Amigos do jazz + bossa

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

HOJE NÃO TEM CACILDA BECKER

Relutei bastante para publicar este post e peço aos amigos que compreendam as minhas razões. De fato, o JAZZ + BOSSA é um espaço democrático e plural, que reúne uma verdadeira confraria de amigos e que tem me dado muitas alegrias. De maneira alguma este é um blog político. É um blog dedicado à música, à celebração da alegria que essa forma de arte, tão universal e tão íntima de cada um de nós, proporciona.

Mas a própria existência humana é calcada na política. Ainda que não queiramos, ainda que tentemos dela escapar, a política está presente em cada momento de nossas vidas. Quando meu filho Guilherme me pede para jogar no computador e eu condiciono o atendimento desse pedido a boas notas e bom comportamento - e apenas nos fins de semana ou feriados - estamos, pai e filho, travando um debate político. A máxima aristotélica de que o homem é um animal essencialmente político é mais que verdadeira.

Daí porque sentir a intensa necessidade de mudar o foco do blog, pelo menos uma vez, para a importância do momento político que vivemos. As eleições se aproximam e entendo que é minha obrigação como cidadão expor os motivos que me fizeram decidir por uma candidatura, mais especificamente, da ex-ministra Dilma Rousseff. Estão em jogo duas alternativas para o país e que, nos últimos dezesseis anos, pautaram as discussões políticas aqui travadas.

Ambas são distintas em seus propósitos. Uma, francamente alinhada com o pensamento neoliberal e que não responde aos anseios e necessidades da sociedade brasileira, eis que excludente e privatista. A outra, que tem conseguido enormes avanços no campo do desenvolvimento econômico-social, com ganho real do salário mínimo da ordem de 67% acima da inflação, capitalização recorde da Petrobras, acúmulo de reservas em um patamar próximo de 300 bilhões de dólares, papel incisivo na política externa e tantas outras conquistas.

É no eixo da disputa entre esses dois modelos que entendo ser mais que pertinente externar a minha posição. Afinal de contas, desejo muito que o potencial de crescimento econômico - conjugado com o necessário desenvolvimento social - seja explorado em toda a sua magnitude. Espero que meus filhos cresçam em um país que não lhes sonegue oportunidades. Espero que meus filhos cresçam em um país socialmente justo e capaz de oferecer a todos as mesmas chances. O modelo representado pela candidatura da oposição não corresponde a estes anseios. Embora o seu candidato seja um homem com uma belíssima trajetória de combate ao arbítrio, de luta contra a ditadura que se instalou no país em 1964, atualmente ele se encontra em um campo distinto e defende idéias contrárias àquelas que o ex-presidente da UNE, com o ardor de sua juventude, defendia nos anos 60.

O Brasil tem mudado bastante. Nos últimos tempos, tive a oportunidade de ver com meus próprios olhos - de norte a sul, de leste a oeste - como uma administração desenvolvimentista e nacionalista (jamais xenofóbica, que fique bem claro) pode estimular o crescimento e fomentar a índole criativa do povo brasileiro. Políticas públicas de fomento à atividade industrial - da qual o renascimento da indústria naval é o exemplo mais emblemático - barateamento do crédito habitacional, investimento em obras de infraestrutura, enfim, o país parece ter entrado em uma nova era, bastante auspiciosa.

Há ainda muito por fazer e muitas são as críticas que podem ser feitas ao atual governo Lula - figura por quem, diga-se de passagem, tenho a maior admiração, como ser humano capaz de vencer a miséria e a desigualdade social e como político capaz de aglutinar em torno de um novo projeto de nação quase 80% da população nacional - mas não vejo na candidatura oposicionista nem estatura moral e nem arrojo político para corrigir os (poucos) pontos negativos do atual governo e aprofundar os (muitos) pontos positivos da administração petista.

Tomo a liberdade de reproduzir abaixo dois textos, extraídos de dois blogs que admiro muito. Um apela para o coração e ao final de sua leitura lágrimas escorreram da minha face. O segundo apela à racionalidade. A autora do primeiro deles é a Conceição Oliveira, historiadora, educadora, autora de coleções didáticas, ativista da educação para igualdade étnico-racial e feminista, que comanda o ótimo blog Maria Frô ( www.mariafro.com.br ). O segundo texto foi escrito pelo sociólogo Celso Rocha de Barros, que comanda o blog NPTO – Na Prática a Teoria É Outra, um dos mais lúcidos e instigantes da blogsfera brasileira ( http://napraticaateoriaeoutra.org
) e é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford, na Inglaterra. Espero que os amigos leiam, reflitam, discordem, manifestem-se. Mas, como é a característica do blog desde seu nascedouro, que tudo seja feito de maneira respeitosa e que as eventuais divergências se mantenham apenas no campo das idéias.


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Mídia que vota em Serra tenta de tudo para levar eleição ao segundo turno. Você vai deixar?

O PT foi fundado em fevereiro de 1980. Lembro-me como se fosse hoje do debate que tomou a militância petista para escolha de candidatos para as primeiras eleições ao governo do estado de São Paulo em 1982, após a lei da Anistia e a volta das eleições nos estados (as eleições diretas para presidente só retornariam em 1989, pois perdemos a luta em 1984, no movimento Diretas- Já).

Em 1982 a disputa era entre o metalúrgico Lula e o jurista Hélio Bicudo. Venceu Lula ao menos nas disputas internas para a escolha do candidato a disputar o pleito para governo do estado.

Houve um comício em Cubatão, na praça Princesa Isabel, lugar pequenino onde foi posto um caminhão pequeno e o comício se desenrolou sobre ele com megafones. À época eu ainda não tinha idade para me filiar, talvez tenha sido por isso que acabei não formalizando minha filiação até hoje. Eu estava lá, em cima do caminhão, meio assustada no meio de lideranças que eu já admirava: além de Lula lembro da presença de Suplicy que antes da marola verde do PV já nos acompanhava em Cubatão em várias ocasiões na luta contra a poluição e as péssimas condições de vida e trabalho na cidade.

Fazíamos reuniões nas igrejas, éramos vigiados e intimidados pela polícia ainda fortemente repressiva, forjada num período de censura, torturas da Ditadura Militar. Debatíamos com a população em geral, os trabalhadores das indústrias cubatenses, as mães desesperadas com a saúde frágil de seus filhos. Denunciávamos a escandalosa poluição daquela cidade que chegou a ser conhecida na imprensa internacional como Vale da Morte.

Em Cubatão, em princípio da década de 1980, trabalhadores do pólo siderúrgico e petroquímico morriam de câncer no pulmão, de pele, envenenados por enxofre e outros produtos químicos, morriam ou ficam inutilizados para o trabalho devido aos acidentes de trabalho. Todas as indústrias tinham uma placa com uma espécie de contador que vivia zerando, informando a quantos dias não havia acidentes de trabalho. Morriam devido a uma saúde debilitada por uma jornada desumana em turnos sem fim.

Lembro-me que ainda estava no colegial e participei como auxiliar de pesquisa de uma grande estudo levado a cabo pela Faculdade de Medicina da USP, pelo grupo da professor Marcília da saúde pública e medicina preventiva.

Durante o projeto, apliquei vários questionários aos trabalhadores do pólo petroquímico e siderúrgico. De um deles jamais vou me esquecer: realizei a primeira bateria de questionários e ele foi selecionado para a segunda fase e quando retornei para fazer as perguntas ele havia falecido. Saí e sentei na calçada na frente de sua casa e comecei a chorar. Para uma adolescente com razoável consciência do que acontecia ao meu redor, que vivia naquele inferno de cidade esquecida por todos, este era um nível de violência que beirava o insuportável.

Também sentei e chorei, anos depois quando já estava na USP e minha mãe ligou para informar que a cidade foi tomada por um incêndio de proporções inimagináveis e que depois de ser aplacado, os cubatenses se deram conta de que um bairro inteiro, o mais pobre e mais abandonado da cidade, tinha sumido do mapa e com ele muitos amigos queridos que eu havia feito quando perambulava pela Vila Socó (como era chamada a favela que oficialmente tinha o nome de Vila São José) passando o filme “O homem que virou suco” e discutindo política pura de resistência.

Para uma adolescente que ainda estava no Ensino Médio, viver em uma cidade que se morria pelas péssimas condições de trabalho e pela intensa poluição para gerar riquezas que não ficavam na cidade (sequer no país) são experiências que modelam nossa vida. Os poluentes jogados no ar e nas águas da cidade eram tão danosos que em Cubatão nasciam crianças anencefálicas, peixes deformados. Para chamar a atenção do mundo para as nossas péssimas condições de vida fizemos uma exposição com fotos dos peixes monstruosos que encontrávamos no Rio Pilões.

Minhas experiências na luta pela qualidade de vida, contra a poluição e a morte das pessoas provocadas pela poluição e pelas péssimas condições de trabalho e ambientais forjou a pessoa que sou hoje.

O PT da década de 1980 nasceu e se fortaleceu na cidade de Cubatão sem dissociar a qualidade de vida das pessoas das questões ambientais e da super-exploração a que estavam expostos os trabalhadores. Talvez seja por isso que até hoje eu não entenda um Partido Verde que fala de manutenção das florestas, mas que não faz a crítica a um Tietê poluído ou ao córrego do meu bairro onde nas proximidades eu topo com ratos mortos como mostrei aqui.

Naquele comício junto ao Lula e ao Suplicy, na praça Princesa Isabel, eu fiz mais do que falar pelas mulheres e o nosso papel no sistema capitalista, eu eduquei os meus pais operários para a luta contra a exploração.

Vivíamos no contexto das greves no ABC que ajudaram a derrubar a ditadura militar. Na minha fala assustada ao lado de Lula, eu buscava estimular as mulheres a serem companheiras de seus companheiros na luta contra a exploração. Eu falava com propriedade sobre a minha própria condição feminina de adolescente trabalhadora, pois desde os 14 anos eu já trabalhava oito horas por dia.

Sabia muito bem do que falava. Passei a estudar à noite quando entrei no primeiro ano do Ensino Médio. Enfrentei os primeiros surtos de uma educação deteriorada com professores amedrontados, muitas greves e faltas. Se não fosse uma ótima aluna jamais teria saído do Afonso Schmidt e teria entrado na USP. Muitas vezes saí da escola porque não havia aparecido nenhum professor e ia para a Vila Socó fazer política. Meus pais ficavam aterrorizados de eu chegar de madrugada em casa, mesmo que eu viesse acompanhada pelo seu Manuel, estivador, quase um segundo pai, que pegava a sua bicicleta e me acompanhava até em casa.

Minha mãe ficava possessa e um dia quis me bater. Meu tio Gerson, metalúrgico da Mercedes, amigo do Lula, estava em casa e me salvou da surra. Ele disse a minha mãe e ao meu pai que eles deveriam se orgulhar de mim. Eu, só disse que se meus pais quisessem saber o que eu fazia quando não estava na escola que fossem às 15 horas na Praça Princesa Isabel.

Estava lá no Comício, num sábado calorento do clima abafado de Cubatão, argumentado sobre a função da mulher operária no sistema capitalista. A metáfora que usei foi a do elástico: a mulher operária tinha de esticar o salário e segurar o marido para não ir às greves. De repente, no meio da pequena multidão, vejo o meu pai, me ouvindo atentamente.

Meu pai votava em Jânio Quadros, na direita mais conservadora do país. Ele foi um motorista e a vida toda abaixou a cabeça para os seus patrões. A partir dali, diversificamos o tema de nossas conversas para além do Timão. Meu pai passou a ler, a ficar mais atento à política partidária.

No comício eu ganhei um abraço do Lula, era a mascote daquela turma de craques. Ele me deu um pequeno livro e fez uma dedicatória que me lembro até hoje: “Se todos os jovens fossem como você as mudanças viriam mais cedo, com um abraço, Lula“. Procurei o livro para scanear e não o encontrei, mas ele continua a ser tão valioso quanto era quando o ganhei há quase 30 anos.

Olho o meu Brasil e a Cubatão de hoje, também governada por uma administração petista e feminina e tenho um orgulho tamanho do que de algum modo, exercendo a minha cidadania diária, eu ajudei a construir.

O Brasil de hoje apesar dos problemas que ainda tem deu um salto qualitativo sem precedentes e não é apenas em sua economia que faz com que o presidente Lula seja aclamado internacionalmente e que equipe da Al Jazeera inglesa se desloque até o interior de Pernambuco para conhecer um progama modelo para o mundo de combate a fome. O salto qualitativo passa pela consciência de muitos brasileiros que aprenderam que a política é um bem de todos e que uma boa política pode salvar vidas e uma má política pode nos levar a morte.

O Brasil de hoje dá muito mais chances ao jovens de periferia como as que eu não tive.

Diego Casaes é só um exemplo do Brasil de hoje: um jovem negro que saiu da periferia de Salvador, falando inglês com fluência foi para Copenhague cobrir a COP15. Diego além de trabalhar com cultura digital é colaborador do Global Voices e toca um projeto com as dimensões do Eleitor 2010. Ele é só um dos meninos que conheço que não teve seu talento e todas as suas potencialidades assassinadas pela falta de oportunidade de um Brasil que, anterior ao governo Lula, era só exclusão. Diego Casaes foi aluno do Prouni, o mesmo programa que o DEM, partido da coligação do PSDB, quer acabar e para isso entrou com ação de inconstitucionalidade no STF.

O Brasil de hoje do PROUNI está formando mais de 400 médicos filhos de faxineira, empregadas domésticas e uma infinidade de outros trabalhadores braçais que nunca sonharam em ter seus filhos na universidade.

O Brasil de hoje é um Brasil que nos faz ter orgulho de ser brasileiros, apesar de toda a tentativa perversa de uma mídia monopolizada e partidária desmoralizar o presidente mais popular da história do país.

O Brasil de hoje fez a maior capitalização da história mundial de uma empresa, a Petrobras, que cada dia é mais brasileira e que garantiu as riquezas do pré-sal para o povo brasileiro.

O Brasil de hoje tem a chance de eleger em primeiro turno uma mulher com uma história de vida e uma história pública de decência, voltada para a luta contra a ditadura militar e que foi presa e torturada por isso.

Por isso e por todas as realizações do governo Lula – as quais Dilma representa a manutenção e a ampliação dos avanços deste governo transformador – que a cada e-mail perverso que recebo contra Dilma, a cada manchete vergonhosa que leio na mídia que vota em Serra, a cada site fascista, proselitista, reacionário onde leio postagens mentirosas, a cada mensagem estúpida e detratora que leio no twitter, apesar de fazer o meu estômago revirar (nem nos meus piores pesadelos acharia que os adversários pudessem fazer uma campanha tão baixa), aumenta a minha gana para sair às ruas, conversar com as pessoas, discutir política, ouvi-las e dizer porque minha candidata é Dilma Rousseff.

Meu pai e minha mãe estavam de viagem marcada para Salvador para o final de setembro e adiaram-na para o dia 04/10. Eles votarão em Dilma Rousseff. A Ana, mensalista aqui de casa, vai se deslocar até a sua cidade pra votar em Dilma Rousseff.

Quanto a mim, mantenho viva aquela adolescente do comício da praça Princesa Isabel, a mesma adolescente que lutou por melhores condições de vida e trabalho, que ia para Vila Socó discutir política com os trabalhadores, que se indignou e brigou para que Cubatão deixasse de ser o Vale da Morte. Por isso, nos próximos cinco dias até a eleição vou continuar ligando e conversando com todos os que conheço, convidando-os a refletir sobre a importância de suas escolhas para o futuro do nosso país.

A mídia que vota em Serra e que durante oito anos fez oposição ferrenha ao presidente Lula, chamando-o até de estuprador (sem sofrer qualquer tipo de censura por parte do presidente) está fazendo seu trabalho. Está defendendo seu projeto neoliberal, privatizador, excludente, porque a vitória de Serra assegura seus interesses econômicos. Esta mídia não mediu e não medirá esforços pra conseguir seu objetivo. Ela não tem ética alguma, publica notícias e documentos falsos, como a Folha de São Paulo fez quando publicou, em primeira página, a ficha falsa de Dilma produzida por um blog de extrema-direita.

Resta-nos, portanto, a mim e a todos os brasileiros que fazem oposição a este projeto conservador e reacionário, com nosso trabalho de formiguinha, resistir, ir à luta e garantir a vitória de um Brasil mais inclusivo e cidadão. À luta, companheiras e companheiros e até a vitória sempre.

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Porque votarei em Dilma Rousseff


Os três principais candidatos nessa eleição presidencial são muito bons. A terceira colocada deve ser Marina Silva, e Marina Silva seria melhor presidente que 90% dos presidentes do mundo. Levando em conta só os competitivos, nos últimos dezesseis anos só Garotinho (que a The Economist traduzia como “Little Kid”) avacalhou nosso currículo, onde, na minha modesta opinião, devemos ter orgulho de ostentar Lula e FHC.

Mas é preciso escolher, e, no que se segue, argumentarei que a melhor opção para o Brasil no momento é uma ex-guerrilheira nerd.

1. Um bom governo, na minha opinião, deve (a) ser democrático, (b) não avacalhar a estabilidade econômica, e (c) combater a pobreza e a desigualdade. Por esses critérios, o governo Lula foi indiscutivelmente bom.

O governo Lula, tanto quanto o governo FHC, foi um governo democrático. Quem lê jornal no Brasil não apenas percebe que é permitido falar mal do governo, mas pode mesmo ser desculpado por suspeitar que falar mal do governo é obrigatório por lei. Os partidos de oposição atuam com plena liberdade, os movimentos sociais, idem, e, aliás, eu também. O Olavo de Carvalho se mandou para os Estados Unidos, dizem que com medo de ser perseguido politicamente, mas, se tiver sido por isso, foi só frescura. De qualquer modo, nunca antes nesse país exportamos tantos Olavos de Carvalho.

A economia foi muito bem gerida durante a Era Lula, a despeito do que falam muitos petistas (talvez preocupados com a falta de oposição competente). Companheiros, deixemos de falar besteira: a política econômica foi um sucesso. Mantivemos o bom sistema de metas de inflação implantado por Armínio Fraga no (bom) segundo governo FHC, e acrescentamos a isso: uma preocupação quase obsessiva por acumular reservas internacionais, a excelente ideia de comprar de volta nossa dívida em dólar, e medidas de incentivo fiscal quando foi necessário. A dívida como proporção do PIB caiu consideravelmente, e só voltou a subir quando foi necessário combater a crise. Certamente voltará a cair já agora.

Por essas e outras, fomos os últimos a entrar e os primeiros a sair da maior crise econômica desde 1929. Os tucanos se consideravam uma espécie de Keynes coletivo por terem sobrevivido à crise do México. Com muito menos custo, sobrevivemos à crise dos EUA. E isso se deu porque a economia durante a Era Lula foi muito mais bem administrada do que durante o primeiro governo FHC. No segundo governo FHC, aí sim, a economia foi bem gerida, e Lula fez muito bem em copiar seus métodos de gestão.

E, na área social, o Lula realmente se destaca na história brasileira, e na conjuntura econômica mundial. FHC não merece nada além de parabéns por ter copiado o Bolsa-Escola do governo petista do Distrito Federal (cujo governador havia idealizado o programa ainda na década de 80), e o PT merece críticas por ter atrasado sua adoção insistindo no confuso “Fome Zero” por tempo demais; mas, uma vez re-estabelecida a sanidade, o programa foi implementado com imenso sucesso, e, associado à política de recuperação do salário mínimo, e à boa gestão da economia, geraram resultados que não estavam nas projeções do mais otimista dos petistas em 2002. Para ser honesto, eu sempre votei no Lula, mas nunca achei que fosse dar tão certo.

A pobreza caiu algo como 43%. Vou dizer com palavras, para não dizerem que sou cabeça-de-planilha: a pobreza no Brasil caiu quase pela metade. Rodrigo Maia, escreva essa frase no quadro cem vezes. Mais de 30 milhões de pessoas (meia França, não muito menos que uma Argentina inteira) subiram às classes ABC. Cortamos a pobreza extrema pela metade (mas ainda é, claro, vergonhoso que tenhamos pobreza extrema). A desigualdade de renda caiu consideravelmente: a renda dos 10% mais ricos cresceu à taxa de 3 e poucos % na Era Lula, enquanto a renda dos mais pobres cresceu mais ou menos 10% ao ano, as famosas taxas chinesas. E tem uns manés que acham que os pobres votam no Lula porque são ignorantes ou mais tolerantes com a corrupção. Dê essas taxas à nossa elite e o Leblon inteiro tatua a cara do Zé Dirceu.

Não é à toa que o economista Marcelo Neri, um dos mais respeitados estudiosos da pobreza no Brasil, fala no período de 2003-2010 como “A Pequena Grande Década”. Tanto quanto sei, Neri não é petista.

Por outro lado, há algumas semanas, o sociólogo Demétrio Magnoli escreveu um balanço crítico do governo Lula, que considera um desastre. O artigo praticamente não tem nenhum número. I rest my case.

2. Seria idiota dizer que isso não é, em nenhum grau, motivo para votar na Dilma. Dilma participou ativamente disso tudo, e, no mínimo, apoiou isso tudo. Marina Silva, é verdade, apoiou quase tudo isso. José Serra não o fez, e muitos de seus simpatizantes continuam convictos de que os últimos oito anos, em que a renda dos brasileiros mais pobres cresceu no ritmo da economia chinesa, foi uma era das trevas da qual a nossa elite bem pensante (hehehe) acordará em breve, chorando de felicidade porque era só um pesadelo.

Mas, até aí, eu considero que a Era FHC também foi boa para o país, por outros motivos, e mesmo assim foi bom que Lula fosse eleito em 2002 (como irrefutavelmente provado acima). Por que não seria esse o caso, agora?

Em primeiro lugar, porque não acho que será bom para o Brasil se o governo Lula tiver sido só um intervalo. Se Serra ganhar a eleição, eis o que se tornará a versão oficial sobre esse período: uns caras com diploma governavam muito bem o Brasil por muitas décadas, aí surgiu um paraíba muito carismático que acabou % ganhando a eleição, mas não fez nada demais, por isso eventualmente a turma do diploma retomou o controle da coisa toda. Coloquei um sinal de porcentagem no meio da frase para que ela tivesse pelo menos um erro que não fosse também papo furado.

É importante compreender que os novos atores que compõem o PT vieram para ficar, pois são sócios-fundadores de nossa democracia, e que, de agora em diante, o Brasil é um país com uma esquerda que sabe ser governo. Isso quer dizer que agora a direita, para vencer eleições, precisa apresentar boas candidaturas (de preferência sem roubar nossos sociólogos, ou economistas heterodoxos) e, o mais crucial de tudo, apresentar propostas para os mais pobres, que acabam de descobrir que podem melhorar imensamente suas vidas com o voto. A direita brasileira ainda não fez esse trabalho: continua pensando como se fosse um direito natural seu governar o país, e esperando que algum movimento legitimista re-estabeleça a ordem nesta budega.

Enquanto a justiça eleitoral não fizer o voto do Reinaldo Azevedo ter peso 50 milhões, a estratégia de fingir que o governo Lula não desmoralizou os anteriores, diminuindo a pobreza sem desestabilizar a economia, não vai ganhar eleição. Enquanto não tiver um projeto para o país (o que, diga-se, o Plano Real foi), a oposição não merece voltar ao governo. Como o PT dos anos 90, por exemplo, não merecia ganhar a presidência, pois seu programa era o que, no jargão sociológico, era conhecido como “nhenhenhém”. O PT venceu quando reconheceu que o papo agora era outro, e era preciso partir das conquistas já alcançadas. Não há sinal que consciência semelhante exista na oposição como bloco político, embora, sem dúvida, o candidato Serra o tenha compreendido.

3. Mas esse tampouco é o melhor motivo para se votar na Dilma. O melhor motivo para se votar na Dilma é a Dilma.

Dilma tem uma trajetória política muito singular, como, aliás, tinham FHC e Lula. Quem tiver lido seu perfil recente na revista Piauí pode notar que há tantos fatos interessantes na sua vida que o jornalista mal teve espaço para falar dela, como pessoa. Dilma foi guerrilheira, foi torturada, e, durante a democratização, entrou para o PDT. Quando visitou, recentemente, o túmulo de Tancredo, a turma de sempre reclamou que o PT não o havia apoiado no Colégio Eleitoral. Bem, Dilma, como o PDT, apoiou Tancredo. Eventualmente, foi parar no PT, onde cresceu fulminantemente, e foi beneficiada pela decisão da oposição de queimar um por um dos quadros petistas mais famosos, algo pelo que, suspeito, já começam agora a se arrepender. Estariam pior agora se o candidato do Lula fosse, digamos, o Dirceu?

Tem gente que, com temor ou esperança, acha que Dilma mudará o rumo da economia. Eu posso estar errado, mas, baseado no que vi até agora, acho o seguinte: Dilma está singularmente posicionada para fazer com que, sob essa mesma política econômica, e com o mesmo compromisso com a justiça social, o país comece a crescer bem mais rápido do que cresceu nos últimos dezesseis anos.

Eu gosto de dizer o seguinte sobre política econômica: é verdade, o Banco Central desacelera o crescimento quando mantém os juros altos (e segura a inflação). Mas, a essa altura, o crescimento econômico já levou uma surra; antes de chegar no Banco Central, o carro do crescimento já tomou batidas da nossa falta de política de inovação, da baixíssima capacidade de investimento do Estado, da pobreza (que diminuiu, mas, para nossa vergonha, ainda está aí), do nosso abissal nível de qualificação educacional, dos entraves inacreditáveis para se abrir ou fechar um negócio, dos problemas gravíssimos da nossa urbanização. Essa desacelerada que o Banco Central dá é porque, depois de tomar tanta batida, ou nosso carro desacelera ou ele desmonta na pista.

Nossa visão deve ser a seguinte: queremos ter produção tecnológica como a Índia, mas com muito mais preocupação com a justiça social, e queremos ter o crescimento da China, mas com a mais absoluta democracia e com as garantias ambientais necessárias. Se esses limites nos atrasarem um pouco, paciência, somos, em nossos melhores momentos, um país que leva essas coisas a sério. O que não é admissível é que qualquer coisa que não nossos princípios atrase nosso progresso.

Muita gente diz que Lula entregou a candidatura à Dilma de mão-beijada, mas, aproveito para advertir, muita calma nessa hora, meu povo. Lula também lhe entregou uma roubada incrível, que foi também um teste. Quando Dilma foi colocada na direção do PAC, experimentou em primeira mão o quão ineficiente é nosso Estado como indutor do investimento: uma legião de entraves burocráticos, pressões políticas e uma história de más prioridades tornaram nosso Estado incapaz de investir e de oferecer infra-estrutura (tanto física quanto legal quanto humana) para o investimento privado.

A beleza da coisa é que Dilma é uma c.d.f. obcecada por políticas públicas. Quem leu sua entrevista no livro organizado pelo Marco Aurélio Garcia e pelo Emir Sader não pode ter deixado de se divertir com a diferença entre as coisas que os entrevistadores querem perguntar e as coisas que ela quer responder: os caras lá falando do liberalismo, de não sei o que mais, e ela animadona com um jeito de furar poço de petróleo, com um jeito qualquer de administrar hospital. Respeito muito o Marco Aurélio, que foi meu professor, mas a Dilma sai da entrevista muito melhor que ele e o Sader.

Me anima especialmente que, em vários momentos, tenha visto Dilma puxando o assunto das políticas de inovação. O Brasil não vai dar um salto qualitativo em termos de desenvolvimento enquanto não produzir tecnologia. Tecnologia é o tipo de coisa que depende de bons arranjos entre governo e setor privado, e, a crer nos relatos até agora a respeito de sua passagem pelo ministério de Minas e Energia, Dilma tem uma postura pragmática saudável nessas questões.

Lula deu ao capitalismo brasileiro milhões de novos consumidores, e essa descendência política exigirá de Dilma compromisso forte com a inclusão social. Mas agora é hora de dar ao capitalismo brasileiro a competitividade necessária para que ele gere os empregos de que precisam os novos ex-miseráveis, os formandos do ProUni, ou das novas Universidades Federais, inclusive; é hora de montar um Estado que entregue aos cidadãos as cidades necessárias à boa fruição da vida moderna, e montar um sistema de inovação tecnológica que tire da direita o monopólio do discurso moderno.

Por conhecer melhor do que ninguém o tamanho desse déficit, e pelo que se depreende de sua postura até agora diante desses problemas, Dilma Rousseff é a melhor opção para a presidência do Brasil nos próximos oito anos.

Até porque, contará com um recurso que só o PT tem: uma imprensa tão hostil que o sujeito realmente, realmente tem que prestar atenção para não fazer besteira. Superego é uma coisa útil, senão você trava.

4. Certo, mas deve ter gente pensando, ah, mas ela é só uma tecnocrata, vai ser engolida pelos políticos (o bom é que essa mesma turma dizia que o Lula, por não ser um tecnocrata, ia ser engolido pelos políticos). Deve ter gente, à direita e à esquerda, com esperança de manipular a Dilma. A Dilma, no caso, é aquela menina que, aos vinte e poucos anos, inspirava respeito até nos caras do Doi-Codi, como se depreende dos documentos da época. Se quiser ir tentar manipular essa dona aí, rapaz, boa sorte, vai lá. Depois você conta pra gente como é que foi.


sexta-feira, 24 de setembro de 2010

DINAMITE PURA!




Em meados do século XIX, o jovem químico Alfred Nobel estava inquieto. Acreditava que a nitroglicerina, explosivo líquido inventado pelo italiano Ascanio Sobrero em 1847, poderia ser de grande utilidade nas obras tocadas pelo pai, o engenheiro sueco Immanuel Nobel. O problema era a enorme instabilidade do produto. Seu transporte e manuseio eram extremamente perigosos. Qualquer oscilação mais brusca poderia redundar em uma terrível explosão – em 1964 ele perdeu o irmão, Emil, em uma explosão causada pelo uso inadequado do explosivo.

O químico, então, passou a pesquisar um modo de tornar mais seguro o uso da nitroglicerina. E conseguiu, usando um estratagema bastante simples: misturando o líquido explosivo a um pouco de terra diatomácea (dióxido de silício em pó) e colocando essa mistura em um recipiente, tinha-se um produto mais seguro e de mais fácil manuseio, transporte e armazenamento. O recipiente era um cilindro de plástico, hermeticamente vedado, com um pequeno furo por onde passava um rastilho ou um cabo elétrico.

O resto da história todo mundo conhece. A dinamite foi um retumbante – sem trocadilhos – sucesso comercial, e tornou Nobel um dos homens mais ricos do planeta. Criada para ser aplicada na construção civil, a dinamite passou a ser usada em larga escala na indústria bélica e nas guerras que, no final do século XIX, conflagravam a Europa. Influenciado pela condessa Bertha Von Suttner, grande amiga e pacifista renhida, Nobel deixou expresso em seu testamento que parte da sua fortuna deveria ser usada para premiar, anualmente aqueles que tivessem empreendido grandes esforços para promover a paz mundial.

O Prêmio Nobel foi, posteriormente, estendido a diversas áreas das artes e do conhecimento humano, como a química, a física, a medicina, a economia e a literatura. A dinamite, que era um explosivo ainda bastante perigoso, por conta da possibilidade de vazamento da nitroglicerina, viu seu uso diminuir consideravelmente com a popularização dos modernos explosivos plásticos, como o C4 e o Semtex, bem mais seguros e de mais fácil manuseio. Não obstante, a dinamite continua fazendo parte do imaginário popular, especialmente por conta do seu hilariante uso em desenhos animados como Pernalonga ou Tom & Jerry.

Na música, costuma-se designar que um determinado artista é “dinamite pura” quando consegue conjugar excepcional qualidade técnica e energia criativa. Bateristas, como Art Blakey ou Elvin Jones, costumam ser comparados ao célebre explosivo patenteado por Nobel. No Brasil, terra de bateristas fabulosos como Dom Um Romão, Airto Moreira, Robertinho Silva, Wilson das Neves, Pascoal Meireles ou Milton Banana, há um que merece, mais que qualquer outro, o título de Mr. Dinamite: o espetacular Edison Machado.

Nascido em 1934 no bairro do Engenho Novo, na zona norte do Rio de Janeiro, o carioca Edison Machado pode ser considerado um revolucionário, um pioneiro, um verdadeiro criador em seu instrumento. Inventou uma nova maneira de tocar o velho samba – a qual chamou de “samba no prato” – e, não menos importante, deu à bateria, geralmente relegada a um plano secundário, o nobilíssimo papel de protagonista. Sobre a invenção do samba no prato, reza a lenda que durante uma apresentação em um baile, no início dos anos 50, o bumbo furou e o baterista teve que improvisar, tocando apenas com os pratos e os tambores.

O superbaterista André Tandeta explica, do ponto de vista técnico, a importância dessa descoberta: “Até então o baterista reproduzia uma batucada de samba usando os tambores do instrumento – nisso o grande Luciano Perrone era mestre. Machado passou a tocar a batida de samba com a mão direita no prato, em semicolcheias. É uma nova atitude na bateria, muito mais parecida com a dos bateristas de jazz, interagindo mais com a musica ao invés de ser somente um acompanhante fornecendo o suporte rítmico. Foi com certeza um dos criadores do samba-jazz, ao lado de Dom Um Romão e Milton Banana”.

Munido de doses igualmente cavalares de coragem e talento, o inconformado Edison “Maluco”, como era carinhosamente conhecido nos meios musicais, não aceitava que a música brasileira, essencialmente rítmica em sua estrutura, reservasse ao baterista o papel de mero coadjuvante. Sua vida e carreira mostram um homem determinado a romper esse paradigma – e não é preciso conhecer a fundo a música brasileira moderna, surgida no final dos anos 50 e consolidada nas décadas seguintes, para saber que sua luta não foi em vão.

Como observou o contrabaixista Marcos Paiva, “numa época em que baterista era um “quase não músico”, ou apenas o ritmista do grupo, Edison teve uma capacidade única (e artística) de liderança ao lançar seus próprios trabalhos solos. Ao liderar seus grupos, criou uma forma de tocar com tanta energia e personalidade que até hoje é difícil de ver alguém superá-lo. Não é tocar rápido e não passa pela técnica. Passa, a meu ver, pela capacidade que poucos músicos conseguem obter na sua trajetória musical, a personalidade. Quando você ouve um disco, basta 5 compassos para saber se é ele tocando ou não. E isso é muito, muito difícil de se conseguir”.

Machado começou a carreira profissional muito cedo e antes de completar 18 anos já era respeitado no circuito das gafieiras. Em meados da década de 50, integrou o grupo A Turma da Gafieira, que tinha em seus quadros sumidades como Altamiro Carrilho, Baden Powell, Zé Bodega, Raul de Barros e Sivuca. Durante algum tempo foi um dos destaques da banda do cantor Miltinho, então na crista da onda com o sucesso “Mulher de trinta”.

Nos anos 60, quando o eixo da boemia carioca se deslocou para o Beco das Garrafas, em Copacabana, o baterista era uma das mais luminosas presenças nas casas noturnas ali estabelecidas: Little Club, Bottle’s e Bacarat. Rodeado de grandes músicos que tocavam ali, como Raul de Souza, Antônio Adolfo, Paulo Moura, Tenório Júnior, Victor Assis Brasil, Sérgio Mendes, Baden Powell, Durval Ferreira, Luiz Eça e muitos outros, Edison pôde depurar o seu gigantesco talento e incluir em suas referências generosas pitadas de jazz.

Não é à toa que a bossa-nova turbinada que essa turma fazia foi logo apelidada de samba-jazz. A música que saía dos palcos das boates do Beco era uma poderosa conjugação do ritmo contagiante do samba com doses anabolizadas de improvisação, típicas do jazz. Machado integrou um dos melhores trios formados naquele período, o Bossa Três, juntamente com Luís Carlos Vinhas ao piano e Tião Neto ao contrabaixo.

Em 1962, o grupo excursionou nos Estados Unidos, onde se apresentou em clubes renomados, como o Village Vanguard, e em programa de TV como o Ed Sullivan Show, de enorme audiência por lá. O trio gravou alguns discos nos EUA, incluindo “Os Bossa Três e Seus Amigos”, que contava com a participação de Sonny Simmons (sax alto), Clifford Jordan (sax tenor e flauta) e Prince Lasha (flauta).

Ao falar do amigo, Tião Neto relembra aqueles tempos heróicos: “Edison foi o maior baterista de samba de todos os tempos. O tempo dele no samba no prato e no pé direito é irreprodutível. Ele tinha um suíngue fantástico, e quem quisesse que fosse atrás. Foi, sem dúvida, uma figura de proa na MPB. A música brasileira atual, principalmente o samba, deve muito a Edison. Fui com ele para os Estados Unidos, na década de 60, com o Bossa Três. Foi uma grande aventura”.

Os concertos e gravações foram proveitosos para firmar o nome do baterista no disputado mercado norte-americano. Tanto é que no ano seguinte – 1963 – Edison retornou à terra de Tio Sam, para participar do fabuloso “The Composer Of Desafinado Plays”, de Tom Jobim, com arranjos do maestro Claus Ogerman. Naquele mesmo ano, participou das gravações do disco “Stan Getz With Guest Artist Laurindo Almeida” (Verve), integrando uma banda all-star que, além dos líderes, incluía o baixista George Duvivier e o pianista Steve Kuhn.

Em 1964, Edison integrou o Sérgio Mendes Trio, complementado pelo baixista Tião Neto, com quem gravaria os álbuns “The swinger from Rio” e “Brasil' 65”. Também fez parte do Sexteto Bossa Rio, capitaneado pelo mesmo Sérgio Mendes, tendo participado das gravações do antológico “Você ainda não ouviu nada!”. No final daquele ano o sexteto embarcaria para uma turnê nos Estados Unidos, que acabaria rendendo a participação no álbum “Bossa Nova”, do saxofonista Cannonball Adderley. Contudo, Machado deixou o grupo antes da viagem e foi substituído pelo não menos talentoso Dom Um Romão.

No ano seguinte, fundou, ao lado do pianista Dom Salvador e do contrabaixista Sérgio Barroso o Rio 65 Trio, que chegou a gravar dois álbuns: “Rio 65 Trio” (que traz alguns clássicos da bossa nova como “Desafinado”, de Tom Jobim e Newton Mendonça ou “Manhã de Carnaval”, de Luiz Bonfá e versões de temas jazzísticos, como “Sonnymoon for Two (Blues em Samba)”, de Sonny Rollins, e “Mau, Mau”, de Quincy Jones) e “A hora e a vez da MPM” (que traz músicas conhecidas, como “Apelo”, de Baden Powell e Vinícius de Moraes e “Upa, Neguinho”, de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri, e canções obscuras como “Ponte Aérea”, de Zé Ketti, e “Seu Encanto”, de Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle). Ambos os discos foram lançados pela Philips e, apesar de bastante elogiados pela crítica, tiveram vendas bastante abaixo do esperado.

Edison era um dos mais respeitados e requisitados músicos do período, com trabalhos em discos de gente como Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Dorival Caymmi, Agostinho dos Santos, Victor Assis Brasil, Paulo Moura, Elis Regina, Hector Costita, Edu Lobo, Maria Bethânia, Dick Farney, Hélio Delmiro, Rosinha de Valença, Eumir Deodato, Pery Ribeiro, Wanda Sá, Johnny Alf, Nara Leão, Milton Nascimento e muitos outros. Boa parte de sua reputação havia sido firmada graças ao álbum “É Samba Novo”, petardo sonoro gravado em 1964, para a CBS.

Liderando um grupo que reunia a nata da música instrumental de então, Machado fez um disco que sintetiza, como poucos, os rumos que a moderna música brasileira tomava na primeira metade dos anos 60. Com arranjo do maestro Moacir Santos, os acompanhantes são de primeira grandeza: Paulo Moura e J. T. Meirelles nos saxofones, Maciel “Maluco” e Raul de Souza nos trombones, Tenório Júnior no piano, Tião Neto no contrabaixo e Pedro Paulo no trompete.

O disco abre com uma poderosa versão de “Nanã”, de Moacir Santos e Mário Telles – irmão da cantora Sylvia Telles e que, na versão original, teve seu nome, inexplicavelmente, trocado para Clóvis Mello. As características rítmicas de Machado podem ser ouvidas com muita clareza nesta faixa, na qual brilha o trompete assurdinado de Pedro Paulo.

A dupla Baden Powell/Vinícius de Moraes comparece com a vibrante “Só por amor”, cuja cadência evoca os gloriosos tempos das gafieiras. Aqui os trombonistas Maciel e Raul de Souza se desafiam ferozmente e apresentam alguns dos melhores solos do disco. Paulo Moura dá uma aula de sensibilidade e bom gosto e o líder mostra, na prática, o que significa o termo “samba no prato”.

“Aboio”, de J. T. Meireles, tem uma atmosfera agreste, agregando em seu núcleo melódico elementos da música nordestina. O trombonista Maciel é talvez o maior destaque individual, mas a percussão de machado, elétrica, também deve ser ouvida atentamente. “Tristeza vai embora” tem uma atmosfera nostálgica, flertando com o samba-canção, mas sem a mesma carga de tristeza que caracteriza o estilo. Mais uma vez, a performance de Pedro Paulo merece todos os encômios.

Meireles emenda dois temas seguidos. “Miragem” é um samba dolente, cadenciado, no qual o trombone de Raul transporta o ouvinte às estrelas. Tenório não é apenas um soberbo acompanhante, mas um solista notável, capaz de improvisar com fluidez de idéias e muito swing. “Quintessência” é, com o perdão do trocadilho, a quintessência do próprio samba-jazz. Percussão atordoante, improvisos endiabrados, diálogos alucinados entre os instrumentos e muita energia. De tirar o fôlego.

Moacir Santos e Vinícius compuseram a preciosa “Se você disser que sim”, na qual a bateria sincopada de Machado puxa o ritmo e os demais integrantes do sexteto seguem, euforicamente, a trilha aberta pelo líder. A ousada “Coisa nº 1”, também do maestro Moacir Santos e, desta feita, de Clóvis Mello, corretamente creditado, é uma complexa releitura do samba, com elementos do choro e do jazz. O solo de Paulo Moura é inacreditável – embora breve – e a atmosfera de jam session é contagiante.

Mais uma vez, o incansável Meireles exibe os seus dotes composicionais, agora com “Solo”, provavelmente a mais jazzística do álbum e veículo mais que perfeito para que Tenório exiba a sua técnica fabulosa. Machado desce a mão sobre a bateria, sem pena ou remorso. O compositor e Raul de Souza travam um duelo eletrizante, escoltados pela condução segura do competente Tião Neto.

Com pouco mais de 2 minutos, a vibrante “Você”, de Rildo Hora e Clóvis Mello, é um dos momentos mais intensos do disco e permite ao líder uma exibição de gala, com solos estonteantes. Os metais incandescentes acrescentam o molho, mas o destaque absoluto vai para o líder, soberano em seu instrumento e capaz de incendiar os companheiros com a energia típica de um Elvin Jones.

“Menino travesso”, de Moacir Santos e Vinícius de Moraes, encerra o disco com a mesma energia vulcânica das demais faixas. Um disco que redefiniu a música instrumental brasileira e influenciou gerações e mais gerações de músicos. Como disse, com bastante propriedade, o crítico Tárik de Sousa: “a riqueza da combinação de timbres e as ardilosas harmonizações deste disco só fazem pensar que nem sempre o tempo anda pra frente. Em relação a tanto atraso lançado depois, o Edison Machado deste disco é que continua mandando o verdadeiro samba novo”.

Os anos 70 começaram de maneira difícil para Edison e para muitos músicos que despontaram no Beco das Garrafas. A infantilização da música popular, o avanço da música pop norte-americana e a exclusão da música instrumental das rádios conspiravam para tornar a sobrevivência dos músicos profissionais uma tarefa inglória.

O baterista chegou a gravar , em 1970, o álbum “Obras”, ao lado de Ion Muniz (sax tenor e flauta), Alfredo Cardim (piano) e Ricardo dos Santos (baixo). No ano seguinte, mais uma aventura fonográfica: “O Pulo do Gato”, novamente secundado por Ion Muniz e por Ricardo Santos, com destaque para o jovem pianista Haroldo Mauro Jr. Contudo, a repercussão de ambos os discos, lançados pela pequena gravadora Stylo, foi mínima.

O baterista trabalhou na trilha sonora do filme “Terra em Transe”, dirigido por Glauber Rocha, e excursionou com Agostinho dos Santos por alguns países da América do Sul, mas a união durou pouco tempo. Em 1972, uma entrevista publicada no jornal O Globo trazia, como chamada, o texto a seguir, um diagnóstico irônico – porém realista – da situação dos músicos no país: “O melhor baterista do Brasil aceita emprego em espetáculo de qualquer natureza. Ligar para 224-1151 ou procurar Edison Machado na Rua Benjamim Constant 10, quarto 107”.

Desiludido com a situação, em 1976 ele tomou uma decisão radical: vendeu a bateria e se mandou, com a cara e a coragem, para a Europa. Fixou-se em Copenhagen, na Dinamarca, onde muitos músicos norte-americanos haviam se exilado nas décadas de 60 e 70. Certa feita, ao se apresentar no clube Bilboquet, em Paris, Machado viu na platéia três dos mais influentes e respeitados bateristas do jazz, que tinham ido ao local especialmente para vê-lo: Kenny Clarke, Max Roach e Sam Woodyard.

Pouco depois, nova mudança, desta vez para os Estados Unidos, onde trabalhou ao lado de grande nomes do jazz, como Ron Carter e Chet Baker. Fundou um quarteto, que se apresentava com bastante sucesso em festivais ao redor do globo e nas casas mais badaladas de Nova Iorque, como o Village Vanguard, o Blue Note e o Birdland. Um dos integrantes do conjunto era o pianista Harold Danko, então em início de carreira.

Após quase 15 anos longe do Brasil, Machado regressou ao país no início de 1990, disposto a retomar a carreira por aqui. Para celebrar o retorno, montou uma banda que incendiou as noites da Boite People, em uma temporada de enorme sucesso de público e crítica, que relembrava os melhores momentos do Beco das Garrafas. Além do próprio baterista, integravam o Edison Machado Sexteto o trombonista Edson Maciel “Maluco”, o saxofonista Macaé, o trompetista Paulo Roberto de Oliveira, o pianista Luís Paiva e o baixista Luiz Alves.

Este último, grande amigo de Machado, resume a importância do baterista no cenário da música brasileira: “Ele foi o papa da bateria moderna no Brasil, da bateria de samba. Era um gênio mesmo. Para mim a bateria brasileira pode ser classificada em antes de Edison Machado e depois de Edison Machado. Pessoalmente ele era muito agitado. Antes dele, praticamente não se usava prato para tocar samba, era só tambor e bumbo, ele foi mesmo um precursor da bateria moderna”.

Infelizmente, Edison Machado teve pouco tempo para usufruir o reconhecimento que aquela temporada prenunciara: no dia 15 de setembro daquele ano, em Niterói, um enfarte fulminante o retiraria do nosso convívio. Sobre seu estilo vigoroso e dinâmico, dizia: “minha bateria diz o que vejo e vivo, então sou barulhento”. Quem teve a honra de ouvi-lo tocar ao vivo vai confirmar a veracidade de suas palavras.

Pascoal Meirelles, outro dos nossos mais importantes bateristas, dá o seguinte depoimento: “Fui muito influenciado pelo Edison no começo da minha carreira, ele era um dos bateristas que eu mais ouvia. Basicamente, ele mudou a forma de se tocar a música brasileira na bateria. O samba no prato foi só uma das coisas em que ele inovou, mas nem acho que tenha sido a mais importante. Acho até um pouco redutor que as pessoas se lembrem dele só por causa disso. A meu ver, a importância dele é maior, é a concepção moderna que ele deu para a bateria”.

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segunda-feira, 20 de setembro de 2010

O-ESPÍRITO-QUE-ANDA


Quem tem mais de 30 anos, certamente se lembra d'O Fantasma. Criado por Lee Falk em 1936, e desenhado por Ray Moore, o personagem vivia inesquecíveis aventuras nas selvas de Bengala, sempre ajudado pelos leais Capeto, um pastor alemão, e Herói, um imponente cavalo banco. O Fantasma morava na Caverna da Caveira, e tinha em Guran, chefe da tribo dos pigmeus, o seu melhor amigo e confidente. Embora vivesse isolado, o herói não desprezava os avanços da tecnologia – rádio comunicador e avião, por exemplo, eram o que havia de mais novo na época – e de vez em quando dava um pulinho em Nova Iorque, a fim de se encontrar com a namorada Diana Palmer, funcionária da ONU.

Seus grandes inimigos eram os Piratas de Singh, uma organização criminosa que se dedicava a atividades pouco lícitas, como assassinato, roubo, extorsão, agiotagem e que tais. No Brasil, suas aventuras eram publicadas pela Rio Gráfica e Editora, a saudosa RGE, que publicava também as histórias do Recruta Zero. Curiosamente, ao contrário do que acontecia nos Estados Unidos, onde o seu uniforme era roxo, aqui o uniforme d’O Fantasma era vermelho. Máscara, duas pistolas automáticas e o terrível anel da caveira, compunham a identidade visual que aterrorizava os malfeitores.

Considerado imortal – daí ser conhecido como O-Espírito-Que-Anda – a longevidade d’O Fantasma tem uma explicação prosaica. Na verdade, trata-se de uma verdadeira dinastia de heróis, onde a tradição e os segredos – bem como os incontáveis tesouros acumulados na Caverna da Caveira – são transmitidos de pai para filho, atravessando gerações e mantendo viva a mística. Bom, mas o que mesmo O Fantasma tem a ver com o jazz?

É simples: em suas viagens a Nova Iorque, nos anos 40, Mr. Walker costumava freqüentar os clubes da Rua 52 e era amigo de caras como Charlie Parker, Bud Powell, Thelonous Monk e Max Roach. Reza a lenda que Art Blakey incluiu um poderoso dinamismo à sua percussão após visitar os pigmeus Bandar, a convite do amigo mascarado. Outro que teria passado dias agradabilíssimos nas selvas de Bengala foi Dizzy Gillespie (estudiosos têm poucas dúvidas de que “Con Alma” tenha sido composta ali), que ainda por cima namorou com um monte de garotas da tribo Wambesi.

Brincadeira! Na verdade, lembrei d’O Fantasma por causa de um músico especial e bastante querido por todos os jazzófilos, com a provável exceção d’O Predador (sinto que serei detonado por esta resenha): o soberbo Joe Henderson. Por causa do seu hábito de desaparecer de cena por longos períodos, o saxofonista era conhecido no meio musical como “The Phantom” – nome original do justiceiro mascarado.

Nascido em 24 de abril de 1937, na pequena cidade de Lima, no estado de Ohio, em uma numerosa família – ao todo, eram 15 irmãos – o saxofonista e compositor Joe Henderson foi um dos mais importantes saxofonistas surgidos nos anos 60. Desde muito cedo, demonstrou um enorme apreço pela música, em especial pelo jazz, que um dos seus irmãos mais velhos, James, ouvia com devoção.

Foi graças à alentada discoteca do irmão – que ouvia compulsivamente álbuns de Duke Ellington, Woody Herman, Illinois Jacquet, Coleman Hawkins, Stan Kenton, Wardell Gray e Charlie Parker – que o jovem Joe decidiu enveredar pelos maravilhosos caminhos da música. Seu primeiro instrumento foi o piano e Joe, então com oito anos, chegou a estudar com dois pianistas locais, Don Hurles e Richard Patterson, ambos amigos de seus irmãos mais velhos.

Pouco tempo depois, trocou o teclado pelo saxofone tenor, quando tinha apenas nove anos de idade, e encontrou ali o instrumento ideal para expressar as suas idéias musicais. Influenciado, primeiramente, pela sonoridade aveludada de Lester Young e Stan Getz, o garoto levava tão a sério as aulas de saxofone – estas a cargo de Hubert Murphy – que em pouco tempo já estava compondo temas para a orquestra da escola, da qual fazia parte.

Embora o jazz fosse a parte mais importante em sua formação musical, Joe também gostava bastante da música country de Johnny Cash, do rhythm and blues de James Brown e do então bom e novo rock’n roll de Chuck Berry. Seu passatempo favorito era assistir aos grandes artistas que se apresentavam nas cidades próximas – Daytona e Toledo, por exemplo. Assim, foram marcantes em sua vida os concertos das orquestras de James Moody e de Gene Ammons. Outro show que lhe marcou bastante foi o da banda de Earl Bostic, que assistiu quando tinha 14 anos, especialmente por causa da memorável performance de um jovem saxofonista chamado John Coltrane.

Após a conclusão do ensino médio, matriculou-se no curso de música do Kentucky State College, onde passou pouco tempo. Logo em seguida, transferiu o curso para a badalada Wayne State University, em Detroit. Ali, teve a oportunidade de conhecer alguns dos mais importantes membros da agitada cena jazzística local, como Yusef Lateef, Curtis Fuller, Hugh Lawson, Barry Harris e Donald Byrd, seus colegas na universidade. Também foi naquela época que Joe passou a conhecer e a estudar a música dos grandes compositores eruditos contemporâneos, como Béla Bartok, Igor Stravinsky e Paul Hindemith.

Na Cidade dos Motores, Henderson se dedicou ao estudo de composição, teoria musical e harmonia com Larry Teal na “Teal School of Music” e também recebeu aulas de flauta e contrabaixo. Além disso, costumava participar de gigs em clubes locais, tocando com alguns dos grandes nomes do jazz que se apresentavam na região de Detroit, como John Coltrane e Sonny Rollins, seus ídolos e que acabaram por se tornar as suas principais referências estético-musicais. Como bem observa Luiz Orlando Carneiro, “o músico digeriu as influências de Sonny Rollins ( improvisação mais direta do que por sobre os acordes de base da melodia) e John Coltrane (sonoridade e efeitos de timbre, embora sem os radicalismos do Coltrane dos anos 60)”.

Em 1959, já liderando seu próprio grupo, Henderson foi contratado pela firma de advocacia UNAC, ligada à defesa dos direitos civis, para compor uma suíte chamada “Swing And Strings”, em homenagem à contribuição afro-americana para a cultura dos Estados Unidos, que seria executada por uma orquestra integrada por diversos membros da prestigiosa Detroit Symphony Orchestra. Naquele ano, tocou por algum tempo com o saxofonista Sonny Stitt e integrou o conjunto do amigo Barry Harris.

Já tendo firmado seu nome como um dos mais criativos músicos da cidade, Henderson afastou-se do mainstream entre 1960 e 1962, a fim de cumprir o serviço militar obrigatório. Destacado para servir em Fort Benning, na Geórgia, não demorou muito para montar um quarteto que, posteriormente, se tornaria atração em diversas bases do exército, não apenas dentro dos estados Unidos, mas também em outros países. Graças ao trabalho com o grupo, o saxofonista pôde se apresentar para tropas norte-americanas estacionadas na Inglaterra, na Itália, no Panamá, na França, no Japão e na Coréia do Sul.

Quando esteve na França, Henderson teve a oportunidade de tocar com o legendário baterista Kenny Clarke, que na época residia em Paris. Findas as obrigações militares, em gosto de 1962, decidiu se estabelecer em Nova Iorque, onde chegou cercado das maiores expectativas. Reza a lenda que numa das primeiras noites em Nova Iorque, Henderson foi assistir a um concerto de Dexter Gordon no Birdland. Convidado por Dex para subir ao palco, Henderson deixou a platéia hipnotizada com seu ataque furioso e extremamente imaginativo e quase eclipsou o anfitrião. Imediatamente, foi contratado pelo organista “Brother” Jack McDuff, com quem tocou por poucos meses. Pouco depois, juntou-se ao grupo do trompetista Kenny Dorham, permanecendo ali até 1964.

Como acompanhante de Dorham, o saxofonista participou de sua primeira gravação para a Blue Note, no álbum “Una Mas”, de 1963. Não demorou muito e Henderson já era um dos mais disputados músicos de Nova Iorque, participando de gravações ao lado de Andrew Hill, Johnny Coles, Grant Green, Lee Morgan, Duke Pearson, Pete La Roca, Larry Young, Nat Adderley, McCoy Tyner, Herbie Hancock, Freddie Hubbard, Blue Mitchell, J. J. Johnson, Chick Corea, Joe Zawinul, Bobby Hutcherson, Lee Konitz e muitos outros.

Alfred Lion, incansável farejador de novos talentos, contratou Henderson para o cast da Blue Note, por onde lançou seus primeiros discos como líder. Todos eles – “Page One” e “Our Thing” (1963), “In’n Out” e “Inner Urge” (1964) e “Mode For Joe” (1966) – mereceram rasgados elogios por parte da crítica especializada e são reputados como alguns dos melhores momentos do sax tenor dos anos 60.

Em 1964, deixou Dorham para se juntar ao quinteto de Horace Silver, ocupando o lugar de Junior Cook, e ali pode ser ouvido no seminal “Song For My Father”, gravado em outubro daquele mesmo ano. Outro disco fundamental dos anos 60 e que conta com a preciosa colaboração de Henderson, é “The Sidewinder”, obra-prima de Lee Morgan, também gravado naquele ano mágico – pelo menos para o jazz – de 1964. O saxofonista permaneceu com Silver até 1966, quando decidiu priorizar a carreira solo e o trabalho como freelancer.

Co-liderou uma big band com o antigo patrão Kenny Dorham, mas o empreendimento não teve o sucesso esperado. Todavia, seus arranjos para a orquestra – que permaneceriam inéditos por quase trinta anos – seriam aproveitados no álbum “Joe Henderson Big Band”, gravado para a Verve em 1996. O disco conta com as participações de gente do calibre de Marcus Belgrave, Joe Chambers, Chick Corea, Jon Faddis, Slide Hampton, Freddie Hubbard, Ronnie Mathews, Christian McBride, Michael Mossman, Lewis Nash, Nicholas Payton e Idrees Sulieman, além dos brasileiros Helio Alves, Paulinho Braga e Nilson Matta.

Em 1967, tocou por um brevíssimo período com o grupo de Miles Davis, que incluía os fabulosos Herbie Hancock, Wayne Shorter, Ron Carter e Tony Williams, mas não existe nenhum registro gravado dessa formação. No mesmo ano, foi contratado por Orrin Keepnews para ser um dos destaques do cast da Milestone. Seus álbuns desse período, como “Power To The People”, “In Pursuit Of Blackness” ou “Black Narcissus”, demonstravam uma forte influência do fusion, com a inclusão de instrumentos eletrificados e elementos do pop, do rock, do funk e da música eletrônica. Além disso, revelam uma outra faceta de Joe: o músico engajado, preocupado em denunciar a situação do negro nos Estados Unidos e o preconceito racial.

Henderson criou o “Jazz Communicators”, juntamente com seu amigo Freddie Hubbard, mas o grupo teve vida curta, durando pouco mais de um ano, entre 1967 e 1968. O saxofonista atuou no álbum “Fat Albert Rotunda” (Warner Bros., 1969), de Herbie Hancock, onde o pianista inicia o seu duradouro envolvimento com o fusion e usa, pela primeira vez, o sintetizador. Esse álbum tornou-se um enorme sucesso comercial e influenciou enormemente a onda fusion que dominaria o cenário jazzístico dos anos 70.

O flerte com o rock acabaria em casamento – bastante breve, diga-se de passagem – com a união de Henderson ao grupo Blood, Sweat & Tears, em 1971. Nesse período, o saxofonista mudou-se para San Francisco e passou a lecionar, optando por priorizar a carreira de educador musical. Não obstante, participou da all-star band “The Griffith Park Band”, integrada por Freddie Hubbard, Chick Corea, Stanley Clarke e Lenny White.

Praticamente toda a década de 70 foi direcionada ao magistério, tendo lançado poucos álbuns durante esse período, com destaque para o ótimo “Joe Henderson In Japan”, de 1971, no qual está acompanhado por uma sessão rítmica composta por três músicos japoneses, e para “The Elements”, de 1973, onde flerta com aquilo que futuramente iria se chamar World Music e que conta com a participação da pianista e harpista Alice Coltrane. Como músico de apoio, participou de álbuns de Flora Purim, Kenny Burrell, Ron Carter, Woody Shaw e da banda de rock progressivo Jethro Tull.

Em 1980 Henderson decidiu retomar a carreira musical com todo o gás. Logo naquele ano lançou um disco verdadeiramente antológico: “Relaxin’ At Camarillo”, gravado em dezembro de 1979. Contando com a participação de Chick Corea no piano e de feras como Tony Dumas ou Richard Davis no contrabaixo e Peter Erskine ou Tony Williams na bateria, o álbum foi muito bem recebido pela crítica e marcou a volta do saxofonista às boas veredas do bebop e do hard bop mais ortodoxos.

Em 1985, lançou o elogiadíssimo “The State Of The Tenor: Live At The Village Vanguard”, que marcou seu breve retorno à Blue Note. Repetindo, vinte anos depois, o tour de force empreendido pelo ídolo Sonny Rollins naquele mesmo clube e usando a mesma formação – sax tenor, bateria (pilotada por Al Foster) e contrabaixo (a cargo de Ron Carter) – Henderson interpreta com enorme maestria standards como “Stella By Starlight” e composições próprias como “Isotope”. Naquele mesmo ano, participaria do show comemorativo dos 40 anos da Blue Note, ao lado de gente como Herbie Hancock, Stanley Jordan, Art Blakey e outros, no Town Hall, em Nova Iorque.

O sucesso do disco entre a crítica despertou o interesse da Verve, que o contratou no início dos anos 90. Na nova gravadora, Henderson conseguiu conjugar sucesso de crítica e público, especialmente por conta de seus discos tributos. Vieram então homenagens a Billy Strayhorn (em “Lush Life”, de 1992) e a Antônio Carlos Jobim (em “Double Rainbow”, de 1995), que venderam mais de 100.000 cópias só nos Estados Unidos e que mereceram prêmios Grammy, colocando o saxofonista como um dos nomes mais reverenciados e solicitados dos anos 90.

Outro disco tributo desse período, mas que não repetiu o sucesso comercial dos outros já mencionados, é o espetacular “So Near, So Far”. Aqui o homenageado é o controvertido Miles Davis, com quem Henderson tocou por um brevíssimo período no final dos anos 60, e o repertório traz apenas composições suas, com exceção da faixa título, de autoria de Tony Crombie e Benny Green. Gravado entre os dias 12 e 14 de outubro de 1992, no estúdio Power Station, em Nova Iorque, o disco traz Henderson acompanhado pelo guitarrista John Scofield, pelo baixista Dave Holland e pelo baterista Al Foster. Como se não bastassse, o álbum abiscoitou dois prêmios Grammy: Best Jazz Instrumental e Best Solo.

Um dos muitos méritos do álbum é revelar o compositor inventivo e extremamente fértil que foi Davis. Lamentavelmente, o aspecto composicional de sua obra, muitas vezes, é relegado a um segundo plano, pois alguns detratores preferem abordar o seu lado, digamos, folclórico – “Ah! Miles roubou uma música do Hermeto!” – ou a sua suposta inaptidão como trompetista – “Ah! Miles não consegue tocar uma escala corretamente!”.

Ouça-se, por exemplo, “Miles Ahead”, que abre o disco. O tema é de uma sutileza e uma cadência emocionantes. O quarteto a executa com tamanha delicadeza, costurando os acordes de forma sutil, que é impossível ao ouvinte ficar indiferente. Henderson é um dos mais completos improvisadores de toda a história do jazz, conseguindo se expressar com fluência em qualquer contexto. Scofield, um guitarrista dos mais incensados do cenário atual, mantém-se contido e apresenta um fraseado melodioso e delicado, na linha de um Jim Hall ou de um Jimmy Raney.

Em seguida, entra a feérica “Joshua”, com sua pegada vigorosa, com destaque para a percussão vulcânica de Foster e para a guitarra de Scofield, cuja abordagem aqui é energética e altamente swingante. A atuação de Henderson, nada menos que soberba, rivaliza com a impressionante performance de George Coleman na gravação original, no álbum “Seven Steps To Heaven” (Columbia, 1963).

“Pfranccing (No Blues)” e “Teo” foram lançadas no álbum “Someday My Prince Will Come”, de 1961 e também da Columbia. A primeira é um blues heterodoxo, com um diálogo devastador entre Henderson e Scofield, no estilo pergunta-e-resposta típico dos spirituals, com direito a um fabuloso solo de Holland. A segunda é uma instigante viagem pelas sinuosas águas do jazz modal, na qual paira, soberano, o saxofone quase sombrio do líder. Detalhe: na gravação original quem tocava o sax tenor era ninguém menos que o ídolo John Coltrane.

“Milestones” é a composição mais antiga do álbum – foi gravada no álbum “Miles Davis All-Stars”, para a Savoy, em 1947, com a presença do genial Charlie Parker no sax alto. A versão de Henderson e seus parceiros não renega as origens bop do tema mas lhe dá uma roupagem mais contemporânea, assemelhando-se mais aos trabalhos do quinteto de Davis da segunda metade dos anos 60.

Falando no “quinteto mágico” dos anos 60, temos “Circle” e “Side Car”, duas das mais complexas composições de Davis e veículos perfeitos para os arabescos sonoros do seu então saxofonista, Wayne Shorter. Henderson também trafega pelas mesmas veredas oblíquas de Shorter e sua abordagem mescla influências da música latina e do jazz avant-garde.

Um dos momentos mais emocionantes do disco é “Flamenco Sketches”, extraída do clássico “Kind Of Blue”, de 1959. São quase dez minutos de magia em forma de música, numa construção etérea. As sutilezas dos arranjos vão sendo enredadas pela guitarra de Scofield e pelo saxofone de Henderson, e a sonoridade flutuante encontra dos dois em Foster e Holland um delicado anteparo.

“Swing Spring” foi gravada em 1954, no álbum “Modern Jazz Giants”, que trazia a participação dos gigantes Thelonious Monk e Milt Jackson. Mais uma vez, a releitura incorpora ao bebop original elementos do jazz contemporâneo, mostrando que a grande música jamais envelhece. Destaque para a performance de Scofield, criativa e intensa, e para os solos do líder, nada menos que cativantes.

O álbum é completado com a faixa título, única que não foi composta por Davis. É outro momento assombrosamente belo, climático, com uma atuação mais do que competente de Foster e o sopro de Henderson, que se mantém, primorosamente, nos registros mais agudos do instrumento, lembrando a sonoridade de um sax alto. Um dos álbuns verdadeiramente fundamentais dos anos 90.

Henderson se manteve regularmente ativo até 1997, quando gravou seu último álbum – “Porgy And Bess”, também para a Verve. Depois disso, foi obrigado a se afastar dos palcos e estúdios, por conta de um enfisema pulmonar que lhe dificultava a respiração e praticamente o impedia de tocar. A doença acabou por minar-lhe as forças e no dia 30 de junho de 2001 o saxofonista faleceu, em decorrência de um ataque cardíaco, na cidade de San Francisco. Todavia, sua herança está presente e mais forte do que nunca, na obra de monstros como Joshua Redman, Joe Lovano e Brandford Marsalis, para citar apenas alguns dos saxofonistas que ele influenciou.

Em uma entrevista ao jornalista Martin Mel, Henderson sintetizou as suas ambições e anseios dentro da carreira musical: “Estou em constante busca de novas informações e idéias, e quero fazer o melhor durante este curto período de tempo em que estiver neste planeta, vivendo esta coisa nebulosa chamada vida. E também quero plantar algumas árvores ao longo do caminho, conquistar algumas mentes e vê-las crescer, como algumas pessoas fizeram comigo”.

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