Amigos do jazz + bossa

domingo, 28 de fevereiro de 2010

ELE SE CASOU COM A VIÚVA DE CHARLIE PARKER! PRECISA DIZER MAIS ALGUMA COISA?


O ano era 1977. A cidade, claro, Nova Iorque. Aos 28 anos, o talentoso William Joseph Martin Joel era um dos nomes mais promissores do cenário pop da época. Pianista brilhante, letrista inteligente, formação musical esmerada, ele era um típico artista nova-irquino, cosmopolita e descolado, que freqüentava os shows de jazz do Birdland e do Village Vanguard, embora também amasse os Beatles (muito) e os Rolling Stones (um pouco menos).

Já havia lançado alguns bons álbuns e tinha na praça uma meia dúzia de hits, como “Piano Man” e “New York State Of Mind” (balada pop com anabolizadas tinturas de blues e jazz, que além de se tornar o hino não-oficial de Nova Iorque, futuramente seria gravada por Carmen McRae e Diane Schuur). Mas ainda não era um pop star, capaz de lotar estádios e arrebatar multidões, e ainda podia andar, tranqüila e quase anonimamente, pelas ruas da Big Apple.

Mas em setembro de 1977, quando entrou nos estúdios da Columbia, ao lado do produtor Phil Ramone, para gravar o álbum “The Stranger”, essa tranqüilidade estava fadada a acabar. Em breve, o artista, que até então era apenas uma talentosa promessa, seria catapultado ao Olimpo dos astros pop. Tudo por causa de uma música, composta para a então esposa Elizabeth Weber. Para gravá-la, o produtor Ramone dispensou o saxofonista da banda, Richie Cannata, e recrutou um homônimo seu, que desde meados dos anos 40 vinha batalhando no meio jazzístico de Nova Iorque e que, na época da gravação, já era considerado um dos maiores altoístas de todos os tempos. Seu nome: Philip Wells Woods. Phil Woods para os íntimos.

Não era a primeira vez que o experiente Woods dividiria os estúdios com um músico pop. Ele já havia feito isso com Paul Simon (no álbum “Still Crazy After All These Years”, de 1975) e com a banda Steely Dan (no disco “Katy Lied”, do mesmo ano). Mas ao entrar no estúdio, tirar o saxofone do estojo e começar a tocar, o esplendoroso solo de “Just The Way You Are”, Woods entraria para o panteão dos ícones pop, da mesma forma que uma tela de Andy Warhol, a capa do álbum “Abbey Road” ou a emblemática saudação “que a Força esteja com você”, usada em um filme lançado em maio daquele 1977 caótico, quando David Berkovitz, o lendário “Filho de Sam”, aterrorizava Nova Iorque.

O resto da história é previsível: o disco vendeu milhões de cópias no mundo inteiro, vários outros artistas gravaram a canção (com destaque para a lúbrica versão do ultrabaladeiro Barry White), Billy Joel engordou a conta bancária em alguns milhões de dólares e o trabalho do saxofonista, ainda que por vias oblíquas, finalmente poderia ser apreciado pelo grande público.

Já para o público de jazz, essa performance nada teve de surpreendente. Claro, pois Woods é um dos mais queridos, talentosos, respeitados e premiados músicos da história do jazz, com uma trajetória de vida riquíssima e uma produção que inclui composições, arranjos e participação em centenas de gravações. Saxofonista e clarinetista, Phil Woods nasceu no dia 02 de novembro de 1931, em Springfield, Massachussets.

Recebeu as primeiras lições de saxofone aos 12 anos, com Harvey LaRose, na própria cidade natal. Curiosamente, o primeiro saxofone lhe foi dado por um tio que, ao falecer, deixou-o em testamento para o sobrinho. Ao abrir o estojo e ver aquele reluzente objeto de metal, tudo o que passou pela cabeça do garoto foi derreter o instrumento e fazer algumas dúzias de soldadinhos de chumbo. Somente algum tempo depois é que o jovem Phil iria querer dar uma destinação menos dramática ao instrumento.

Continuou os estudos musicais em Nova Iorque, para onde se mudou no final dos anos 40. Primeiro, na Manhattan School of Music, onde foi aluno do extraordinário Lennie Tristano, e, em seguida, na prestigiosa Juilliard Conservatory, onde se graduou em clarinete. Profundamente influenciado por Charlie Parker, Woods logo desenvolveu uma sonoridade própria, bastante consistente, mas jamais deixou de explicitar um profundo respeito pela música de Bird. Curiosamente, a comparação com o ídolo somente cresceu depois que, em 1957, Woods se casou com Chan Parker, viúva de Charlie.

Outras influências diretas foram Benny Carter e Johnny Hodges. Depois que saiu da Juilliard, em 1952, o saxofonista tocou nas orquestras de Charlie Barnet (1954), Dizzy Gillespie (1956), Buddy Rich (1958/1959), Quincy Jones (1959/1961) e Benny Goodman (1962). Ao mesmo tempo, montou seus próprios grupos, boa parte das vezes ao lado do saxofonista Gene Quill. Em 1956 recebeu o prêmio New Star da revista Down Beat, como revelação do sax alto.

Além disso, desde a primeira metade dos anos 50 Woods tem sido um dos mais requisitados acompanhantes, com trabalhos ao lado de Jimmy Raney, Art Farmer, Billie Holiday, Joe Neuman, Sal Salvador, George Wallington, Sahib Shihab, Bill Evans, Gene Krupa, Michel Legrand, Al Cohn, Zoot Sims, Jimmy Smith, Oliver Nelson, Ella Fitzgerald, Gary Burton, Gerry Mulligan, Thelonious Monk, Bob Brookmeyer e incontáveis outros.

Sua caudalosa discografia como líder começa em 1954 e está espalhada por selos como Prestige, Savoy, RCA, Candid, Chiaroscuro, Impulse, Verve, Denon, Evidence, Philology e Concord. Nela se destaca o álbum “Sugan”, em que divide a liderança com o pianista Red Garland. Gravado em 19 de julho de 1957, para a Prestige, o disco apresenta um espetacular quinteto formado, ainda, por Teddy Kotick (baixo), Nick Stabulas (bateria) e Ray Copeland (trompete), um músico não muito conhecido, mas com trabalhos ao lado de Thelonious Monk, Randy Weston, Art Blakey e Oscar Pettiford.

Das seis faixas do álbum, três são de autoria do ídolo Parker – “Au Privave” (que abre o disco de forma exuberante e prenuncia a cornucópia sonora que virá), “Steeplechase” e “Scrapple From The Apple” – e todas são interpretadas com extrema competência e inventividade pelo quinteto. A atmosfera energética, típica dos melhores momentos do bebop, é enriquecida pelos diálogos entre Woods e Copeland, sempre muito estimulantes. Ambos são solistas excepcionais, capazes de executar passagens tecnicamente dificílimas com enorme simplicidade e se desafiam mutuamente o tempo inteiro.

Destacar apenas um ou outro grande momento seria injusto, pois o álbum é uma obra coesa, madura e efervescente, mas é necessário dizer que os solos de Woods, Copeland (usando a surdina) e Stabulas em “Steeplechase” são estupendos e a versão de “Scrapple From The Apple” é simplesmente devastadora. Mais contido, Garland prioriza a parte rítmica, solando em poucas passagens. Sua afinidade com o blues é patente, sendo é interessante perceber o quanto o idioma bop, apesar de toda a sua complexidade harmônica, é tributário do blues.

As outras três faixas que completam o disco são de autoria de Woods, que se revela um compositor bastante criativo. A primeira delas é “Last Fling”, cujo riff contagiante a conecta com o hard bop tão em voga naquela época. A autoridade com que Copeland executa seus solos, dotando-os de uma urgência e de um sentido harmônico esplendoroso nos leva à seguinte pergunta: como é possível que um sujeito desses jamais tenha gravado um mísero álbum como líder? Mistérios do jazz! E a faixa ainda conta com um solo vigoroso e cheio de groove de Garland, onde ele abusa de sua técnica “block chords” (acordes em bloco).

“Sugan” é um petardo sonoro da mais nobre estirpe bop, onde, mais uma vez, a performance de Copeland deve ser ouvida com atenção. Mas o líder consegue ser ainda mais sublime, com suas acrobacias sonoras que em nenhum momento padecem da falta de sentido ou resvalam no exibicionismo barato. Woods é um músico com um domínio absoluto do seu instrumento e sua técnica conjuga arrojo e bom gosto. Desse modo, por mais velocidade que imprima em sua execução, o resultado é sempre música de primeira qualidade. E tendo na sessão rítmica monstros como Red Garland (cujo solo também é bastante intenso), Teddy Kotick e Nick Stabulas, fica mais fácil para o líder colocar em prática suas idéias musicais.

É claro que não poderia faltar uma balada e “Green Pines” é belíssima e muito bem construído, com o trompete assurdinado de Copeland e o piano de Garland conduzindo a melodia com a delicadeza de dois ourives. O solo de Woods é envolvente e tépido, completando a atmosfera romântica com extrema classe. “Scrapple From The Apple” fecha o disco em altíssimo astral e deixa no ouvinte a vontade de começar tudo de novo. Um disco para se levar para uma ilha deserta. Obrigatório!

Nos anos 60, Woods enveredou pela educação musical, tendo ensinado na Ramblerny School, em New Hope. Em 1966, participou da trilha sonora do filme “Blow-Up”, dirigido por Michalangelo Antonioni. Composta por Herbie Hancock, as músicas do set ficaram a cargo de uma verdadeira seleção de craques que, além de Woods, incluía Freddie Hubbard, Joe Newman, Joe Henderson, Jim Hall, Ron Carter e Jack DeJohnette.

Em 1968, mudou-se para a Europa, estabelecendo-se na França, onde morou até 1972. Ali fundou a European Rhythm Machine, com a qual se apresentou no Festival de Montreux de 1969. A orientação do quarteto, integrado por George Gruntz (p), Henri Texier (b) e Daniel Humair (bt), flertava com o jazz de vanguarda, inclusive gravando composições da pianista Carla Bley.

De volta aos Estados Unidos, em 1972, montou com o tecladista Pete Robinson um grupo que misturava jazz com a incipiente música eletrônica, mas o trabalho não teve grande repercussão. De volta ao bom e velho jazz, formou, no ano seguinte, um quinteto extremamente bem sucedido e dos mais premiados naquela década, onde atuavam o pianista Mike Melillo, o baixista Steve Gilmore, o baterista Bill Goodwin e o guitarista Harry Leahey.

Do final dos anos 70 até hoje, os grupos de Woods têm se revelado um excelente manancial de novos talentos. Por lá passaram nomes como o trompetista Tom Harrell, o baixista Steve Gilmore e os pianistas Hal Galper e Bill Charlap. Foi indicado sete vezes ao prêmio Grammy, tendo recebido quatro premiações, ao longo da vitoriosa carreira. Atualmente, ele reside em Pocono Mountains, Pensilvânia.

Às vésperas de completar 80 anos, Woods continua a atuar intensamente e tem sido agraciado com diversas homenagens, como o título de Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras, dado pelo governo da França em 1989. Em 2007 recebeu o título de Jazz Master da National Endowment for the Arts e mereceu o título de Doutor Honorário, pela East Stroudsburg University (1994) e pela DePaul University (2009). Torcemos para que esta rotina permaneça inalterada por muitos e muitos anos!


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terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

ARDIDO COMO PIMENTA



1968. O ano que não terminou. Paris em chamas. Contracultura. Rebeldia. Contestação. Nas principais cidades do mundo, os jovens expressam a sua insatisfação com uma sociedade que lhes assegura uma vida próspera, mas absolutamente careta. Direitos civis. Guerra do Vietnã. Ofensiva do Tet. Paz e amor. Hippies. Panteras negras. Daniel Le Rouge. Os Beatles mergulham na cultura oriental e adotam o polêmico Maharishi Mahesh Yogi como guru. Primavera de Praga. Desobediência civil. No Brasil, o assassinato do estudante Edson Luís, pela polícia, desencadeia os maiores protestos contra a ditadura militar até então e o General Costa e Silva intensifica a repressão, levando o país para o tenebroso período do AI-5.


No jazz, movimentos como o free e o hard bop, liderados por músicos politizados como Albert Ayler, Archie Shepp, Max Roach e Charles Mingus radicalizam o discurso contra a ainda racista sociedade norte-americana. Há não muito tempo e negros e brancos sequer poderiam dividir o mesmo ambiente ou tomar água no mesmo bebedouro e o apóstolo da luta pacífica, Martin Luther King, havia sido assassinado no dia 04 de abril daquele ano. Apesar dos avanços, ainda há muitas feridas abertas.


No final desse ano tão conturbado, exatamente nos dias 11 e 12 de dezembro, cinco músicos se reuniram no Nola Sound Studios em Nova Iorque, sob a supervisão do engenheiro Tommy Nola, e gravaram um disco espetacular. É claro que esse disco não provocou abalos sísmicos nos índices de Wall Street. Nem foi guindado aos píncaros das Billboard e Cash Box da vida. Mas é uma prova de que em 1968 a sensibilidade e o bom gosto também tinham lá o seu espaço.


E também de que brancos e negros, desde sempre, poderiam conviver de forma pacífica, harmônica e fraterna. Afinal, estavam ali o baixista Ron Carter, o baterista Elvin Jones, o saxofonista Zoot Sims e o pianista Tommy Flanagan, sob a liderança do baritonista Peper Adams, tocando e interagindo com a habitual camaradagem que só o jazz pode proporcionar. E o resultado dessa reunião de músicos estelares é o magistral “Encounter!” – o ponto de exclamação colocado no título é mais do que pertinente – gravado para a Prestige.


Falemos um pouco sobre Adams, considerado um dos saxofonistas barítono mais completos de todos os tempos. Seu nome de batismo era Parker Adams III e ele nasceu no dia 08 de outubro de 1930, na cidade de Highland Park, Michigan. Sua família logo se mudou para Rochester, Nova Iorque, onde passaria a infância e parte da adolescência. Ali começou a receber as primeiras aulas de clarineta e saxofone tenor, agregando-se à banda da escola. Um de seus professores foi Elmer Skippy Williams, ex-integrante das bandas de Earl Hines e de Duke Ellington.


O amor pelo jazz havia sido despertado pelas audições, no rádio, das orquestras de Jimmy Lunceford, Cab Calloway, Count Basie e Duke Ellington e do piano bem humorado de Fats Waller. Seus primeiros ídolos foram Coleman Hawkins e Don Byas, dois dos mais vigorosos saxofonistas da era do swing.


Em 1946, mais uma mudança, desta feita para Detroit. Ali, Adams travaria contato e firmaria amizade com uma constelação de jovens e futuros astros do jazz, como Kenny Burrell, Barry Harris, Tommy Flanagan, Paul Chambers, Doug Watkins, Curtis Fuller, os irmãos Hank, Thad e Elvin Jones, Billy Mitchell, Yusef Lateef e, sobretudo, Donald Byrd, uma espécie de alma gêmea musical. Um cenário absolutamente instigante, perfeito para qualquer jovem músico interessado em aprender e se desenvolver musicalmente.


Seus primeiros trabalhos, como profissional, foram ao lado de Lucky Thompson, mas também acompanhou grandes nomes, de passagem por Detroit, como Lionel Hampton, Sonny Stitt, Milt Jackson (que embora tivesse nascido em Detroit, era mais velho e já estava estabelecido em Nova Iorque), Miles Davis e Wardell Gray. Nessa época, segunda metade da década de 40, Adams já havia trocado o sax tenor pelo barítono, o que ocorreu meio por acaso.


Com efeito, ele havia conseguido um emprego temporário em uma loja de instrumentos musicais, chamada Grinnell’s, que possuía uma oficina onde os instrumentos eram consertados. Um dos empregados que trabalhavam ali era amigo de Adams e mostrou a ele um sax barítono, deixado ali como parte do pagamento de outro instrumento.


Adams experimentou o instrumento, gostou da sonoridade e decidiu levá-lo. Por ser empregado da loja, ganhou um desconto, usou seu salário do mês e mais um valor emprestado por um amigo e adquiriu o vistoso saxofone. Algum tempo depois, conseguiria comprar um novo em folha, da célebre marca Selmer, e, desde então, adicionou Harry Carney e Serge Chaloff ao panteão de influências e não deixou mais de tocar o barítono, tornando-se uma dos seus maiores expoentes.


De 1951 a 1953 esteve no exército, tendo servido na Guerra da Coréia. De volta à vida civil, continuou tocando em clubes de Detroit, como o Bluebird Inn, e participando de gigs na fantástica cena local. Em 1956, graças a uma indicação de Oscar Pettiford, Adams foi convidado a integrar a orquestra de Stan Kenton, mudando-se para Nova Iorque. No final daquele ano a orquestra retornou a Los Angeles, onde gravaria o álbum “Opus In Beige”, para a Contemporary.


Entre os companheiros de Adams na célebre big band estavam Bill Perkins, Pete Candoli, Lennie Niehaus, Charlie Mariano, Richie Kamuca e Mel Lewis. Em 1957, Adams deixou Kenton e se uniu a Shorty Rogers, com quem tocaria por quase um ano, tendo participado do ótimo “Portrait Of Shorty”. Ainda em Los Angeles, o saxofonista atuaria por um breve período com o trompetista canadense Maynard Ferguson e com o baixista Howard Rumsey, além de ter participado das gravações do álbum “The James Dean Story”, de Chet Baker e Bud Shank.


Ainda em 1957, Adams retorna a Nova Iorque e um dos seus primeiros trabalhos foi no álbum “Dakar”, de John Coltrane. Depois vieram trabalhos Lee Morgan, Curtis Fuller e Quincy Jones. Nesse mesmo ano, liderando seu próprio conjunto, Adams gravou álbuns como “The Cool Sound of Pepper Adams”, “Critics’ Choice” e “My One and Only Love”, que lhe renderiam o prémio de New Star daquele ano, concedido pela revista Down Beat.


No ano seguinte, tocou com Benny Goodman e deu início à parceria com o velho amigo de Detroit Donald Byrd, ao lado de quem gravaria uma enormidade de ótimos discos para a Blue Note, até 1961. Em sua discografia, merece destaque o clássico “Ten to Four at the Five Spot”, gravado ao vivo, em 1958, ao lado de Donald Byrd, Doug Watkins, Elvin Jones e Bobby Timmons.


Outra associação prolífica foi com o trombonista Jimmy Knepper, com tocou e gravou com regularidade entre 1958 e 1963. Sem deixar de atuar como músico de estúdio, Adams acompanhou Charles Mingus no seminal “Blues And Roots” e participou das gravações de “Thelonious Monk Orchestra at Town Hall”, ambos de 1959.


Durante os anos 60, a agenda do saxofonista continuou apertada. Afinal, era um dos mais requisitados baritonistas da época e tocava com gente como Freddy Hubbard, Duke Pearson, Joe Williams, Howard McGhee, Aretha Franklin, Red Garland, Oliver Nelson, Bem Webster, Brook Benton, Joe Zawinul, Blue Mitchell, Jimmy Witherspoon, Stanley Turrentine, Lou Donaldson, Esther Phillips, Herbie Mann, Herbie Hancock, Lionel Hampton, Jimmy Forrest, Dakota Staton, Roland Kirk, Jimmy Smith, Carmen McRae, Helen Merrill, Mose Alison, Richard Davis, Toots Thielemans, Hank Jones, Frank Wess, Dizzy Gillespie e muitos outros.


Como se não bastasse, em 1966 integrou-se à orquestra de Thad Jones e Mel Lewis, atração fixa nas segundas-feiras do Village Vanguard e ali permaneceria até 1978. Também foi presença constante nos álbuns de Elvin Jones, gravados entre o final da década de 60 e os primeiros anos da década de 70.


No final daquela década, Adams presenteou o mundo com o extraordinário “Enconuter!”, aquele do ponto de exclamação. Pois bem, falemos agora um pouco mais sobre o álbum que talvez seja o mais importante legado jazzístico de 1968. Secundado por dois velhos amigos, Flanagan e Jones, seus parceiros de gigs em Detroit, Pepper está muito à vontade, fazendo pleno uso de sua técnica arrojada e do seu proverbial vigor, que lhe rendeu o apelido de “The Knife”, pelo som às vezes cortante e agressivo do seu saxofone.


A abertura não poderia ser mais alvissareira. Logo em sua introdução, com frases de Pepper, Zoot e Flanagan se repetindo uma após a outra e cada vez mais complexas, “Inanout”, de autoria do líder, é uma estilosa releitura do blues. Sinuosa e com evocações a Monk, sobretudo na parte final, a faixa ainda traz alguns solos bastante intensos de Jones e uma assistência segura e discreta por parte de Carter.


A reflexiva “Star-Crossed Lovers”, de Duke Ellington e Billy Strayhorn, com seu clima onírico e viajante, recebe do quinteto uma interpretação sutil e despojada. Os saxofones dialogam de maneira bastante delicada, e o sofisticado Flanagan, mestre na execução de baladas, cria uma atmosfera envolvente, costurando a ligação entre os metais e a sessão rítmica com extremo lirismo.


A desenvoltura da banda nos tempos mais acelerados impressiona. Em “Cindy’s Tune” Adams e Zoot duelam o tempo inteiro, alternando suas intervenções ao estilo “pergunta e resposta”, num diálogo esfuziante. O voluntarioso Jones detona a pobre bateria, numa das atuações mais inflamadas do disco. Carter, às vezes criticado por seu academicismo, entra no clima e perpetra um solo descontraído. A irresistível levada bop é uma cortesia de Flanagan, que incorpora o fraseado de Bud Powell e se mostra particularmente inspirado nesse tema.


Composição de Joe Henderson, “Serenity” é uma espécie de pausa para descanso, com seu clima relaxado, onde se destacam o fabuloso solo de Carter e a textura impressionista que Adams imprime ao seu saxofone. O quinteto volta a extrapolar os limites de velocidade em “Elusive”, hard bop de autoria de Thad Jones. Incansável, líder se esmera em solos tecnicamente perfeitos, desafiando o indócil Sims a fazer o mesmo. A percussão de Elvin é uma soberba mistura de energia e ritmo, especialmente com os pratos. Flanagan, sempre muito exigido, é impecável na parte rítmica e altamente criativo em seu solo.


Em “I’ve Just Seen Her”, admiravelmente bem executada, Adams paga tributo ao maestro Duke Ellington, impregnando de lirismo essa lindíssima balada. Atenção para o solo de Flanagan, de uma delicadeza ímpar. Mantendo a atmosfera contemplativa, outra pérola de Henderson, a plácida “Punjab”, é uma balada nada ortodoxa, com ecos de Wayne Shorter. Zoot leva o ouvinte ao Nirvana musical, perpetrando com uma execução e relaxada comovente. O líder e Flanagan, altamente reflexivos, também merecem uma audição mais atenta.


Para finalizar, “Verdandi”, bebop de autoria de Flanagan, traz de volta o clima energético. Uma das faixas de maior volatilidade, que mostra porque Jones é considerado um verdadeiro dínamo – seu esplendoroso solo é o destaque absoluto e dura praticamente metade dos 3min47seg da faixa. Um disco extremamente representativo na carreira de Adams e que merece ser ouvido sempre e sempre. Afinal, 1968 ainda não terminou!


As décadas de 70 e 80 continuaram sendo de muito trabalho para Pepper, que além da participação na Thad Jones/Mel Lewis Orchestra, com quem gravou diversos álbuns, e ainda voltou a trabalhar com Charles Mingus, tendo participado de seus dois últimos discos.


Como líder, gravou alguns álbuns para selos como Enja, Uptown, Muse e Quicksilver, dando espaço para novos músicos, como os pianistas Bess Bonnier e Hod O'Brien, o guitarista Peter Leitch e o trompetista Kenny Wheeler. Nesse período, também participou de álbuns de Lalo Schifrin, Nick Brignola, Frank Foster, George Benson, David Fathead Newman, Hank Crawford e outros.


Pepper Adams morreu no dia 10 de setembro de 1986, em decorrência de um câncer no pulmão. Passou à história como um dos músicos mais originais de todos os tempos, cuja contribuição para a modernização do sax barítono é tão importante quanto a de Serge Chaloff ou de Gerry Mulligan, por exemplo. Seu legado reverbera até hoje, na obra de músicos como Nick Brignola, Ronnie Cuber e James Carter, discípulos confessos do seu estilo.


Sobre ele, nada melhor que as palavras do mestre Luiz Orlando Carneiro: “Adams foi o mais rápido, ágil e contundente dos que sopraram o pesado instrumento no estilo hard bop, enfrentando com sucesso – sem perder a lucidez e a beleza do seu discurso melódico – o registro grave do instrumento com a mesma facilidade com que chegava ao agudo”.


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quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

SAUDAÇÃO A MILES DAVIS



São 3 horas da manhã,

Teu sopro inumano, claro e táctil

Ecoa pela sala vazia

Bebo à tua saúde, que já não mais há

Encomendo-te um solo que não me pudeste dar

Rogo-te uma balada que não me quiseste soprar

Embalo-te, então...

As minhas mãos de acalanto são frágeis e pantanosas

E me respondes com outro falsete breve

Evoco-te no meu pensamento emparedado,

E me assombras com outra baforada de lâmina

– What’s Up?

É a voz do teu negro orgulho, indócil, acuado...

– E daí?

Pergunta o semideus de pés de barro,

Antes de sucumbir ao chamado de Dionísio,

Antes de mergulhar nas profundezas de Hades,

Qual um Orfeu tardio e inacabado.

Miles, Miles, onde está a tua lira?



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Horace Parlan nasceu no dia 19 de janeiro de 1931, em Pittsburgh, estado da Pensilvânia. Ainda na infância começou os estudos de piano, mas aos 12 anos teve poliomielite, que acabaria por paralisar parcialmente os movimentos de sua mão direita. Munido de muita coragem e determinação, Parlan teve que desenvolver uma técnica própria, usando com mais intensidade a mão esquerda.

Seu estilo é um hard bop sofisticado, às vezes intimista, mas ele também trafega, com extrema desenvoltura, por entre o tradicionalismo blues e as abstrações sonoras do jazz de vanguarda. Suas maiores influências são Bud Powell, Ahmad Jamal, Red Garland e Horace Silver, a quem sempre foi muito comparado.

Deu os primeiros passos como músico profissional na própria Pittsburgh, acompanhando locais bandas de r&b, no início da década de 50. De 1952 a 1957, morou em Washington, época em que tocou com regularidade com Sonny Stitt. De 1957 a 1959 trabalhou com Charles Mingus, participando de importantes álbuns do contrabaixista, como “Blues And Roots” e “Mingus Ah Um”.

Depois disso, já em Nova Iorque, acompanhou músicos como Lou Donaldson, Stanley Turrentine, Dave Bailey, Dexter Gordon e Booker Ervin, além de ter integrado o quinteto de Johnny Griffin e Eddie Lockjaw Davis (1962/1963). De 1963 a 1966 foi o pianista regular de Roland Kirk e entre os anos 70 e 90 atuou como sideman de jazzistas do quilate de Idrees Sulieman, Al Cohn, Howard McGhee, Benny Carter, Doug Raney e Zoot Sims.

Do final dos anos 50 até meados dos anos 60 produziu alguns ótimos álbuns para a Blue Note, ao lado de feras como Tommy Turrentine, Johnny Coles, Stanley Turrentine, Booker Ervin, Grant Green, Sam Jones, George Tucker, Butch Warren, Al Harewood, Billy Higgins e muitos outros. Lamentavelmente, o reconhecimento do seu trabalho sempre esteve aquém do merecido e muitos desses discos permanecem fora de catálogo.

Em 1973 se mudou para a Europa, fixando residência em Copenhagen. Ali, trabalhou ao lado de outros exilados famosos, como Dexter Gordon, Red Mitchell, Slide Hampton, Clark Terry, Ernie Wilkins, Frank Foster e Archie Shepp, além de haver tocado com grandes nomes do jazz europeu, como Pierre Dorge, Michal Urbaniak e Jesper Lundgaard. Também gravou diversos álbuns como líder, sobretudo para o selo dinamarquês SteepleChase. Às vésperas de completar 80 anos, continua em plena atividade.

Um dos mais talentosos pianistas do hard bop, dono de um toque personalíssimo e de um bom gosto à toda prova, Horace Parlan é também um dos menos festejados. O álbum “Up & Down”, gravado no dia 18 de junho de 1961 e relançado em 2008 pela série RVG Edition, é a prova de quão injusto pode ser o mundo do jazz.

Virtuosismo, solos inebriantes, elegância e muita energia em todas as faixas, fazem deste um dos mais representativos álbuns da carreira do pianista e traçam um panorama revelador do cenário hard bopper do início dos anos 60. Além de Parlan, participam da sessão o saxofonista Booker Ervin, o baixista George Tucker, o baterista Al Harewood e o guitarrista Grant Green, todos em esplendorosa forma.

“The Book’s Beat” abre o disco, com seus riffs poderosos e suas frases intrincadas. Green contribui com a fabulosa “The Other Part Of Town”, uma epopéia sonora de quase 12 minutos de muito swing e técnica. “Light Blue”, do trompetista Tommy Turrentine, é um hard bop pulsante, solidamente fincado no blues, com atuações soberbas de Ervin e, especialmente, de Green. Destaques também para “Up & Down”, tema acelerado e complexo de autoria do líder, e para “Fugee”, composição de Harewood, que revela a intimidade de Parlan com o blues.

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quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

TRÊS IRMÃOS


A rigor, não é algo raro o fato de que diversos membros de algumas famílias se dediquem à mesma atividade. Na música, então, esse fato chega a ser bastante corriqueiro, sendo que no jazz existem verdadeiras dinastias como a dos Marsalis. Todavia, não é propriamente comum coexistirem três irmãos extremamente talentosos dividindo o mesmo teto (e, muitas vezes, o mesmo palco), razão pela qual os irmãos Heath (Percy, Albert e Jimmy), Jones (Thad, Hank e Elvin) e Montgomery (Buddy, Monk e Wes) sempre mereceram bastante atenção dos amantes do jazz.


Para além da mera curiosidade genética, os irmãos Montgomery realmente mandavam muitíssimo bem. Nascidos em Indianápolis, Monk (William Howard), Wes (John Leslie) e Buddy (Charles) construíram boa parte de suas respectivas carreiras atuando juntos. Dos três, o que adquiriu maior notoriedade foi o irmão do meio, Wes, que chegou a ser aclamado pelo crítico Ralph Gleason como “a melhor coisa que aconteceu com a guitarra depois de Charlie Christian” e foi um dos maiores inovadores da guitarra jazzística.


Decerto, Charlie Christian, o gênio que aboliu o papel meramente rítmico da guitarra e que deu ao instrumento características melódicas, é a maior influência de Wes, que somente aprendeu a tocar aos 19 anos, idade em que a maioria dos músicos de jazz geralmente já apresenta um estilo próprio. Reza a lenda que Montgomery teria sido proibido de ensaiar em casa, por conta do barulho, que incomodava a vizinhança. A solução foi trocar a palheta pelo dedo polegar, numa técnica que dava ao seu toque uma sonoridade bem menos agressiva e muito mais melodiosa.


Mesmo começando tarde seu aprendizado, o enorme talento fez a diferença e Wes não tardou a se profissionalizar, fazendo o circuito de clubes e casas noturnas de Indianápolis. Ingressou na orquestra de Lionel Hampton no final dos anos 40, ali permanecendo por cerca de dois anos. Voltou à cidade natal no início dos anos 50, desdobrando-se em um emprego de operário em uma fábrica de aparelhos de rádio durante o dia e, durante a noite, como guitarrista em bares e casas noturnas, como o Turf Bar e o Missile Room.


É nesse período que Monk, Wes e Buddy formam o grupo Mastersounds, nome que foi posteriormente trocado para Montgomery Brothers e cuja formação incluía o baterista Benny Barth e o pianista Richard Crabtree. O combo faz algumas gravações esparsas (a destacar, o excelente “Fingerpickin’”, de 1957, creditado a Wes,) e chegou a se apresentar em cidades como Chicago e San Francisco, despertando o interesse de Cannonball Adderley, que o assistiu no clube Missile Room. O saxofonista, encantado com a originalidade de Wes, indicou-o ao célebre produtor Orrin Keepnews, dono da Riverside Records.


Contratado pela Riverside em 1959, o estilo altamente fluido e inventivo de Wes causou enorme impacto no meio jazzístico – no mesmo ano ele seria agraciado com o prêmio “New Star”, concedido pela prestigiosa revista Down Beat. Álbuns como “The Incredible Jazz Guitar” (1960), “Movin’ Along” (1961) e “Full House” (1962) se tornaram referência obrigatória para várias gerações de jovens guitarristas como George Benson, Doug MacDonald e o brasileiro Hélio Delmiro.


Ele ainda gravaria pelos selos Verve e A&M, onde desfrutaria de enorme sucesso comercial – seria, portanto, extremamente criticado por esta opção – e, ao logo da carreira, teria como acompanhantes músicos da estatura de Tommy Flanagan, Wynton Kelly, James Clay, Sam Jones, Victor Feldman, Louis Hayes, Hank Jones, Jimmy Cobb, Johnny Griffin, Paul Chambers e Freddie Hubbard.


Todavia, embora Wes fosse a estrela da família, o talento dos outros irmãos Montgomery não merece ser desprezado. O baixista Monk, mais velho, foi um dos precursores no uso do baixo elétrico, tendo tocado com Lionel Hampton (onde conheceu Quincy Jones, Gigi Gryce e Clifford Bbrown, seus parceiros na orquestra), Red Norvo, Jack Wilson, Art Farmer, Hampton Hawes e Kenny Burrell. Embora utilizasse habitualmente o baixo acústico, sua atuação com a versão eletrificada do instrumento era realmente inovadora, merecendo do crítico Nat Hentoff a observação de que ele “soava como um pequeno exército”.


O caçula, Buddy, também era um músico bastante versátil – tocava piano e vibrafone – e iniciou sua carreira profissional ao lado do cantor Big Joe Turner, no final dos anos 40. Também acompanhou Miles Davis e Slide Hampton, além de haver gravado alguns bons discos como líder, ao lado nomes como Cláudio Roditi, Eddie Harris, Ron Carter, Lenny White e David “Fathead” Newman. Integrou o supergrupo “Riverside Reunion Band”, juntamente com Barry Harris, Nat Adderley, Jimmy Heath e outros.


No disco “Groove Yard”, gravado para a Riverside em 1961, os três irmãos são acompanhados pelo baterista Bobby Thomas (pouco conhecido, mas que tocou com Paul Desmond, Hubert Laws e Stan Getz). O blues “Back To Bock”, de Buddy, abre o álbum de maneira bem cadenciada, com Wes adotando o fraseado relaxado e quase intimista que caracteriza a sua forma de tocar. “Just For Now”, outra composição do pianista, possui uma pegada mais acelerada, fazendo uma discreta citação à música oriental e com direito a um excelente solo de Thomas. “If I Should Loose You” é outro grande momento do álbum, merecendo uma execução altamente lírica.


O guitarrista mostra sua faceta de compositor na swingante “Doujie”, bebop de elaborada concepção harmônica, onde o piano ondulante de Buddy se destaca. “Heart Srings” é outro blues, de autoria de Milt Jackson (maior influência de Buddy ao vibrafone), com Wes extraindo da sua guitarra a atmosfera lamentosa que a composição exige e Monk construindo o arcabouço melódico com uma exuberância invulgar.


O West Coast está muito bem representado, graças às sacolejantes composições de Carl Perkins (“Groove Yard”) e Harold Land (“Delirium”). Nesta última Thomas, mais uma vez, rouba a cena, com um solo esfuziante e de grande complexidade. Uma versão arrasadoramente funky de “Remember”, de Irving Berlin, fecha o disco de forma magistral – uma demonstração de que as inovações estilísticas de Wes podiam ser aplicadas a qualquer contexto, até mesmo em um velho standard da década de 20.


Wes morreu, prematura e inesperadamente, no dia 15 de junho 1968, com apenas 43 anos, vítima de um ataque cardíaco fulminante. Monk faleceu em 20 de maio de 1982, em Las Vegas, onde levava uma vida tranqüila como disk-jóquei de uma rádio local. Buddy permaneceu entre nós até 14 de maio de 2009, desfrutando de uma pacata e merecida aposentadoria. Três vidas unidas pelo sangue e pelo jazz.


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segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

A MARCA DO ZORRO, DIGO, DO ZOOT!


John Haley Sims, o último de uma numerosa prole de sete irmãos, nasceu no dia 29 de outubro de 1925, na cidade de Inglewood, Califórnia. Sua família era ligada ao vaudeville – seus pais eram dançarinos – e logo o garoto começou a demonstrar uma impressionante aptidão musical. Além disso, a família incentivava o garoto a ler bastante e, na vitrola da casa, sempre se podia ouvir os discos de Duke Ellington e Count Basie.

Com apenas oito anos já tocava com desenvoltura a clarineta e a bateria. Por volta de 1936, a família Sims se mudou para Hawthorne, também na Califórnia, e John passou a estudar música na escola. Com treze, ele optou pelo saxofone, muito em virtude do impacto que a audição da música de Lester Young havia lhe causado.

Mas a musicalidade era comum na família Sims, tanto que o irmão mais velho, Ray, se tornaria um respeitado trombonista, tendo acompanhado Les Brown, Harry James, Lena Horne e Peggy Lee e outro irmão, Bob, tocava trompete. Quanto a John, foram necessários pouco mais de três anos de dedicação ao tenor para se tornar profissional. Estreou em 1941, com a orquestra de Ken Baker, que lhe deu o apelido de Zoot, pelo qual ficaria conhecido no mundo do jazz.

Pouco tempo depois, uniu-se à banda do trompetista Bobby Sherwood, trabalhando também com Sonny Durham, Big Sid Catlett e Bob Astor. Em 1943, como freelancer, participou de algumas gravações para a orquestra de Benny Goodman e em 1944, acompanhando o pianista Joe Bushkin, participou de sua primeira gravação com um pequeno grupo. Ainda naquele ano, integrou-se definitivamente à big band de Benny Goodman, de onde saiu para servir ao exército.

De volta à vida civil em 1946, voltou a tocar com Goodman e, no final daquele, foi convidado por Bill Harris para integrar o seu sexteto, que na época era atração fixa do clube Café Society Updown. Uniu-se por algum tempo à orquestra do guitarrista Alvino Rey e, em seguida, à de Gene Roland, onde conheceu Stan Getz, Herbie Steward e Jimmy Giufre.

A afinidade musical era tamanha que, pouco depois, em 1947, Getz, Sims e Steward estavam tocando juntos na poderosa orquestra de Woody Herman, que era uma das mais populares dos Estados Unidos. Substituindo Giuffre pelo baritonista Serge Chaloff, a orquestra contava com uma das mais vigorosas e inventivas sessões de sopro da época, capaz de rivalizar com as de Duke Ellington (capitaneada por Harry Carney e Johnny Hodges) e de Count Basie (que tinha os monstros Paul Gonsalves e Buddy Tate).

Após gravar o tema “Four Brothers” (de autoria e com arranjos de Giuffre) e “Early Autumn”, de Ralph Burns (que havia indicado os três para a orquestra), Herman e sua big band alcançaram um sucesso até então inédito. Herbie Steward saiu da orquestra em 1948, dando lugar a Al Cohn, outro discípulo de Lester Young e que iria firmar com Zoot Sims uma amizade e uma parceria para o resto de suas vidas.

Após deixar a big band de Woody Herman, em 1949, Zoot se mudou para Nova Iorque, trabalhando como freelancer em vários contextos e passando algum tempo com a orquestra de Artie Shaw. Novamente uniu-se a Benny Goodman, a fim de participar de uma excursão pela Europa, em 1950. Na ocasião, além de travar contato com diversos músicos europeus, gravou, na Suécia e na França, suas primeiras sessões como líder.

Em 1952, foi convidado para se juntar à orquestra de Stan Kenton, um dos arrojados band leaders da história do jazz, cujas concepções harmônicas continuam modernas até hoje. Dois anos depois, Sims integraria o sexteto de Gerry Mulligan, ex-arranjador de Kenton, e com ele permaneceria até 1956 (na década seguinte, Zoot voltaria a trabalhar sob a liderança do baritonista, na Mulligan’s Concert Jazz Band). Também nesse período, consolidou a prolífica união com Al Cohn, sendo que o primeiro disco sob a liderança dos saxofonistas incluía ninguém menos que John Coltrane e Hank Mobley (no álbum “From A to Z”, de 1956).

Nos anos 60, Zoot trabalhou exaustivamente, fosse em seus pequenos grupos, fosse como co-lider do grupo que mantinha com Al Cohn, fosse como free-lancer – e nessa condição participaria de álbuns de Oscar Pettiford, Anita O’Day, Bill Evans, Jimmy Rushong, Pepper Adams, Phill Woods, Tony Bennett, Bob Brookmeyer, Sarah Vaughan, Ella Fitzgerald, Jimmy Raney, Stan Getz e muitos outros.

Em 1961 o Brasil teve a honra de assisti-lo, ao vivo, por ocasião do American Jazz Festival, o melhor festival de jazz já realizado por estas plagas, promovido pelo Departamento de Estado Norte-Americano (e quem diz isso são os honoráveis José Domingos Raffaelli e Pedro “Apóstolo” Cardoso, duas das maiores autoridades brasileiras em jazz). Além de Zoot, participaram do evento Coleman Hawkins, Tommy Flanagan, Herbie Mann, Kenny Dorham, Ronnie Ball, Curtis Fuller, Ben Tucker, Roy Eldridge, Jo Jones, Chris Connor, Al Cohn e muitos outros.

No ano seguinte, Sims ainda encontrou tempo para viajar com o antigo chefe Benny Goodman – sempre ele – até a União Soviética, para uma série consagradora de concertos. Em 1963, participou do Festival de Newport e integrou, ao lado de Roy Haynes, Joe Zawinul, Clark Terry, Howard McGhee, Coleman Hawkins, a preciosa orquestra denominada Newport House Band. Em 1967, atendendo a um convite do produtor Norman Granz, integrou a caravana “Jazz At The Philarmonic”, com a qual fez uma série de concertos pela Europa.

Nos anos 70, a rotina incessante de trabalho manteve-se auspiciosamente inalterada. Concertos, gravações, excursões, participação em festivais (incluindo Newport) – tudo isso era a rotina de Zoot, que manteve inalterada a parceria com o velho amigo Cohn e a indefectível excursão ao lado de Benny Goodman (desta feita, foram à Europa em 1972 e à Austrália em 1973). Nessa época, Sims passou a se dedicar ao sax soprano, carinhosamente apelidado de “Sidney”, em homenagem ao grande Sidney Bechet.

Alguns dos acontecimentos mais notáveis da carreira de Zoot ocorreram nessa década. O primeiro deles, em 1970, foi o casamento com Louise Choo, jornalista do The New York Times. O segundo (e mais importante para os jazzófilos) foi a sua contratação pelo selo Pablo, de Norman Granz, que lhe permitiu gravar, entre outros, com gigantes da estatura de Oscar Peterson, Joe Pass, Harry “Sweets” Edison, Count Basie, J. J. Johnson, Frank Wess, Louis Bellson e outros.

Em sua fantástica passagem pela gravadora, que rendeu alguns dos seus melhores álbuns, um deles se destaca – e com todos os méritos: o formidável “If I’m Lucky”. Trata-se daquela rara modalidade de disco em que tudo, absiolutamente tudo, deu certo! As gravações, ocorridas nos dias 27 e 28 de outubro de 1977, nos estúdios da RCA, em Nova Iorque, forram produzidas pelo próprio Norman Granz. Acompanham o saxofonista os experientes Jimmy Rowles (piano), George Mraz (baixo) e Mousey Alexander (bateria).

Rowles é um pianista sofisticado, dono de um fraseado elegante e, por vezes, introspectivo. Ficou célebre por ser um grande acompanhante de cantoras, dentre elas Billie Holiday, Peggy Lee e Ella Fitzgerald, e por possuir um conhecimento enciclopédico do cancioneiro norte-americano.

A belíssima “(I Wonder) Where Our Love Has Gone”, obscura balada de Buddy Johnson que abre o disco, foi resgatada do limbo graças à prodigiosa memória musical do pianista, que apresentou a canção a Zoot. Interessante perceber como o sopro de Sims, sempre eloqüente e apaixonado, contrasta com a sobriedade impressionista do piano de Rowles. Este, aliás, impõe ao tema uma delicada abordagem de blues, com direito a um solo fenomenal de Mraz.

O irresistível swing do líder se revela logo na segunda faixa, uma fantástica releitura de “Legs”, de Neal Hefti. A trinca Rowles, Alexander e Mraz, segura ao extremo, dá o suporte necessário aos vôos de Sims. E que vôos! Sims é não apenas criativo ao extremo, mas toca com tamanha entrega e sagacidade, que faz parecer fácil tocar como ele toca.

Ao contrário do que o nome possa fazer crer, “Shadow Waltz” é uma deliciosa incursão do quarteto pela bossa nova (embora a versão original de Harry Warren e Al Dubin, lançada nos anos 30, seja efetivamente uma valsa). Interessante atuação de Alexander, que embora não tenha o mesmo approach de um Milton Banana ou de um Chico Batera, consegue uma boa dose de swing ao tema. Também merece destaque o fabuloso solo de Mraz e a interpretação sempre graciosa do líder.

“If I’m Lucky” é outra balada, na qual um Sims emotivo e quase melancólico encharca de lirismo o velho standard de Eddie De Lange e Josef Myrow. Deliciosa a versão de “You’re My Everything”, com seu clima de vaudeville e um Rowles endiabrado como nunca, fazendo seu piano soar percussivo como um Horace Silver.

Cole Porter não poderia ficar de fora. O balanço que o quarteto imprime a “It's Alright With Me” é irresistível. Tocando com a personalidade de sempre, Zoot consegue extrair de um standard tão gravado novas nuances sonoras, chegando a flertar descaradamente com o bebop, qual um Dexter Gordon. Soberbas atuações de Alexander e Rowles.

“Gypsy Sweetheart” e “I Hear a Rhapsody” completam a sessão – esta última encerra o álbum de maneira altamente inflamável, com um Rowles nada menos que esfuziante e um solo arrebatador de Alexander. Sims é um dos maiores saxofonistas de qualquer época e, embora formado nas orquestras de swing, soube absorver influências do bebop e do hard bop e utilizá-las na construção do seu estilo personalíssimo. Este álbum é um excelente exemplo de suas habilidades.

A década de 80 começou auspiciosa para Zoot. Participação em festivais importantes, como o de Estocolmo, e gravação de um álbum antológico, ao lado dos geniais Art Pepper, Barney Kessel, Victor Feldman, Ray Brown e Billy Higgins (“Art’N’Zoot”, de 1981). Outro disco bastante interessante é “Blues For Two”, um duo com o virtuose Joe Pass, de 1982. Dois anos depois, faria um belo tributo ao compositor Johnny Mandel, em “Quietly There”.

Todavia, os bons augúrios não se concretizaram. Um câncer no fígado, diagnosticado no final de 1984, levou-o no dia 23 de março de 1985, em Nova Iorque. Tinha 59 anos e, no fim daquele ano, foi homenageado postumamente, com a indicação para o Hall of Fame da Revista Down Beat.

O bem-humorado saxofonista (é célebre a história do fã que lhe perguntou como ele conseguia tocar tão bem, mesmo bêbado e ele, sem perder a pose, respondeu: “É fácil: eu pratico bêbado”) deixou, além dos muitos discos, uma infinidade de amigos. Um deles, o pianista Dave Frishberg, compôs em sua homenagem o tema “Zoot Walked In”.

Não é à toa que, certa feita, o crítico Will Friedwald escreveu sobre o saxofonista: “Ele não ficou tão famoso quanto o “irmão” Stan Getz, nem era um compositor ou arranjador tão notável quanto Al Cohn, seus companheiros na orquestra de Woody Herman. Mas era um concorrente terrível em uma jam session. Ele poderia chutar traseiro de qualquer um, e você teria pena do tolo que ousasse enfrentá-lo”.


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sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

TEM GATO NA TUBA?



“Todo domingo havia banda

No coreto do jardim

E já de longe a gente ouvia

A tuba do Serafim...

Porém um dia, entrou um gato

Na tuba do Serafim

E o resultado

Dessa melódica

Foi que a tuba tocou assim:

Tum Tum Tum – miau – Tum Tum Tum Tum Tum – miau...”


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É impossível para quem tem mais de 30 esquecer os impagáveis versos da antiga composição de Braguinha e Alberto Ribeiro que, no início dos anos 80, fez um estrondoso sucesso com a “Turma do Balão Mágico”. Lembro desta música toda vez que ouço o disco “Ray Draper Quintet Featuring John Coltrane” – e não me pergunte a razão, porque se existe uma coisa que a tuba do Draper não possui é gato.


Raymond Allen Draper nasceu no dia 03 de agosto de 1940, em Nova Iorque e desde muito novo se revelou um fenômeno de musicalidade. A mãe era pianista e o pai era um trompetista semi-profissional, que chegou a tocar com Jelly Roll Morton. Estudou na prestigiosa Manhattan School of Music, de onde saiu, na segunda metade dos anos 50, para encantar o mundo do jazz com seu talento e precocidade.


Com apenas 16 anos e ainda freqüentando o ginásio (na High School For The Performing Arts), gravou seu primeiro álbum como líder, chamado “Tuba Sounds”, para a Prestige, em março de 1957. Ao lado de Draper, estavam Webster Young (um jovem trompetista que a trabalhou com Hampton Hawes, Billie Holiday e John Coltrane) e os experientes Jackie McLean (que já havia usado Draper em seu disco “Jackie Mclean And Co.”, gravado em fevereiro daquele ano), Mal Waldron, James “Spanky” De Brest e Ben Dixon.


Draper é considerado um dos mais completos músicos surgidos nos anos 50, mas por ter escolhido um instrumento pouco usado no jazz moderno, seu trabalho não teve a mesma repercussão e nem a mesma popularidade que, certamente, teria se tivesse se dedicado, por exemplo, ao trompete ou ao saxofone. Quando da gravação do primeiro álbum, ele pontuava em alguns obscuros grupos de jazz de Nova Iorque, como o Jazz Unlimited e o Jazz Disciples, mas já chamava a atenção dos críticos.


Curioso é que a tuba era bastante comum nas orquestras e combos de jazz pré-swing – até hoje é muito usada nas bandas jazz tradicional, especialmente aquelas que tocam pelas ruas de New Orleans. Seus registros são os mais graves dentre os instrumentos de sopro, e ela exige do músico não apenas um enorme fôlego, mas também um excelente preparo físico, já que seu peso pode chegar aos vinte quilos.


Talvez por conta desse desconforto – imagine-se swingando a noite inteira com um instrumento de 20 kg apoiado em seu pescoço – a tuba tenha sido substituída pelo contrabaixo acústico – outro instrumento de nada modestas proporções mas que, pelo menos, possui uma haste metálica para apoiá-lo no chão, não exigindo do contrabaixista o mesmo esforço físico de quem toca a tuba.


Durante a era do swing, quando a tuba foi definitivamente relegada a um plano secundário, não eram muitos os músicos que se aventuraram a dominar aquele retumbante objeto. Embora geralmente usassem a tuba como um segundo instrumento (caso do trombonista Slide Hampton e dos baixistas Laymon Jackson, June Cole, Bill Benford, Peter Briggs e Red Callender foram alguns deles), esses músicos foram importantes porque a mantiveram em certa evidência.


No jazz moderno, especialmente no bebop, no hard bop e nas escolas posteriores, a dificuldade é ainda maior. Além de Draper, apenas Howard Johnson (trabalhou com Charles Mingus, Roland Kirk, Carla Bley, Archie Shepp e Gil Evans, mas também tocava sax barítono e clarinete baixo), Daniel Perantoni (respeitado educador musical e membro da Saint Louis Brass Quintet e da Matteson-Phillips Tubajazz Consort) e Bill Barber (integrante da orquestra de Claude Thornhill e que acompanhou Miles Davis em álbuns como “Birth Of The Cool”, “Sketches of Spain” e “Miles Ahead”) receberam alguma atenção por seu trabalho.


Voltando a Draper. Não bastasse ser um solista de enormes recursos técnicos, ele ainda era compositor (entre as suas obras constam incursões pela música erudita, tendo inclusive composto uma sinfonia) e arranjador bastante prolífico e criativo. Para se ter uma idéia de quão abusado era o garoto, em sua segunda aventura discográfica como líder, dividiu os estúdios com ninguém menos que John Coltrane – e tocando de igual para igual.


A façanha está registrada no álbum “Ray Draper Quintet Featuring John Coltrane”, gravado para a New Jazz (em cd, saiu pela OJC), em 20 de dezembro de 1957, nos estúdios Van Gelder e com produção de Bob Weinstock. No meio desse duelo de feras, estavam o pianista Gil Coggins (tocou com Miles Davis e Lester Young), o baixista James “Spanky” DeBrest (integrou os Jazz Messengers e o quinteto de J. J. Johnson) e o baterista Larry Ritchie (com trabalhos com B. B. King, Phineas Newborn e Sonny Rollins).


“Clifford’s Kappa”, de Draper, abre o disco e o que chama a atenção é o comportamento impetuoso e incisivo do jovem líder, que não se intimida em ter à sua frente um músico que, à época, já caminhava a passos largos para figurar no panteão dos maiores nomes do jazz, após a gravação do espetacular “Blue Train”, apenas três meses antes. Trane, aliás, não é nem um pouco condescendente com o garoto e faz aquilo que sabia fazer de melhor: solos incandescentes, tecnicamente complexos e altamente inventivos. Hard bop malemolente e de primeiríssima qualidade.


Outra composição de Draper, “Filidia” inicia como um chamado tribal, cortesia de Ritchie. Fabulosa a integração entre a tuba e o sax tenor, com um riff poderosamente pegajoso e um estilo jungle pontuando o tema o tempo inteiro. Trane hipnotiza o ouvinte com seu solo imprevisível e o arrojado Draper mostra que a tuba, quando executada com maestria, serve tanto para integrar a sessão rítmica como para brilhar na linha de frente. E ainda tem o belíssimo solo de Coggins.


Em “Two Sons”, outro tema de Draper, a intensidade do duelo entre Trane e Draper (autor do tema e também de um dos mais vigorosos solos do disco) transparece praticamente o tempo inteiro. Os dois virtuoses dialogam no idioma do fogo e da lava, acelerando o andamento e explorando ao máximo cada possibilidade harmônica. Ótimo o entrosamento entre De Brest e Coggins.


Sonny Rollins certamente ficaria orgulhoso de ver a fabulosa versão de “Paul’s Pal”, cheia de swing e um tantinho de malandragem. O solo de Coggins é preciso, sem pirotecnias, apenas técnica refinada e excelente senso de harmonia. Critica-se a postura dos três integrantes da sessão rítmica, por uma postura, às vezes, discreta demais. Mas é apenas ranzinzice dos críticos – afinal, quantos músicos no universo teriam peito para desafiar um John Coltrane na ponta dos cascos? De qualquer forma, aqui Coggins, De Brest e, sobretudo, Ritchie estão inteiramente à vontade – talvez seja a faixa mais relaxada do álbum.


Outro destaque do disco é a fabulosa versão de “Under Paris Skies”, de Hubert Giraud (mais conhecida por seu nome original, “Sous le ciel de Paris”, gravada por Edith Piaf, Yves Montand e Coleman Hawkins), na qual Ritchie dá uma aula magna de ritmo e swing. O quinteto desmonta e reconstrói o tema, brincando com suas harmonias e o encorpado som da tuba faz um interessantíssimo contraponto com a delicada sonoridade do acordeom, presente na maioria das versões francesas da canção.


Para encerrar, uma releitura da balada “I Hadn’t Anyone Till You”, de Ray Noble, a única da qual Coltrane não participa. Draper mostra que a tuba, apesar da opulência do seu som, também pode soar delicada e emotiva. Estalando os dedos e balançando a cabeça, o ouvinte acaba de ouvir o álbum inteiro e vai, contente e satisfeito, guardar essa preciosidade na estante, junto aos seus discos favoritos. Ou não! Certamente ele vai querer ouvi-lo outra vez e, na mente, a musiquinha recomeça a tocar – “Todo domingo havia banda”...


Depois de haver gravado dois álbuns como líder, Draper tocou com Donald Byrd, Max Roach (com quem permaneceu de 1958 e 1959), Don Cherry, Philly Joe Jones, Horace Tapscott, Sonny Criss, Archie Shepp, Brother Jack McDuff e Howard Johnson. Voltou a tocar com Coltrane no álbum “Like Sonny”, de 1958, certamente um dos menos badalados discos do saxofonista. Também atuou ao lado do cantor e pianista Dr. John (ícone da música de New Orleans e mestre na mistura de zydeco, jazz, blues, boogie-woogie e pop), na gravação do álbum “The Sun, Moon & Herbs”, de 1971, que contou com as participações dos astros Mick Jagger e Eric Clapton.


Problemas com drogas, especialmente a heroína, impediram que Draper desenvolvesse uma carreira mais consistente – ele chegou a ser preso no final dos anos 60. Todavia, muitos historiadores atribuem a ele (e não a Miles Davis) o título de criador do fusion, cerca de três anos antes do lançamento de “Bitches Brew” (gravado entre 1969/1970).


Draper liderava um grupo composto pelo trombonista George Bohannon, pelo saxofonista Hadley Caliman, pelo baixista John Duke, pelo baterista Paul Lagos e pelo guitarrista Tom Trujillo, que se apresentava com regularidade no clube Hollywood's Whiskey a Go Go e fazia uma vigorosa mistura de jazz com elementos de rock and roll. O grupo, que geralmente dividia as sessões com a banda psicodélica The Nazz, causou uma considerável repercussão no cenário musical de Los Angeles.


No final dos anos 60, Draper passou um período na Europa, acompanhando Don Cherry e Archie Shepp, mas logo voltou aos Estados Unidos, onde trabalhou como freelancer e liderou alguns conjuntos, por onde passaram o trompetista Don Sleet e o saxofonista Ernie Watts. Posteriormente, conseguiu montar uma nova banda, ao lado do velho companheiro Paul Lagos, do saxofonista Richard Aplan, do trompetista Phil Woods e do baixista Ron Johnson. A banda, denominada “Red Beans and Rice” e voltada para o fusion, obteve alguma notoriedade e chegou a abrir shows para Jimi Hendrix, Jethro Tull e Gil Scott Heron, mas desavenças internas impediram-na de alçar maiores vôos e o grupo logo se desfez.


Desiludido com a cena musical da Califórnia, Draper resolveu voltar para Nova Iorque, onde trabalhou como professor e arranjador. Com o apoio da família, conseguiu dar a volta por cima e se livrar da heroína. Quando tudo parecia se encaminhar para que ele voltasse a brilhar na cena musical, as teias do destino novamente o enredaram – e, desta vez, definitivamente.


No dia 1º de novembro de 1982, ao sair de uma agência bancária do Harlem, Draper foi assaltado por uma gang de delinqüentes juvenis. Não reagiu ao assalto e entregou o dinheiro aos bandidos. Não foi o suficiente. Um deles, de apenas 13 anos, disparou um tiro contra o músico, calando para sempre uma das vozes mais originais do jazz em todos os tempos.

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Caros amigos do Jazz + Bossa, por motivos de força maior (o GCast não está mais aceitando upload de músicas), tive que dar uma modificada na forma de disponibilizar as músicas dos artistas postados. Estou usando o DivShare, mas como ainda estou longe de dominar o novo formato, só consegui colocar uma música (geralmente ponho duas ou três, de acordo com o tamanho do arquivo). De qualquer forma, vou tentar fazer o melhor possível.


Quanto aos demais artistas postados, o podcast vai continuar, só que agora não será mais automático. Assim, o amigo que quiser ouvir as músicas mais antigas só vai ter o trabalho de apertar o play e ouvir, ok? Desculpem o transtorno, mas essa foi a melhor solução que eu encontrei. Se alguém souber de um modo mais fácil de criar um podcast (free, of course – RS, RS, RS) e que possa ser disponibilizado na página, por favor, fique à vontade. Valeu!


PS.: O nome da faixa postada é "Filidia".


PS.: Ficou legalzinho o som, mas se alguém souber como diminuir o tamanho da radiola e como colocar mais de uma música, eu agradeço!!!


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segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

OS OBSÉQUIOS LANCINANTES


Trancado no castelo de fécula e bruma,


Espero, apenas.


Meu paradeiro calcinado e minha identidade fugidia


Me permitem dizer quem não sou


Eu fio o linho das horas e costuro a brevidade das manhãs


Habito entre as quatro paredes adversas


Que formam o hexágono perfeito do meu cárcere...


Com olhos marejados e desatentos,


Tenho a companhia dos uivos longínquos


E o odor indesculpável das sarjetas.


Os obséquios lancinantes que nunca me foram atendidos


São as testemunhas perplexas da minha vontade nulificada.


O suor goteja-me em profusão


Como um néctar amanhecido e sedento


E embora só me tenham chegado aos ouvidos


A ortografia pálida do teu pesar


E o silêncio balouçante do teu não,


Era em tua boca uma surpresa velha, desbotada,


Era em tua voz um não escarrado com ferocidade e ternura...


Vesti o meu despudor de púrpura


Refiz a trajetória reversa,


Percurso interminável de um noviciado perpétuo,


Decidido a deixar para trás a solidão insular,


Abandonando a tenacidade, lancei ao mar a bênção atribulada


E fiz da penumbra a minha companheira e confidente


Demiurgo que sou, revelei a ela os segredos de catedral,


Disse-lhe, arfante, acerca dos vaticínios sonolentos


E ocultei-lhe a verdade perpendicular.


Renunciei ao dialeto mudo que me consome


Reneguei aquele último espasmo de lucidez,


A chaga nacarada e tênue, berço e sepulcro de minhas aflições.


Mantive o olhar crispado sobre o varal


Onde as almas secam ao vento, feito pinturas insubmissas


Então veio o adeus, que ontem apenas reluzia,


Mas que hoje desabou, sísmico


Um adeus uterino e tresloucado,


Um adeus para além da eternidade


Que me atingiu como um bólido feito de vontade e desdém.


Mas deixei um ou dois poemas esquecidos no toucador...


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Nascido em 24 de janeiro de 1920, na cidade de Saint Louis, Jimmy Roberts Forrest Jr. tornou-se conhecido por sua composição “Night Train” (uma interpretação funky baseada em “Happy Go Lucky Local”, de Duke Ellington), que alcançou bastante sucesso nas paradas de R&B, no início dos anos 50.


Filho de músicos, sua mãe liderou uma banda denominada Eva Forrest’s Stompers, em sua nativa Saint Louis. Saxofonista tenor de grandes recursos técnicos e de muita versatilidade, Jimmy começou a carreira profissional tocando com os pianistas Eddie Johnson e Fate Marable, passando, pouco tempo depois, para a Jeter-Pillars Orchestra. Posteriormente, integrou as orquestras de Jay McShann, Andy Kirk e Duke Ellington, ainda nos anos 40.


Com um estilo exuberante, que lembra o de Gene Ammons ou de Eddie Lockjaw Davis, Forrest fixou residência em Nova Iorque, no início dos anos 50, onde tocou com Red Garland, Curtis Fuller, Miles Davis, Bennie Green, Oliver Nelson, Jack McDuff, B. B. King e o trompetista Harry Sweets Edison, com quem manteve uma produtiva associação, entre 1958 e 1963 (voltariam a tocar juntos algumas vezes nos na década de 70). Forrest também fez parte da orquestra de Count Basie, de 1972 a 1977. Outra parceria importante foi com o trombonista Al Grey, a qual se estenderia de 1977 até 1980.


Forrest é o exemplo clássico do músico formado nas orquestras de swing, mas que incorporou, com muita propriedade, a sintaxe do bebop e do hard bop em seu fraseado, e foi um dos primeiros a assimilar elementos do R&B e da soul music. Também era um emérito intérprete de baladas, tocando sempre com muita entrega e emotividade. Como líder, sua discografia não é muito extensa, mas ele gravou com certa regularidade para selos como Prestige, Delmak, New Jazz, Muse e Palo Alto.


Dentre os músicos “descobertos” por Forrest, ou que tocaram em seus grupos no início de suas carreiras, estão Grant Green, Elvin Jones, Larry Young e Joe Zawinul. Faleceu no dia 26 de agosto de 1980, em decorrência de problemas hepáticos, na cidade de Grand Rapids, Michigan, onde morava desde meados da década de 70.


Um dos melhores álbuns de Forrest é “All The Gin Is Gone”, gravado para a Delmark entre os dias 10 e 12 de dezembro de 1959 . O saxofonista está acompanhado de Harold Mabern (p), Grant Green (g), Gene Ramey (b) e Elvin Jones (bt). Para além do título bastante intrigante, este álbum merece especial atenção por se tratar da primeira gravação do excepcional guitarrista Grant Green.


Calcado em baladas como “Laura”, “What’s New” e “You Go To My Head”, e em composições do próprio Forrest, como a música título e “Sunkenfoal”, este disco é uma excelente introdução à obra do tenorista e uma ótima oportunidade de ouvir o piano ágil e envolvente de Mabern, cuja execução é sempre instigante.


O destaque absoluto fica por conta da versão de “Caravan” (de Duke Ellington, Juan Tizol e Irving Mills), simplesmente fabulosa, com direito a uma devastadora performance do tuareg Jones. As influências do R&B estão presentes em “Myra”, interpretada com muito groove, com direito a solos alucinantes do líder e do novato Green.


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