seus mais relevantes trabalhos, como o “Mingus In Wonderland”, “Blues And Roots”, “Mingus Ah-Um” e “Mingus Dinasty”. Também colaborou com certa assiduidade com o pianista Randy Weston, outro músico bastante heterodoxo em suas abordagens e extremamente influenciado pelas sonoridades africanas. Ao mesmo tempo em que atuava como um prolífico sideman, Booker também dava início a uma das mais originais e relevantes discografias dos anos 60, lançando discos primorosos, sobretudo para a Prestige, embora também tenha gravado para a Blue Note, Candid, Savoy e outros selos.


Apesar de se conservar dentro da tradição texana de saxofonistas viris e de muita força física, como Arnett Cobb, Dewey Redman e Illinois Jacquet, Ervin se difere de seus conterrâneos por suas arrojadas concepções harmônicas e por imprimir ao seu fraseado uma carga de emotividade bastante intensa. Entre 1963 e 1965, Ervin presenteou o mundo com a soberba “Tetralogia Book”, composta dos excepcionais “The Freedom Book”, “The Song Book”, “The Blues Book” e “Space Book”, todos gravados para a Prestige.


Assim como Mingus, Booker tem uma enorme reverência pela tradição da música negra norte-americana, mas faz releituras bastante ousadas do blues, dos spirituals e de outras formas antecedentes ao jazz. Por outro lado, embora seja reconhecido pela crítica como um grande inovador, jamais granjeou o mesmo prestígio que um John Coltrane ou um Eric Dolphy (antigo companheiro nos combos de Mingus).


Gravado em 3 de Dezembro de 1963, nos estúdios Van Gelder, “The Freedom Book” se destaca não só por ser o primeiro como, também, por conta da expressiva quantidade de informações musicais manipuladas por Ervin na construção de sua obra tão pessoal. Tradição e vanguarda interagem e se complementam nesse disco atemporal, de sonoridade áspera e rascante, mas ao mesmo tempo lírica e delicada, daí porque ser o título bastante apropriado ao conteúdo do álbum. Secundando o saxofonista, três músicos que também transitam com bastante intimidade entre as abordagens mais tradicionais e as mais contemporâneas do jazz: o pianista Jaki Byard, o baixista Richard Davis e o baterista Alan Dawson, que compõem uma verdadeira trinca de ases.


A faixa de abertura, “A Lunar Tune”, evoca nosso satélite natural, com seu relevo irregular, fraturado, cheio de saliências e cavidades. Uma composição nada linear do líder, a meio caminho entre o hard bop de um Hank Mobley e o avant-garde de um Ornette Coleman – outro representante nada ortodoxo da escola texana – mas com um pé muito bem assentado no blues. O piano de Byard e o saxofone de Ervin dialogam telepaticamente, criando uma atmosfera ao mesmo tempo opulenta e intimista – um blues do século XXI, composto e executado quase quarenta anos antes.


Perturbadoramente bela, “Cry Me Not” é uma não-balada, uma canção cuja aridez lembra a poesia de João Cabral de Melo Neto, emocionante mas completamente avessa ao sentimentalismo vulgar. A composição de Randy Weston, de um lirismo nada convencional, é dissecada pelo quarteto de modo vigoroso, explorando todas as suas possibilidades harmônicas, com destaque para o insinuante piano de Byard. “Grant’s Stand”, também de autoria de Ervin, possui um formato menos heterodoxo, mas ainda assim causa estranheza. O hipnótico baixo de Davis e a caudalosa bateria de Dawson, eficientíssimos, dão o suporte necessário para viabilizar alguns dos mais belos solos do disco, com o líder fazendo discretas citações às tradições musicais do oriente.


A textura oriental também pode ser percebida em “A Day To Mourn” e “Al’s In”, com suas variações climáticas e citações aos spirituals. São composições que, em muitos momentos, se alinham à corrente free, com os músicos fazendo suas incursões de forma aleatória, mas que jamais se afastam completamente das formas mais tradicionais. Em “Al’s In”, Dawson brilha ao perpetrar um solo genial e o saxofone de Ervin, por vezes, lembra o lamento de um muezim, chamando os fiéis para a mesquita. Essa interlocução aparentemente desarticulada entre os instrumentos, vai-se costurando aos poucos, até que, ao final de cada uma das músicas, percebe-se quão coesa é a banda e quão arrojadas são as suas execuções. Na canção mais ortodoxa do disco – e uma das melhores também – o standard “Stella By Starlight” ganha um brilho novo, inscrevendo-se entre as mais emocionantes versões do clássico de Victor Young e Ned Washington.


Ervin permaneceu entre nós por breves 39 anos. No dia 31 de julho de 1970 ele abandonou a existência física, em decorrência de problemas renais, e ascendeu para tomar seu lugar na grande orquestra celestial. Como testemunho de sua passagem, legou-nos alguns dos textos sonoros mais belos do jazz, escritos no magnânimo idioma da genialidade. Um grande artista, que jamais obteve o reconhecimento merecido, mas cuja obra – bela, consistente, seminal e invulgar – clama por ser descoberta pelos jazzófilos. “The Freedom Book” é, certamente, a melhor porta de entrada para uma prazerosa leitura. Atrevamo-nos!

sexta-feira, 24 de julho de 2009

A FESTA DO MONGE MALUCO


Dificilmente alguém passaria despercebido se seus pais o tivessem batizado com o curioso nome de Thelonious Sphere Monk. Se, além do nome incomum, esta pessoa conjugasse um talento invulgar ao piano, encapsulado em um corpanzil desajeitado, com uma personalidade errática, teríamos então um gênio ou um maluco. Thelonious conseguiu ser as duas coisas e com muita distinção: não apenas foi um dos maiores músicos, compositores e arranjadores do jazz como também foi um dos seus mais folclóricos personagens. Não é à toa que recebeu dos seus pares o apelido de Mad Monk – para isso, o indefectível boné e o cavanhaque algo desgrenhado ajudavam bastante.


Um homem que parecia habitar um universo todo particular, Monk tem assento cativo no Olimpo do jazz. Nas intermináveis noites do Minton’s, ajudou a criar e desenvolver o bebop, ao lado de Bud Powell, Charlie Parker, Dizzy Gilllespie e outros notáveis. Mais que isso, o Sumo Sacerdote do bebop expandiu sobremaneira as possibilidades harmônicas desse revolucionário estilo e sua obra adquiriu tamanha relevância ao fazê-lo, que não é exagero afirmar que o jazz teria outra feição se não tivesse sido retalhado e cosido, desconstruído e refeito, profanado e sacramentado pelas mãos tortuosamente hábeis do monge. A música de Monk é feita de silêncios e de sons, não o contrário.


São muitos os adjetivos a que se recorre quando se fala em Thelonious Monk. Genial, por certo é um dos mais utilizados e, por certo também, um dos mais adequados. Mas há uma infinidade de outros. Enigmático, moderno, excêntrico, destemido, irreverente, hermético, subversivo, complexo e imprevisível são outros termos capazes de adjetivar a sua personalidade ímpar. À sua música, costumam-se atribuir as seguintes qualidades: sofisticada, angulosa, instintiva, assimétrica, apaixonada, transgressora, impermeável, cerebral, exuberante. Palavras que não farão o menor sentido se você nunca tiver escutado a emocionante “Round About Midnight” e a enternecedora “Ruby My Dear”, duas de suas mais sublimes composições.


Pouquíssimos compositores na história do jazz conseguiram construir uma obra tão pessoal e tão bela quanto o Monge. São de sua lavra gemas preciosas como “Well, You Needn’t”, “Epistrophy”, “Straight, No Chaser”, “Bemsha Swing”, “Pannonica”, “Ugly Beauty” e “Criss Cross”. Interessante notar que, embora tenha uma discografia extensa, Monk não compôs nem uma centena de músicas. Seus álbuns se caracterizam por interpretações muito particulares de standards do jazz e da canção americana e por incontáveis releituras da própria obra. Não é à toa que, instado a declinar quem seria a sua maior influência, ele tenha respondido ao atônito jornalista: “Eu, naturalmente”.


Os maiores músicos do jazz pagaram tributo a Monk, seja gravando suas composições em seus álbuns regulares (e aí a quilométrica lista vai de Bud Powell a Keith Jarrett, passando por Bill Evans, Sonny Rollins, John Coltrane, Miles Davis, Tommy Flanagan, Gerry Mulligan, Donald Byrd e uma infinidade de outros), seja dedicando discos inteiros à sua obra, como é o caso de Arthur Blythe, Barry Harris, Fred Hersch, Steve Slagle, Carmen McRae, Ellis Marsalis e seu filho Wynton. Há, ainda, o especialíssimo caso de Steve Lacy, que gravou dezenas de discos apenas com músicas do pianista.


Extremamente prolífico nos estúdios, Monk também possui uma discografia bastante numerosa, destacando-se os antológicos “Brilliant Corners”, “Criss Cross”, “Underground”, “Monk’s Music”, “Plays Duke Ellington” e “Misterioso”. Gravado entre 06 e 08 outubro de 1964 para a Columbia, “Monk” é merece uma atenção toda especial, embora não seja um dos mais incensados trabalhos do pianista. Aqui, ele deixa um pouco de lado o aspecto composicional (apenas três das sete músicas são de sua autoria) e dedica-se a fazer emocionantes releituras de standards da canção americana, sempre à sua maneira bastante pessoal.


O intérprete aqui se sobrepõe ao autor, com um resultado extraordinário. E os acompanhantes são um atrativo à parte – o sensacional Charlie Rouse no sax tenor, Larry Gales no baixo e Ben Riley na bateria, todos velhos companheiros do Monge em seus périplos por estúdios e palcos mundo afora. Tinha tudo para dar certo. E deu!


Uma das maiores qualidades do disco é desmentir com veemência idéia (ridícula) de que Monk seria um grande compositor, mas um pianista de limitados recursos técnicos (é, a mente humana parece ter uma inesgotável capacidade para inventar bizarrices) – argumento contra o qual teve que se debater durante boa parte de sua vida. Tome-se, por exemplo, “I Love You (Sweetheart Of My All Dreams)”, de Irving Berlin. No único solo do álbum, Monk usa e abusa de sua técnica invulgar, concebendo acordes impossíveis e harmonias absurdamente belas, reconstruindo a canção como se fosse sua, sem abandonar a confessa influência do estilo stride piano popularizado por James P. Johnson, uma de suas influências mais visíveis.


O quarteto demonstra uma coesão que somente muitos anos de estrada são capazes de agregar. Em Liza, antiga composição os irmãos Gershwin, a estrutura harmônica é de tal modo subvertida pelos quatro que é difícil acreditar, em algumas passagens, que não se está diante de uma obra de Parker ou de Powell. Detalhe: a música foi composta nos anos 20, décadas antes da invenção do bebop. Tocada com um certo grau de reverência, “April In Paris” é um dos melhores momentos do disco, desde à introdução fabulosa, a cargo de Monk, ate os belíssimos solos cometidos por Rouse e pelo pianista. A bateria de Riley, sutil como o farfalhar das asas de uma borboleta, também merece atenção, ajudando a criar o clima altamente introspectivo que pontua a execução.


“Children’s Song”, uma composição monkiana das menos conhecidas, é uma belíssima colagem de temas infantis, assemelhada às nossas cantigas de roda, com uma aparente simplicidade rítmica e harmônica. Dá vontade de sair por aí assobiando a sua pegajosa melodia! E a bateria de Riley, mais uma vez, funciona como o elemento catalisador entre a percussividade metálica do piano líder e a encantadora doçura do saxofone de Rouse. “Just You, Just Me” é outro clássico da canção americana, ao qual a criatividade do monge se encarrega de imprimir um novo sentido harmônico. O baixo dialoga com muita fluência com os demais instrumentos, que desfilam com extremada segurança, ancorados pelas mãos firmes de Gales.


Na delicada “Pannonica”, dedicada à grande amiga e mecenas, baronesa Pannonica Rothschild de Koenigswarter, emerge o lirismo nada comedido do pianista, com direito a uma execução primorosa de Rouse, que usa o tenor com a mesma elegância de um Paul Desmond no sax alto. A presença do blues – elemento fundamental na formação de Monk – é facilmente perceptível, sobretudo em razão da excelente performance do baixista Larry Gales. Por fim, “Teo” é mais uma homenagem do pianista, desta feita ao produtor Teo Macero. Um bebop dissonante, tipicamente monkiano, cheio de ondulações e variações climáticas, bastante sinuoso e escorregadio, mas sem perder de vista a decantada influência do blues. Um álbum fundamental, capaz de agradar tanto ao neófito quanto aqueles com maior milhagem no maravilhoso universo do Mad Monk.

O excêntrico pianista, abatido por sucessivas enfermidades físicas e mentais, abandonou os estúdios no início dos anos 70. Ainda fez alguns esparsos concertos dentro do projeto Giants Of Jazz, ao lado de Dizzy Gillespie, Al McKibbon e outros, mas em seguida deixou a música de maneira definitiva. Isolou-se da família e dos poucos amigos e recolheu-se à casa da sua fiel protetora Nica de Koenigswarter, em Nova Jersey, onde passaria os últimos anos de vida. O monge faleceu em 17 de fevereiro de 1982 e já de há muito não falava com ninguém. Não precisava. Sua música foi o veículo mais que perfeito para que ele – célebre pelo comportamento arredio e pela aversão às palavras – dissesse tudo o que precisava ser dito.

terça-feira, 21 de julho de 2009

UM CAIXEIRO VIAJANTE A SERVIÇO DO IMPROVISO


De 1920 até 1933, o governo dos Estados Unidos impôs aos seus cidadãos a mais estúpida e ineficiente política de controle de substâncias entorpecentes de todos os tempos. A chamada “Lei Seca”, criada com pompa e circunstância em 16 de janeiro de 1920, por meio da Emenda Constitucional nº 18, proibia a fabricação, o comércio e o transporte de bebidas alcoólicas em todo o território estadunidense. De matriz extremamente conservadora, essa medida redundou em um fracasso retumbante, ocasionando a desmoralização quase total da polícia e do poder judiciário, ante o alto grau de corrupção que o mercado negro de bebidas estimulava.


As principais metrópoles americanas, como Chicago, Los Angeles e Nova York, viraram feudos do crime organizado, que empanturrava seus cofres graças ao contrabando de álcool. Boates, clubes e casas noturnas pagavam fortunas à máfia para manter elevados os seus estoques de Bourbon. Os speakeasies (bares clandestinos, geralmente situados no subsolo, onde se costumava falar baixo, para não atrair a atenção da polícia) floresciam. A fabricação clandestina de fundo de quintal, responsável por lançar no mercado produtos de péssima qualidade, também fez lá as suas vítimas – talvez a mais célebre delas tenha sido Bix Beiderbecke – durante os loucos anos 20, período que mereceu de Scott Fitzgerald o inesquecível apelido de “A Era do Jazz”.


Al Capone reinava absoluto na Chicago dos anos 20. Construiu, à base de generosas rajadas de metralhadora Thompson, um verdadeiro império do crime, com um portfólio que ia do contrabando de bebida à exploração do jogo, passando pela prostituição e por homicídios a granel. Talvez Capone estivesse até mesmo praticando o tiro ao alvo em algum desavisado adversário ou extraindo-lhe o cérebro a marretadas quando, no dia 13 de outubro de 1927, nasceu, na mesma Chicago infestada de mafiosos, um dos mais inventivos músicos do jazz: Lee Konitz.


Não obstante, o capo ficaria bastante contente de saber que ali, em seu território, nascia um dos mais originais e talentosos saxofonistas de todos os tempos. Fã de jazz e, sobretudo, do estilo esfuziante de Fats Waller, é conhecida a história de que teria mandado seqüestrar o pianista, que ficou sob sua guarda por quase uma semana, em uma nababesca rotina de festas, comidas, bebidas e mulheres – não necessariamente nessa ordem. Ao final da epopéia, Waller saiu alguns quilos mais gordo e muitos dólares mais rico, tantas foram as notas de cem dólares que o gângster, extasiado com as performances do “hóspede”, enfiava nos bolsos do seu paletó.


Voltemos a Konitz. Aos oito anos, encantado com o som da orquestra de Benny Goodman, o garoto – também de origem judia, como o primeiro ídolo – começou a tomar as primeiras aulas de clarinete. Por volta dos 12 anos, passou ao sax tenor e, finalmente, fixou-se no sax alto. Com 16 anos fazia as primeiras aparições como profissional, na banda do guitarrista Teddy Powell. Em seguida, permaneceu cerca de dois anos na banda do clarinetista Jerry Wald, até juntar-se à orquestra de Claude Thornhill, em 1947.


Nesse período, Konitz começou a ouvir com assiduidade o bebop praticado por Charlie Parker e Dizzy Gillespie, amalgamando a essas novas informações sonoras a influência do delicado Lester Young. Encontrou em Lennie Tristano, renomado pianista de Chicago, a inspiração para seguir em frente com as suas ousadas concepções harmônicas, na tentativa de explorar os caminhos abertos por Bird. Durante o tempo em que colaborou com Tristano, conheceu o saxofonista tenor Warne Marsh, futuro parceiro e grande amigo.


Em 1949, já estabelecido em Nova Iorque, Konitz participou da gravação do histórico álbum “Birth of the Cool”, de Miles Davis, com arranjos de Gil Evans e John Lewis. No início dos anos 50, tocou com vários músicos ligados à West Coast, como Shelly Manne, Gerry Mulligan e Chet Baker. Sua abordagem pouco ortodoxa rendeu-lhe um convite para ingressar na orquestra do modernista Stan Kenton, de onde saiu em 1954 para construir uma das obras mais prolíficas e originais do jazz, incluindo-se o maravilhoso álbum “Motion”, de 1961, ao lado do baixista Sonny Dallas e do explosivo baterista Elvin Jones.


Seis anos antes, Konitz juntou-se ao velho amigo Warne Marsh para gravar o antológico “Lee Konitz With Warne Marsh”, para a Atlantic. Um repertório que vai do swing ao cool, do blues ao nascente hard bop, é executado de maneira impecável. O fraseado algo frágil de Konitz se concatena perfeitamente com a sonoridade cristalina de Marsh, um aplicado discípulo de Lester Young. Completam o sexteto o pianista Sal Mosca, o guitarrista Billy Bauer, o baixista Oscar Pettiford e o baterista Kenny Clarke, sendo que em “Ronnie’s Line” Mosca é substituído por Ronnie Ball.


O álbum, gravado em junho de 1955, tem vários momentos sublimes, como a emocionante versão de “I Can’t Get Started”, na qual os saxofones de Konitz e Marsh dialogam em uníssono, criando um clima de absoluta cumplicidade. O blues “Don’t Squawk”, de Pettiford, é bastante heterodoxo, sinuoso como uma composição de Monk, e o baixista se esmera tanto na parte rítmica quanto no magistral solo. A abordagem bastante peculiar dos saxofonistas em “Topsy” dá um novo frescor a essa antiga composição da década de 30, verdadeiro cavalo de batalha dos músicos vinculados à West Coast, com a curiosidade adicional de ser executada sem a participação do piano.


“There Will Never Be Another You”, imortalizada na voz de Chet Baker, ganha um arranjo mais impetuoso, eminentemente bopper, com Konitz evocando – como raramente faria em toda a sua carreira – o ídolo Charlie Parker. O compositor Bird comparece com “Donna Lee”, outro ponto alto, no qual o piano de Mosca se responsabiliza por um dos solos mais velozes e intrigantes do disco, digno de um Bud Powell.


O antigo mentor dos líderes não foi esquecido. “Two Not One”, cujo título parece ter sido feito para incensar a dupla de saxofonistas, paga um merecido tributo a Tristano. É complexa, assimétrica e altamente cool. “Ronnie’s Line” (de Ball) e “Background Music” (de Marsh) encerram o álbum em alto estilo, a primeira fazendo uma excelente reverência ao bebop dos anos 40 e a segunda saudando, ainda que discretamente, o hard bop que então se anunciava. Um álbum que é um verdadeiro marco na construção do jazz moderno e que, da primeira à última faixa, mantém um olhar respeitoso para com a tradição e bastante sequioso para com as possibilidades do futuro.


Marsh foi um saxofonista viril, altamente criativo e extremamente técnico. Reza a lenda que, certa feita, o já consagrado Stan Getz teria se recusado a participar de uma jam, com receio de ter que enfrentar o aguerrido tenorista. Integrou a orquestra “Supersax” nos anos 70 e gravou com grandes nomes, como Bill Evans, Red Mitchell, Art Pepper e Hank Jones. Em sua pequena discografia como líder, há, pelo menos, uma pérola preciosíssima: o extraordinário “Berlin 1980”, ao lado de Eddie Gomes (b) e dos velhos camaradas Kenny Clarke e Sal Mosca. Faleceu em 17 de dezembro de 1987, em decorrência de um infarto fulminante, em pleno palco do clube Donte’s, enquanto tocava “Out Of Nowhere”, na mesma Los Angeles onde nasceu. Jamais deixou de acreditar que o jazz fosse, de fato, o som da surpresa.


Konitz, cidadão do mundo, permanece em plena atividade. Residiu muitos anos na Europa e nunca perdeu o espírito desbravador e nem a avidez pela busca de novos caminhos, o que inclui regulares incursões pelo free e por outras correntes ligadas à vanguarda. Desde os anos 50, vem gravando incessantemente, sendo responsável por uma discografia das mais extensas, por selos como Verve, Enja, Steeplechasde, Lonehill, Milestone e Candid. Lançou pela Blue Note, em 1997, os ótimos “Alone Together” e “Another Shade Of Blue”, ao lado dos incensados Charlie Haden e Brad Mehldau. Sua intensa atividade traduz aquilo que ele sempre afirmou ser: um caixeiro-viajante a serviço da improvisação.

sábado, 18 de julho de 2009

A PERCUSSÃO CAVALHEIRESCA DE ROY HAYNES


Roy Haynes é um perfeito cavalheiro e um dos músicos mais elegantes que o jazz já produziu – em todos os sentidos. Sempre envergando ternos bem cortados, que o fizeram ser considerado pela revista Esquire um dos homens mais bem vestidos do show business, o baterista consegue extrair do seu instrumento uma sonoridade de pura classe, bastante parecida com a sua forma de se trajar. Esse mestre da percussão se destaca por ser sutil em um ambiente que, aparentemente, valoriza muito mais o vigor físico que a delicadeza. Daí porque bateristas de execução mais robusta, como Art Blakey ou Elvin Jones, possuem uma popularidade consideravelmente maior que a de Haynes.

A bem da verdade factual, três coisas precisam ser ditas. A primeira é que tanto Jones quanto Blakey também sabiam imprimir à sua forma de tocar uma classe e uma sutileza dignas de um Connie Key, um dos grandes mestres da arte de tocar bateria como se acariciasse a pele da mulher amada. A segunda é que nunca faltaram a Haynes os predicados técnicos necessários para equipará-lo aos três gigantes anteriormente mencionados. A terceira é que o versátil Roy também era capaz de emular um dínamo de altíssima potência e detonar, sem remorso, os couros de sua bateria.

Roy Owen Haynes nasceu em 13 de maio de 1925, em Roxbury, distrito de Boston, Massachusetts. Começou a tocar bateria ainda durante a adolescência, em Boston. Em 1945 já era profissional, tendo se mudado para Nova Iorque, onde se apresentava regularmente com Luis Russo, na orquestra do Savoy Ballroom. Ao mesmo tempo, era um assíduo freqüentador das jams sessions da Rua 52, firmando, assim, seu nome entre os exigentes integrantes da cena musical da Big Apple. De 1945 até os dias de hoje, Haynes tocou, virtualmente, com todos os grandes nomes do jazz.

O currículo do baterista é impressionante. Dentre os músicos com quem tocou, estão Louis Armstrong, Lester Young, Charlie Parker, Bud Powell, Dizzy Gillespie, Thelonious Monk, Lee Konitz, Kenny Burrell, Miles Davis, Stan Getz, Kai Winding, Andrew Hill, Wardell Gray, Lennie Tristano, Art Pepper, Chick Corea, Phineas Newborn Jr., Sonny Rollins, John Lewis, Eric Dolphy, John Coltrane, Gerry Mulligan, Jackie McLean, Duke Jordan, entre uma infinidade de outros. Sua discografia como líder é relativamente pequena, com cerca de trinta álbuns em mais de sessenta anos de carreira, mas excepcional do ponto de vista qualitativo, incluindo os antológicos “Just Us” e “We Three”.

Sua proverbial criatividade o tornava apto a transitar entre os mais diversos formatos – de pequenos combos a big bands – com extrema naturalidade. Também se sentia bastante confortável em qualquer contexto jazzístico, indo sem nenhuma dificuldade do swing ao hard bop e do bebop ao free. Uma excelente demonstração da inventividade de Haynes e de sua capacidade de se adequar a qualquer escola é o extraordinário “Out Of The Afternoon”, considerado um dos mais relevantes de sua carreira. A banda que o acompanha é bastante heterogênea e, por isso mesmo, deveras estimulante.

No piano, um músico tão elegante e versátil quanto o líder, o sempre ótimo Tommy Flanagan, cujo fraseado lírico e altamente melódico lhe valeu o apelido de “The Jazz Poet”. No contrabaixo, o habilidoso Henry Grimes, mais conhecido por sua colaboração com músicos ligados à vanguarda. No sax tenor, flauta, manzello (sax soprano de origem espanhola) e stritch (uma espécie de sax alto), o inclassificável Rahsaan Roland Kirk, o homem para quem tocar dois ou três instrumentos simultaneamente era algo tão natural quanto o ato de respirar. O quarteto se reuniu nos dias 16 e 23 de maio de 1962, nos estúdios Van Gelder, para gravar um dos melhores álbuns do catálogo da Impulse, que traz no repertório sete músicas, sendo três composições do líder e quatro standards.

A primeira delas é “Moon Ray”, antiga canção de Artie Shaw, na qual Kirk toca o manzello e o sax tenor com igual desenvoltura. Flanagan presenteia o ouvinte com um solo magistral. O trabalho do baterista e do baixista é notável, travando um diálogo arrebatador e, dessa forma, auxiliando a criar um clima de blues nada convencional. O quarteto subverte a clássica “Fly Me To The Moon”, de Bart Howard, transformando-a em valsa-bop de elevada combustão, com um impressionante discurso de Kirk, que distorce a melodia até torná-la irreconhecível.

“Raoul” é um hard bop com textura latina, evocando trabalhos de semelhante natureza gravados por Art Blakey – inclusive no tocante ao impressionante solo do líder. O piano de Flanagan adota um fraseado que conjuga agilidade e leveza e Grimes usa o arco para executar um dos melhores solos do disco. Em outra composição do líder, “Snap Cracker” (apelido que lhe foi dado por Al McKibbon), quem reina absoluto é o Roland Kirk, que usa simplesmente todo o seu arsenal: sax tenor, flauta, manzello e stritch. A sessão rítmica, por óbvio, sustenta com maestria as intrincados e convulsivas harmonias do saxofonista.

No talvez melhor momento do álbum, uma versão irreverente de “If I should Loose You”, onde Kirk, sempre ele, faz gato e sapato da melodia original. Flanagan faz com que o seu piano, etéreo, baile o tempo todo, enquanto Grimes e Haynes se desdobram para manter intacta a estrutura harmônica. Baixista e baterista também têm espaço para perpetrar solos magnificamente bem construídos. Na desconcertante “Long Wharf”, um bebop sinuoso, o compositor Haynes comete outro solo simplesmente antológico, com igual destaque para Grimes, que mais uma vez usa o arco. Fechando o disco em altíssimo estilo, a balada “Some Other Spring” merece um arranjo extraordinário, que realça toda a beleza da melodia. O piano de Flanagan é só doçura e o sopro de Kirk, mais contido que nas demais faixas, é simplesmente sublime.

No esplendor dos seus muito bem vividos 84 anos, Haynes continua em plena atividade. Em 1994 foi agraciado com o título de Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras, um dos mais prestigiosos da França e em 2004 foi eternizado no Down Beat Hall of Fame. Em 2000, lançou o excepcional “The Roy Haynes Trio Featuring Danilo Perez & John Pattitucci”, acompanhado de dois dos músicos mais completos da nova geração. Em 2001 foi a vez do elogiado “Birds Of A Feather”, ao lado de Roy Hargrove, Dave Holland e Kenny Garrett, e em 2004 o emblemático “Fountain Of Youth”, cuja água o baterista parece ter bebido em boa quantidade.

Ele também é figurinha fácil em festivais de jazz do mundo inteiro, nos quais é, invariavelmente, aclamado de maneira efusiva. Carismático, inventivo e elegante, Roy Haynes é um músico superlativo, pertencente à especialíssima estirpe daqueles que não fizeram outra coisa na vida a não ser dignificar o jazz. No caso dele, sempre a bordo de ternos muito bem cortados e de gravatas sempre muito bem escolhidas.

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PS.: Post dedicado ao amigo André Tandeta, confesso discípulo de Haynes, cujo talento pode ser conferido no indispensável “Uma guitarra no Tom”, ao lado dos grandes Victor Biglione e Sérgio Barrozo.

terça-feira, 14 de julho de 2009

DUAS OU TRÊS PALAVRAS ACERCA DA INFELICIDADE


Sortudo! Decerto o destino havia pregado uma peça de péssimo gosto naquele homem de cabelos desgrenhados e sujos, que vestia roupas em lastimável estado. Vagarosa, mas tenazmente, sua figura maltrapilha revolvia um grande container de lixo. Um velho par de sapatos bastante gastos e um sobretudo roto, com várias manchas de café e gordura nos punhos e no colarinho, emergiram daquela abjeta coleção de resíduos. Ele deu um arremedo de sorriso, calçou o velho par de sapatos – que, de qualquer modo, estavam em melhor estado que os seus – e pôs o amarfanhado sobretudo. Estava quase contente, pois o frio enregelava-lhe os ossos e dificultava ainda mais a sua já penosa caminhada.

Manteve-se absorto durante alguns segundos e pensou que, assim como aqueles restos que jaziam inúteis no container, ele também havia sido descartado por essa mesma sociedade. O apelido de outrora jamais lhe pareceu tão zombeteiro. Não se demorou em tais pensamentos, pois seria um desperdício de tempo e energia. De fato, quando se extrai do lixo as duas ou três refeições diárias, filosofar acerca da vida e dos seus descaminhos parece ser um insensato exercício de trivialidade.

O frio de Seattle não perdoava hesitações. Alguns poucos minutos podiam fazer a diferença entre a vida e uma pavorosa morte por hipotermia. Acelerou o passo em direção ao seu velho conhecido Seattle's Columbia City Assisted Living Center. Se realmente tivesse sorte, hoje poderia tomar um pouco de sopa quente e, quem sabe, até desfrutar de uma pequena xícara de chocolate.

As mesmas mãos que hoje revolviam, ávidas, os fétidos depósitos de matéria desprezada já se dedicaram a misteres muito mais nobres. Todavia, mesmo sobrevivendo das sobras apodrecidas, mesmo vagando sem rumo certo pelas ruas hostis, mesmo fazendo da degradação o seu improvável lar, mesmo dormindo ao relento ou nos desprezíveis abrigos onde outros miseráveis compartilhavam do mesmo sono sem sonhos, ele ainda guardava dentro de si uma elevada dose de altivez.

Dos velhos tempos, ainda conservava intacta a proverbial sensibilidade. Enternecia-se com o pôr do sol e com o desabrochar das primeiras flores da primavera. Caso lhe fosse dada a chance, ainda seria capaz de acariciar com a mesma doçura as palhetas do saxofone e extrair dali as notas mais sublimes que músico algum, mesmo o mais hábil deles, seria capaz de obter. Mas tal chance jamais lhe seria concedida outra vez.

Se a célebre frase de Tolstói é verdadeira, de que todas as famílias felizes são iguais, mas cada família infeliz o é à sua própria maneira, ele era a prova viva de que são inúmeras as possibilidades de infelicidade a que um homem pode ser submetido. Há a infelicidade que decorre do abandono, aquela que advém da doença, uma outra que nasce da solidão, a que provém de seus próprios demônios interiores, aquela que se origina das escolhas erradas e até mesmo a oriunda da perda de algum ente querido.

Naquela figura alquebrada fizeram morada todas essas espécies de infelicidade. Ele era um homem frágil em um mundo incapaz de tolerar a fragilidade. Acaso fosse possível reescrever a própria história, talvez não tivesse retornado ao seu país em 1970. Teria permanecido em Paris ou em Lausanne, onde jamais lhe faltaram trabalho e respeito. Contudo, a fortuna não costuma bater duas vezes à mesma porta.

Após longos quarenta minutos de uma estafante caminhada ele, finalmente, chega à sede do centro de assistência de Seattle. O dia não havia sido bom para os outros infelizes da sua igualha. Havia uma grande fila para a sopa. Ele não se importava. Agregou-se àquele rol de maltrapilhos silenciosos e tristes e esperou a sua vez. Um vigoroso prato de sopa quente recompensou-lhe a espera. Entretanto, a xícara de chocolate que ele tão ansiosamente aguardara, e com a qual chegara a devanear enquanto estava na fila, não lhe foi oferecida. A bebida havia acabado pouco antes de chegar a sua vez.


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Se existe um músico que pode ser apontado como paradigma de toda a grandeza e de toda a miséria que cerca o jazz, esse músico atende pelo nome de Eli “Lucky” Thompson. Nascido em 16 de junho de 1924, na cidade de Colúmbia, Carolina do Norte, Lucky foi um dos mais melodiosos e inventivos saxofonistas da história do jazz e um dos precursores do uso do sax soprano. Espécie de elo perdido entre a velha escola representada por Coleman Hawkins e Don Byas e a nova escola proposta por Bird e Dexter Gordon, era capaz de transitar com absoluta naturalidade do swing ao bebop, com especial habilidade para tocar baladas.

O primeiro revés veio logo aos cinco anos, quando perdeu a mãe. Durante a infância e a adolescência, sofreu uma vida de privações, somente superadas quando atingiu a idade adulta e pode se dedicar integralmente à música. Tocou com Lionel Hampton, Slam Stewart e Billy Eckstine, em cuja orquestra conheceu Charlie Parker e Dizzy Gillespie – com quem também viria a tocar. Passou algum tempo na orquestra de Count Basie e, posteriormente, na de Stan Kenton. Nos anos 50 firmou seu nome como um confiável músico de apoio, tendo gravado regularmente com Milt Jackson e participou de sessões com Thelonious Monk e Miles Davis.

Por sua versatilidade e pela impossibilidade de ser rotulado, Thompson é daqueles músicos que imprimem a força da sua personalidade em tudo o que fazem. Nas décadas de 50 e 60 residiu por longos períodos na Europa, mas jamais abandonou totalmente o país natal. No início da década de 60, outra grande perda: a morte da mulher. Em 1965 cerrou fileiras ao lado dos Jazz Messengers, para a gravação do excelente Soul Finger, numa formação que incluía, além de Thompson e Blakey, os ótimos John Hicks ao piano e Freddie Hubbard e Lee Morgan nos trompetes. No ano anterior, havia gravado a sua obra-prima, o disco pelo qual será lembrado pela eternidade e além: o fabuloso Lucky Strikes.

Aqui, ao lado de Hank Jones (piano), Richard Davis (baixo) e Connie Key (bateria), Thompson exibe a sua técnica invulgar e a sua excepcional habilidade para as baladas em um álbum simplesmente irrepreensível, talhado para abrilhantar qualquer discoteca. Usando o sax soprano e o tenor, esse músico ímpar constrói uma delicadíssima tapeçaria sonora, que começa com uma versão sublime de “In A Sentimental Mood”, em um clima de absoluto lirismo. O piano de Jones, melífluo e envolvente, emoldura o saxofone de Thompson com emotividade e discrição, características constantes desta sessão.

Thompson também era um compositor de mão cheia. Exceto a já mencionada “In A Sentimental Mood” e “Invitation”, todas as outras músicas são de sua autoria. “Fly With The Wind” é um bebop clássico, acelerado e cheio de variações harmônicas, com o sóbrio Connie Key emulando Art Blakey, mas sem perder um átomo da sua enorme categoria. “Mid-Nite Oil” e “Mumbba Neua”, com seus andamentos serpenteantes, poderiamter sido compostas por Monk, impressão reforçada pelo piano de Jones, que em momento algum resvala na obviedade.

A elegância do saxofonista – quer do ponto de vista da execução, quer da composição – extrapola os níveis habituais de excelência na quase balada “Reminiscent”, um dos pontos altos do disco. Nesta faixa, a integração entre o saxofone e o piano atinge o ápice, ao mesmo tempo em que o baixo de Davis e a bateria de Key, embora discretos, são um exemplo perfeito da importância de uma sessão rítmica à altura dos solistas.

“I Forgot To Remember” é uma balada emocionante, com discretas citações à não menos bela “Tangerine”, na qual Thompson pode exibir sua técnica soberba. Da mesma magnitude, mas com um acento de blues – e um solo de piano magistral – a lindíssima “Prey Loot” é outro grande momento do álbum, que encerra em grande estilo com a suingante “Invitation”, de Bronislaw Kaper, que em alguns momentos parece exalar uma certa fragrância latina, em grande parte graças à excelente intervenção da bateria de Key.

Contrariando o apelido, Eli Lucky Thompson viveu e morreu sob a égide de uma sucessão de tragédias. Ele, que jamais se amoldou aos ditames da indústria fonográfica, foi, pouco a pouco, submergindo em um oceano de solidão e demência. A partir da década de setenta, outras tragédias vieram a se abater sobre ele. Desfez-se do saxofone para pagar dívidas e perambulou por diversas cidades dos Estados Unidos e do Canadá, até se fixar em Seattle. Ali, viveu na indigência quase absoluta, até ser acolhido pelo Seattle's Columbia City Assisted Living Center, em 1994.

Nessa época começou a apresentar os sintomas do mal de Alzheimer, doença que finalmente o arrebataria em 30 de julho de 2005. Uma vida atribulada e um fim indigno para um músico de tão extraordinário, mas completamente coerente com a sua trajetória de vida. Aqui, como em Bird e Powell, o trágico e o sublime, a degradação e a glória convivem como faces de uma mesma moeda.

sábado, 11 de julho de 2009

UM ESTUDO EM VERMELHO: TODOS OS ACORDES DE RED GARLAND


O piano é a espinha dorsal do jazz. Suas 88 teclas equivalem às 33 vértebras do corpo humano, que dão suporte e mobilidade ao esqueleto. Alguém poderá dizer que é perfeitamente possível fazer jazz sem piano – e com uma qualidade a toda prova. Sonny Rollins gravou ótimos discos apenas com a formação sax + baixo + bateria, além dos discos gravados com Jim Hall, cuja guitarra fazia as vezes de piano. O quarteto “pianoless” de Gerry Mulligan deu ao mundo maravilhas como “What Is There To Say”. Paul Desmond, em sua carreira solo, usava a guitarra – Jim Hall nos anos 60 e Ed Bickert nos anos 70 – para compor a seção rítmica de seus grupos. Stanley Turrentine e Grant Green fizeram discos maravilhosos para a Blue Note nos anos 60, usando um órgão Hammond no lugar do piano.

Entretanto, esses músicos eram gênios, donos de um talento excepcional que lhes permitia, inclusive, dispensar o piano ou, quando muito, substituí-lo por outro instrumento. Mas pensemos nos grandes combos do jazz. O quinteto modal de Miles Davis, o quarteto de John Coltrane dos anos 60, o quinteto de Clifford Brown/Max Roach e o Modern Jazz Quartet, para falar de alguns dos mais incensados, tiveram, respectivamente, os talentos de Herbbie Hancock, McCoy Tyner, Richie Powell e John Lewis a conduzir o piano. A maioria dos grandes arranjadores do jazz era pianista: Billy Strayhon, Gil Evans, Tadd Dameron, Stan Kenton – a lista é enorme. Por fim, muitos dos maiores compositores do jazz eram pianistas: Jelly Roll Morton, Duke Ellington, Thelonious Monk, John Lewis, Horace Silver, Dave Brubeck, entre outros.

Dentre os mais destacados pianistas que puseram seu talento a serviço do jazz está William “Red” Garland. Esse texano, nascido em Dallas em 1923, tem uma história de vida curiosa. Até entrar para o exército, em 1941, Garland usava suas hábeis mãos para fins bem menos pacíficos que acariciar as teclas do piano – boxeador semi-professional, chegou a trocar socos com o legendário pugilista Sugar Ray Robinson, que, obviamente, venceu o combate. No exército, passou a freqüentar aulas de piano. O boxe perdeu um promissor meio-médio mas o jazz ganhou um excepcional pianista.

A partir de 1945 começou a tocar profissionalmente – primeiro com Billy Eckstine, depois com Edddie “Lockjaw” Davis. Chegou a Nova York no início dos anos 50 e percorreu o circuito dos clubes, tendo acompanhado Dizzy Gillespie, Flip Philips e Lester Young, com quem permaneceu por cerca de dois anos. Embora tivesse alguma reputação no circuito nova-iorquino, somente em 1955 é que Garland foi alçado à celebridade jazzística, ao ser convidado para integrar o lendário quinteto de Miles Davis, com quem permaneceu até 1958. Basicamente, além de Miles e Garland, batiam ponto nesse combo extraordinário John Coltrane, Paul Chambers e Philly Joe Jones. Com essa formação, Miles Davis legou ao mundo obras primas do quilate de Relaxin’, Workin’, Steamin’ e Cookin’, todas gravadas para a Prestige.

Nessa mesma gravadora, o pianista construiu uma bem-sucedida carreira solo, tendo gravado, como líder, dezenas de ótimos discos, entre meados da década de 50 e início da década de 60, geralmente sob o formato de trio. Embora autodidata, Red desenvolveu um estilo personalíssimo, com um pé muito bem fincado no blues, que influenciou diversos pianistas, inclusive Bill Evans.

Em 1968, abalado pela morte da mãe e desencantado com os rumos que o jazz estava tomando – de um lado o radicalismo free proposto por Coltrane e do outro a aventura fusionista gestada por Davis, ironicamente seus ex-companheiros – o grande Red Garland retornou a Dallas, de onde somente sairia para esporádicas gravações e apresentações e onde permaneceria até a morte, em 1984.

Dentre os discos lançados pela Prestige, um dos mais aclamados é o “Red Garland’s Piano”, gravado entre dezembro de 1956 e março de 1957, no mítico Van Gelder Studio, em Hackensack, Nova Jérsei. Fazendo companhia ao pianista, dois dos seus mais habituais parceiros: Paul Chambers no baixo e Art Taylor na bateria. A exuberância técnica do trio é notável e o repertório, composto basicamente de standards, é soberbo. O disco abre com uma belíssima versão de “Please Send Me Someone To Love”, clássico de Percy Mayfield, cujas características de blues são realçadas pelo estilo “block chord” – uso de ambas as mãos em todas as notas da melodia – do pianista.

Com a sacolejante “Stompin’ At The Savoy”, o trio chama o ouvinte para dançar e tempera com um molho todo especial de bebop uma das canções mais representativas da era do Swing – é possível sentir-se no salão do Savoy Ballroom, em pleno Harlem. O piano elegante de Garland desfila impecável pela balada “But Not For Me” – uma das mais belas composições dos irmãos Gershwin – criando um clima de nostalgia e enlevo. Outro ponto alto do disco é “I Can't Give You Anything But Love”, tocada em tempo mais acelerado que o habitual, com destaque para o ótimo trabalho de Chambers e Taylor.

Apesar de ser um músico de extrema classe, Red Garland também tinha um ótimo senso de humor e era muito espirituoso. Certa feita, o quinteto de Miles tinha um show marcado para as 9 da noite em um pequeno clube do Brooklyn. Pontualmente, todos os músicos chegaram na casa e começaram a se preparar para subir ao palco – exceto o bravo Red. 9:30 e nada! 10:30 e nada! 11:00 e nada! Miles, Coltrane, Chambers e Philly começaram a ficar impacientes – tanto quanto a audiência, que já começava a debandar. Quase à meia-noite, um esbaforido Red Garland entra no clube e se dirige ao chefe:

- Um acidente terrível no metrô, Miles. Todos os trens estavam parados, polícia no local, ambulância prá todo lado. Eu fiquei preso na estação até agora...

- Ok, disse Miles, vamos tocar.

O show transcorreu sem sobressaltos e, por volta das 2 da manhã, os músicos começam a guardar seus instrumentos. Miles, Coltrane e Philly vão embora rapidamente e o pobre Chambers luta para empacotar seu pequeno instrumento, a fim de não perder o último trem – como na célebre canção de Adoniran. Um despreocupado Garland interpela o amigo:

- Por que a pressa? Você não precisa tomar o metrô uma hora dessas. Eu tô de carro aí fora e te dou uma carona...

terça-feira, 7 de julho de 2009

CASO VOCÊ AINDA NÃO TENHA ESCUTADO...


De 27 de fevereiro, quando sofreu um pavoroso acidente no metrô de Nova Iorque que lhe custou o braço esquerdo, a 10 de maio de 1989, quando as complicações decorrentes do acidente por fim consumiram o resto de suas parcas energias, ele agonizou na cama de um hospital. Nos últimos tempos, passou por diversos problemas de saúde – vinha perdendo progressivamente a visão, não conseguia abandonar uma exasperante dependência química e os shows e gravações escasseavam.


O garoto prodígio que com apenas 17 anos assombrara Joe Henderson, aos 19 fazia sua primeira viagem à Europa a convite de Eric Dolphy e aos 21 encantava o mundo do jazz tocando com Horace Silver, o último grande inovador do trompete (pelo menos até a chegada do fabuloso Wynton Marsalis no início da década de oitenta), o incendiário virtuose que roubou a cena no disco “Homecoming”, que celebrava a volta ao lar do lendário Dexter Gordon, finalmente encontrou a paz eterna.


Espírito inquieto, desde muito cedo Woody Shaw Jr. demonstrou uma habilidade incomum para a música e o instrumento escolhido foi o trompete. Se as coincidências existem ou não, não é dado aos pobres mortais saber. Mas talvez seja importante dizer que o grande Dizzy Gillespie foi colega de Woody Sr. na escola. Nascido em 24 de dezembro de 1944, em Laurinburg, Carolina do Norte, ainda bastante cedo Shaw se mudou com a família para Newark, Nova Jérsei.
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Aos 11 anos começa o aprendizado do trompete, em uma escola local, onde foi aluno do respeitado Jerome Ziering (professor, dentre outros, de Larry Young e Wayne Shorter). No início dos anos 60, com assombrosos 17 anos, já era considerado uma das mais consistentes promessas do trompete jazzístico, merecendo calorosos encômios de músicos bem mais experientes.


Bastante influenciado por Clifford Brown, Kenny Dorham, Lee Morgan e Freddie Hubbard, Shaw se envolve fortemente com a cena hard bopper nova-iorquina, tocando com músicos do calibre de Jackie McLean, McCoy Tyner, Gil Evans, Art Blakey, Andrew Hill e Eric Dolphy, que em 1963 o levou pela primeira vez à Europa. No Velho Continente, chega a se apresentar com verdadeiras lendas do jazz, como Kenny Clarke, Bud Powell e Johnny Griffin. Retornando aos Estados Unidos em 1964, integrou-se ao quinteto de Horace Silver, ocupando o lugar de Carmell Jones, e ali permaneceu até 1966. Em seguida, trabalhou com certa regularidade com Chick Corea, Hank Mobley, Larry Young, Max Roach, Louis Hayes, Booker Ervin, Anthony Braxton e Joe Henderson.


Na década de 70, não teve prá ninguém: Shaw foi, certamente, o trompetista mais premiado daquele período, incluindo-se aí votações do público e da crítica, além de diversas indicações ao Grammy. De 71 a 73 integrou os Jazz Messengers de Art Blakey e lançou os seus primeiros discos como líder, através de pequenos selos como Muse, Contemporary e High Note. Apesar do ambiente fortemente hostil a qualquer forma de jazz que não incluísse batas indianas, sintetizadores e baixo elétrico (corrente da qual Woody sempre manteve uma saudável distância, diga-se de passagem), em 1977 assina contrato com a poderosa Columbia e lança discos bastante elogiados, como os seminais “Rosewood” e “Stepping Stones” (este último gravado no mítico Village Vanguard).


E os motivos que levaram essa major a contratar a estrela em ascensão estão bem aqui, nessa gravação de 1976 para a Savoy, intitulada “Little Red’s Fantasy”. No dia 29 de junho de 1979, Shaw e seus acompanhantes adentraram as dependências do estúdio Blue Rock, em Nova Iorque, para gravar esse disco nada menos que fabuloso. Na produção, Michael Cuscuna. No piano, o sensacional Ronnie Mathews. No sax alto, o não menos talentoso Frank Strozier. Completando essa impressionante máquina de swing e energia, o versátil Stafford James (um contrabaixista que atuava com igual competência tanto em bandas de R&B quanto em ambientes free) e o pouco conhecido Eddie Moore.


Um disco que exige do ouvinte bastante atenção. Em primeiro lugar porque é extremamente difícil de ser enquadrado em qualquer das escolas tradicionais do jazz. Não é bebop. Não é hard bop. Não é free. Não é cool. Não é West Coast. Mas, ao mesmo tempo, é tudo isso e um pouco mais! Segundo o próprio Woody, seria uma espécie de “bop modal”. Em segundo lugar, porque é uma das poucas oportunidades de ver dois dos músicos mais “underrated” do jazz atuando lado a lado e complementando as concepções harmônicas um do outro, como se tocassem juntos desde sempre. Strozier e Mathews, cujas discografias como líder são bissextas, são dois instrumentistas do mais elevado gabarito mas que, infelizmente, remanescem bem menos conhecidos do que deveriam.


A faixa de abertura, “Jean Marie”, é um exemplo da capacidade desses dois músicos. A composição é de Mathews, que demonstra um domínio absolutamente integral das sutilezas harmônicas, em um momento sublime tanto da perspectiva composicional (lembra em muitos momentos o Hancock de “Empyrean Isles” e “Maiden Voyage”) quanto da execução. Strozier agrega uma leveza incomum às incontáveis variações harmônicas criadas pelo pianista e Shaw expande até as fronteiras do cosmos as possibilidades da improvisação em seu instrumento, com um fraseado exuberantemente criativo.


O baixista Stafford James contribui com a intrigante “Sashianova”, uma espécie de “hard-free”, fazendo a ponte entre esses dois estilos aparentemente inconciliáveis. O articulado trompete do líder intervém de maneira bastante inteligente e dinâmica, em mais uma prova de que o vocabulário do trompete seria menos rico sem a sua luminosa presença. Muitas dissonâncias e nenhuma previsibilidade, com um soberbo trabalho de Mathews.


O líder comparece também como compositor de três faixas. A primeira delas é a estupenda “In Case You Haven't Heard”, cujo título denotaria, talvez, uma certa arrogância, não fosse o seu autor o mais revolucionário trompetista dos anos 70. O seu solo é majestoso – uma confluência de sonoridades de norte a sul do planeta, do oriente e do ocidente, de ontem, de hoje e de amanhã, pode ser encontrada ali.


A faixa que dá nome ao disco, “Little Red's Fantasy”, é uma sensível balada, feita em homenagem à esposa do trompetista, Maxine. Solos esmerados de Shaw, Mathews e James fazem desse o momento mais inebriante do álbum. Fechando o disco em altíssimo astral, “Tomorrow's Destiny” tem uma estrutura mais convencional, sem tantas angulações ou dissonâncias, mas exige dos músicos um alto grau de coesão e muito swing. É um hard bop de alta octanagem que, certamente, poderia figurar com destaque no currículo de um Hank Mobley, Horace Silver ou Art Blakey, só prá ficar em alguns dos mais célebres compositores do estilo. Destaque para a ótima percussão de Moore. E Strozier manda ver um solo, literalmente, de tirar o fôlego!


Durante os anos 80, Shaw continuou lançando discos e liderando seus grupos, por onde passaram pianistas do naipe de Mulgrew Miller, Geri Allen e Larry Willis, além do trombonista Steve Turre, do baixista Ray Drummond e do baterista Victor Lewis. Miles Davis, sempre acerbo ao falar de seus pares, disse acerca de Shaw: “Agora existe um grande trompetista. Ele toca diferente de todo mundo”. Todavia, os problemas com as drogas e a perda progressiva da visão prejudicaram bastante a sua carreira – além do fato de que boa parte da década foi bastante refratária a músicos ousados e íntegros como Woody. Suas palavras ajudam a compreender a intensidade de relação com a música: “A música é a minha religião”. Ouçamos esse esplendoroso “Little Red's Fantasy” como uma ardorosa profissão de fé.



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PS.: Post dedicado ao mestre Augusto Pellegrini, incansável batalhador pela causa do jazz e um verdadeiro sábio – daquela rara estirpe para quem o conhecimento só faz sentido se puder ser compartilhado.

domingo, 5 de julho de 2009

O APRENDIZ DE FEITICEIRO

Em 1979, depois de uma apresentação consagradora no Festival de Montreux, as pessoas só se referiam ao alagoano Hermeto Pascoal como “O Bruxo”. Um apelido bastante apropriado, já que, graças às suas alquimias sonoras, ele era, certamente, um dos três músicos brasileiros de maior prestígio no exterior. Complemente-se dizendo que os outros dois eram o maestro soberano Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, gravado por 9 entre 10 monstros sagrados do jazz, e o mega-produtor e arranjador Eumir Deodato, que na época vendia milhões de cópias de sua versão alucinante de “Assim Falou Zaratustra”, lançada em 1972, e produzia os discos de medalhões pop como Roberta Flack e Kool And The Gang.
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Desde o final da década de 60, Hermeto vinha tentando construir uma carreira internacional. A oportunidade veio com a participação no álbum “Live Evil”, de 1970, do então poderosíssimo Miles Davis. Tocar no disco do fundador e maior astro do fusion deu a Hermeto uma enorme visibilidade na cena jazzística. Mas nem tudo foram flores na convivência com o trompetista pois Miles, a fim de fazer jus ao título do álbum (algo como Maldade ao Vivo) e à sua péssima reputação, surrupiou duas canções do mago e jamais lhe deu o crédito: “Igrejinha” e “Nem Um Talvez”. A bem da verdade, esse episódio jamais atrapalhou o relacionamento dos dois, que continuariam amigos até a morte de Davis.

Com as portas escancaradas no seletíssimo mercado norte-americano de jazz, “O Bruxo” pôde gozar de uma autonomia raramente concedida a outros músicos brasileiros e teve total liberdade para fazer seus discos da forma que bem quis. Vieram, então, “A música livre de Hermeto Pascoal”, de 1973, o premiadíssimo “Slave Mass” (gravado nos Estados Unidos em 1976, ao lado de feras como Ron Carter, Raul de Souza e do velho amigo Airto Moreira, que o levou para os States em 1969) e o surpreendente “Ao vivo no Montreux Jazz Festival”, de 1979.

Todavia, se toda história tem seu começo, O Bruxo também teve os seus dias de aprendiz de feiticeiro. Recuando no tempo, é certo que os vizinhos da pequena Lagoa da Canoa deviam achar bastante estranho ver o pequeno e alvíssimo filho da Dona Divina e do Seu Pascoal brincando de tirar sons de abóboras e talos de mamona. A magia estava no ar, mas o contato com ela era fugidio – nada além de um passatempo lúdico, no meio da paisagem árida do sertão alagoano.

Em 1950, quando sua família se mudou para Recife, Hermeto já era capaz de cometer pequenos truques, ainda bastante amadores, mas que iam ficando cada vez mais interessantes à medida em que se aprofundava no maravilhoso universo da música. No final daquela década, já profissional, muda-se para o Rio de Janeiro, onde toca com o violinista Fafá Lemos e com a orquestra do maestro Copinha e em 1961 se transfere para São Paulo. Nesse período, amadurece a sua relação com a magia.

Apesar de autodidata, Hermeto tinha uma habilidade sobrenatural para tocar qualquer instrumento – violão, instrumentos de sopro, acordeão, contrabaixo e, sobretudo, piano. Na noite paulistana, dividia o piano com músicos que, em um futuro muito breve, se tornariam bastante conhecidos, como talentosíssimo César Camargo Mariano e o refinado Laércio de Freitas. Nos intervalos dos sets, trancava-se no banheiro para praticar outra de suas paixões: a flauta.

Foi no ambiente altamente musical da São Paulo dos anos 60 que nasceu a amizade com o percussionista Airto Moreira. Essa amizade iria redundar na criação do Sambrasa Trio, em 1964, ao lado do baixista Humberto Clayber, e do Quarteto Novo, em 1966, adicionando o violão energético de Heraldo do Monte e substituindo Clayber pelo não menos talentoso Théo de Barros. Com essa formação, o Quarteto Novo entraria para a história da música popular brasileira ao acompanhar Edu Lobo no célebre Festival da Record de 1967, vencido por ele com a extraordinária “Ponteio”.

Nesses anos de formação, quando ainda era um mago promissor, o Sambrasa Trio emerge como uma das mais marcantes experiências na carreira do Bruxo. Gravado em 1965, Hermeto toca, além do piano, flauta em algumas faixas. Clayber assume o baixo e, eventualmente, a harmônica. Esse álbum notável somente foi lançado em CD em 2005, pela Som Livre, graças a um primoroso trabalho de reedição conduzido pelo titã Charles Gavin, para a série Som Livre Masters. A qualidade de som é primorosa, graças à excelente remasterização, a cargo de Luigi Hoffer, o que permite uma audição prazerosa.

Um repertório que inclui clássicos da música brasileira de diversas épocas, como “A jardineira”, de Benedito Lacerda, e “Duas Contas”, de Garoto, até canções mais ligadas à bossa nova como “Aleluia”, de Edu Lobo e Ruy Guerra, e “Samba Novo”, de Durval Ferreira. Todos integrantes do trio comparecem com, pelo menos, uma composição própria cada. A primeira delas é “Sambrasa”, de Airto, que de logo apresenta suas armas em um solo devastador. O piano ondulante de Hermeto cria uma variação tão rica de harmonias que é difícil enquadrar essa canção. O trabalho de Clayber, cujo solo está entre os melhores do disco, tampouco ajuda em uma eventual classificação. É bossa, mas também é jazz. É samba e é maracatu. É brasileira, mas também universal. É mágica!

“Aleluia” recebe uma roupagem mais ortodoxa, bem de acordo com as estruturas melódico-harmônicas concebidas por Edu Lobo, mas ainda assim a genialidade dos músicos é perceptível em cada nota. O piano de Hermeto desliza suave em “Samba Novo”, bastante fiel ao arranjo original, mas as dissonâncias do aprendiz de feiticeiro e dos seus comparsas também se fazem presentes. O samba pede passagem na ótima “Clerenice”, de José Neto Costa (irmão de Hermeto), com ecos de Johnny Alf e um trabalho magistral do pianista. O arranjo de “Duas contas” é reverente e delicado ao extremo, como exige essa belíssima composição.

A harmônica de Clayber faz a introdução de “Nem o mar sabia”, de Menescal e Bôscoli, que é revirada do avesso pelo trio, num dos arranjos mais ousados do disco. Em seguida, é a vez da flauta de Hermeto dar à litorânea “Arrastão” um eletrizante sabor agreste, em outro arranjo bastante inovador e cheio de variações harmônicas – o solo do contrabaixista aqui é simplesmente antológico. Na única composição sua, “Coalhada”, um Hermeto nada linear flerta discretamente com os ritmos nordestinos, usando a sua maneira muito própria de ver e ouvir o xote e o baião.

Em “João Sem Braço”, de Clayber, é Airto quem exibe um domínio assombroso das possibilidades harmônicas do seu instrumento, com uma pegada vigorosa ao extremo. O set chega, em alguns momentos, a lembrar a psicodelia tão em voga das bandas de rock da época. “Lamento nortista” traz à baila, novamente, a riqueza do folclore nordestino, sobretudo graças à flauta de Hermeto. Fechando o disco, em altíssimo estilo e com um astral nas nuvens, a saborosa “Jardineira” merece um arranjo bastante jovial, realçando a faceirice da célebre marchinha e deixando o ouvinte com uma vontade quase incontrolável de aumentar o volume, arrastar os móveis para o canto da sala e fazer o carnaval – pena que dure só 1min56s!

O aprendiz de feiticeiro jamais interrompeu seu aprendizado mágico. Cruzou o mundo infinitas vezes, apresentou-se para platéias de todas as latitudes e se tornou um reverenciado bruxo da música. Todavia, nunca deixou de ser o menino franzino, de pele imaculadamente branca e imaginação sem limites que, esgueirando-se do inclemente sol sertanejo, perambulava pela caatinga em busca de qualquer objeto cujo som pudesse se transformar em melodia. Foi exatamente ali, sob o olhar benevolente das musas, que o pequeno feiticeirinho começou a longa jornada que o levaria a desvendar o segredo de todos os acordes do universo.

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PS.: Post dedicado ao amigo Figbatera, grande instrumentista (certamente fã de Airto) e embaixador do JAZZ + BOSSA nas Minas Gerais.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

INIMIGOS: UMA PEQUENA HISTÓRIA DE AMOR AO JAZZ


A música que os ocupantes do pequeno palco tocavam era alegre, exuberante como a bela vocalista que os acompanhava. Mas as poucas pessoas que ousavam permanecer naquele enfumaçado recinto não pareciam nada felizes. Estavam silenciosas, indiferentes. Os rostos taciturnos denunciavam os tempos difíceis por que passavam. Alguns tomavam cerveja, outros, vinho barato. Ninguém cantava ou dançava. Alguns acompanhavam aquele ritmo inebriante com um sóbrio manear de cabeça ou um discreto estalar de dedos, mas não pronunciavam palavra alguma.


Embora as músicas soassem familiares, ao final de cada uma delas a cantora anunciava o respectivo título em francês mas, curiosamente, parecia que alguma coisa não se encaixava. No meio do set, alguns homens entraram com estrépito no bar. Vestiam uniformes impecavelmente alinhados. As botas, muito bem engraxadas, brilhavam. Muitos exibiam, com indisfarçável orgulho, incontáveis medalhas e galardões. Nos coldres, todos portavam mortíferas pistolas Luger, das quais somente se podiam ver os cabos. Nas cabeças, os quepes tornavam os integrantes daquele grupo insuportavelmente arrogantes.


Alguns gargalhavam acintosamente, outros cantavam em um idioma incompreensível. Pediram cerveja e o melhor vinho do lugar. Sentaram-se em uma mesa bem afastada do tablado, expulsando dali um homem franzino e de aparência humilde que até então tomava, apático, uma minúscula taça de vinho, e continuaram a sua ruidosa algaravia. Nenhum deles parecia prestar atenção aos demais fregueses do bar, menos ainda à música que enchia o ambiente com uma injustificável alegria. Exceto dois.


Um deles era exatamente aquele que parecia ser o líder do grupo e o mais engalanado deles. O outro era um oficial de patente visivelmente inferior. O olhar do primeiro era severo, cortante, de um azul tão intenso que parecia entranhar-se na alma da pessoa a quem se dirigia. O segundo, que ostentava poucos galardões e era, por certo, o menos graduado daqueles oficiais, observava o desempenho dos músicos com um olhar embevecido, como se quisesse manter com cada um deles uma proibida cumplicidade.


O violinista sentiu enregelar a espinha, mas continuou tocando, tentando ignorar o terror que o olhar do oficial mais graduado lhe incutia. Quanto mais os músicos exibiam a sua técnica refinada e se esmeravam em dar suporte ao canto hipnótico da vocalista, mais intensa era a força daquele olhar inquisidor. Tocaram ainda por uma hora, quando o espetáculo, finalmente, se encerrou. Desceram do palco e o líder do grupo fez um sinal – discreto, porém enérgico – ao assustado violinista. Perguntou, em francês e com um tom que denunciava alguém acostumado a dar ordens e, certamente, jamais vê-las desobedecidas:


- Qual o nome da música com que vocês encerraram a apresentação?


O violinista, hesitante, respondeu:


- É “Tristesse De Louis XV”, senhor.


O tom de voz do jovem instrumentista, entre assustado e ansioso, denunciava que algo estava errado. De fato, vivia-se o tenebroso período da invasão alemã à França, durante a Segunda Guerra Mundial. Aos franceses era terminantemente proibido tocar música americana. O estratagema usado para enganar os alemães era simples, mas um tanto quanto perigoso: os músicos tocavam canções americanas com letras em francês, modificando, inclusive, os seus respectivos títulos. “Tristesse De Louis XV” não era outra senão a clássica “Saint Louis Blues”, de W. C. Handy, e caso fossem descobertos, os músicos poderiam até mesmo ser presos.


Em todo caso, o oficial balançou a cabeça levemente e pareceu satisfeito, pois a letra falava dos amores do célebre monarca francês. Pouco tempo depois o grupo se levantou da mesa e se dirigiu à saída. Ninguém pagou um único centavo pela comida ou pela bebida ali consumidas. Todos saíram do recinto, exceto o oficial menos graduado, aquele que permanecera o tempo inteiro a observar com atenção o espetáculo. Calmamente, dirigiu-se ao violinista e disse, também em francês:


- Parabéns pelo espetáculo. A que mais gostei foi “Saint Louis Blues".


O violinista ficou petrificado, imaginando que ele e os demais músicos sairiam dali diretamente para a cadeia. O terror congelou-lhe a fala e ele permaneceu calado. Com um discreto sorriso, o oficial completou:


- Não tema, só queria cumprimentá-lo. Eu sou pianista de jazz e de forma alguma iria denunciar um colega de profissão.



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Jamais se saberá quem foi aquele oficial alemão que preservou o segredo dos assustados músicos, evitando que eles passassem uma temporada nas terríveis prisões alemãs. Mas o violinista passou à posteridade como um dos três maiores nomes do instrumento no jazz e o mais longevo deles: Stéphane Grappelli (os outros dois são Stuff Smith e Joe Venuti). Fundador do célebre Hot Club de France, ao lado do fenomenal guitarrista Django Reinhardt, Grappelli foi um dos mais importantes nomes do jazz europeu e viveu de perto as agruras da Segunda Guerra Mundial, quando os alemães tomaram a sua adorada Paris.


Em sua monumental carreira, tocou alguns dos maiores jazzistas, em uma relação que inclui Duke Ellington, Oscar Peterson, Joe Pass, Kenny Clarke, Coleman Hawkins, Mel Lewis, Gary Burton e McCoy Tyner. Em 1969 gravou, pela primeira e única vez, ao lado de outro mestre do instrumento, Joe Venuti, o excelente “Venupelli Blues”, para a Charly. O repertório do disco é composto por seis standards, recriados com a elegância e o bom gosto típicos dos líderes da sessão. Como um charme a mais, o disco foi gravado em Paris, onde se passou a história acima.


Acompanhando estes dois gigantes, um outro músico da mesma estatura, o notável Barney Kessel, assume a guitarra. Os demais integrantes do combo são o pianista George Wein (o lendário criador do Festival de Newport), o baixista Larry Ridley (um habilidoso sideman, cujo talento pode ser apreciado em discos de Lee Morgan, Freddie Hubbard, Roy Haynes e Red Garland) e o baterista Don Lamond (outro músico pouco conhecido, egresso da orquestra de Woody Herman mas com um currículo fenomenal, que inclui gravações com Charlie Parker, Stan Getz, George Russell e Zoot Sims).


Todas as faixas primam pela excelência, mas há pelo menos dois destaques absolutos: “After You’ve Gone” e “Tea for Two”. A primeira começa bem relaxada e depois vai evoluindo para um diexeland bastante acelerado – além do belíssimo trabalho dos líderes, o piano stride de Wein e o delicado fraseado de Kessel exigem do ouvinte uma atenção redobrada. Na segunda, o maravilhoso duelo de violinos, com cada um dos líderes tocando como se fosse a última gravação da qual participariam. Sob todos os aspectos, uma gravação notável, que dignifica as biografias de todos os envolvidos e que deve figurar com destaque nas estantes de qualquer jazzófilo.



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PS.: Post dedicado ao querido mestre José Domingos Raffaelli, que contou aqui mesmo no JAZZ + BOSSA, a deliciosa história que inicia esta resenha, em um comentário feito sobre o disco “Afternoon In Paris”, de John Lewis e Sacha Distel.

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