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quinta-feira, 19 de julho de 2012

O QUE É QUE HÁ, VELHINHO?




O coelho Pernalonga é um dos mais longevos e queridos personagens da TV, com algumas incursões pelos quadrinhos e pelo cinema. Malandro, espirituoso, inteligente e sarcástico, ele é capaz de escapar das mais perigosas situações usando apenas o seu proverbial carisma e sua lábia aparentemente infinita. Criado em 1940 pelo animador Tex Avery e pelo roteirista Robert McKimson, ele até hoje encanta adultos e crianças do mundo inteiro.

Seus embates com adversários como o irascível Eufrazino, o atrapalhado Hortelino Troca-Letra e o invejoso Patolino estão entre os momentos mais criativos e hilariantes dos desenhos animados. Nos Estados Unidos, sua voz era feita pelo lendário Mel Blanc, responsável por dar vida a outros personagens clássicos como o Pato Donald e o Pica-Pau. No Brasil, coube ao dublador Mário Monjardim a honra de fazer a voz do coelho mais esperto do pedaço, na maior parte dos episódios exibidos no país.

Em 1996, Pernalonga protagonizou, juntamente com os astros do basquete Michael Jordan, Pat Ewing e Charles Barkley, o sucesso “Space Jam”, uma amalucada produção que mistura atores de carne e osso com personagens de desenho animado. O filme foi dirigido por Ivan Reitman e arrecadou mais de 230 milhões de dólares. Em 2002 o coelho foi eleito pela revista TV Guide como o mais importante personagem dos desenhos animados, ficando à frente de pesos-pesados como o Mickey Mouse, o Pato Donald, o Scooby-Doo e o Homem-Aranha.

Claro que nos desenhos do Pernalonga não poderia faltar um pouco de jazz e nomes respeitáveis, como Shorty Rogers, Bud Shank e Buddy Collete, participaram da trilha sonora de alguns dos seus episódios. O tema de abertura, “The Merry-Go-Round Broke Down”, de Cliff Friend e Dave Franklin, chegou a ser gravado por Barney Kessel. Muito embora não possuísse o mesmo temperamento irreverente, o saxofonista Johnny Hodges pode ser considerado uma espécie de Pernalonga do jazz.

A longevidade da carreira, sua a capacidade de se safar de qualquer situação e o amor que lhe devotavam crítica, público e colegas de profissão o colocam em um patamar bastante especial na história do jazz. Sua importância para o jazz, portanto, é comparável à do Pernalonga para a história dos desenhos animados. Além disso, para tornar ainda mais parecida a trajetória do músico e do personagem do desenho animado, Hodges atendia pelo simpático apelido de “Rabbit” (Coelho).

É quase consensual que antes do aparecimento de Charlie Parker, Johnny Hodges e Benny Carter reinaram absolutos no sax alto, sendo que ambos também foram bastante felizes em agregar às suas influências as idéias revolucionárias advindas com os músicos do bebop. Mas existem diferenças importantes entre as trajetórias dos dois. Benny construiu uma carreira solo das mais admiráveis, como instrumentista, compositor, arranjador e bandleader, sendo também um trompetista de vastos recursos. Hodges, por sua vez, concentrou-se apenas no sax alto e embora tenha se aventurado na composição e nos arranjos, jamais adquiriu a mesma notoriedade como bandleader.

Além disso, o nome de Hodges é absolutamente indissociável do nome de Duke Ellington, em cuja orquestra atuou por mais de quarenta anos e onde se notabilizou como o seu mais fulgurante solista. Tanto Ellington quanto Billy Strayhorn, seu maior parceiro nos arranjos e nas composições da big band, costumavam compor pensando, especificamente, nas características e na sonoridade de alguns membros da orquestra.  

Johnny Hodges foi, provavelmente, o músico mais contemplado por Ellington e Strayhorn com essa distinção. Dono de um fraseado singular e dotado de uma assombrosa versatilidade, ele era capaz de transitar pelo swing, pelo blues e pelas baladas com igual desenvoltura. Para o crítico britânico Richard Cook, ele “possuía um tom adocicado e uma abordagem tão perfeitamente ajustada que os sons saíam com um frescor quase indecente e uma jovialidade encantadora”.

John Cornelius Hodges nasceu no dia 25 de julho de 1906, na cidade de Cambridge, estado do Massachusetts. O amor pela música veio por intermédio da mãe, que tocava um pouco de piano. Em meados da década de 10, a família se mudou para Boston em busca de melhores condições de vida e o jovem Johnny logo se tornou amigo de um aspirante a saxofonista chamado Harry Carney, que no futuro seria seu grande parceiro na big band de Ellington, a bordo de um imponente sax barítono.

Aliás, Carney entrega o jogo e revela que Johnny ganhou o apelido de “Rabbit” na adolescência, porque era louco por cenouras e sanduíches de tomate e “soava como um coelho, ao mastigar”. Por conta da influência materna, o primeiro instrumento a que Hodges se dedicou foi o piano, trocado pouco depois pela bateria. Aos doze anos, decidiu experimentar o saxofone soprano e tomou gosto pela coisa. Seu primeiro ídolo foi Sidney Bechet e o garoto teve a honra de assisti-lo em uma apresentação em Boston. Após o concerto, Johnny se dirigiu aos bastidores e Bechet não apenas foi extremamente receptivo como também lhe deu diversas dicas sobre o instrumento.

Mesmo sendo essencialmente autodidata, Hodges demonstrou uma grande aptidão para o sax soprano e decidiu que seu futuro seria se tornar músico profissional. Decidido a tentar a sorte, mudou-se para Nova Iorque, em 1924, e ali acabou sendo contratado pelo pianista Willie “The Lion” Smith, cujo quarteto era atração fixa do Rhythm Club. No ano seguinte, reencontrou Sidney Bechet e tornou-se membro de sua banda, atração do Club Basha. Foi nessa época que ele adotou o sax alto e passou a dominá-lo com extrema perícia.

Em 1926 a orquestra de Chick Webb fazia um enorme sucesso no Savoy Ballroom e os bailes que realizava ali atraíam milhares de jovens praticamente todos os dias. O célebre bandleader contratou Hodges para a sua banda e ele permaneceu ali até maio de 1928. Foi naquele ano que Johnny, após breves passagens pelas orquestras de Lloyd Scott, Bobby Sawyer e Luckey Roberts, se juntou à Duke Ellington’s Orchestra. O resto é história, como diriam os antigos.

A empatia entre os dois foi imediata e a integração manifestou-se de uma maneira quase telepática. Além disso, o jovem saxofonista se viu cercado por alguns dos mais brilhantes músicos do início do século XX, como o baterista Sonny Greer, o saxofonista tenor Otto Hardwick, o trombonista Joe “Tricky Sam” Nanton e o clarinetista Barney Bigard, circunstância que lhe permitia um aprendizado contínuo e lhe ajudava a desenvolver a autoconfiança.

Em novembro daquele mesmo ano, Johnny fez os seus primeiros registros em estúdio ao lado da orquestra de Ellington, para a Okeh Records. Suas performances em gravações como “The Blues with a Feeling”, “Yellow Dog Blues”, “Stevedore Stomp”, “Tishomingo Blues”, “The Mooche” e “Beggar’s Blues”, dobrando nos saxes alto e soprano, foram tão impressionantes que levaram o crítico e escritor Albert Murray a proclamar que “provavelmente, nem Bessie Smith consegue cantar os blues tão bem quanto Johnny Hodges é capaz de tocá-los”.

Os anos 30 foram fundamentais para o desenvolvimento e a consolidação da orquestra de Ellington como a mais influente daquele período, embora não fosse a primeira em popularidade, ficando atrás de big bands como as dos irmãos Dorsey, de Benny Goodman e, sobretudo, de Glenn Miller. Todas eram fabulosas, certamente, mas nenhuma delas tinha o brilho ou exercia fascínio igual ao da Duke Ellington’s Orchestra.

Além disso, foram sendo incorporados àquele verdadeiro celeiro de craques alguns dos mais formidáveis instrumentistas de qualquer época, como os trombonistas Juan Tizol (que entrou em 1929) e Lawrence Brown (1932), os trompetistas Cootie Williams (1929) e Rex Stewart (1933), e o saxofonista Marshal Royal. Hodges cresceu como solista, na mesma medida em que a big band conquistava o respeito e a admiração de público e crítica.

Canções como “Prelude to a Kiss” e Squatty Roo”, de 1938, “Warm Valley”, de 1940, “Things Ain’t What They Used To Be”, composta pelo filho de Duke, o futuro bandleader Mercer Ellington, em 1941, e “Passion Flower”, também lançada naquele ano, mas de autoria do genial Billy Strayhorn, ajudaram a consolidar a mística da orquestra de Ellington e a firmar o nome de Hodges como o mais respeitado e influente altoísta das décadas de 30 e 40.

Para que se tenha uma idéia do seu prestígio, Benny Goodman costumava dizer que “Hodges é, de longe, o maior saxofonista alto que eu já ouvi”. Tanto é assim que o clarinetista fez questão de convidá-lo para participar do célebre concerto do Carnegie Hall, realizado em 1938. Johnny também atuou como sideman em álbuns da Teddy Wilson e Lionel Hampton e abocanhou inúmeros prêmios de melhor altoísta, concedidos por revistas especializadas como a Downbeat, a Metronome e a Esquire.

Apesar de atuar dentro de uma orquestra, Hodges sempre preservou intacto o seu individualismo como intérprete, mantendo-se como uma voz de enorme personalidade. O próprio Ellington era o primeiro a reconhecer essa qualidade, tendo declarado certa vez: “Johnny Hodges possui uma absoluta independência em sua maneira de se expressar. Ele diz o que quer dizer com o seu instrumento, nos seus próprios termos, em sua própria linguagem, a partir de uma perspectiva bastante pessoal”.

No entanto, o que parecia impossível aconteceu: em 1951 Hodges deixou a big band de Ellington de maneira bastante conturbada. As desavenças começaram quando o saxofonista passou a reivindicar a autoria de algumas canções compostas por Ellington, cujo processo criativo se notabilizava pela apropriação de frases criadas por vários dos seus músicos. O trombonista Lawrence Brown explica como essa simbiose funcionava: “Alguém tocava uma linha melódica, Ellington apanhava a idéia, elaborava um contraponto àquela melodia e ao final aparecia com uma coisa absolutamente nova”.

Mas Hodges não se conformava em ficar sem os créditos por suas colaborações para o repertório da banda e o clima entre ele e o líder tornou-se insustentável. Reza a lenda que durante um concerto, após executar um solo numa das composições que ele afirmava ter sido baseada em suas idéias, o saxofonista interpelou o maestro de forma irônica, esfregando o polegar e o indicador, como se estivesse contando dinheiro e perguntando: “Onde está a minha grana”?

Após deixar Ellington, o saxofonista montou seus próprios grupos, inclusive uma big band, mas não foi bem-sucedido, do ponto de vista financeiro. Apesar de contar com os talentos de alguns ex-companheiros da banda de Duke, como o trombonista Lawrence Brown e o baterista Sonny Greer, além de um jovem tenorista chamado John Coltrane, a big band de Hodges emplacou um único hit, “Castle Rock”, composta pelo também saxofonista Al Sears, mas o sucesso solitário não foi suficiente para manter a banda em atividade.

Hodges foi membro da banda do programa televisivo “Ted Steele Show”, gravou alguns álbuns como líder para a Verve e, a convite de Norman Granz, integrou a caravana Jazz at the Philharmonic, permitindo-lhe que convivesse e tocasse com outras estrelas do jazz, como Charlie Parker, Benny Carter, Roy Eldridge, Ben Webster, Charlie Shavers, Kai Winding, Oscar Peterson, Ray Brown, Barney Kessel, Dizzy Gillespie e Louie Bellson.

Johnny retornou à orquestra de Ellington em 1955 e manteve o status de principal estrela da banda, conseguindo ofuscar até mesmo pesos-pesados como Paul Gonsalves, Ray Nance, Cat Anderson, Russell Procope, Juan Tizol e seu velho amigo Harry Carney. No ano seguinte, marcou presença na aclamada apresentação da big band no Newport Jazz Festival. Paralelamente, continuou a gravar discos como líder, para selos como RCA-Victor, Clef Records, Verve, Atlantic e Impulse.

Um dos momentos mais sublimes da discografia de Hodges é o formidável “Gerry Mulligan Meets Johnny Hodges”, gravado em Los Angeles, no dia 17 de novembro de 1959, para a Verve. Além de Mulligan (sax barítono) e Hodges (sax alto), participaram da sessão nomes de primeira linha do West Coast Jazz, como o pianista Claude Williamson, o contrabaixista Buddy Clark e o baterista Mel Lewis.

A abertura fica por conta de “Bunny”, tema que Mulligan compôs em homenagem a Hodges. É uma melodia assobiável, simples e contagiante, com nítida influência do swing, mas que também agrega elementos harmônicos do bebop, sobretudo durante as intervenções do baritonista, e do blues, graças à levada pulsante de Clark. O som que Hodges extrai do sax alto é límpido, cristalino, sóbrio, não dando espaço para malabarismos ou firulas estéreis e elaborando passagens dotadas de uma elegância natural, que soam como se tivessem sido concebidas de maneira absolutamente intuitiva.

Também de autoria de Mulligan, a balada “What’s the Rush” vem a seguir. Delicada e com uma atmosfera ellingtoniana, ela é um veículo mais que adequado para que Hodges exiba a sua proverbial sensibilidade, por meio de frases lânguidas, entrecortadas por um vibrato repleto de lirismo. O piano intimista de Williamson e a percussão mínima de Lewis ajudam a tornar a audição uma experiência comovente. Reza a lenda que Mulligan preferiu não participar da sessão e ficou sentado nos fundos do estúdio, apenas assistindo à performance inebriante de Johnny.

O blues “Black Beat” é uma composição de Hodges, crispada e com uma batida infecciosa. O altoísta imprime linhas melódicas rápidas e serpenteantes, sem se descuidar do tom evocativo que torna o blues um estilo tão confessional. O suporte rítmico é vigoroso, com destaque para os fulgurantes acordes de Williamson. A abordagem de Mulligan é mais introspectiva e suas frases são mais longas e diretas, fazendo um empolgante contraponto à velocidade do parceiro.

Mais um blues da lavra de Hodges, “What It's All About” tem um andamento cadenciado, em tempo médio, e uma batida infecciosa. A marcação feita por Clark e Lewis é impecável, destacando-se o espetacular trabalho do segundo com os pratos. Mulligan possui um sopro potente, ressonante, profundo, e trafega pelos registros mais graves do sax barítono com enorme autoridade. A intimidade de Hodges com o blues é saudada como uma de suas mais notáveis características e aqui as suas qualidades emergem de maneira impressionante, indo até o âmago do blues com uma elevada carga dramática.

A eletrizante “18 Carrots (For Rabbit)” é mais uma homenagem de Mulligan ao distinto parceiro. Executada em velocidade supersônica, é a mais impregnada de elementos do bebop, não apenas do ponto de vista melódico como, sobretudo, harmônico. O entusiasmado Williamson incorpora o espírito de Bud Powell, com um ataque vigoroso e certeiro. Lewis praticamente destrói sua bateria, numa formidável exibição de técnica e ferocidade. Os lancinantes agudos de Hodges e seus duelos com Mulligan são momentos de indiscutível maestria.

Para encerrar, mais uma balada de refinados contornos ellingtonianos, “Shady Side”. Atuando em uníssono, os líderes mostram sonoridades distintas, mas complementares. Nos solos, Hodges é mais incisivo e Mulligan mais melancólico. A urdidura melódica concebida pela sessão rítmica, em especial por Williamson, é inebriante, guardando alguma semelhança com os belíssimos temas românticos de Charlie Mingus, especialmente em “Open Letter to the Duke” e “Goodbye Pork Pie Hat”.

Um disco que dignifica as biografias de todos os envolvidos e que dá uma ótima idéia do gigantesco talento de Hodges, mostrando-o como criador de uma arte atemporal, que mereceu da revista Downbeat a seguinte avaliação: “é uma música casual e sem ostentação, que incorpora, de modo bastante apropriado, elementos ligados ao passado, ao presente e ao futuro do jazz”.

Aliás, no ótimo texto de apresentação, escrito por Nat Hentoff, o crítico reproduz a opinião de Mulligan sobre o seu parceiro na empreitada: “A exigência diária para que se faça algo ‘novo’ todos os dias é uma maneira significativamente imatura de encarar a vida e a arte. As pessoas vivem querendo obrigar os músicos, e outros artistas, a sempre inventar algo ‘novo’ e não se dão conta de que isso é uma forma de cercear a criatividade. Esse tipo de pressão revela algo sobre a nossa própria cultura: se algumas pessoas não conseguem compreender o quão maduro e individual é o som de Hodges, eu lamento bastante por elas”.

Além da participação na orquestra de Ellington, Hodges era um parceiro habitual do maestro em seus pequenos grupos, chegando mesmo a dividir com este os créditos em alguns discos, como os formidáveis “Side by Side” e “Back to Back: Duke Ellington and Johnny Hodges Play the Blues”, ambos para a Verve. Em 1962 gravou, também para a Verve, o álbum “Johnny Hodges with Billy Strayhorn and the Orchestra”, dividindo a liderança com o amigo e companheiro de banda Billy Strayhorn.

Em 1961, ele foi um dos destaques da vitoriosa excursão européia feita pelos “The Ellington Giants”, que reuniu alguns dos maiores nomes que já passaram pela big band do maestro. Durante a década de 60, ele excursionou com jazzistas de renome, como o organista Wild Bill Davison, o saxofonista Ben Webster e o pianista Earl Hines, com quem gravou “Stride Right” (Verve, 1966). Outro ponto alto da sua discografia é “Everybody Knows Johnny Hodges” (1965), lançado pela Impulse, com produção de Creed Taylor.

Johnny Hodges morreu no dia 11 de maio de 1970, de um infarto fulminante. Estava no consultório do seu dentista e, dizem as más línguas, teve o ataque cardíaco após receber a conta. A morte o abateu no meio das gravações da “New Orleans Suite”, ambicioso projeto orquestral de autoria de Duke Ellington. Ao saber de sua morte, o maestro comentou: “Johnny é insubstituível. Com a sua partida, o som da nossa orquestra jamais será o mesmo. Sou feliz e grato a Deus por haver tido o privilégio de tê-lo ao meu lado, noite após noite, por quase quarenta anos”.

Uma semana antes de falecer, Hodges havia deixado em êxtase a platéia que lotou o Imperial Room, em Toronto, no Canadá. Foi a sua última apresentação. Em reconhecimento à sua trajetória e à sua gigantesca contribuição para o jazz, a revista Downbeat incluiu o nome do saxofonista em seu Hall of Fame, ainda em 1970, em votação da crítica.

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terça-feira, 10 de julho de 2012

OS PRIMÓRDIOS DA BOSSA NOVA E O LEGADO DE JOHNNY ALF (um texto de José Domingos Raffaelli)




Como todas as artes, a bossa nova tem uma pré-história cujos principais precursores nos anos 40 foram o violonista Garoto, tocando harmonizações alteradas e dissonantes, o pianista Dick Farney e o compositor Custódio Mesquita, cujos maiores sucessos são dois fox-trots ao melhor estilo americano ("Mulher" e "Nada Além"). O conjunto Os Cariocas inovou a forma de cantar dos conjuntos vocais nacionais com harmonizações ousadas assimiladas dos grupos vocais americanos.

Os anos 50 revelaram músicos e compositores influenciados por jazz que introduziram novidades melódico-harmônicas, principalmente o pioneiro pianista e compositor Johnny Alf. Suas atuações no bar do Hotel Plaza, no Rio de Janeiro, em 1953/54, atraiam a atenção dos jovens músicos e cantores que, cativados por suas inovações, iam ouvi-lo todas as noites, entre eles João Gilberto, Candinho (violão), Luiz Bonfá (violão e compositor), Aurino Ferreira (saxofonista), João Donato (pianista, acordeonista e compositor), Bebeto Castilho e Manuel Gusmão (baixistas), Sylvia Telles, Claudete Soares e Alaíde Costa (cantoras), Luiz Eça (pianista) e Lucio Alves (cantor).

A influência de Alf mudou os rumos da música brasileira com suas composições rebuscadas, harmonicamente ousadas e sentido melódico de beleza invulgar. Foi um passo gigantesco para a renovação da linguagem que germinou a semente da bossa nova. Alf era o centro das atenções dos jovens. Um deles, o pianista-compositor Antonio Carlos Jobim, que seria outro artífice da bossa nova, fascinado pelas harmonizações de Alf, aprendeu com ele os segredos da sua concepção harmônica.

Com a gravação do clássico "Rapaz de Bem", que mudou a concepção melódico-harmônica da música popular brasileira, Alf apontava os rumos a seguir, sendo considerado o pai espiritual da bossa nova. Algumas das suas obras-primas, além de "Rapaz de Bem", são "Ilusão a Toa", "Céu e Mar", "Fim de Semana em Eldorado", Disa (outra maravilha que ficou esquecida na poeira do tempo), "O Que é Amar" e a seminal "Eu e a Brisa", provavelmente a maior de todas suas geniais obras.

Outra influência decisiva para o nascimento da bossa nova foi o disco "Brazilliance", do violonista Laurindo Almeida e o saxofonista Bud Shank, realizando uma inédita fusão de jazz com música brasileira, causando sensação pelas audaciosas improvisações de Shank, provando ser possível improvisar sobre temas brasileiros, algo inimaginável na época. Na época, um grande saxofonista brasileiro declarou solenemente "ser impossível improvisar sobre música brasileira"...

O violonista e compositor Luiz Bonfá deu sua contribuição ganhando fama internacional com "Manhã de Carnaval", carro-chefe da trilha do filme Orfeu do Carnaval, e "Samba de Orfeu". Outras obras suas de realce são "Menina Flor", "The Gentle Rain", "Saudade Vem Correndo" e "Mania de Maria".

Nos idos de 1956/57, João Gilberto ouvia exaustivamente o disco “Chet Baker Sings” numa cabine da lendária Lojas Murray. Impressionado pelo estilo coloquial de Baker, João mudou radicalmente sua maneira de cantar, deixando de imitar Orlando Silva para adotar o estilo vocal de Baker, transformando-se no maior ícone da bossa nova ao lado de Antonio Carlos Jobim. Sua batida de violão originou a característica rítmica essencial da bossa nova. Mundialmente famoso, João Gilberto continua cantando com grande sucesso em todo o mundo. 

Outro notável talento foi João Donato, cujo estilo original influenciado pelo jazz é evidenciado em "Minha Saudade", "Silk Stop", "Até Quem Sabe" e "A Rã". Ele radicou-se em Los Angeles em 1959, onde morou até 1973, gravando e tocando com músicos de jazz e latinos. Donato continua em franca atividade, gravando e bastante requisitado para turnês nos Estados Unidos, Europa e Japão. 

Historicamente, em 1958 coube à cantora Elizeth Cardoso gravar o primeiro disco de bossa nova: "Canção do Amor Demais", com participação de João Gilberto no violão. A essa altura, começava a frutífera parceria de Antonio Carlos Jobim com Vinicius de Morais, artífice das letras de inúmeras canções conhecidas em todo o mundo.

No mesmo ano, um grupo de jovens empolgados pelas tendências da nova música reunia-se na casa da cantora Nara Leão para explorarem novo repertório. Alguns participantes desses encontros foram Roberto Menescal, Ronaldo Boscoli, Carlos Lyra, Chico Feitosa, Durval Ferreira e Oscar Castro Neves, que muito contribuíram para o sucesso do movimento.

Paralelamente, a música fervilhava nos quatro clubes do lendário Beco das Garrafas, réplica carioca da Rua 52, de New York. Todas as noites alguém trazia uma nova composição, uma nova idéia, um novo arranjo. Naqueles clubes apresentaram-se os pianistas Luiz Carlos Vinhas, Luiz Eça, Sérgio Mendes, Toninho Oliveira, Dom Salvador e Tenório Junior; violonistas Baden Powell, Neco, Rosinha de Valença, Waltel Branco e Oscar Castro Neves; cantoras Claudete Soares, Leny Andrade, Alaíde Costa e Sylvia Telles; trombonistas Raul de Souza e Edson Maciel; baixistas Sérgio Barrozo, Tião Neto e Manuel Gusmão; saxofonistas Jorge Ferreira da Silva, J. T. Meirelles e Aurino Ferreira; bateristas Edison Machado, Victor Manga, Milton Banana e Dom Um Romão; e gaitista Maurício Einhorn.

Os músicos começaram a desenvolver o samba-jazz inspirados nas improvisações do disco "Brazilliance", de Laurindo Almeida e Bud Shank, despontando os conjuntos Tamba Trio, Bossa Três, Salvador Trio, Trio 3-D e Rio 65 Trio. A juventude brasileira foi arrebatada pela bossa nova com o disco "Chega de Saudade", de João Gilberto, definindo as bases do novo idioma com inovações na melodia, harmonia e no ritmo, sendo cultuado por músicos, cantores e ouvintes.

Pouco a pouco, a nova música começou a ganhar fama internacional a partir de 1959, com quatro acontecimentos decisivos para seu sucesso no exterior. Primeiro, o guitarrista Charlie Byrd fez uma turnê brasileira e, encantado com o que ouviu, na volta aos USA gravou vários discos com músicas brasileiras. Segundo, quando vieram ao Brasil o conjunto American Jazz Festival e o quinteto do trompetista Dizzy Gillespie, em 1961; ao regressarem, Gillespie, Lalo Schifrin (piano), Zoot Sims e Coleman Hawkins (sax), Herbie Mann (flauta) e Curtis Fuller (trombone) gravaram discos de bossa nova. Terceiro, em 1962, Charlie Byrd e o saxofonista Stan Getz gravaram o LP "Jazz Samba", e "Desafinado" tornou-se um sucesso monumental da noite para o dia. Sua repercussão originou a organização de um concerto de bossa nova no Carnegie Hall com músicos brasileiros, abrindo um mercado internacional de trabalho para os artistas nacionais. 

No ano seguinte, Stan Getz gravou com João Gilberto e Antonio Carlos Jobim o disco que transformou "Garota de Ipanema" na marca registrada de Jobim e da bossa nova, no qual Astrud Gilberto estreou como cantora. A essa altura, Jobim era o grande nome da bossa nova; mundialmente famoso, seu prestígio era cada vez maior e suas composições eram sucessos retumbantes em quase todos os países do planeta.

A bossa nova conquistou o público com suas belas melodias, harmonias sofisticadas e seu ritmo sutil e original. Entre incontáveis sucessos, ficaram para a posteridade "Chega de Saudade", "Desafinado", "Garota de Ipanema", "Samba de Uma Nota Só", "Meditação", "Corcovado", "O Amor em Paz", "Samba do Avião", "Inútil Paisagem", "Dindi", "Triste", "A Felicidade", "Lígia", "Vivo Sonhando", "Se Todos Fossem Iguais a Você", "Só Danço Samba" e "Insensatez" (Jobim); "Influência do Jazz", "Primavera", "Minha Namorada", "Maria Ninguém", "Se É Tarde Me Perdoa", "Lobo Bobo" e "Você e Eu" (Carlos Lyra), "Barquinho", "Rio", "Você" e "Vagamente" (Roberto Menescal), "Batida Diferente", "Chuva" e "Estamos Aí" (Maurício Einhorn)

Com o sucesso do rock e dos Beatles, a bossa nova deixou de ser a música da juventude brasileira, embora continuasse prestigiada no exterior até hoje. Na geração pós-bossa nova destacaram-se Edu Lobo, Chico Buarque, Djavan, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Marcos Valle, mas somente este aderiu ao estilo.  

Após longo período de estagnação, nas últimas duas décadas houve um renascimento da bossa nova no Brasil com shows, festivais, gravações e reedições de discos daquele período que continua sendo o mais criativo da música popular brasileira de todos os tempos.


A BOSSA NOVA

A bossa nova foi o grande divisor de águas da nossa música popular, gerando a maior revolução melódico-rítmico-harmônica de todos os tempos que inaugurou a era moderna da MPB. A bossa nova foi para a música brasileira o equivalente do bebop para o jazz nos anos 40, e o lendário Beco das Garrafas representou o que foi a Rua 52, em Nova York. Foi nos quatro clubes daquele pequeno quarteirão de Copacabana que parte dos futuros astros da bossa nova iniciaram suas carreiras.  

Freqüentei assiduamente o Beco das Garrafas, que fervilhava todas as noites com a pulsação dos novos rumos que tomava nossa música, sendo testemunha ocular e auditiva daquele movimento desde seu nascedouro, cuja beleza melódica conquistou ouvintes em  todo o mundo, abrindo um mercado internacional de trabalho para nossos músicos, compositores e cantores. Naqueles anos dourados, entre 1958 e 1963, a bossa nova foi a música da nossa juventude, que se rendeu aos encantos das suas melodias e versos poético-românticos.

Muito foi escrito sobre a bossa nova, embora a grande maioria jamais tenha pisado no Beco das Garrafas ou tenha freqüentado seus quatro clubes, limitando-se a transcrever entrevistas com opiniões de terceiros, nem sempre confiáveis. Ao festejar seu cinqüentenário, a bossa nova conquistou uma enorme audiência em todos os países do mundo, sendo o maior e melhor artigo de exportação do Brasil.

JOHNNY ALF

A música popular brasileira teve uma perda irreparável com o desaparecimento de Johnny Alf (Alfredo José da Silva), dia 04 deste mês, aos 80 anos. Alf foi o pai espiritual da bossa nova, cujas sementes ele plantou na Cantina do César, em 1950/51 e em 1953/54 tocando no bar do Hotel Plaza, no Rio de Janeiro. Todas as noites iam ouvi-lo Luiz Eça, Sylvinha Telles, Neco, Bebeto, Oscar Castro Neves, Edson Maciel, Edison Machado, Baden Powell, Cipó, Aurino Ferreira, Carlos Lyra, Mauricio Einhorn, Pedro Paulo, Tião Neto, Manuel Gusmão, Mario Castro Neves, Oscar Castro Neves, Dom Um Romão, Marcos Szpillman, Jorginho Ferreira da Silva, João Luiz Maciel, Paulo Moura, Duba, Alfredo de Paula, Alaíde Costa, Ed Lincoln, Tom Jobim e tantos outros. Fascinado pelas harmonizações avançadas de Alf, Jobim (que era pianista da noite do Clube da Chave), pediu que lhe desse aulas para aprender a harmonizar de forma moderna.

Alf era muito educado, atencioso e tratava todos muito bem. Eu o conheci num sebo de discos, em 1949. Estávamos lado a lado na seção de música americana e depois de algum tempo começamos a conversar enquanto olhávamos os discos. Depois de comprar o que queríamos, saímos da loja conversando e paramos para tomar um café. Quando nos despedimos, ele perguntou se eu queria ir ao Sinatra-Farney Fã Clube, do qual era sócio.

Fui e lá conheci muita gente jovem e vários deles tornaram-se meus amigos. Depois de alguns dias, encontrei na rua o apresentador de rádio Cesar de Alencar, que era muito popular. Ele disse que ia inaugurar uma casa noturna (chamou-se Cantina do César) e precisava de um bom pianista que cantasse em português e inglês. Na mesma hora disse-lhe que conhecia o melhor de todos: Johnny Alf. Surpreso por não conhecer Alf, pediu que falasse com ele sobre o trabalho. Não deu outra: Johnny foi lá e estreou logo depois. Foi um grande sucesso. Logo espalhou-se a notícia que um novo pianista na Cantina do César era um fenômeno, tocava harmonias audaciosas como ninguém no Brasil.

Assim começou a carreira profissional dele. Infelizmente, ele nunca teve o reconhecimento que deveria receber, apesar dos verdadeiros conhecedores sempre o admirarem e prestigiarem. Johnny Alf foi um gênio, um músico à frente da sua época que deixou uma obra fenomenal, valiosa e repleta de canções admiráveis, verdadeiras obras-primas que chamavam a atenção dos músicos e cantores e permanecerão para sempre na história da MPB. Para mim, Johnny Alf foi o maior compositor brasileiro de todos os tempos. Sem ele não existiria a bossa nova. JOHNNY ALF, "All I can add is There'll Never Be Another You".


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PS.: O texto do mestre Raffaelli foi escrito em março de 2010, pouco tempo depois da morte de Johnny Alf, ocorrida no dia 04 daquele mês.

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sexta-feira, 6 de julho de 2012

O CAÇULA DOS “TRÊS GRANDES”




O nome do cidadão impressiona. Afinal de contas, quantos sujeitos chamados Luigi Paulino Alfredo Francesco Antonio Balassoni deram as caras no jazz? Para tornar mais fácil a vida dos amantes do estilo, ele resolveu simplificar as coisas e adotou um nome artístico bastante singelo: Louie Bellson. Com esse nome bem curtinho, ele abriu as portas do sucesso e se tornou um dos três principais bateristas da Era do Swing. Os outros dois, obviamente, são Gene Krupa e Buddy Rich (não é por acaso que os fãs de jazz costumam se referir a eles como “The Big Three”).

Nascido no dia 06 de julho de 1924, em Rock Falls, Illinois, Louie provinha, logicamente, de uma família de origem italiana. Seu pai era dono de uma loja de instrumentos musicais e aos três anos ele começou a aprender piano. Ainda na infância, passou para a bateria e graças à influência paterna, aprendeu harmonia e teoria musical. Louie estudou na Moline High School, na cidade vizinha de Moline, e ali aprofundou seus estudos musicais. Suas primeiras influências foram Jo Jones, Big Sid Catlett e Chick Webb e as primeiras lições vieram pelas mãos de Roy Knapp.

Quando já era um músico consagrado, declarou em uma entrevista: “Eu tenho uma enorme dívida para com Big Sid Catlett e Jo Jones. Eles exerceram uma enorme influência na minha maneira de tocar. Nós, bateristas mais novos, olhávamos para Jones e o chamávamos de ‘Papa’ Jo porque ele realmente era genial. Mas também não podemos nos esquecer das contribuições de Big Sid Catlett e Chick Webb. Gene foi fundamental para popularizar a bateria como um instrumento solo e Buddy é um baterista formidável, mas nós três somos herdeiros de Jo, Sid e Chick”.

O espírito inovador manifestou-se desde a mais tenra idade. Com apenas 15 anos, Louie montou um kit de bateria com dois bumbos e foi um dos primeiros bateristas de jazz a fazer uso constante desse equipamento. Em 1941, Bellson venceu o Slingerland National Gene Krupa Contest, um concurso nacional de bateristas que contou com a participação de cerca de 40 mil candidatos. O prêmio lhe rendeu uma grande visibilidade e poucos meses depois, o jovem foi contratado pelo bandleader Ted Fio Rito, cuja orquestra era atração fixa no clube Florentine Gardens, em Los Angeles.

No ano seguinte, o garoto de apenas dezoito anos seria convidado por Benny Goodman para integrar a sua famosa big band. Além dos concertos e álbuns, a orquestra de Goodman era bastante requisitada no cinema e Bellson teve a oportunidade de aparecer em diversos filmes ao lado do patrão. O primeiro deles foi “The Powers Girl”, de 1942, estrelado por George Murphy e que contava com Peggy Lee no elenco.

Louie também pode ser visto em “The Gang’s All Here” (no Brasil, “Entre a loura e a morena”), de 1943, que foi dirigido pelo lendário Busby Berkeley  e que tinha Alice Faye e Carmen Miranda nos papéis principais. Em 1948, Bellson marcaria presença em outra produção importante, “A Song Is Born” (no Brasil, “A canção prometida”), estrelada por Danny Kaye e Virginia Mayi, com direção de Howard Hawks, ao lado de jazzistas de peso, como, Louis Armstrong, Benny Goodman, Lionel Hampton, Tommy Dorsey, Page Cavanaugh, Charlie Barnet e Benny Carter, entre outros.

A associação com o clarinetista, entretanto, seria subitamente interrompida no final de 1943, por conta da convocação de Bellson para o exército. Felizmente, ele não foi mandado para as frentes de batalha – o mundo vivia as agruras da II Grande Guerra – e pôde continuar a tocar nas orquestras das forças armadas. Em 1946, já de volta à vida civil, o baterista pôde se juntar novamente à orquestra de Goodman. Seguiram-se, então, trabalhos nas big bands de Tommy Dorsey, entre 1947 e 1949, e de Harry James, entre 1950 e 1951.

Do final dos anos 40 até meados dos anos 50, Bellson foi um assíduo integrante da caravana “Jazz at the Philarmonics”, de Norman Granz, tendo a oportunidade de tocar ao lado de gênios como Art Tatum, Oscar Peterson, Dizzy Gillespie, Roy Eldridge e muitos outros. Sobre os concertos, Louie recorda: “Nós tocávamos nos melhores teatros do país e os espetáculos duravam no máximo duas horas e meia. Mas tocar por duas horas e meia com aqueles caras equivalia a tocar cinco horas com outros músicos. Eu adorava aquilo”.

No final de 1951, Louie foi chamado para substituir Sonny Greer na orquestra de Duke Ellington. Durante os quase três anos de associação com o maestro, os dois desenvolveram uma sólida amizade e um intenso respeito profissional. Ellington costumava dizer que Bellson “não é apenas o maior baterista do mundo, mas o maior músico do mundo”. Composições do baterista, como “Skin Deep” e “The Hawk Talks”, foram gravadas e incorporadas ao repertório da big band.

A história desta última é bem curiosa. Louie compôs o tema pensando em Harry James, cujo apelido era “The Hawk”. O trombonista Juan Tizol gostou do que ouviu e sugeriu que Bellson mostrasse a sua composição ao patrão. O baterista se mostrou cético com a proposta e conta o resto da história: “Eu perguntei a Juan: ‘Você está louco? Você quer que eu mostre a minha música numa orquestra em que os compositores são gênios como Duke Ellington e Billy Strayhorn? De jeito nenhum!’. Mas ao final, eu criei coragem, mostrei o tema a Duke e ele acabou gravando. Duke me ensinou a escrever música, me ensinou a ser original. Ele sabia tudo sobre comandar uma orquestra, sabia exatamente como cada peça deveria soar, da sessão rítmica aos metais”.

Em 1952, Bellson, que era o único músico branco da orquestra de Ellington, casou-se com a atriz e cantora negra Pearl Bailey, em Londres, assumindo também a direção musical de seus discos, shows e do programa de TV que ela apresentou no final daquela década, na rede ABC, chamado “The Pearl Bailey Show”. O casamento perduraria até a morte de Pearl, em 1990. Bellson e Bailey estão entre os artistas que mais vezes se apresentaram na Casa Branca e a marca do casal somente é superada pelo comediante Bob Hope. O casal morou algum tempo na Inglaterra nos anos 50, por temer as reaçõess que um casamento interracial pudessem despertar na preconceituosa sociedade norte-americana da época.

Como músico de apoio, o nome de Bellson pode ser lido nos créditos de álbuns de centenas de artistas, como Count Basie, Della Reese, Woody Herman, Sarah Vaughan, Ella Fitzgerald, Oscar Peterson, Dizzy Gillespie, Louie Armstrong, Joe Pass, Ray Brown, Benny Carter, Art Tatum, Dizzy Gillespie, Gerry Mulligan, Stan Getz, Hank Jones, Zoot Sims, Sonny Stitt, Milt Jackson, Clark Terry, Eddie “Lockjaw” Davis, Lionel Hampton, James Brown, Sammy Davis Jr., Tony Bennett, Mel Torme, Joe Williams e muitos outros. Estima-se que o baterista tenha participado de mais de mil gravações como sideman.

Além da extensa agenda como acompanhante, Bellson também se envolveu em projetos de educação musical, ministrando oficinas e seminários pelos Estados Unidos, e ajudou a desenvolver produtos para a fábrica de pratos para bateria Zildjian Company. Em 1963 ele voltou a trabalhar com Duke Ellington em várias ocasiões, sendo a primeira delas no musical “My People”, em homenagem ao centenário da abolição da escravatura e no “The First Sacred Concert”, de 1965, um concerto de música sacra descrito pelo maestro como “a coisa mais importante que eu já fiz na vida”.

Em 1966 foi a vez de trabalhar novamente com Ellington, desta feita na trilha sonora de “Assault on a Queen” (no Brasil, “Assalto em um transatlântico”), aventura estrelada por Frank Sinatra e pela atriz italiana Virna Lisi. No ano seguinte, Bellson gravaria para o selo britânico Studio 2 o álbum “Repercussion”, onde divide os créditos com o baterista inglês Eric Delaney. 

Bellson tinha muitos admiradores no Reino Unido e realizou diversos trabalhos ali. Em 1971 ele foi um dos participantes do concerto em homenagem ao falecido baterista Frank King, realizado no Queen Elizabeth Hall, em Londres, e que também contou com as participações dos formidáveis Kenny Clare e Buddy Rich na bateria. Com arranjos e regência de Bobby Lamb, o concerto foi gravado pelo selo Vocalion e disponibilizado em cd em 2011.

Ainda na Terra da Rainha, ele gravaria outros discos, como “Louie in London” (DRG, 1970), que conta com a participação do trompetista Kenny Wheeler, “London Scene” (Concord, 1980), à frente de uma big band formada por músicos ingleses e norte-americanos, “Live at Ronnie Scott’s” (Concord, 1980), gravado ao vivo no célebre clube londrino, e “The London Gig” (Pablo, 1982), outra vez comandando uma big band, tendo na sessão rítmica os experientes George Duvivier (contrabaixo) e Frank Strazzeri (piano).

A obra de Bellson como líder está registrada em uma longa e consistente discografia, espalhada por selos como Norgran, Verve, Roulette, DRG, Nimbus, Fantasy, Telarc, Capri, Pablo e Concord. Entre seus músicos de apoio, nomes consagrados como Blue Mitchell, Harry “Sweets” Edison, Frank Rosolino, Nat Pierce, Don Menza, Clark Terry, Carl Fontana, Conte Candoli, Bill Holman ou Snooky Young aparecem nos créditos ao lado de jovens em início de carreira como Ted Nash, Pete Christlieb ou Dennis Chambers.

Para a Concord, casa que o abrigou de 1974 até a segunda metade dos anos 80, Bellson gravou aproximadamente dez álbuns, dividindo-se entre a liderança de orquestras e de pequenos grupos. Neste último formato, destaca-se o ótimo “Live at the Jazz Showcase”, gravado em outubro de 1987 e que flagra o quarteto de Bellson durante uma temporada no templo do jazz de Chicago. A banda é complementada por Don Menza (que se divide entre o sax tenor e a flauta), Larry Novak (piano) e John Heard (contrabaixo).

A tempestuosa “Sonny Side”, bebop de autoria de Sonny Stitt, abre o disco com o quarteto em estado de ebulição. A interação do líder com os seus comandados é quase telepática, sobretudo com o veterano Heard, e seu domínio da sintaxe bop é absoluto. Apesar de pouco conhecido, Novak se mostra um acompanhante versátil e de grande desenvoltura. O sopro de Menza é feroz, vigoroso, enfático, capaz de conciliar técnica e impetuosidade em igual medida, e seus solos são harmonicamente desafiadores.

“Duke’s Blues” é um tema de Bellson, composto em homenagem ao ex-patrão Duke Ellington. Trata-se de um blues solene, dramático em algumas passagens, especialmente durante as intervenções de Menza, cujas frases sinuosas revelam um intérprete destemido e maduro. Os graves de Heard são profundos, ressonantes e traduzem a influência de Oscar Pettiford em sua maneira de tocar. A percussão de Bellson cria nuances imprevisíveis, merecendo amplo destaque sua criativa utilização dos pratos.

“3 P.M.” foi composta pelo líder, em parceria com o guitarrista Remo Palmieri, um veterano dos primeiros tempos do bebop e hoje injustamente esquecido. É uma balada charmosa, com uma linha de baixo delicadamente hipnótica e um piano espirituoso, que se insinua pela melodia com leveza e graça. O andamento de valsa e a estrutura minimalista do tema exigem uma postura quase contemplativa por parte de Bellson. Com a flauta, Menza exibe uma sensibilidade comovente e demonstra ter absorvido bem as lições de geniais predecessores como Frank Wess ou Herbie Mann.

Dick Gasparre, George Fragos e Jack Baker são os autores “I Hear A Rhapsody”, standard que recebe um arranjo musculoso e francamente orientado para o bebop. O ágil Novak se esmera em improvisos complexos e a exuberância do seu toque deixa perceber a influência de Bud Powell em sua formação. O líder brilha com intensidade solar, imprimindo uma levada inventiva e seus diálogos com Menza, no estilo “pergunta e resposta” são arrebatadores.

Em seguida, é a vez de “Walkin’ With Buddy”, outra parceria de Bellson e Palmieri, desta feita prestando tributo a Buddy Rich. É um tema sincopado, com ecos de blues e uma batida infecciosa, que evoca os melhores momentos do soul-jazz dos anos 60. Menza tem uma de suas atuações mais empolgantes, construindo frases nervosas, inquietas, cheias de efeitos. Louie é dono de uma técnica soberba e domina seu instrumento como poucos, mas é incapaz de resvalar pelo exibicionismo que, muitas vezes, contaminava as performances de Rich.

Composta por Red Mitchell, a irresistível “Jam For Your Bread” é o veículo mais que propício para que Heard exiba suas qualidades de sólido acompanhante e fulgurante improvisador. Ao final do seu longo solo, é possível ouvir os aplausos da platéia, extasiada diante de uma impecável demonstração de apuro técnico. Novak não se intimida com as qualidades do parceiro e também proporciona à audiência um belo exercício de improvisação. O trabalho do líder com as escovas se notabiliza pela precisão cirúrgica e pelo dinamismo de sua abordagem.

Retirada da ourivesaria de Duke Ellington, a balada “Warm Valley” é um momento sublime de encantamento, doçura e lirismo. Incorporando a verve de um Ben Webster, Menza elabora frases de delicada textura e é o grande responsável pelo alto grau de emotividade do tema, enquanto seus companheiros de empreitada, generosamente, adotam uma postura discreta e reflexiva.

O arranjo de “Cherokee”, clássico de Ray Noble, é uma apoteose de velocidade, potência e destreza, em especial por conta das investidas furiosas de Menza e Novak, com destaque para as arrojadas linhas harmônicas propostas pelo saxofonista e para a sua criatividade aparentemente inesgotável. Bellson, por sua vez, mostra porque seu nome é sinônimo de excelência. Ele não é um baterista particularmente agressivo e nem possui uma batida que se caracterize pela opulência. Mas é intenso e vibrante como poucos, um exímio criador de atmosferas rítmicas e um virtuose capaz de extrair da bateria timbres e nuances sonoras surpreendentes.

Embora a crítica seja reticente em relação à maioria dos álbuns de Bellson para a Concord, este disco é uma excelente oportunidade para que o ouvinte se familiarize com o seu trabalho à frente de um pequeno grupo e serve como uma amostra da sua versatilidade e do seu profundo conhecimento do idioma jazzístico em todas as suas vertentes.  Muito justas, portanto, as palavras de Jane Alexander, presidente da NEA, ao se referir ao baterista como “um talento colossal, que ajudou a escrever a história do jazz”.

Bellson se manteve em intensa atividade durante os anos 80 e 90, gravando com regularidade e excursionando pelo mundo, muitas vezes à frente da sua própria orquestra, intitulada “Big Band Explosion”. Em 1987, durante um evento da Percussive Arts Society, Louie apresentou o seu “Concerto for Jazz Drummer and Full Orchestra”, peça escrita por ele especialmente para bateria e orquestra. Posteriormente, a obra seria gravada pela Bournemouth Simphony Orchestra. Em 1990, Bellson perdeu a esposa, vítima de uma insuficiência coronariana. Dois anos depois, ele se casaria novamente, com a engenheira Francine Wright Bellson, que se tornaria sua empresária.

Ao longo dos seus mais de sessenta anos como músico profissional, Belson amealhou muitas homenagens. Uma das mais importantes foi o título de “Duke Ellington Fellow”, concedido em 1977 pela prestigiosa Yale University. Além disso, ele recebeu inúmeros doutorados honorários, concedidos por instituições como a Northern Illinois University, em 1985, a Denison University, de Ohio, em 1995, e a DePaul University, de Chicago, em 2001.

É claro que, como qualquer ser humano, Bellson também colecionou alguns fracassos. O mais retumbante deles foi o musical da Broadway intitulado “Portofino”, para o qual compôs o score musical em 1958. Mesmo contando com o galã Georges Guétary no elenco e com letras de Sheldon Harnick (do premiado musical “Fiddler on the Roof”), o espetáculo ficou em cartaz apenas três dias, ante a absoluta indiferença do público e da crítica especializada.

Nos anos 90, quando Buddy Rich sofreu uma grave crise na coluna e precisou se afastar dos palcos e estúdios, chamou o velho amigo Bellson para substituí-lo à frente da Buddy Rich Big Band. Bellson entregou-se de bom grado à tarefa e durante alguns meses liderou a orquestra do amigo, fazendo questão de dizer que aquela foi uma das maiores honrarias que já recebeu. Outro motivo de orgulho foi o álbum “Louie and Clark Expedition”, onde divide os créditos com o lendário Clark Terry e se reveza na bateria com os jovens Kenny Washington e Sylvia Cuenca.

Bellson recebeu o título de Jazz Master da National Endowment for the Arts em 1994 e teve seu nome inscrito no Hall of Fame da revista Modern Drummer e da Percussive Arts Society. Em 1998, ele foi agraciado, juntamente com Roy Haynes, Elvin Jones e Max Roach com o “American Drummers Achievement Award”, concedido pela Zildjian Company.  Como educador musical, além de ministrar oficinas e cursos, escreveu mais de uma dezena de livros didáticos. Ele também foi homenageado pelo baixista Jay Leonhart, que compôs “The Louie Bellson Song” em seu louvor.

Em março de 2007, Bellson foi escolhido para receber o “Living Jazz Legends Award”, dado pelo Kennedy Center for the Performing Arts a um seleto grupo de 36 artistas de jazz. Ainda naquele ano, em junho, recebeu outra homenagem de grande relevo, desta feita por parte da American Society of Composers, Authors and Publishers ao ter seu nome incluído na categoria de Living Legend no ASCAP Jazz Wall of Fame, em uma cerimônia realizada no Lincoln Center, em Nova Iorque.

Não é à toa que o respeitado crítico britânico Leonard Feather assim se referia ao seu trabalho: “o que torna Bellson um baterista tão especial é a sua formidável musicalidade. Ele também se destaca como um compositor e arranjador inventivo, que transita pelo jazz e pela música erudita com igual desenvoltura. Sua sonoridade é baseada em uma lógica peculiar, não se limitando simplesmente percutir o instrumento, mas incorporando à sua batida o dinamismo e a estrutura melódica de uma obra em progresso permanente”.

Desde 2003 o baterista patrocinava o “Louie Bellson Heritage Days”, uma semana inteira dedicada a reverenciar a sua música. O festival é realizado todo mês de julho em Rock Falls, Illinois, cidade natal de Bellson e além de concertos, são ministrados ali cursos e oficinas para jovens músicos. Louie faleceu no dia 14 de fevereiro de 2009, em conseqüencia de cmplicações causadas pelo Mal de Parkinson. Seu corpo foi enterrado no Riverside Cemetery, em Moline, Illinois.

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