Amigos do jazz + bossa

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

EL NOMBRE DEL HOMBRE ES PUEBLO

Gonzalo Julio Gonzalez Fonseca nasceu em Havana, Cuba, no dia 27 de maio de 1963. O avô, Jacobo Gonzalez Rubalcaba, foi um importante trombonista e compositor. Seu pai, Guillermo Rubalcaba, é um dos mais renomados pianistas cubanos de todos os tempos e a habilidade musical foi transmitida ao herdeiro. Na infância, o garoto pôde conviver com notáveis músicos cubanos, como Enrique Jorrín, Frank Emilio Flynn, Juan Formell, Changuito, Omara Portuondo e Felipe Dulzaides, que costumavam visitar a casa da família.

O aprendizado musical começou em casa e aos cinco anos já extraía do piano os primeiros acordes e além do piano, o garoto também tocava bateria. O cardápio musical incluía fartas doses da tradicional música cubana, mas Gonzalo também ouvia muito jazz. Não apenas pianistas como Thelonius Monk, Erroll Garner, Art Tatum, Bud Powell ou Oscar Peterson, mas também outros instrumentistas, como Charlie Parker, Dizzy Gillespie e Art Blakey, faziam parte do seu universo de audições. A educação musical formal veio através das aulas no Conservatório Manuel Saumell, quando tinha apenas nove anos e decidiu fixar-se apenas no piano. O repertório era integrado apenas por composições eruditas, o que não abalou em nada a sua paixão pelo jazz.

Em uma entrevista, Rubalcaba lança um olhar sobre essa dicotomia entre a música erudita e a popular: “Eu tive duas escolas. A escola da minha casa, onde a música que vinha das ruas entrava por meio do meu pai e de outros membros da minha família, e a escola ortodoxa, erudita, a qual não queria nenhum tipo de contato com a música popular”. Para a felicidade dos amantes do jazz, Rubalcaba nunca se deixou contaminar por esse espírito segregacionista e sempre esteve atento às mais diversas formas de expressão da música popular, inclusive a brasileira.

Além da influência inicial de Monk, Garner, Tatum, Powell e Peterson, Rubalcaba, com o passar dos anos, acrescentou a esse seleto rol alguns dos mais importantes pianistas contemporâneos, como Herbie Hancock (de quem gravou uma soberba versão de “Maiden Voyage”), Keith Jarrett, McCoy Tyner e Chick Corea (com quem se apresentaria em uma série de concertos em 2005, os quais podem ser vistos no dvd “Rendezvous In New York”).

Na adolescência, freqüentou o Conservatório Amadeo Roldan, até ingressar no Instituto Superior de Artes – ISA, em Havana, em 1983, onde estudou com alguns dos melhores músicos do Leste Europeu e se graduou em composição. Naquela época já era considerado um verdadeiro fenômeno musical e costumava se apresentar em bares e clubes locais. Fez parte da Orquestra Aragon, ao lado de quem excursionou pela Europa e pela África nos anos 80.

Naquela época, fundou e liderou o Grupo Projecto, que se apresentou em festivais importantes, como o North Sea, na Holanda, e o de Berlin, em 1985, além de ter tocado no mítico clube londrino Ronnie Scott’s. A banda reunia alguns dos melhores jovens músicos cubanos da época: o saxofonista Rafael Carrasco, o trompetista Reinaldo Meliani, o baixista Felipe Cabrera, o percussionista Roberto Vizcaino e o superbaterista Horacio “El Negro” Hernández.

Em 1986, o contrabaixista Charlie Haden foi convidado, juntamente com a sua Liberation Music Orchestra, para participar do V Festival Jazz Plaza, em Havana. Além de grupos e artistas do Leste Europeu, da América Latina e da África, o grande Dizzy Gillespie fez uma apoteótica apresentação no festival. Haden conta que após o concerto da sua orquestra, continuou na platéia para assistir a atração seguinte, exatamente o Grupo Projecto. O que viu e ouviu ali o deixaram perplexo: um pianista tecnicamente impecável, ousado, capaz de assombrar o mais experiente dos fãs de jazz com seu talento.

Após a apresentação, Haden procurou o jovem pianista no camarim e, surpreso, ouviu-o confessar ser seu fã, especialmente por conta de suas gravações com Keith Jarrett. A amizade brotou imediatamente e a vontade de tocar juntos também. No dia seguinte, Gonzalo levou o baixista até o Estúdio Egrem, para uma sessão informal de gravação. Os equipamentos de gravação, microfones e instrumentos não eram lá grande coisa – essencialmente, haviam sido instalados ou adquiridos antes da revolução cubana – mas Rubalcaba tocou como se estivesse usando o melhor dos Steinways, segundo Haden.

Outro que ficou impressionado com as habilidades do cubano foi Dizzy Gillespie, freqüentemente apontado como o seu descobridor. De fato, Dizzy foi o primeiro jazzista de peso a chamar a atenção do mundo para o excepcional pianista, a quem apontava como o melhor que havia ouvido na última década. O trompetista conheceu Gonzalo em uma gig no Hotel Nacional, em Havana, durante a edição do festival. No dia seguinte, Rubalcaba subiria ao palco como músico convidado, durante a performance de Gillespie no festival.

Os dois se tornaram grandes amigos e Gillespie tentou inúmeras vezes levar Gonzalo aos Estados Unidos, mas o Departamento de Estado sempre lhe negava o visto de entrada. Usando seu prestígio pessoal, Dizzy, com o apoio do produtor Bruce Lundvall, então presidente da Blue Note, e do incansável Wynton Marsalis, outro admirador confesso do pianista, liderou uma cruzada entre artistas e intelectuais pelo fim da proibição à entrada do pianista.

O movimento conseguiu convencer as autoridades do absurdo da recusa e, no dia 14 de maio de 1993, finalmente, Rubalcaba pôde realizar seu primeiro concerto nos Estados Unidos, no prestigioso Lincoln Center. Infelizmente, Dizzy não pôde desfrutar da companhia do seu protegido, pois faleceu em janeiro daquele ano. Gonzalo prestou ao amigo uma emocionante homenagem em dezembro daquele 1993, que lhe havia trazido tantas emoções diferentes: lançou o álbum “Diz”, pela Blue Note, no qual interpreta clássicos do repertório gillespiano, como “A Night In Tunisia”, “Con Alma”, “Donna Lee”, “I Remember Clifford” e “Woody’N You”.

Antes disso, Rubalcaba já havia encantado platéias da Europa e da Ásia, com apresentações inesquecíveis na Alemanha, França, Portugal e Japão. Também já havia se apresentado na edição de 1989 do Festival de Montreal, no Canadá. Sua primeira gravação fora de Cuba foi feita em 1987, para o selo alemão Messidor. O álbum, bastante elogiado pela crítica especializada, se chama “Mi Gran Pasion” e apresenta o pianista, secundado por seus companheiros do Grupo Projecto. Em seguida, pela mesma gravadora, lançaria “Live in Havana” (1989) e “Giraldilla” (1990).

No dia 15 de julho de 1990, Rubalcaba foi a grande sensação do Festival de Montreux, na Suíça. Convidado por Charlie Haden e pelo baterista Paul Motian, o pianista subiu ao palco do festival e apresentou-se de maneira arrebatadora. O concerto, que algum tempo depois ganharia a forma de cd, intitulado apenas “Discovery”, permanece como um dos pontos altos da hoje extensa discografia de Gonzalo. Contando com a produção de Haden e lançado pela Blue Note, o álbum revelou ao mundo a excelência do pianista cubano e lhe assegurou uma enorme visibilidade no concorrido universo jazzístico.

Uma irreverente versão de “Well You Needn’t” abre o disco, na qual o pianista exibe uma inusitada mistura de bebop, música cubana e jazz de vanguarda. Thelonoius Monk certamente ficaria satisfeito ao ouvir a exuberância sonora de Rubalcaba, seu apuro técnico, sua velocidade, sua profusão de idéias e seu absoluto destemor. Versátil, inventivo e ousado, o pianista recorta a melodia, serpenteia por entre dissonâncias, tece harmonias inacreditáveis e improvisa com ferocidade, sempre com o suporte magnânimo de Haden e Motian, cujo solo é dos mais vibrantes.

Em seguida, é a vez de Gonzalo mostrar seu talento composicional, com a hipnótica “Velas”, uma balada que reelabora os cânones da música cubana tradicional, com evocações à bossa nova e à música erudita de compositores como Chopin e Tchaikovsky. A delicada percussão de Motian, sobretudo em seu trabalho com os pratos, merece ser ouvida com atenção. A execução de Haden é sombria, espectral, usando os registros mais graves do contrabaixo e dando ao tema uma atmosfera impressionista.

O solo “Prologo Comienzo” é um tour-de-force pianístico. O estilo de Rubalcaba guarda semelhança com o de Keith Jarrett, mas a influência da música de seu país é facilmente perceptível. Sua forma vigorosa de atacar as teclas dá ao ouvinte a certeza de se tratar de alguém verdadeiramente apaixonado pelo que faz. Em alguns momentos, é a improvisação catártica de um Cecil Taylor quem parece influenciar o pianista, mas em momento algum ele perde a linha ou deixa que suas idéias se apresentem desencontradas.

Haden comparece com “First Song”, uma balada introspectiva e complexa. A execução do pianista respeita a introspecção do autor, mas também imprime ao tema uma boa dose de calor humano, tornando lírico aquilo que poderia soar árido – aqui é Bill Evans a referência mais próxima. O solo do baixista é estupendo, embora bastante fiel a seu estilo recatado e quase impessoal. Motian, talvez o baterista que melhor compreendia a delicadeza e a expressividade comedida de Evans, tem aqui uma de suas mais envolventes atuações.

Motian, aliás, é o autor da ótima “Once Around The Park”, outro momento sublime do trio. Com uma estrutura enviesada e fluida, a faixa absorve boa parte dos cânones do post-bop, lembrando as composições de Wayne Shorter dos anos 60. Gonzalo está mais do que exuberante – seu fraseado é musculoso e seu ataque é arrebatador. Ele transita pelos registros mais agudos com perícia extremada, dialogando em altíssimo nível com seus veteranos companheiros. O baterista tem uma atuação impecável, construindo um aparato rítmico repleto de sutilezas.

Composta pelo pianista como uma homenagem ao primeiro filho, “Joao” é o tema mais introspectivo do álbum. O dedilhado de Rubalcaba é ondulante, etéreo, e sua abordagem sutil, onde cada nota é colocada com precisão cirúrgica, imprime à faixa um clima quase onírico. O devaneio sonoro é discretamente apoiado pela dupla Haden-Motian, que não demonstram o menor constrangimento de servir de coadjuvantes para o jovem de apenas 23 anos.

Fechando o álbum a faixa mais empolgante: uma versão simplesmente devastadora de “All The Things You Are”, de Jerome Kern e Oscar Hammerstein II. Escrita para o musical “Very Warm for May”, de 1939, a canção tornou-se uma das preferidas dos músicos de jazz e já foi gravada milhares de vezes, por nomes como Art Tatum, Charlie Parker, Wes Montgomery, Jimmy Heath, Erroll Garner, Jimmy Giuffre, Keith Jarrett, Ella Fitzgerald, André Previn, John Lewis, Coleman Hawkins, Johny Griffin, Dave Brubeck, Oscar Peterson, Warne Marsh, Serge Chaloff, Lennie Tristano e incontáveis outros. Mesmo confrontado com essa plêiade de astros, Rubalcaba consegue se destacar por sua absoluta originalidade. Seu ataque é contemporâneo, ágil, intuitivo, destemido, arrebatador, sobrenatural.

Poucos pianistas, de qualquer época, seriam capazes de extrair do instrumento a cornucópia de sons que o cubano consegue criar. Sempre surpreendente, Gonzalo eleva a um patamar de excelência raro o significado de expressões como “virtuosismo” e “técnica”. Com o suporte dos monstruosos Haden e Motian, a versão engendrada pelo pianista é uma arrojada experiência sensorial, que ultrapassa os limites da audição e transporta o ouvinte para um universo todo próprio, feito de beleza e emotividade. Apenas por essa única faixa e o disco já seria item obrigatório. Por trazer outros seis temas tocados com o mesmo apuro e competência, merece o epíteto de “indispensável”.

Em 1991, a Blue Note seu primeiro álbum lançado oficialmente nos Estados Unidos, “The Blessing”, onde o pianista está acompanhado do velho camarada Charlie Haden e do baterista Jack DeJohnette. Dentre os destaques do álbum, uma explosiva versão de “Giant Steps”, de Coltrane, e uma delicada releitura do bolero “Besame Mucho”. O álbum foi gravado em Toronto, no Canadá, pois à época o pianista estava proibido de ingressar no território dos Estados Unidos. Ao longo dos anos, o pianista tem posto seu talento a serviço de músicos de primeira linha, como Machito, Dianne Reeves, Bob Belden, Chico Hamilton, Ron Carter, Joe Lovano, Pat Martino e Paquito D’Rivera.

Sua admiração pela música brasileira é profunda. Participou de álbuns da cantora Ithamara Koorax, tocou com Ivan Lins e João Bosco, e gravou “Manhã de carnaval”, de Luiz Bonfá e Antônio Maria, em seu álbum “The Trio”, de 1997. Quatro anos antes, no dia 27 de setembro de 1993, foi uma das estrelas na homenagem que o extinto Free jazz Festival prestou ao maestro soberano Antonio Carlos Jobim. Além do próprio Tom, Rubalcaba dividiu o palco com astros como Shirley Horn, Gal Costa, Ron Carter, Oscar Castro Neves, Joe Henderson, Herbie Hancock, Harvey Mason, Alex Acuña e outros. O concerto foi realizado em São Paulo e posteriormente lançado em cd, pela Verve, com o título “Antonio Carlos Jobim And Friends”. A atuação de Gonzalo em “Água de beber” foi indicada ao Grammy de 1997, na categoria “Best Instrumental Jazz Solo”.

Vários de seus discos foram indicados ao prêmio Grammy, ao longo dos anos, como “Rapsodia”, em 1995, e “Inner Voyage”, em 1999. Em junho de 2001, Gonzalo recebeu o prêmio Leaders Circle Laureate Award, concedido pela SFJAZZ, entidade que organiza e realiza festivais de prestígio, como o San Francisco Jazz Festival, o SFJAZZZ Summerfest e o SFJAZZ Spring Season. Em 2002, seu álbum “Supernova” (Blue Note) recebeu o Grammy Latino, na categoria de Melhor Disco de Jazz.

No mesmo ano, recebeu mais um Grammy Latino, desta feita dividindo as honras com Charlie Haden, pela produção de “Nocturne” (Verve), no qual o baixista interpreta clássicos do cancioneiro latino-americano. Ainda em 2002, atuou como Artista Residente, durante o Montreal Jazz Festival, ao lado de outro excepcional pianista cubano: Chucho Valdez.

Casado com Maria desde 1986, Rubalcaba tem três filhos. A fim de facilitar suas inúmeras viagens internacionais, mudou-se para Santo Domingo, na República Dominicana, em 1992. Quatro anos depois, em 1996, fixaria residência em Miami, na Flórida, onde vive até hoje. Por seus trios passaram alguns dos mais brilhantes músicos contemporâneos, como os bateristas Ignacio Berroa, Jack DeJohnette e Dennis Chambers, e baixistas como John Patitucci, Almando Gola e Brian Bromberg. Em 2007 integrou uma banda all-star no Festival de Monterey, integrada pelo baixista Dave Holland, pelo saxofonista Chris Potter e pelo baterista Eric Harland.

Em seu último disco, “Avatar” (Blue Note, 2008), o pianista resolveu abandonar o formato de trio e se juntar a alguns jovens músicos que têm causado sensação no cenário jazzístico de Nova Iorque, como o baterista Marcus Gilmore, o baixista Matt Brewer, o trompetista Mike Rodriguez e o saxofonista cubano Yosvany Terry, autor de três das sete faixas do álbum, que inclui uma versão de “Peace”, de Horace Silver. Ainda em 2008, participou do álbum “Love Day”, do festejado acordeonista francês Richard Galliano.

Atualmente, Rubalcaba ensaia a ópera “Revolution of Forms”, na qual aborda a relação entre a arte e a política na Cuba pós-revolucionária, valendo-se de personagens históricos como Fidel Castro e Che Guevara. A ópera é considerada o mais pessoal dos projetos de Rubalcaba e vem sendo composta com o auxílio do músico Anthony Davis. O libreto está a cargo dos jornalistas Charles Koppelman e Alma Guillermoprieto, e seu lançamento está previsto para o primeiro semestre de 2011.

Criticado por alguns integrantes da comunidade cubana de Miami por jamais haver feito uma condenação pública ao regime de Fidel Castro, Rubalcaba, que saiu legalmente do país, chegou a ser obrigado a cancelar uma apresentação no Gusman Center, por conta dos protestos de alguns anticastristas mais exaltados. Em uma entrevista à rádio NPR, ele deixou claro o seu reúdio às restrições à liberdade de expressão em seu país e criticou a censura a qualquer forma de expressão artística, sobretudo à música.

Para o pianista, todavia, o mais importante é criar pontes e derrubar os muros entre as pessoas – sejam eles musicais ou ideológicos. Em suas palavras: “Vivemos um momento no qual a evolução, não só da música, mas do próprio mundo, permite às pessoas que tenham menos resistência à mistura. É tempo de estar aberto para aprender aquilo que está além dos nossos próprios limites geográficos. Essa postura não vai tirar algo de você, mas, ao contrário, vai enriquecê-lo como ser humano”.

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quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

UM CONTO DE NATAL


Caminhar sozinho, à noite, pelas ruas de uma grande cidade, pode ser uma experiência assustadora. Sobretudo quando você tem apenas doze anos. Sobretudo quando você não tem pai nem mãe. Nem casa. Nem amigos. Nem lugar prá dormir. Nem dinheiro. Nem comida. O frio impiedoso parecia congelar cada célula, cada pequena unidade orgânica do seu corpo. Com os olhos semicerrados, ele caminhava, trôpego, pelas calçadas desertas. O eco de seus passos era o único som audível.

Não havia gente e nem carros na rua. As luvas estavam rasgadas e para amenizar o frio ele punha as mãos dentro dos bolsos do velho casaco. Ainda lhe sobraram duas fatias de pão, que ele apalpou com sofreguidão, como se quisesse ter a certeza de que o alimento continuava em seu poder. Caminhando a esmo pelas ruas desertas do centro, Detroit lhe pareceu ainda mais inóspita. Viera dar na cidade, depois de fugir do orfanato em Albuquerque. O calor do Novo México jamais lhe pareceu tão acolhedor.

Pegara carona com um caminhoneiro, que tentara molestá-lo. O pequeno canivete e o olhar assassino que dirigiu ao homem o fizeram desistir da idéia. O sujeito foi embora e ele ficou, sozinho, em um ponto ermo da rodovia. Depois de caminhar por quase duas horas, chegara a um posto de gasolina decrépito, mas conseguiu um lugar para dormir. No dia seguinte, conheceu um velho hippie de cabelos desgrenhados e roupas coloridas, com quem viajou por alguns dias. Ora a pé, ora de carona, a dupla chegou a Kansas City.

O velho hippie resolveu ficar por ali e o garoto continuou a viagem de trem. Como clandestino, é claro. Saint Louis, Cincinnati, Chicago e, finalmente, Detroit. No orfanato ouvira um boato de que seu pai, depois de abandonar a mãe, havia ido tentar a sorte como operário na indústria automobilística. A mulher morreria menos de dez meses depois. O atestado de óbito consignava pneumonia como causa da morte. Mas ele, que tinha então só três anos, sabia que sua mãe havia morrido de tristeza. Sem parentes ou amigos, foi mandado para uma instituição que recebia crianças na mesma situação.

Várias crianças que ele conheceu ali acabaram por ser adotadas. Skippy, Charlie, Loretta, Minnie, Geoff, Nat, Rick. Todos haviam conseguido um lar. Brancos ou negros, grandes ou pequenos. Até o retardado do Justin, um aprendiz de delinqüente, cujo passatempo era estripar todos os pequenos animais que encontrava, havia conseguido um lar. Menos ele. Oito de espera anos e nada! Seu olhar duro e seu temperamento arredio não facilitavam as coisas. Uma única vez um casal demonstrou interesse em adotá-lo. Levaram-no para passear algumas vezes, foram ao zoológico, ao cinema. Até fizeram um piquenique com ele.

Mas não houve empatia e o casal acabou desistindo. Soube, algum tempo depois, que a mulher havia engravidado. Não ficou triste. Apenas um pouco decepcionado. Depois disso, nada de piqueniques ou de cinema. Um dia, sem pensar muito, colocou suas poucas peças de roupa em uma trouxinha, aproveitou um descuido da portaria e se escondeu na carroceria do caminhão que levava o leite para o orfanato. Fugas eram algo corriqueiro ali e tinha certeza de que não o procurariam por muito tempo. Não que fosse maltratado ou que sofresse castigos físicos. Apenas era ignorado, um ser invisível afetiva e socialmente. Um número nas estatísticas. Apenas mais um prato de comida.

Decidiu procurar o pai. Detroit era menos que uma pista. Era apenas um rumor. Uma voz longínqua em sua intuição, que ele ouvia como se fosse um breve sussurro. Mas era a única coisa que tinha. Em Cincinnati conseguiu algumas roupas para frio em um bazar da Brigada da Solidariedade. Dentro do bolso de uma camisa de flanela, encontrou uma nota de dez dólares. Foi a uma lanchonete e comeu como um rei. Batata frita. Refrigerante. Hambúrguer. Uma barra de chocolate Wonka. Quase não conseguiu levantar da mesa. Manteve o olhar altivo quando se dirigiu ao caixa e pagou sua despesa. Haviam sobrado exatos três dólares. Muito mais do que ele tinha quando começou a viagem.

Apertou o passo e tentou ignorar os flocos de neve que insistiam em desabar sobre a sua cabeça. Desde que chegara a Detroit, há menos de uma semana, sentira a atmosfera inamistosa da cidade. Um sentimento muito próximo da saudade apertou-lhe o peito e ele apertou os olhos com força. Se soubesse chorar, certamente o faria. Frio, fome, cansaço. Dormira pelas ruas ou em algumas das inúmeras construções abandonadas que existem às centenas pela cidade. Soube que os empregos haviam desaparecido.

Ninguém conhecia seu pai. Se ele realmente tivesse vindo para Detroit, certamente teria sido demitido há tempos. As fábricas de automóveis, peças e componentes simplesmente haviam desaparecido. Os enormes galpões, desertos e mal cuidados, eram o único vestígio da famosa Cidade dos Motores. Cidade Fantasma dos Motores, pensou. Era quase meia-noite e só então se deu conta de que dia era aquele. Era a véspera de Natal. Uma data como outra qualquer para ele. Lembrava vagamente que costumava receber, no orfanato, um brinquedo por ocasião do Natal. Algumas pessoas costumavam levar presentes para ser distribuídos às crianças.

Como o número de presentes sempre era menor que o de crianças, os mais velhos iam, progressivamente, sendo excluídos da distribuição. Havia uns três Natais que não ganhava nada e aquela data passou a ser ainda menos importante para ele. Esfregou as mãos no rosto e depois nas orelhas. O frio era cada vez mais intenso e os pés começavam a ficar dormentes. Ao passar sob uma marquise, algo chamou a sua atenção. Havia alguém ali. A rua estava escura e o medo quase conseguiu vencer a sua curiosidade. Mas ele seguiu em frente. O vulto ganhava forma. Eram duas pessoas. Na verdade, três. Um homem, uma mulher e, entre eles, um bebê. Os três lutavam para se agasalhar com um velho cobertor e alguns pedaços de papelão, que faziam as vezes de colchão.

Ele perdeu o medo e sentiu que, de alguma forma, havia pessoas em situação pior que a sua. O bebê estava com o rosto vermelho por causa do frio, mas não chorava. De algum modo, parecia saber que seu choro não adiantaria muito e que deixaria a situação ainda mais desesperadora. Aproximou-se dos três:

- Boa noite! Posso ajudá-los?

O homem lançou-lhe um olhar ríspido e sua resposta foi quase grosseira:

- Bem, se você tiver uma lareira aí com você, nós agradeceríamos.

A mulher interveio:

-Desculpe. Como pode ver, não estamos em um momento dos mais felizes. Mas se quiser, fique aqui conosco. Dividiremos o cobertor com você.

Ela deu um sorriso e o garoto sentiu algo diferente. Algo de que ele lembrava muito vagamente. Uma sensação de conforto e acolhimento, como há muito não sentia. Não sabia o que era, apenas que era bom. Sentou-se junto ao trio e começou a brincar com o bebê. Este deu um sorriso e estendeu-lhe as mãozinhas. Criou coragem e perguntou:

- O que houve? Porque estão aqui?

O homem expirou e já ia lhe dizer algo, quando a mulher pôs a mão em sua boca, carinhosamente. Depois, ela falou:

- Detroit já foi um bom lugar para viver. Havia trabalho e oportunidades para todos. Depois as coisas pioraram bastante. Muita gente foi embora. Nós estamos entre aqueles que não souberam o momento certo de partir.

O homem então disse:

- Perdemos o trem. O inclemente trem da história. É por isso que estamos aqui.

Depois, em um tom menos amargurado, falou:

- Tudo podia ser diferente. A vida, garoto, é escolher. Não se trata de outra coisa. E eu fiz as escolhas erradas. Pena que eu não esteja pagando sozinho o preço dessas escolhas. Olhou para a mulher, que apenas sorriu e, novamente, passou a mão em seu rosto.

O garoto notou que, apesar de sujos e mal cuidados, os três eram muito bonitos. O homem tinha a barba por fazer e os cabelos desalinhados, mas tinha um aspecto distinto. Olhar atento, queixo resoluto. Se estivesse arrumado, passaria por um artista de cinema. A mulher possuía uma nobreza e uma dignidade tão intensas que nem a miséria havia sido capaz de contaminar. Os olhos muito azuis chamavam a atenção. O bebê possuía os mesmos olhos e a mesma dignidade. Meteu a mão no bolso e tirou dali as duas últimas fatias de pão que carregava consigo. Ofereceu ao casal.

O homem recusou, ofendido. A mulher tomou-lhe as fatias da mão e agradeceu. Depois, abriu uma pequena caixa de papelão e de lá tirou uma garrafa térmica. Apanhou três copos de papelão, pôs um pouco de café em cada um deles e repartiu as duas fatias de pão, em três porções idênticas. Em seguida, ofereceu ao garoto e ao marido aquela refeição magra e improvisada, dizendo:

- Hoje é Natal e essa é a nossa ceia. Não é aquela com que sonhamos, mas é a que podemos ter.

Fechou os olhos e fez uma oração em voz baixa. O bebê sentia a gravidade daquele momento e permanecia quieto. A neve havia diminuído e a marquise protegia o quarteto dos poucos flocos que ainda insistiam em cair. Após comerem, os quatro se ajeitaram o melhor que podiam sobre as camadas de papelão. A princípio, o garoto recusou o pedacinho de cobertor que lhe fora oferecido, mas o frio acabou por fazê-lo desistir de seus pudores. O Natal era um dia como outro qualquer.

Apesar de toda a dramaticidade da situação, o garoto estava feliz. Era a primeira vez, em anos, que se sentia parte de algo. Era como se fosse um integrante daquela família desvalida e o infortúnio estreitava os laços entre eles. O calor que emanava da mulher o confortava e ele queria aproveitar cada segundo daquela comunhão. O cansaço venceu a resistências de suas pálpebras. Dormiram os quatro ali mesmo, sob a marquise de um velho prédio abandonado de Detroit.

Não havia estrelas no céu daquele 25 de dezembro, exceto uma. Depois que o quarteto dormiu, a estrela solitária brilhou com maior intensidade durante alguns breves segundos. Depois, foi se apagando, devagarzinho, até desaparecer completamente. A neve não voltou a cair e o frio pareceu menos intenso.

Pela manhã, o garoto foi o primeiro a acordar. Passava um pouco das seis horas e um sol, tímido, se anunciava por entre camadas de nuvens espessas. Ele lamentou ter que deixar o aconchego do seu quarto de dormir, mas estava decidido a sair daquela situação. Lembrou do bazar da Brigada da Solidariedade em Cincinnati, onde conseguira algumas roupas. Resolveu procurar algo semelhante em Detroit.

Após caminhar a esmo, cruzou com uma senhora de aspecto bondoso e pediu informações. Falou-lhe sobre o casal e o bebê que dormiam ali perto e a boa mulher condoeu-se da situação. Tirou alguns pães da sacola que carregava e entregou-os, juntamente com um litro de leite que havia comprado pouco antes, ao garoto. Antes, disse-lhe como chegar até a sede da Brigada da Solidariedade. Era cedo, mas certamente haveria gente ali para atendê-lo.

Ele voltou ao local em que havia deixado a família, deixou o leite e os pães bem à vista e correu para o lugar indicado pela senhora. Ao chegar ao local, encontrou um rapaz de cerca de 20 anos e um homem na casa dos sessenta. Pareciam pai e filho, mas logo descobriu se tratar de avô e neto. O mais velho tomava conta do local e recebia doações. Por conta do movimento do Natal, resolvera chegar mais cedo e trouxera o neto para ajudá-lo.

O garoto pediu algumas roupas, contou à dupla sobre a família e se ofereceu para ajudar o velho e seu neto a arrumar algumas prateleiras. O velho arrumou um sobretudo e um cobertor em uma sacola. Em outra, pôs mais um cobertor e algumas roupas de bebê. Na terceira, colocou algumas latas de sopa, um pacote de aveia, outro de açúcar, um pedaço de queijo, um pequeno pote de manteiga, dois litros de leite e um vidro com chocolate em pó. O garoto recebeu as sacolas como se fosse um prêmio de loteria. Seus olhos brilhavam. Antes de sair o velho disse:

- Deus o abençoe, filho. Meu nome é Charlie e o meu neto se chama Zac. Se quiser voltar, estaremos por aqui o dia inteiro.

O neto do homem enfiou alguma coisa no bolso do seu casaco e sorriu. Lá fora, percebeu que era uma pequena barra de chocolate e ele saiu carregando o seu tesouro. Passava das oito horas quando retornou ao local onde estavam seus novos companheiros. Eles já haviam comido um pouco do pão e do leite que o garoto tinha deixado ali. Também haviam dado leite para o bebê, que parecia satisfeito.

O garoto mostrou aos três as suas novas aquisições e a primeira coisa que fizeram foi colocar um macacão no bebê. A roupa estava em ótimo estado, parecia que fora usada pouquíssimas vezes. Era azul com detalhes amarelos e o bebê sorriu. O garoto falou sobre a mulher bondosa e sobre os dois homens que havia conhecido na Brigada da Solidariedade. Já não estavam com fome e, se dessem sorte, poderiam encontrar alguma outra coisa útil. Guardaram os donativos na parte de baixo do velho carrinho do bebê, o homem pôs a mochila com os parcos bens da família nas costas. Além de algumas roupas e do cobertor, havia alguns poucos livros e CDs na bagagem.

Caminharam em silêncio. Apenas o bebê emitia alguns sons e brincava com um patinho de borracha que outrora havia sido amarelo. Quando chegaram na sede da Brigada da Solidariedade, já havia outras pessoas no local. Algumas entregavam donativos, outras recebiam agasalhos e alimento. Dois homens tomavam café e uma senhora de aspecto distinto entregava a Zac algumas caixas com roupas usadas. Charlie ia arrumando os produtos que chegavam, mas percebeu a chegada do quarteto e foi ter com eles.

- Sejam bem vindos e sintam-se em casa. O que posso fazer para ajudá-los?

O homem, constrangido, disse:

- Meu nome é Dan. Essa é Lisa e o bebê é Louis. Seria possível tomarmos um banho quente?

- Claro, respondeu Charlie. O nosso lema é “sopa, sabão e solidariedade”. E deu um sorriso contagiante.

Apontou o caminho para um dos banheiros e os três se dirigiram para lá. Havia sabão, xampu, aparelhos e espuma de barbear, desodorante e até perfume no local. Quando voltaram do banho, os três pareciam outras pessoas. Haviam escolhido as melhores roupas do seu exíguo guarda-roupa e estavam bastante alinhados. O homem agradeceu a Charlie e se ofereceu para ajudar.

Charlie disse:

- Ajuda aqui é sempre bem-vinda. Estamos separando as roupas e classificando. Roupas masculinas, femininas, infantis... Também procuramos separar pelo tamanho e guardamos ali, apontando com o queixo para um enorme conjunto de prateleiras.

Dan trabalhou o dia inteiro, enquanto Lisa e o pequeno Louis acompanhavam, com atenção, a intensa movimentação no local. A cada momento, chegavam mais e mais pessoas. Por volta do meio-dia, foi servida uma sopa quente e todos os que estavam no local comeram até se fartar. O garoto, que permaneceu o tempo inteiro ajudando Lisa com o bebê, sentia-se útil e até havia esquecido o motivo pelo qual tinha viajado até Detroit. Naquele mesmo dia, Charlie conseguiu um pequeno alojamento para os quatro, em um local próximo.

Todos os dias, Dan e a sua família, que havia ganho mais um integrante, iam para a Brigada da Solidariedade e ajudavam no que fosse possível. Havia um computador no local, mas não funcionava. Dan consertou o equipamento e criou um programa para catalogar os itens recebidos, os itens doados, os nomes dos doadores e dos que recebiam as doações. Pouco tempo depois, elaborou uma página na internet, com os dados da Brigada da Solidariedade, inclusive com o número da conta para doações. O pequeno centro, que auxiliava desvalidos de todos os naipes, estava na rede.

Dan e o garoto desenvolveram uma estrita amizade. Trabalhando juntos, aprendiam um com o outro e, o mais importante, aprendiam a confiar um no outro. Lisa sentia que as coisas começavam a melhorar e que aquele garoto, surgido do nada em uma fria noite de Natal havia sido uma espécie de presente à sua família. Louis adorava o novo irmão e o garoto, cujo nome era Samuel, retribuía o amor que recebia da melhor maneira possível.

Charlie também conseguiu para Samuel uma vaga em uma escola pública e ele pôde retomar os estudos. Passaram-se três meses e um conhecido empresário local, que de tempos em tempos costumava fazer generosas doações de alimentos e roupas, apareceu na sede da brigada. Ao vê-lo, Charlie deu um sorriso de orelha a orelha. Abraçou-o e disse:

- Meu caro Lundy, que bom tê-lo por aqui! Senti sua falta!

- Charlie, Charlie! O Senhor Solidariedade! Andei tendo alguns contratempos, mas aqui estou e prometo não passar tanto tempo sem dar notícias. Mas me conte as novidades da Brigada. É impressão minha ou você conseguiu pôr ordem nessa bagunça?

- Todos os méritos são do Dan. Desde que ele chegou por aqui, as coisas andam bem mais organizadas.

Charlie apresentou os dois homens e Lundy impressionou-se com os progressos conseguidos por Dan. Uma página na internet! Um programa para controlar doações recebidas e entregues! E tudo isso com apenas um velho computador. Dan nunca falava de sua vida pessoal, mas naquele dia deixou escapar algumas informações. Perdera o emprego com a crise de 2008. Não conseguira pagar a hipoteca e perdera a casa. Vendeu o carro por uma ninharia. Lisa também havia sido dispensada, logo que seu empregador soube que ela engravidara. Viveram em um trailer, que também teve que ser vendido e acabaram indo morar nas ruas. Lundy ouviu com atenção e emocionou-se ao saber como Dan e a mulher haviam conhecido Samuel.

Alguns dias depois, Lundy voltou à brigada. Além das doações habituais, trazia um outro presente. Uma proposta de emprego. Precisava de alguém com as qualificações de Dan em sua empresa. Havia checado seu histórico profissional e as informações foram as melhores possíveis. Era o homem certo para o cargo certo. Não houve maiores formalidades. O salário era bastante razoável, o que permitiu que Dan mudasse com a família para um pequeno apartamento no subúrbio.

A vida não era luxuosa, mas bastante digna. Lisa conseguiu um emprego de meio período como secretária em um escritório de advocacia. Samuel ia para a escola e Louis ficava na creche pela manhã. À tarde, o bebê ficava com a mãe e o novo irmão. Religiosamente, a família comparecia à Brigada da Solidariedade todos os sábados e passava o dia ajudando os mais necessitados. Sempre há gente disposta a ouvir a comovente história da família. Quanto a Samuel, basta dizer que ele é um ótimo aluno e que agora, com a adoção devidamente formalizada, decidiu não mais tentar encontrar o pai biológico.

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“Então é Natal! E o que você fez?”. O mundo moderno, com as suas exigências cada vez maiores, é um desafio à convivência fraterna, ao respeito ao próximo, à solidariedade. Ainda é possível ser-se solidário nesse mundo? A história de Samuel e de sua nova família parece dizer que sim. Peço desculpas se algum leitor achar o texto meio piegas, mas no Natal é possível ser piegas e não se sentir culpado. Afinal de contas, é Natal!

O JAZZ + BOSSA deseja a todos os amigos que ao longo deste ano aqui vieram um excelente Natal, com muita paz, alegria, saúde, solidariedade e harmonia. Na trilha sonora, dois momentos com o saxofonista David Murray, que em breve merecerá um post à altura do seu talento. Por ora, basta saber que o disco é o “Seasons”, gravado para o selo Pow Wow no dia 03 de agosto dde 1998.

Além do sax tenor, Murray toca clarinete e clarinete baixo neste álbum fabuloso, onde interpreta, com sua maneira toda peculiar, standards como “Spring Will Be A Little Late This Year”, “The Summer Knows”, “September Song” e “Autumn in New York”, entre outros. A seu lado, uma banda espetacular: Sir Roland Hanna no piano, o elegante Richard Davis no contrabaixo e o competentíssimo Victor Lewis na bateria. Na radiola, o amigo poderá ouvir a belíssima “Indian Summer” e, em clima natalino, a contagiante “Let It Snow! Let It Snow! Let It Snow!”.

Um fraterno abraço a todos!

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sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

CANÇÃO DO EXÍLIO


“Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá;

As aves que aqui gorjeiam,

Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,

Nossas várzeas têm mais flores,

Nossos bosques têm mais vida,

Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,

Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,

Que tais não encontro eu cá;

Em cismar - sozinho, à noite -

Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,

Sem que eu volte para lá;

Sem que desfrute os primores

Que não encontro por cá;

Sem qu'inda aviste as palmeiras,

Onde canta o Sabiá.”

Poucas imagens são tão poéticas quanto a do sujeito que deseja retornar ao lugar em que nasceu, nem que seja apenas para morrer. O desejo de voltar à terra natal, da maneira como expressou Gonçalves Dias em sua célebre Canção do Exílio, é, certamente, um dos momentos mais líricos da língua portuguesa e dos mais emocionantes da poesia universal.

Embora tenha morrido quase vinte anos depois de voltar ao torrão natal, a história de Leonard Graham me trouxe à mente os versos de Gonçalves Dias. Ao contrário do poeta maranhense, que morreu em um trágico naufrágio, em 1864, antes de conseguir regressar a seu amado Maranhão, Deus permitiu a Graham que regressasse à cidade em que nasceu. Mas quem é e o que fez o tal Leonard Graham?

Leonard Graham não é dos nomes mais conhecidos entre os jazzófilos. Mas quando se fala em Idrees Sulieman... A situação melhora, mas apenas um pouquinho. De fato, apesar de ter sido um dos mais talentosos trompetistas da primeira geração do bebop, Sulieman jamais granjeou a notoriedade merecida. A principal razão para essa obscuridade pode ser atribuída ao fato de que o músico viveu longos anos na Europa e boa parte de sua carreira se desenvolveu no Velho Continente.

De qualquer maneira, outros músicos norte-americanos viveram situação semelhante – a exemplo de Dexter Gordon ou Don Byas, cujas carreiras européias representam um momento importantíssimo em suas respectivas biografias – e ainda assim conseguiram arrebatar uma grande quantidade de fãs em outros países, especialmente na terra natal. Sulieman, apesar do enorme talento, permanece nas sombras, para desgosto dos seus poucos, porém apaixonados, fãs.

Portanto, façamos a nossa parte para honrar seu nome e sua música: ele nasceu no dia 07 de agosto de 1923, na cidade de St. Petersburg, na Flórida. Ainda na infância, começou a aprender trompete, embora desejasse mesmo ser saxofonista. Como o pai não podia lhe comprar um saxofone, o garoto acabou se contentando com o trompete e passou a se dedicar com afinco ao instrumento.

Com apenas dezesseis anos, conseguiu seu primeiro emprego, em uma banda chamada Carolina Cotton Pickers, onde ficou de 1939 a 1943. No mesmo ano em que deixou os Pickers, entrou para a orquestra do pianista Earl Hines, onde conheceu Charlie Parker e Dizzy Gillespie. Influenciado pela maneira de tocar absolutamente diferente dos dois companheiros de orquestra, Sulieman foi um dos primeiros trompetistas a dominar o idioma bop, o fazendo com enorme desenvoltura e com indiscutível autoridade.

Em 1944 deixou Hines e se fixou em Nova Iorque, onde o bebop fervilhava entre os jovens músicos locais. Um desses jovens era a pianista Mary Lou Williams, com quem Sulieman trabalhou com regularidade em meados da década de 40. Após uma rápida passagem pelas big bands de Benny Carter e de Sabby Lewis, em 1946, naquele mesmo ano o trompetista decidiu retomar os estudos musicais formais, tendo se matriculado no respeitado Boston Conservatory. Em 1947, integrou o grupo de Thelonious Monk, com quem tinha uma enorme afinidade musical – tanto é que chegou a participar das primeiras gravações do pianista, feitas naquele ano para a Blue Note.

Pouco depois, vieram trabalhos nas orquestras de Cab Calloway, Count Basie e Lionel Hampton. Nesse período, converteu-se ao islamismo, mudando o nome para Idrees Dawud ibn Sulieman. Segundo Dizzy Gillespie, na época os músicos eram obrigados a portar uma autorização, concedida pela polícia, para trabalhar nos clubes. Ali, havia um campo específico para a etnia do músico, e aos convertidos ao islamismo era permitido que se apresentassem como brancos.

Nessa qualidade, podiam freqüentar restaurantes e casas noturnas que não permitiam o ingresso de negros e foi por essa razão – e nem tanto pela fé nos ensinamentos do profeta Maomé – que uma infinidade de músicos negros acabou abraçando a religião muçulmana. Assim foi com Kenny Clarke, que se tornou Liaquat Ali Salaam, com Art Blakey, que passou a se chamar Abdullah ibn Buhaina e com o saxofonista Edmond Gregory, que adotou o nome de Sahib Shihab.

No início dos anos 50, o trompetista tocou nas orquestras de Mercer Ellington e Erskine Hawkins. Integrou a big band de Dizzy Gillespie entre 1956 e 1958, fez parte da banda de Randy Weston entre 1958 e 1959 e foi membro do sexteto de Gerry Mulligan, durante um breve período, no comecinho da década de 60. Também atuava com habitualidade como freelancer, tocando com Ella Fitzgerald, Gene Ammons, Mildred Bailey, Charlie Byrd, John Coltrane, Coleman Hawkins, Friedrich Gulda, Ben Webster, Ernie Wilkins, Tadd Dameron, Jimmy Forrest, Max Roach, Lester Young, Kenny Burrell, Clifford Brown, Tommy Flanagan, Bobby Jaspar e muitos outros.

Durante toda a década de 50, foi um dos mais requisitados músicos de estúdio de gravadoras como Prestige, Riverside e New Jazz. Sulieman é considerado, ao lado do saxofonista Harry Carney e do trompetista Clark Terry, um dos precursores da técnica chamada “respiração circular”, que permite que o músico reinspire o ar expelido, prolongando uma determinada nota por bastante tempo. Antológica é a sua participação no álbum “The Hawk Flies High”, de Coleman Hawkins (1957), onde Sulieman, no tema “Juicy Fruit”, consegue sustentar uma nota por impressionantes 59 segundos. Gravou, ao lado dos trompetistas Donald Byrd e Art Farmer, o ótimo “Three Trumpets”, para a Prestige, em dezembro de 1957.

Data dessa época uma de suas poucas gravações como líder – na verdade, como co-líder, pois divide os créditos com o vibrafonista Teddy Charles: o espetacular “Coolin’”, gravado no dia 14 de abril de 1957, para a New Jazz. Com produção do próprio Charles e engenharia de som a cargo de Rudy Van Gelder, o álbum conta com as presenças de John Jenkins no sax alto, Mal Waldron no piano, Addison Farmer no contrabaixo e Jerry Segal na bateria.

A abertura fica a cargo de “Staggers”, hard bop elíptico e impactante, de autoria de Waldron. Sua estrutura sinuosa e cheia de surpresas permite aos membros do sexteto exibições arrebatadoras, especialmente por parte de Jenkins, Charles e, sobretudo, Sulieman. O trompetista é um virtuose na mais completa acepção da palavra, com um domínio irrestrito do instrumento e da sintaxe bop, altamente criativo e possuidor de uma técnica soberba. A sessão rítmica dá aos solistas um apoio dos mais sólidos, deixando-os mais do que confiantes para as verdadeiras acrobacias sonoras que se ouvem aqui.

Jenkins contribui com “Song Of A Star”, calcada na tradição bop, com ecos parkerianos e muita energia. Segal é um baterista dinâmico e bastante fluente e sua performance é das mais energéticas. Charles tem uma abordagem bastante pessoal – seu estilo não se confunde com o de nenhum outro vibrafonista e antecipa a abordagem moderna que Bobby Hutcherson daria ao instrumento na década seguinte. Waldron é dono de um fraseado elegante e despojado, e seu solo enviesado revela uma grande influência de Monk. O duelo entre o saxofonista e o trompetista é empolgante. As intervenções são voláteis, furiosas, e a imagem que vem às retinas é de dois engolidores de fogo, desafiando-se para ver quem consegue expelir da boca as maiores labaredas.

“The Eagle Flies” é uma composição do trompetista, com andamento de valsa e um discreto acento bluesy, embora não renegue a origem bop. Jenkins, Charles, Sulieman e Waldron, nessa ordem, se responsabilizam pelos solos, com destaque para o do saxofonista e o do autor do tema. Charles exibe sua veia composicional na complexa “Bunni”, que antecipa, em algumas passagens, as harmonias caóticas do free jazz que tomaria de assalto o universo jazzístico dali a dois anos. São necessárias algumas audições para que o ouvinte se familiarize com aquela exuberância harmônica, por vezes desencontrada, mas que progressivamente vai adquirindo sentido próprio. Mais uma vez, a versatilidade e a pujança de idéias de Sulieman se destacam. O duelo entre trompete e bateria, no estilo “pergunta e resposta” é antológico, embora também seja digna de nota a sensacional capacidade improvisativa demonstrada por Jenkins.

Waldron contribui também com “Reiteration”, outro tema bastante intrigante. O desprezo do pianista pela ortodoxia e sua inesgotável capacidade de surpreender são um prazeroso desafio sonoro. Notas superpostas, quebras de ritmo, alterações abruptas no andamento e um pouco de blues são alguns dos ingredientes usados por Waldron, cujo solo é dos mais intrincados. A abordagem de Charles, introspectiva, quase sombria, casa à perfeição com as idéias do compositor. Como de hábito, solos articulados e obscenamente complexos de Sulieman e Jenkins.

Fechando os trabalhos, o único standard do álbum, “Everything Happens To Me”, que encantou gerações na voz frágil de Chet Baker. Sem a presença de Jenkins, Sulieman brilha com uma interpretação de um lirismo transcendente. O trompetista derrama sentimentalidade e romantismo, neste que é o momento mais comovente do álbum. Os demais integrantes do quinteto mantém uma discrição que beira a reverência. Ainda que não possuísse outros inúmeros predicados, já valeria a pena ter esse disco na estante apenas por causa dessa versão absolutamente encantadora.

Em 1961 Sulieman partiu para a Europa, acompanhando o pianista Oscar Dennard em uma excursão. Gostou tanto do que viu e ouviu, que resolveu ficar por ali. Primeiramente, fixou-se em Estocolmo e, em 1964, mudou-se para Copenhagen. Além da atmosfera amistosa e das oportunidades de trabalho, pesaram na sua decisão o ambiente musical extremamente propício ao jazz e o fato de que a tensão racial que contaminava os Estados Unidos da época não tinha a menor repercussão nos países europeus, sobretudo os escandinavos, onde o respeito aos direitos humanos sempre foi exemplar.

O trompetista se manteve como um dos grandes destaques individuais da Kenny Clarke-Francy Boland big band, entre 1963 e 1973. Trabalhou ao lado de inúmeros músicos norte-americanos “expatriados”, como Dexter Gordon, Kenny Drew, Bud Powell, Johnny Griffin e Don Byas, e de importantes músicos europeus, como Palle Mikkelborg, Mads Vinding e Niels-Henning Ørsted Pedersen. Participou do elogiado “Stockholm Sessions”, de Eric Dolphy, gravado para o selo alemão Enja, em 1961. Na Dinamarca, integrou a Danish Radio Big Band, cuja regência estava a cargo do trompetista Thad Jones.

Durante o exílio europeu, dedicou-se ao aprendizado do sax alto, que passou a ser o seu segundo instrumento, e lançou alguns poucos álbuns em seu próprio nome, por selos como Columbia e SteepleChase. Nenhum deles alcançou o topo das paradas, mas todos são bastante elogiados pela crítica especializada. Entre os músicos que o acompanharam nesses discos, nomes de peso como Cedar Walton, Sam Jones, Billy Higgins, Horace Parlan, Kenny Clarke, Billy Hart e outros.

Em 1982, Sulieman decidiu retornar aos Estados Unidos, fixando residência na cidade natal, St. Petersburg, na Flórida. Participou de álbuns de Miles Davis, Dizzy Gillespie, Randy Weston, Joe Henderson, entre outros, e costumava se apresentar em clubes da região, muitas vezes ao lado do saxofonista Ira Sullivan, outro renomado bopper que escolheu a Flórida para viver. Sulieman morreu no dia 23 de julho de 2002, no St. Anthony's Hospital, na mesma cidade que o viu nascer, quase oitenta anos antes. A causa da morte foi um câncer na bexiga.

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segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

SOU TÍMIDO ESPALHAFATOSO...



Quem já teve a oportunidade de assistir, ao vivo ou em vídeo, uma apresentação do pianista norte-americano Keith Jarrett, certamente vivenciou uma experiência única e inesquecível. Duas coisas chamam a atenção em suas performances ao vivo: a técnica fabulosa, que o coloca, certamente, entre os maiores pianistas de qualquer época, e os grunhidos que emite ao tocar o piano. Jarrett mal consegue ficar sentado na banqueta. Movimenta-se constantemente, levanta os braços, sorri, emite sons guturais, fecha a cara, afunda a cabeça no teclado como se nada mais houvesse no mundo, bufa, rosna, dança. Assisti-lo é uma experiência sensorial que transcende a audição. Sua postura corporal é uma extensão da sua forma de tocar ou, antes, a sua forma de tocar é o reflexo inacabado de sua personalidade inquieta.

Essa inquietude vem de longe. Consta que com apenas seis meses o precoce Jarrett, nascido no dia 08 de maio de 1945, em Allentown, Pensilvânia, já articulava algumas palavras. Com apenas dois anos já era um ouvinte atento de música erudita. Aos três anos iniciou-se nos mistérios do piano e aos sete já compunha alguns temas e era capaz de improvisar como um veterano. Datam dessa época os primeiros recitais, ainda na cidade natal, sendo que pouco antes, quando tinha apenas cinco anos, chegou a se exibir em um programa televisivo apresentado pelo bandleader Paul Witheman. Com apenas nove anos, apresentou-se no Madinon Square Garden, em Nova Iorque.

Ouvinte compulsivo de Mozart, Bach, Beethoven, Debussy, Saint-Saëns e Ravel, o foco inicial do jovem pianista foi a música erudita, tendo sido aluno de uma afamada professora local, Eleanor Sokoloff. Durante o período no colegial, feito na Emmaus High School, Jarrett descobriu o jazz, primeiramente pelas mãos de Dave Brubeck. Apaixonou-se pelo estilo, que passou a dividir com a música clássica o espaço em suas afeições. Ali também recebeu aulas de violino e bateria, instrumentos que domina com razoável autoridade.

Em 1963, quando sequer havia completado dezessete anos, ganhou uma bolsa para estudar no prestigioso Berklee College of Music, em Boston. A fim de complementar o orçamento apertado, tocava em bares, coquetéis, festas de casamento e clubes da cidade, onde começou a chamar a atenção dos meios musicais. Desencantado com o academicismo de Berklee, o pianista abandona o curso e se muda para Nova Iorque em 1965, onde logo é contratado por Art Blakey, como um de seus Jazz Messengers. Apresentando-se em clubes da cidade, como o Village Vanguard, Jarrett fez amizade com o baterista Jack DeJohnette, que tocava com o saxofonista Charles Lloyd e recomendou a contratação do jovem pianista.

Era 1966 e, na época, o Charles Lloyd Quartet, que contava ainda com o contrabaixista Cecil McBee, rivalizava em popularidade e prestígio com os grupos de Miles Davis e John Coltrane. O álbum “Forest Flower” (Atlantic), gravado ao vivo no Festival de Moneterey de 1966, chegou a figurar entre os mais vendidos da Billboard, um feito e tanto para um álbum de jazz. Na crista da onda, a banda fazia uma interessantíssima mistura de blues, hard bop, psicodelia, free jazz e música pop e a agenda apertada, incluía a participação em festivais de jazz do mundo inteiro.

Com Lloyd, Jarrett fez as suas primeiras excursões à Europa, incluindo uma turnê pela União Soviética, em maio de 1967, com shows em Leningrado (atual São Petesburgo) e Moscou. Sempre em busca de novas formas de expressão musical, Jarrett começou a tocar sax soprano nesse período e gravou um elogiado álbum com o vibrafonista Gary Burton (“Gary Burton & Keith Jarrett”, Atlantic, 1970, que conta com as participações de Sam Brown na guitarra, Steve Swallow no baixo e Bill Goodwin na bateria).

Ao mesmo tempo, o pianista ensaiava os primeiros passos da carreira solo, montando um trio com o baixista Charlie Haden e o baterista Paul Motian. Com essa formação, grava, em 1967, o seu primeiro álbum como líder, “Life Between The Exit Signs”, para a Atlantic. A associação com o saxofonista durou até 1969 e, por conta de divergências artísticas, Jarrett saiu do grupo. Não sem antes dirigir sua língua ferina contra o ex-patrão: “Aprendi muito mais tocando piano em bares do que com Lloyd”.

Sem abrir mão do trabalho com seu próprio trio, Jarrett foi contratado por Miles Davis em 1970, tendo participado de álbuns da fase fusion do trompetista, como “Live/Evil” e “Miles Davis At Filmore: Live At Filmore East”, ambos de 1970, e “Get Up With It”, que reúne gravações feitas entre 1970 e 1974. Na banda de Davis, Jarrett tocava piano acústico, elétrico e órgão, dividindo espaço com feras como Jack DeJohnette, Dave Liebman, John McLaughlin, Gary Bartz, Ron Carter, Al Foster, Airto Moreira, Chick Corea, Dave Holland, Hermeto Pascoal, Billy Cobham e outros.

Em 1971 Jarrett deu adeus a Miles e investiu pesadamente na carreira solo, tendo agregado a seu trio o saxofonista Dewey Redman, ligado ao jazz de vanguarda. O grupo, conhecido como “The American Quartet”, era complementado, ocasionalmente, pelo percussionista Airto Moreira, e gravou álbuns para a Columbia, Atlantic e Impulse. No final daquele mesmo ano, inicia uma prolífica parceria com o selo alemão ECM, por onde lançaria a maioria de seus discos a partir de então.

O primeiro deles foi “Facing You”, onde Jarret atua desacompanhado de outros músicos. Outra experiência levada a cabo pelo pianista foi o chamado European Quartet, integrada pelo saxofonista Jan Garbarek, pelo contrabaixista Palle Danielsson e pelo baterista Jon Christensen. Dentre os muitos álbuns lançados nesse formato, destaca-se os aclamados “Personal Mountains”, de 1974, e “My Song”, de 1977, gravado para a gravadora alemã.

No dia 24 de janeiro de 1975, no sacrossanto palco do Cologne Opera House, em Colônia, Jarrett gravou aquele que talvez seja o disco de piano solo jazzístico mais reverenciado de todos os tempos: o seminal “The Köln Concert”. A bordo de um Bösendorfer que, reza a lenda, estava em precárias condições de manutenção, ele celebra uma verdadeira comunhão com a arte e a sensibilidade, em um caleidoscópio de harmonias hipnotizantes. São quatro temas, registrados em um influxo criativo que mistura arrojo técnico, inventividade e paixão, resultando em um dos momentos mais sublimes da improvisação jazzística em todos os tempos. O álbum vendeu mais de dois milhões de cópias na época e até hoje é um dos recordistas de vendas da ECM, tendo ultrapassado a casa dos três milhões e meio de cópias.

O pianista jamais abandonou completamente a música erudita. Além de imprimir muitos de seus elementos em suas interpretações eminentemente jazzísticas, ele costuma realizar concertos exclusivamente dedicados ao repertório clássico, executando composições de Bartók, Hindemith, Beethoven, Mozart, Purcell e Scarlatti. Também gravou álbuns dedicados às obras de Bach, Handel e do compositor russo Dmitry Shostakovich. Em “The Celestial Hawk” (ECM, 1980), apresentou-se ao lado da Syracuse Symphony, com regência do maestro Christopher Keene, executando um repertório erudito de sua autoria.

Em 1983, uma nova guinada na carreira. Numa época em que o jazz acústico vivia uma espécie de entressafra criativa, antes do aparecimento e da consolidação dos chamados Young Lions liderados por Wynton Marsalis, Jarrett resgatou a simplicidade, formando o trio Standards, ao lado do velho amigo Jack DeJohnette e do baixista Gary Peacock. Desde então, o trio já fez centenas de apresentações pelo mundo. Muitas delas acabaram se tornando álbuns, todos lançados pela ECM, gravados durante concertos em Nova Iorque, Paris, Tóquio, Colônia, Munique, Oslo e outras cidades. Em 1995 a gravadora lançou o espetacular “Keith Jarrett At The Blue Note: The Complete Recordings”, álbum sêxtuplo que registra a temporada do trio no clube Blue Note de Nova Iorque, durante o mês de junho de 1994.

Em 1996, o pianista sofreu um grave revés. Foi diagnosticado como portador de uma grave doença neurológica chamada Síndrome da Fadiga Crônica, que o manteve afastado dos palcos e estúdios durante quase três anos. Somente no final de 1998 pôde voltar a tocar gravou, no estúdio que mantém em sua mansão vitoriana em Oxford Township, Nova Jérsei, o álbum “The Melody At Night, With You”, com canções em homenagem à esposa Rose Anne Colavito. Após um longo e delicado tratamento, Jarrett retornou aos poucos à rotina e em 1999 celebrou a volta aos palcos em grande estilo, com o álbum duplo “Whisper Not”, gravado em Paris, ao lado dos parceiros DeJohnette e Peacock, e lançado no ano seguinte.

Em 2001, o trio foi o destaque absoluto do Festival de Montreux e a apresentação foi devidamente registrada pela ECM. Lançado em 2007, sob a forma de um esplendoroso álbum duplo denominado “My Foolish Heart”, o álbum faz parte das inúmeras celebrações pela passagem do 25º aniversário da parceria. Como de hábito, a integração entre os três músicos beira o sobrenatural e o repertório é dos mais primorosos.

“Four”, de Miles Davis, é a faixa escolhida para abrir o disco. Com um swing arrebatador, Jarrett esmiúça as harmonias engendradas pelo ex-patrão, com uma agilidade ímpar. Seus acompanhantes, exímios em seus respectivos instrumentos, têm amplo espaço para improvisar, com destaque para a sofisticada percussão de DeJohnette.

“My Foolish Heart”, balada de Ned Washington e Victor Young que dá nome ao disco, é uma sublime conjunção de lirismo e competência técnica. O dedilhado de Jarrett é etéreo, como se quisesse fazer levitar o piano. São quase doze minutos de doçura e encantamento, merecendo atenção o trabalho de Peacock, um ás na plenitude de sua arte.

“Oleo” é, talvez, a composição mais conhecida de Sonny Rollins. A versão do trio é efusiva, pouco se atendo à melodia original e centrada na mais pura improvisação. Solos arrojados e uma atitude destemida são as características mais marcantes dessa que é uma das mais contagiantes do disco. Imortalizada por Billie Holiday, “What's New”, de Johnny Burke e Bobby Haggard traz de volta a atmosfera lírica, com direito ama breve citação a “Lullaby Of Birdland”.

“The Song Is You” é uma das mais fabulosas canções da dupla Oscar Hammerstein e Jerome Kern. O trio imprime um andamento mais rápido, explorando com maestria o aspecto jazzístico do tema. DeJohnette brilha em uma execução swingante e repleta de sutilezas. O líder possui um manancial de recursos, trafegando pela história do piano com enorme autoridade, indo do stride ao bebop, passando pelo swing e pelo dixieland. O flerte com o jazz de vanguarda é discreto, mas perceptível. Uma versão verdadeiramente antológica.

“Ain't Misbehavin'” e “Honeysuckle Rose” são as duas composições de Fats Waller e Andy Razaf incluídas no disco. O passeio pelas formas mais tradicionais do jazz continua e não poderia haver melhor guia que o audacioso Jarrett. Sua execução límpida e fluida remete aos tempos históricos do ragtime, sem esquecer a colossal influência do blues. A destreza dos acompanhantes merece audição mais detida. Ora é Peacock quem surpreende o ouvinte, no momento seguinte é o baterista, imprimindo um andamento marcial ao jazz dos primórdios do século XX. Os adjetivos são insuficientes para descrever a comunhão dos músicos entre si e a verdadeira cumplicidade que estabelecem com o ouvinte.

“You Took Advantage of Me” é uma gema da ourivesaria de Lorenz Hart e Richard Rodgers, também interpretada com o delicioso clima do jazz tradicional. O pianista subverte a melodia com classe e eloqüência, sem abrir mão dos improvisos ousados e do bom-humor. “Thelonious Monk não poderia ficar de fora desse verdadeiro banquete sonoro e se faz presente com a sempre bem-vinda “Straight, No Chase”. A execução do trio é hipnótica, um primor de elegância e concisão, desconstruindo o blues para, mais adiante, reinventá-lo.

A versão de “Five Brothers”, de Gerry Mulligan, é animada, quase convulsiva. Chama a atenção a fluência e a agilidade do pianista, sobretudo quando trafega pelos registros mais agudos. Peacock, sempre muito seguro, elabora um solo primorosamente bem concatenado. A pulsação que DeJohnette extrai de sua bateria tem um quê de tribal, evidenciando algumas das muitas qualidades que fizeram dele um dos mais músicos requisitados do jazz.

“Guess I'll Hang My Tears Outto Dry”, de Jule Styne e Sammy Cahn, recebe uma versão definitiva. Jarrett, mais uma vez, domina a cena de forma impositiva e incontestável. A sensibilidade de sua execução indica um talento superior, completamente obcecado em captar a essência da beleza, em congelá-la no ar como se fosse algo tangível. Em suas mãos a beleza deixa de ser um conceito subjetivo e fugidio e passa a ser algo palpável: sua música é a representação auditiva do belo. A matéria-prima de sua arte é a beleza em seu estado mais cristalino.

“On Green Dolphin Street” é fruto da parceria Bronislau Kaper/Ned Washington e foi composta para o filme homônimo, de 1947, estrelado por Lana Turner e Van Heflin. Um dos standards mais gravados de todos os tempos, foi alçado à condição de verdadeira obra de arte pelas interpretações de Bill Evans. Jarrett concebe uma versão irreverente, com um andamento ligeiramente mais rápido que o habitual e repleta de ótimos improvisos. Ainda assim, o trio consegue manter a atmosfera lúdica da canção.

Para fechar o álbum em grande estilo, “Only the Lonely”, de Sammy Cahn e Jimmy VanHeusen, ganha uma versão das mais sedutoras. Balada classuda, ao melhor estilo ellingtoniano, a canção exige uma abordagem mais ortodoxa. O carismático pianista destila elegância e uma boa dose de recato, em uma interpretação até certo ponto conservadora, mas prenhe de lirismo e de melancolia. Um dos melhores momentos de Jarrett, que merece lugar de destaque em sua longeva discografia.

Além dos inúmeros prêmios concedidos por público e crítica nas revistas especializadas, como Downbeat e Metronome, o pianista tem sido homenageado, ao redor do mundo, de maneira quase ininterrupta. Em 1989, foi nomeado Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras, a mais importante comenda do governo da França, no campo da cultura. Em 1996, Jarrett foi eleito membro da Royal Swedish Academy of Music, sendo o segundo músico estrangeiro a merecer tal honraria – o primeiro foi ninguém menos que Duke Ellington.

Em 2004, recebeu o Miles Davis Prize, durante as celebrações do 25º aniversário do Festival Internacional de Jazz de Montreal, no Canadá. No ano seguinte, durante as comemorações dos seus 60 anos, foi lançado o documentário “Keith Jarrett: The Art of Improvisation”, que cobre a vida e a carreira do pianista durante os últimos 40 anos, com direção de Mike Dibb e roteiro de Ian Carr, biógrafo oficial de Jarrett. Indicado por oito vezes ao prêmio Grammy, em diversas categorias, desde 2008 seu nome está imortalizado no Downbeat Hall of Fame.

De acordo com o crítico V. A. Bezerra, do site E-Jazz, a maior contribuição de Jarrett para o desenvolvimento do piano não se relaciona, propriamente, com a sua técnica refinada e nem com o seu estilo excêntrico de tocar, mas tem a ver com o seu “pensamento musical, no plano cognitivo, por assim dizer. Refiro-me a um aspecto em particular: Jarrett é um mestre do understatement: o que ele deixa de tocar, o que ele apenas sugere assume, talvez, importância tão grande quanto o que ele efetivamente toca. Isso fica especialmente claro quando ele interpreta standards. É como se ele nos levasse a imaginar, dentro de um espaço "dual" ao espaço sonoro no qual se dá o discurso musical propriamente dito, as notas subentendidas, as frases não articuladas, os caminhos não tomados”.

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