Amigos do jazz + bossa

domingo, 29 de novembro de 2009

O GUITARRISTA MAIS RÁPIDO DO MUNDO


Nome estranho deram ao garotinho nascido em 07 de junho de 1921, na cidade de Greensboro, Carolina do Norte: Talmadge Holt Farlow. Filho de um guitarrista amador, o pequeno Talmadge, ao tempo em que recebia do pai as primeiras lições do instrumento que o consagraria, resolveu abrir mão de boa parte do seu quase impronunciável nome e adotar um apelido bem simples: Tal Farlow.

Até o início da década de 40, tocar guitarra era, para Farlow, apenas um divertimento corriqueiro. Aos dezenove anos, ele parecia conformado com a modesta carreira de ilustrador de cartazes, quando ouviu, pela primeira vez, a magia de Charlie Christian e sua guitarra eletrificada.

A paixão foi imediata e o jovem Farlow não apenas passou a ouvir com habitualidade os discos de Benny Goodman, como também passou a estudar os solos de Charlie Christian naquelas gravações. Raspou as suas economias (exatos vinte dólares) e encomendou um amplificador nas Lojas Sears.

Nessa época, também descobriu a orquestra de Count Basie (graças, sobretudo, ao lirismo do sax de Lester Young, cujos solos ele reproduzir na guitarra) e, em seguida, os boppers, sobretudo Charlie Parker e Al Haig, duas influências confessas. Em 1943, associou-se ao pianista Jimmy Lyons, ao lado de quem fez inúmeros espetáculos para os militares sediados na Base Aérea de Greensboro.

Em 1944, o guitarrista passou a integrar o trio da pianista Dardanelle Breckenbridge, tendo se apresentado em várias cidades, como Baltimore, Filadélfia e, finalmente, Nova Iorque. Ao mesmo tempo em que o trio se tornava atração fixa do Copa Lounge, Farlow aproveitava para assistir, na famosa Rua 52, aos espetáculos dos ídolos Charlie Parker, Bud Powell, Thelonius Monk e Dizzy Gillespie.

Entre 1945 e 1948 a carreira do guitarrista desenvolveu-se sem grande repercussão. Após algum tempo tocando com nomes pouco conhecidos como Freddie Thompson, Lenny DeFranco (irmão de Buddy DeFranco, com quem tocaria no final daquela década) e Margie Hyams (onde substituiu ninguém menos que Mundell Lowe), Farlow, que nunca havia deixado de trabalhar como desenhista e ilustrador, finalmente teve a oportunidade que precisava.

Em 1949, foi convidado por Buddy DeFranco para integrar o seu grupo e, no final do mesmo ano, uniu-se ao trio do vibrafonista Red Norvo, que incluía o baixista Red Kelly (substituído, posteriormente, por Charles Mingus). Baseado em Los Angeles, o trio permaneceu em atividade até 1953 e adquiriu a reputação de um dos combos mais originais e inovadores dos anos 50. Nesse período, Farlow desenvolveu e refinou a sua técnica, passando a ser reconhecido como “o guitarrista mais rápido do mundo”.

Após deixar o trio de Red Norvo, Farlow tocou com Artie Shaw, Gil Melle e Howard McGhee. Em 1955, convidado por Cy Baron (proprietário do clube novaiorquino Composer), montou um trio com o pianista Eddie Costa e o baixista Vinne Burke (essa formação pode ser ouvida no fenomenal “The Swinging Guitar Of Tal Farlow”, gravado em 1956, para a Verve), que se tornou atração fixa do clube até 1958, quando aquela casa noturna encerrou suas atividades.

Farlow se casou no mesmo ano e, partir daí, o envolvimento com a música foi relegado ao segundo plano. Priorizou sua atividade como desenhista e ilustrador, restringindo seu contato com o jazz aos discos e programas radiofônicos. Ocasionalmente, participava de jams com músicos locais ou com os muitos amigos que costumavam visitá-lo em sua mansão em Sea Bright (Nova Jérsei), como Jim Hall, Jimmy Raney, Gene Bertoncini e Attila Zoler.

Em 1967, ensaiou um retorno à música, tocando por alguns meses no The Frammis Club, em Nova Iorque, e participou das gravações do álbum “Up, Up And Away”, sob a liderança do saxofonista Sonny Criss. Em 1968, foi um dos destaques do Festival de Newport e, no ano seguinte, uniu-se aos “George Wein’s All Stars”, onde também tocava o velho amigo Red Norvo.

Ainda em 1969, lançou pela Prestige o aclamado “The Return Of Tal Farlow”, que marca a sua volta aos estúdios, como líder. Nos anos 70, ele voltou a ser uma presença constante em clubes e casas noturnas, além de participar com maior assiduidade de festivais, como o de Newport e o Concord Summer Festival. Também nessa época, lançou seu próprio método de ensino de guitarra, chamado de “Tal Farlow Method”.

Em 1976, gravou o primeiro disco para a Concord, chamado “A Sign Of The Times”. Ao seu lado, duas lendas do jazz: o baixista Ray Brown e o pianista Hank Jones. O encontro desses três titãs não poderia ser mais encantador. São três mestres incontestáveis nos respectivos instrumentos, interagindo como velhos amigos e partilhando com o ouvinte a cumplicidade íntima de quem ajudou a construir, graças ao próprio talento e nada mais, a própria história do jazz.

Abrindo o disco, o swing elegante de “Fascinating Rhythm”, pérola dos Irmãos Gershwin, ganha uma roupagem à altura de sua nobre linhagem. Em um arranjo que ressalta a sua célebre velocidade, o guitarrista põe seus dedos agílimos a serviço da música, sem qualquer espécie de exibicionismo. Jones é o contraponto lírico às estonteantes harmonias de Farlow, enquanto Brown faz a ponte entre a delicadeza do primeiro e o arrojo do segundo.

Na balada “You Don’t Know What Love Is”, é Jones quem dita o ritmo da execução, de maneira lânguida, realçando o drama – de forma docemente contida – do amor não correspondido. Há um quê de bolero no arranjo e discretas citações a “It Might As Well Be Spring”, além de uma atuação impecável de Brown.

“Put On A Happy Face” e “Stompin’ At The Savoy” retomam a atmosfera alegre dos bailes de swing. A criatividade de Farlow e seu apuradíssimo senso melódico se apresentam em toda a sua inteireza e os solos de Brown, em ambas as faixas, são verdadeiras antologias de bom gosto e técnica.

Apesar de autodidata, Farlow sempre foi um músico de extrema personalidade e conseguiu construir uma linguagem própria, reconhecível aos primeiros acordes. Mesmo em músicas gravadas milhares de vezes, como a onipresente “Georgia On My Mind”, de Hoagy Carmichael e Stewart Gorrell, ele sempre consegue imprimir a sua voz e extrair algo de novo, ainda mais quando conta com coadjuvantes da estirpe de Jones e Brown.

A dupla Rodgers e Hart contribui com “You Are Too Beautiful”, outra balada romântica e altamente emotiva. Merece maior atenção a técnica, típica de Farlow, de arranhar com suavidade as cordas da guitarra, dando a impressão de que há um baterista usando as escovinhas no acompanhamento.

Um dos pontos altos do disco é a primorosa versão de “In Your Own Sweet Way”, de Dave Brubeck, na qual o piano de Jones e a guitarra do líder conduzem a melodia pelos sinuosos caminhos do bebop – mas, a bem da verdade, é bom frisar que esse permanente diálogo deve muito de sua fluência à preciosa intervenção de Brown, sempre muito eficiente e seguro.

É de Brown, inclusive, a autoria da ótima “Bayside Blues”. Trata-se, por óbvio, de uma fabulosa incursão pelo blues, com Farlow extraindo de sua guitarra lamentos que conduzem o ouvinte às excruciantes condições de trabalho nas plantações de algodão do Deep South. Jones, que tem o blues na alma, é a sutileza e a plangência em pessoa. Um disco não menos que fabuloso, que pode servir como porta de entrada à maravilhosa arte de Tal Farlow.

Sobre o guitarrista e sua forma altamente pessoal de tocar, contumaz vencedor de prêmios em revistas como Down Beat e Metronome, escreveu o Mestre Pedro “Apóstolo” Cardoso, com a habitual propriedade:

“Tal Farlow mandou fabricar uma guitarra com diapasão curto, o que lhe permitia um fraseado extremamente veloz e uma sonoridade muito suave. Essa guitarra lhe permitia tocar e golpear as cordas com as pontas dos dedos, obtendo efeitos rítmicos muito bons (para, em conseqüência, dispensar o acompanhamento de bateristas)”.

Nos anos 80 e 90, Farlow continuou a gravar com certa regularidade e jamais deixou de se apresentar em clubes e festivais ao redor do mundo, incluindo Europa e Japão. Em 1997, recebeu o diagnóstico de um câncer no esôfago, que acabaria por levá-lo à morte, no dia 25 de julho de 1998.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

CADAFALSO DE NEON




As trombetas do Apocalipse não soam mais.

Esquecidas em um canto,

Mofadas,

Manchadas de azeviche e ferrugem

Já não há sopro e nem fogo a dizê-las

Não há sequer Apocalipse,

Apenas cataclismos banais,

Holocaustos orgiásticos,

Contrafação do drama...

Vivi para ver soçobrarem os barcos

Vivi para ver as velas fustigadas pela tempestade outonal,

Mas há holofotes acesos,

Holofotes por demais

A morte anônima e silenciosa não basta,

À ceifadora permissiva,

Não mais servem o recato, o chamado contido,

A frugalidade...

À indesejada das gentes de antanho,

Cabe agora o papel de uma homilia sem verve

Há que ser outra a morte nos tempos de hoje

Há que ser uma morte berrada e sem sílaba

Folgazã, alheia ao irreprimível choro

Anunciada com cardo e alecrim, estribilho e proclamas

Uma morte parida na indignidade da multidão

Uma morte patética e sem recolhimento,

Uma morte estrepitosa e risível,

Uma morte sem verso,

Uma morte sem voz.

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René Urtreger é um pianista, compositor e arranjador francês, fortemente influenciado por Thelonious Monk e, sobretudo, por Bud Powell. O parisiense, nascido em 06 de julho de 1934, começou a ter aulas de piano com inacreditáveis quatro anos e é um dos mais representativos nomes do bebop europeu.

Na adolescência, freqüentou o Conservatório de Paris, mas as audições de Parker, Powell e Monk o encaminharam para o jazz. Começou a tocar profissionalmente em pequenos clubes da capital francesa, em especial no Blue Note e no Sully d’Auteil, onde conheceu o saxofonista Barney Wilen, o guitarrista Sacha Distel e o flautista Bobby Jaspar, que viriam a ser expoentes do jazz francês e se tornariam grandes amigos do pianista.

Embora não seja reconhecido como um pianista essencialmente original, Urtreger possui muita personalidade e é altamente técnico, sendo capaz de executar solos altamente complexos, com uma velocidade surpreendente. Ao longo de uma carreira de mais de 50 anos, tocou com jazzistas de primeira linha, como Don Byas, J. J. Johnson, Lionel Hampton, Lucky Thompson, Zoot Sims, Miles Davis, Lee Konitz, Stan Getz, Chet Baker, Dexter Gordon, Kenny Clarke, Sonny Rollins, Stéphane Grappelli e Ben Webster.

Desenvolveu uma profícua parceria com os compatriotas Daniel Humair e Pierre Michelot, denominada Trio HUM, que lançou alguns excelentes álbuns entre as décadas de 60 e 90. Apresentações em festivais importantes como o de Antibes e prêmios como o de Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras são uma constante em sua consagrada carreira.

Seu disco “René Urtreger joue Bud Powell”, lançado em 1954 pelo selo Gitanes, é um marco em sua carreira e uma dos melhores gravações de bebop realizada por músicos europeus. Muitos críticos desmerecem o trabalho de Urtreger por conta de sua excessiva reverência, que alguns maldosamente chamam de obsessão, para com o ídolo Powell. Sem querer adentrar no mérito, o presente trabalho, gravado quando René contava com apenas vinte anos, é uma excelente amostra de sua habilidade.

Seis composições de Powell, dentre as quais uma antológica versão de “Parisian Thoroughfare” e dois temas originais do líder, “À la Bud” e a encantadora “Mercedes”, fazem deste álbum uma experiência fascinente. A sessão rítmica é discreta e eficientíssima. A lamentar apenas a curta duração do disco, com seus pouco mais de vinte e quatro minutos de virtuosismo e elegância. Acompanham Urtreger o baixista Benoît Quersin e o baterista Jean-Louie Viale.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

UM BRASILEIRO DO MUNDO (OU DE COMO A BARCA SAIU DE NITERÓI, ATRAVESSOU A BAÍA DA GUANABARA, ATRACOU NA TERRA DE TIO SAM E POR LÁ FICOU ATÉ HOJE)


Um álbum que conta com os talentos de Art Farmer, Phil Woods e Hubert Laws é, indiscutivelmente, um disco de jazz, correto? E um álbum que conta com a exuberância de Antônio Carlos Jobim, Tião Neto e Chico Batera é, certamente, um disco de bossa nova, não é verdade? E quando o disco conta com essas seis feras, capitaneadas por um certo Sérgio Santos Mendes, o que é que pode sair daí?

Essa discussão pode durar anos, mas a resposta é de uma simplicidade absurda: daí só pode sair música de excelente qualidade e ponto final. Afinal de contas, seria absolutamente impossível que craques desse nível pudessem produzir um mísero acorde ruim em sua alvissareira reunião. Como diria um querido amigo, “errinho à toa bom só aquela bossa do Roberto Menescal e do Ronaldo Bôscoli”. Mas esse disco, chamado apropriadamente de “Bossa Nova York”, não tem erro.

Antes de falar sobre o álbum, porém, conheçamos um pouco da vida e da trajetória de Sérgio Mendes. Ele nasceu em Niterói, no dia 11 de fevereiro de 1941, em uma família de classse média – o pai era de uma severidade monástica. Durante muito tempo foi obrigado a usar um pesado colete ortopédico. As aulas de piano clássico vieram ainda na infância e na adolescência, a paixão que iria durar por toda a vida: o jazz. As primeiras influências, dentro deste estilo, foram Stan Kenton e, mais tarde, Horace Silver.

Estudou com o maestro Moacir Santos, integrou-se à primeira leva de músicos da bossa nova (era uma espécie de mascote da turma) e aos vinte anos já estava tocando profissionalmente, integrando conjuntos como o Sexteto Bossa Rio e o Brazilian Jazz Sextet, nos quais pontuaram alguns dos maiores músicos do país, como Paulo Moura, Dom Um Romão e Djalma Ferreira.

O amor pelo jazz se cristalizou nas incontáveis noitadas no célebre Beco das Garrafas. Ali, tocando, ouvindo e fazendo jams, conviveu com instituições do calibre de Edson Machado, Luiz Eça, Milton Banana, Paulo Moura, Raul de Souza, Antônio Adolfo, J. T. Meireles, Djalma Ferreira, Bebeto Castilho, Tião Neto, Dom Um Romão, entre outros. Naquele ambiente enfumaçado e boêmio nasceu o mais perfeito amálgama entre as linguagens do samba e do jazz – não por outro motivo chamado, exatamente, de “samba jazz” ou, denominação menos usada, de “hard bossa nova”.

A ligação entre o samba (e, por conseguinte, a bossa nova) e o jazz é óbvia. Recorro ao querido mestre José Domingos Raffaelli, que em um artigo denominado “História do Samba Jazz” desnuda a ponte entre esses dois estilos, cujas origens comuns remontam ao continente africano:

“As relações entre o jazz e a música brasileira são muito mais íntimas do que possam aparentar. É uma intimidade que surpreende após a sua constatação. Suas origens são exatamente as mesmas, provenientes da cultura negra trazida pelos escravos africanos originários das mesmas regiões da costa ocidental do continente africano. Entregues à própria sorte, os escravos trabalhavam exaustivamente de sol a sol sem qualquer descanso e, freqüentemente, sob a chibata implacável dos feitores. O único lenitivo que lhes amenizava o sofrimento era o canto que entoavam durante o trabalho, os lamentos à noite, os cânticos religiosos e a música de ninar das mães escravas. O destino separou os irmãos africanos pelos hemisférios das duas Américas, porém suas raízes foram as mesmas.”

Pois dentre os grandes pianistas que circulavam pelas noites de Copacabana, como os já citados Luiz Eça e Antônio Adolfo (e ainda Dom Salvador, Tenório Júnior, Luís Carlos Vinhas e muitos mais), a reputação de Sérgio Mendes só crescia – ele, embora muito novo, já pertencia ao primeiro time dos pianistas cariocas. Tanto é que em 1961 gravou o seu primeiro disco como líder, chamado “Dance Moderno” (Phillips) e em 1962 lançou o seminal “Você Ainda Não Ouviu Nada!”, trazendo arranjos de Tom Jobim e Moacir Santos.

Ainda em 1962, participou do célebre Festival da Bossa Nova, realizado no Carnegie Hall, em Nova Iorque. O show, apesar do alto grau de amadorismo e de uma certa precariedade, rendeu bons frutos e funcionou como porta de entrada da música brasileira (especialmente da bossa nova) nos Estados Unidos. A participação de Sérgio rendeu-lhe um convite de Cannonball Adderley, para participar do seu bem sucedido “Cannonball’s Bossa Nova”, lançado no mesmo ano pela Capitol.

Entre idas e vindas aos Estados Unidos, Sérgio foi se tornando figurinha fácil nos circuitos jazzísticos daquele país, além de ter feito amizade com muitos músicos norte-americanos que tocaram no Brasil no início dos anos 60, como Paul Winter, Stan Getz, Herbbie Mann e Dizzy Gillespie. Também fez excursões à Europa e ao Japão, em 1963, ao lado de Nara Leão, em uma turnê patrocinada pela Rhodia.

Em 1964, já residindo nos Estados Unidos, gravou o espetacular “Bossa Nova York”, para a Elenco, que é considerado um marco na sua carreira. O álbum foi gravado nos estúdios da Atlantic Records, em Nova Iorque, sob a batuta do aclamado Tom Dowd (um dos mais importantes engenheiros de som do mundo, que trabalhou com grandes nomes do jazz, do R&B e da música pop).

Basicamente, é um disco do Sérgio Mendes Trio (Tião Neto no contrabaixo e Chico Batera na bateria), com as excelsas participações de Tom Jobim (violão), Art Farmer (flugelhorn), Phil Woods (sax alto) e Hubert Laws (flauta). Poucas vezes o jazz e a bossa nova caminharam juntos de maneira tão harmônica – parece que foram feitos um pro outro (e sujeitos como Stan Getz, Laurindo de Almeida, Charlie Byrd, Luís Bonfá acabara provando que foram mesmo).

O disco abre com uma versão fabulosa de “Maria Moita”, clássico bossanovístico de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes. E é maravilhoso ouvir a influência de jazz na obra de Lyra, certamente um dos maiores melodistas da bossa nova. A atuação de Woods é primorosa, cheia de modulações e frases absurdamente belas. Sérgio se revela um improvisador extremamente competente e seu solo tem uma ginga tipicamente brasileira, mas é jazzístico até medula. “Só tinha que ser com você” ganha um arranjo delicado, doce como o flugelhorn de Farmer, que extrai dele uma sonoridade de canção de ninar anjos.

O Beco das Garrafas se faz presente em “Batida diferente”, talvez a composição mais conhecida de Durval Ferreira e Maurício Einhorn. Chico Batera detona todas, percutindo com uma energia contagiante e Mendes inventa mil e uma estripulias a bordo de suas teclas. Um Hubert Laws extremamente à vontade injeta, com seu fraseado malemolente, o delicioso molho jazzístico a essa refinada iguaria.

Woods volta a brilhar em “Só danço samba”, na qual Tião Neto elabora um senhor solo, e “Vivo sonhando”. “Pau Brasil”, com seu clima meio oriental, encanta pelo charme hipnótico da flauta Laws, que volta à cena para adicionar lirismo à consagrada “Garota de Ipanema”. Em “Inútil paisagem” Art Farmer, incomparável baladeiro, dialoga sensacionalmente com o nosso maestro soberano Antônio Carlos Jobim (autor da música, ao lado de Aloysio de Oliveira), construindo aí uma atmosfera intimista e acolhedora – só falta a janela para o Redentor, que lindo!

Em “Consolação” e “O morro não tem vez” atua apenas o Sérgio Mendes Trio e a atmosfera do Beco das Garrafas permanece. “Primavera” completa o set, com a graciosidade que seus autores (Lyra e Vinícius) tinham em mente quando a compuseram – a flauta de Law e o piano de Mendes, mais uma vez, esbanjam elegância e fluência. Um disco para se levar para uma ilha deserta e que tem cadeira cativa no coração dos amantes do jazz e da bossa nova.

A partir desse disco, a carreira de Sérgio deslanchou nos States. Gravando para selos prestigiados, como Capitol e Atlantic, fundou o Sérgio Mendes & Brasil 66, um fenômeno de vendas da época, graças a uma versão demolidora de “Mas que nada”, de Jorge Ben. Lançado em 1966 pela A&M Records, o álbum recebeu o nome de “Herb Albert Presents Sergio Mendes & Brasil 66” e fez sucesso no mundo inteiro – nos Estados Unidos chegou à casa de 1 milhão de cópias.

Durante os anos 60 ele foi, de longe, o artista brasileiro mais bem-sucedido no exterior. Em 1967, teve a honra de se apresentar na Casa Branca e os discos seguintes, com cover de Jorge Ben (“Chove chuva”), além de versões de músicas dos Beatles (“Fool On The Hill”), Simon & Garfunkel (“Scarborough Fair”) e Otis Redding (“Sittin' On The Dock of the Bay”), continuaram a fazer de Sérgio Mendes um dos nomes mais quentes do cenário pop internacional.

Nos anos 70, a fórmula usada por Mendes pareceu sofrer um desgaste. Seus discos vendiam pouco, não havia hits nas rádios e mesmo a mudança de gravadora (foi para a Elektra) pareceu surtir pouco efeito na revitalização de sua carreira. Somente em 1983, de volta à A&M, o pianista fez as pazes com sucesso, graças ao mega-hit “Never Gonna Let You Go”, que chegou ao quarto lugar na lista da Billboard.

Em 1992, outro retorno às paradas de sucesso, devido ao álbum “Brasileiro”, que lhe valeu um Grammy no ano seguinte, na categoria World Music. Seu disco mais recente, chamado “Timeless” e lançado pela Concord em 2006, conta com um elenco de grandes nomes da música pop, como Stevie Wonder, Justin Timberlake, Erycah Badu e Black Eyed Peas e também vendeu horrores. O garoto de Niterói que conquistou o mundo ainda continua a aprontar das suas – e a barca continua a singrar os mares.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

UMA RARÍSSIMA COMBINAÇÃO DE VERSATILIDADE, TALENTO E ELEGÂNCIA


Responda rápido: quantos saxofonistas podem afirmar que dividiram os palcos e os estúdios de gravação com músicos da estatura de John Coltrane, Art Farmer, Red Garland, Ray Bryant, Clifford Brown, Jimmy Heath, Paul Chambers, Miles Davis, Percy Heath, Curtis Fuller, Philly Joe Jones, Lee Morgan, Count Basie, Tommy Flanagan, Cecil Payne, Art Taylor, Red Rodney, Bobby Timmons, Lionel Hampton, Johnny Hodges, Barry Harris, Earl Bostic, J. J. Johnson, Dizzy Gillespie, John Clayton, Wynton Kelly, McCoy Tyner, Art Blakey, Benny Goodman, Shirley Horn, Quincy Jones, Peggy Lee, Carmen McRae, Anita O'Day, Oscar Peterson, Cedar Walton, Lou Rawls, Mel Tormé, Gigi Gryce, Phil Woods, Max Roach, George Shearing, Nancy Wilson e Ella Fitzgerald? Não muitos, não é mesmo?

E quantos músicos de jazz podem se orgulhar de ter em seu portfólio de mais de 300 composições, gemas do quilate de “Killer Joe”, “I Remember Clifford”, “Along Came Betty”, “Stablemates”, “Whisper Not”, “Blues March”, “Five Spot After Dark”, “The Cool One”, “Blues On My Mind” e “The Stroller”? Bem poucos, decerto.

E se, além de talentoso saxofonista, compositor, bandleader, produtor, educador musical e arranjador, esse músico ainda tivesse acompanhado grandes nomes da música pop, como The Animals, The Mamas And The Papas, The Monkees, Diana Ross, Percy Faith e Dusty Springfield, tivesse composto trilhas sonoras para seriados televisivos bastante populares como M*A*S*H, Mission Impossible, Mod Squad, The Bill Cosby Show e The Six Million Dollar Man e ainda arranjasse tempo para receber o título de Jazz Master (em 1995), concedido pela National Endowment For The Arts? Ah sim, e se esse artista também merecesse uma homenagem por parte do festejado diretor Steven Spielberg, fazendo uma ponta em um de seus filmes (O Terminal)?

Bem, esse músico precisaria ser alguém especial. Alguém capaz de merecer o epíteto de “lenda viva” do jazz! Alguém como Benny Golson! Nascido no dia 25 de janeiro de 1929, em Filadélfia, Golson desde muito cedo revelou uma incrível aptidão musical. Aos nove anos já tocava piano com bastante destreza, mas aos catorze abandonou o instrumento após ouvir o sopro potente de Arnett Cobb, que então tocava na orquestra de Lionel Hampton. Outras influências confessas foram os saxofonistas Coleman Hawkins, Lucky Thompson e Don Byas.

De 1947 a 1950, Golson estudou música na Howard University. Embora tocasse regularmente em casas noturnas e bares da cidade natal desde meados dos anos 40, somente em 1951, conseguiu seu primeiro trabalho como profissional, na banda de R&B de Bull Moose Jackson, cujo pianista era ninguém menos que Tadd Dameron. Graças à influência de Dameron, Golson aperfeiçoou seu interesse pela composição e pelos arranjos.

O primeiro músico a gravar uma composição sua foi James Moody (“Blues March”, em 1955) e, logo em seguida, Miles Davis gravou “Stablemates”. Durante a década de 50, tocou com uma profusão de grandes nomes do jazz, destacando-se a sua associação com Lionel Hampton, Dizzy Gillespie (inclusive se apresentando no Brasil) e com os Jazz Messengers de Art Blakey, onde permaneceu entre 1958 e 1959. Golson teve uma participação importante, embora indireta, para que os Messengers gravassem o seu maior sucesso, “Moanin’”, pois foi ele quem levou Bobby Timmons, autor da composição, para o célebre combo de Blakey.

Além da direção musical e da participação nos históricos álbuns “Moanin’” e “Paris Concert”, ambos de 1958, Benny ainda contribuiu para o repertório da banda com músicas estupendas, como “Are You Real?” e “Blues March”. Em 1959, juntou-se a Art Farmer para criar o Jazztet, um dos mais importantes e profícuos combos dos anos 60, que perdurou até 1962 e por onde passaram Grachan Moncur III, McCoy Tyner, Curtis Fuller e muitos outros.

Ainda nos anos 50, lançou alguns excelentes discos, gravando com regularidade para selos como Prestige, New Jazz, Contemporary, Riverside e Blue Note. Um dos melhores álbuns da sua discografia foi gravado nos dias 19 e 23 de dezembro de 1957, para a Riverside, sob a produção do grande Orrin Keepnews. Chama-se "The Modern Touch" e sua capa, deliciosamente kitsch, tem aquele sabor nostálgico dos anos 50. Uma verdadeira constelação foi escalada para acompanhar Golson: Kenny Dorham (tp), J. J. Johnson (tb), Wynton Kelly (p), Paul Chambers (b) e Max Roach (bt).

O aspecto composicional de Golson tende a ser, merecidamente, incensado, ao passo que sua contribuição como intérprete, muitas vezes, é menosprezada. Trata-se de uma grande injustiça. Golson tem um fraseado suave, lírico, pouco afeito a pirotecnias. Herdeiro direto da tradição representada por Byas, Cobb, Thompson e Hawkins, ele também soube incorporar à sua forma de tocar aspectos extremamente contemporâneos e bastante intrincados, do ponto de vista técnico. Ademais, a sua execução revela um amplo domínio das linguagens pós-swing, como o bebop, o cool jazz e o hard bop, além de um profundo conhecimento do blues.

Tome-se, como exemplo, a faixa de abertura, “Out Of The Past”. Ao mesmo tempo em que paga tributo a grandes melodistas como Richard Rodgers ou George Gershwin, o saxofonista também soube imprimir à sua belíssima composição uma feição moderna, calcada no hard bop que, à época, era a vertente mais popular do jazz e do qual ele foi um dos mais inspirados compositores. Solos extasiantes de Kelly, Dorham e do próprio Golson, e uma atuação impecável de Roach transformam a audição em uma experiência bastante prazerosa.

“Reunion”, de Gigi Gryce, é um hard bop mais tradicional, feérico e incandescente, com metais tocando em uníssono e uma maravilhosa atuação do líder. O solo de Chambers, usando o arco, é soberbo e J. J. Johnson se apresenta em estado de graça. “Venetian Breeze”, também de autoria de Golson, é outro ótimo exemplo da sua inesgotável capacidade de criar belas melodias e envolvê-las em arranjos sublimes. A destacar, o fabuloso senso rítmico de Roach e o belíssimo trabalho de Johnson, que mais uma vez rouba a cena.

Apesar do nome, “Hymn To The Orient” é um hard bop bastante ortodoxo, sem qualquer vinculação à sonoridade oriental, na qual Dorham desfia sua proverbial criatividade. Uma versão lírica de “Namely You” revela uma outra faceta de Golson, a do baladeiro sensível, capaz de imprimir uma elevado grau de emotividade à sua interpretação, da mesma forma que um Benny Carter.

O blues não poderia ficar de fora, já que Golson é um blueseiro por excelência. Em “Blues On Down”, a dobradinha Wynton Kelly-Paul Chambers mostra porque é uma das mais entrosadas e versáteis sessões rítmicas da história do jazz, sem prejuízo dos belíssimos solos que ambos perpetram. O infalível Roach substitui com galhardia e criatividade ímpares o bom e velho Pilly Joe Jones (talvez o baterista que mais atuou com Kelly e Chambers) e o inspiradíssimo Golson exibe o seu fraseado sóbrio e econômico, mas que em momento algum resvala na ausência de sentimento (pecado mortal para qualquer blues que se preze). Um grande álbum, cuja capa, totalmente coerente com a estética meio kitsh dos anos 50, é um atrativo à parte.

Os anos 60 e 70 encontraram um Golson extremamente atarefado. Trilhas para o cinema e para seriados de televisão, jingles para comerciais de grandes empresas como Texaco, McDonald’s, Gillete e Chevrolet, concertos e apresentações em festivais pelo mundo e uma breve residência na Europa, entre 1964 e 1966. Foi professor em instituições afamadas, como a Berklee School, Juillard School e Manhattan School Of Music e doutorou-se em música pelo William Paterson College.

Embora tenha priorizado o lado compositor e arranjador, a partir de 1966, Golson retornou ao jazz em grande estilo, em 1975, fazendo turnês pela Europa, América do Sul e Ásia. Nas décadas de 80 e 90 participou de diversos supergrupos como o redivivo Jazztet, que voltou à ativa em 1983, e o Whisper Not Septet, com quem excursionou em 1996, além de uma reedição dos Jazz Messengers, reunida brevemente em 1999 para celebrar os 80 anos de nascimento de Art Blakey (falecido em 1990).

Nos últimos tempos, tem lançado álbuns com regularidade, destacando-se o fantástico “I Remember Miles”, de 1992, em homenagem a Miles Davis, “Terminal 1”, de 2004, e “New Time, New Tet’”, terceira versão do fabuloso Jazztet, lançado no início deste ano, em comemoração à passagem do seu 80º aniversário. Os músicos que o acompanham nesse come back estão entre os melhores da atualidade: Eddie Henderson (tp & fl), Steve Davis (tb), Mike Ledonne (p), Buster Williams (b) e Carl Allen (bt). Que ele siga seu caminho iluminado por ainda muitos e muitos anos!

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