Amigos do jazz + bossa

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O BARÃO NAS ÁRVORES


Kenneth Barron é um dos mais festejados pianistas da atualidade. Além de ser um intérprete de talento superlativo, ele também é arranjador, educador musical e compositor. Nascido no dia 09 de junho de 1943, na Filadélfia, estado da Pensilvânia, ele é irmão mais novo do saxofonista tenor e soprano, compositor e professor de música Bill Barron (falecido no dia 21 de setembro de 1989, aos 62 anos). Seu pai, William, era operário de uma fábrica de aço e a mãe, Rella, havia aprendido os rudimentos do piano na juventude e estimulava as aptidões musicais dos filhos.

Recebeu as primeiras lições de piano aos seis anos pelas mãos de Ruth Issaks, então namorada do seu irmão mais velho, Bill. Complementava os estudos em casa, usando o popular método para piano criado por William Matthew. Aos doze anos, Kenny foi estudar com Vera Bryant, renomada professora e irmã do pianista Ray Bryant e do baixista Tommy Bryant, outros fabulosos nativos de Filadélfia. Barron também estudou na Philadelphia Musical Academy, mas acabou abandonando o curso, sem concluí-lo, por causa dos compromissos profissionais.

Aos 14 anos, em 1957, Kenny experimenta sua primeira participação profissional na banda de Mel Melvin, por indicação do irmão Bill, que já tocava naquele grupo. O garoto recebia 15 dólares por noite e a banda se apresentava no Elk's Lodge. Em seguida, Barron atuou em formações lideradas por Philly Joe Jones, onde substituiu Dick Katz, e Yusef Lateef. Com este, aliás, Barron realizou seus primeiros trabalhos como arranjador, tendo escrito os arranjos de dois temas gravados no álbum “The Centaur And The Phoenix”, de 1960. Pouco depois, muda-se para Nova Iorque, em 1961, juntamente com o irmão, a fim de se unir ao grupo do trompetista Ted Curson, também oriundo da Filadélfia.

Na Meca do Jazz, o jovem de apenas 18 anos trabalha com nomes de primeira linha, como James Moody, Lee Morgan e Lou Donaldson. Em 1962 o pianista se junta ao grupo de Roy Haynes para, em seguida e por recomendação de James Moody, substituir Lalo Schiffrin no quinteto de Dizzy Gillespie. Apesar da pouca idade, Kenny já era um músico experiente e de muita personalidade, agregando ao seu rol de influência nomes como os de Tommy Flanagan, Hank Jones e Wynton Kelly.

O trabalho com Dizzy lhe abriu as portas para o público e a crítica e lhe trouxe enorme prestígio. Barron participou do documentário “Dizzy Gillespie” (de 1965, dirigido por Les Blank), no qual Gillespie fala sobre sua trajetória e apresenta-se em quinteto com James Moody no sax tenor, Kenny Barron no piano, Chris White no contrabaixo e Rudy Collins na bateria, em uma apresentação gravada em Hermosa Beach, Califórnia.

Em 1966, após quatro anos de parceria, Barron deixa Gillespie para tocar, seguidamente, com Freddie Hubbard, Jimmy Owens e Stanley Turrentine. Em março de 1970 o pianista passa a fazer parte do quarteto de Yusef Lateef, com quem já havia trabalhado anteriormente nos anos 50. Em seguida, viriam participações nos grupos de Milt Jackson, Booker Ervin, Jimmy Heath e Stan Getz, onde substituiu Chick Corea, em uma formação que incluía os ótimos Stanley Clarke e Tony Williams.

Em 1972 Barron passou a dar aulas de piano no “Jazzmobile Workshop”. No ano seguinte, começou a ministrar aulas práticas e de teoria musical no Livingston College, ligado à Rutgers University, em uma associação que se prolongaria pelos próximos 27 anos – ele se aposentaria em 1999. Também exerceu o magistério na “Juilliard School Of Music”, sendo que alguns de seus mais destacados alunos foram Aaron Parks, David Sanchez, Terence Blanchard, Harry Pickens e Noah Baerman.

Seu primeiro álbum como líder, “Sunset to Dawn”, foi gravado em 1973, para o selo Muse. No início de 1976, passa a integrar a banda do baterista Buddy Rich mas ali teve uma curta permanência. Desligado da banda, o pianista participou de concertos e gravações sob aliderança de George Benson, Eddie Harris, Sonny Stitt, Chet Baker, Harry “Sweets” Edison, Von Freeman, Elvin Jones, Sam Most, Jon Faddis, Jim Hall, Joe Henderson e Eddie “Lockjaw” Davis.

A partir de meados dos anos 70, Barron iniciou uma parceria duradoura e sumamente estimulante com o baixista Ron Carter, que perdurou até o início da década seguinte. Sobre Carter, de quem é amigo até hoje, sobram palavras elogiosas: “Ron é capaz de dizer exatamente o que quer e de explicar aos parceiros o que quer que eles façam. Ele é capaz de extrair as coisas de você, porque tem uma visão musical muito particular. Poucos músicos sabem fazer isso de uma maneira tão natural”, declarou certa vez. Nesse período, graduou-se, em 1978, Bacharel em Artes pelo “Empire State College”, de Nova Iorque.

Em 1981 Barron foi co-fundador, ao lado de Charlie Rouse, do grupo “Sphere”, dedicado a difundir e a perpetuar a obra do grande Thelonius Sphere Monk. O grupo, do qual faziam parte o baterista Ben Riley e o baixista Buster Williams, permaneceria em atividade até a morte de Rouse, em 1988. Poucas semanas antes do falecimento do saxofonista, a banda havia realizado uma vitoriosa temporada no Village Vanguard. O grupo “Sphere” fez um breve retorno aos palcos em 1997, com Gary Bartz assumindo o saxofone, durante um festival de jazz em Atenas, na Grécia.

Os anos 80 encontram o pianista trabalhando febrilmente e se consagrando como um dos grandes acompanhantes de cantores e cantoras como Sheila Jordan, Abbey Lincoln, Maria Muldaur, “Little” Jimmy Scott, Dianne Reeves e Ella Fitzgerald. Em 1984 Barron iniciou uma longa e prolífica parceria com o vibrafonista Bobby Hutcherson, que resultaria em álbuns muito bem recebidos pelo público e pela crítica, como os excelentes “In The Vanguard” (32 Jazz, 1986), sob a liderança de Hutcherson, e “Other Places” (Verve, 1993), tendo o pianista como líder.

Convidado para acompanhar Stan Getz na temporada européia de verão de 1987, Barron se tornou o mais constante parceiro musical do saxofonista até a morte deste, em junho de 1991. Os dois já haviam trabalhado juntos anteriormente e dessa nova reunião surgiram preciosidades como “Serenity” (EmArcy), gravado ao vivo no dia 06 de julho de 1987, no Café Montmartre, em Copenhague e que conta, ainda, com a presença dos sempre competentes Rufus Reid e Victor Lewis.

O último trabalho de Getz, aliás, é um dueto entre ele e o pianista. Indicado ao Grammy de melhor álbum de jazz, o álbum duplo “People Time” foi gravado em fevereiro de 1991, mais uma vez no clube Montmartre, na capital dinamarquesa. Considerado um dos momentos mais líricos da parceria entre barron e Getz, ele apresenta releituras emocionantes de standards como “East of the Sun (And West of the Moon)”, “I Remember Clifford” e “Softly, As in a Morning Sunrise”.

Barron lançou álbuns dedicados à música brasileira, com ênfase na bossa nova, destacando-se “Sambao” (Verve, 1992), ao lado dos brasileiros Nico Assumpção e Toninho Horta, além do baterista francês Mino Cinelu, e “Canta Brasil” (Universal, 2002), onde se faz acompanhar pelo fabuloso “Trio da Paz” (Nilson Matta no contrabaixo, Romero Lubambo na guitarra e Duduka da Fonseca na bateria).

Um dos momentos mais brilhantes da discografia do pianista é o formidável “Live At Bradley’s”. Gravado ao vivo no lendário clube de Nova Iorque (cujo piano foi um presente de Paul Desmond ao proprietário da casa), nos dias 03 e 04 de abril de 1996 e lançado em 2002 pelo pequeno selo Sunnyside, o álbum traz cinco temas, todos executados de forma preciosa por Barron e seus habilíssimos parceiros: Ben Riley na bateria e Ray Drummond no contrabaixo.

O trio abre os trabalhos com “Everybody Loves My Baby But My Baby Don't Love Nobody But Me”, de Spencer Williams e Jack Palmer, na qual o líder executa uma inebriante introdução de quase um minuto, num estilo exuberante que lembra Art Tatum. Em seguida, com a entrada dos outros instrumentos, os diálogos entre eles se intensificam e o ouvinte é brindado com uma interpretação que conjuga improvisos criativos, técnica arrebatadora e interação telepática entre o líder e seus comandados. Riley possui um senso de tempo irrepreensível e desenvolve o acompanhamento de maneira sempre surpreendente, dando ênfase à complexidade polirrítmica. Tão à vontade quanto o baterista, Drummond elabora um longo solo, que não merece outro adjetivo a não ser antológico.

“Solar”, de Miles Davis, recebe um arranjo – perdoem o trocadilho – ensolarado. Com um andamento ultra-rápido, o tema permite aos três que exibam incontestável domínio do idioma bop. Barron é um virtuose de recursos aparentemente ilimitados. Sua destreza faz com que ele transite entre os registros graves e os agudos com enorme naturalidade e crie riffs empolgantes ao extremo, além de acrescentar em algumas passagens um indisfarçável tempero latino. A exuberância rítmica de Riley pode ser apreciada em toda a sua grandeza e Drummond, impecável, é o grande responsável pela coesão harmônica do trio.

Richard Rodgers e Lorenz Hart marcam presença com “Blue Moon”, aqui interpretada em um andamento lento, quase marcial. Barron foi bastante feliz ao incorporar elementos de blues ao tema, criando uma versão absolutamente original, na qual a beleza da melodia pode ser apreciada em toda a sua plenitude. O lirismo quase melancólico do piano possui grande força emotiva sem, no entanto, jamais resvalar para o sentimentalismo gratuito. Destaque para a sutileza percussiva de Riley, cujo trabalho com as escovas é notável.

Com uma sonoridade que remete aos discos de Herbie Hancock feitos para a Blue Note nos anos 60, a hipnótica “Alter Ego” é uma composição do ótimo James Williams. Complexa e cheia de nuances, a faixa possui uma elegância bastante peculiar e sua beleza intrigante, como ocorre nas composições de Monk, por exemplo, provém do estranhamento e da inquietude. Dono de um senso estético refinado e bastante arrojado, Barron flerta com o impressionismo e com as dissonâncias típicas de um Charles Mingus. Atenção para o contrabaixo inebriante de Drummond, responsável, em grande medida, pela atmosfera por vezes sombria da faixa.

O encerramento fica a cargo de “Canadian Sunset”, de autoria de Norman Gimbel e Eddie Heywood. Trata-se de um dos temas mais caros ao piano jazzístico e que já foi gravada por monstros do gabarito de Wes Montgomery, Gene Ammons, George Shearing. A desenvoltura do trio empolga a platéia, que aplaude generosamente ao fim do set, mas é Barron o maior destaque individual. Seus solos são como uma carpintaria sonora, cuja matéria-prima é um amálgama de rigor formal, articulação, bom gosto e inventividade. Um álbum “cheio de energia, serenamente alegre e que revela sempre uma maneira diferente de encantar o ouvinte, a cada nova audição”, nas irretocáveis palavras de Judith Schlesinger.

Ao longo dos seus quase 60 anos de carreira, Barron colecionou uma infinidade de prêmios e honrarias. Foi indicado em nove ocasiões para o “Grammy Awards”, foi indicado para o “American Jazz Hall Of Fame” em 1990 e venceu a eleição dos críticos da revista”Down Beat”, na categoria de melhor pianista, em 1999. Também foi considerado o melhor pianista no “Jazz Awards” nesse mesmo ano e foi nomeado “Fellow” pela “American Academy Of Arts And Sciences”.

O pianista tem sido uma presença constante em festivais de jazz pelo mundo e já tocou, entre outros, nos de Marciac, Perugia, North Sea, Halifax, Portland, Detroit, Montreal, Chicago e Newport. Acompanhante dos mais requisitados, seu trabalho pode ser ouvido em álbuns de artistas do calibre de Barney Kessel, Nick Brignola, Larry Coryell, Benny Golson, Illinois Jacquet, Cláudio Roditi, Lee Konitz, Barney Wilen, Joe Locke, Sonny Fortune, Eric Alexander, Christian McBride, Tom Harrell, Russell Malone e muitos outros.

Apesar da aposentadoria do Livingston College, ele continua a dar aulas na Manhattan School of Music e na Julliard School of Music. Sua agenda é sempre lotada e somente neste ano de 2011 ele já se apresentou em várias cidades dos Estados Unidos, além de ter realizado concertos na França, Itália, Dinamarca e Canadá. Seus álbuns como líder encontram-se, quase todos, em catálogo, distribuídos por etiquetas como Gitanes, Uptown, Criss Cross, Enja, Candid, Reservoir, Concord, Sunnysville e Venus Jazz.

Na abalizada opinião de Pedro “Apóstolo” Cardoso, Barron “converteu-se para a crítica e o público em depositário da já atingida “tradição” do piano-jazz moderno, na mainstream do jazz, dedicando-se de maneira clara à sonoridade, ao desenvolvimento harmônico refinado com exploração de aspectos rítmicos pouco visitados por seus pares, mas sem jamais desprender-se do mais acentuado swing”.

Em sentido semelhante, o blogueiro e pianista Murilo Barbosa vaticina que Barron “sabe aplicar a textura correta no momento de acompanhar, de improvisar ou de simplesmente dialogar com outros músicos, sempre usando acordes precisos, voicings bem definidos e frases enxutas. Sabe como ninguém o som que pode tirar do piano quando precisa”.

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sábado, 26 de novembro de 2011

A ALEGRE PIANISTA DE WINDSOR

A pianista, compositora, arranjadora e diretora de orquestra Marian Margaret Turner nasceu na cidade de Windsor, na Inglaterra, no dia 20 de março de 1918 (embora alguns autores apontem 1920 como ano de seu nascimento), em uma família de músicos. Considerada uma “menina-prodígio”, aos 03 anos de idade já executava algumas peças ao piano, geralmente valsas de Chopin. Na infância, estudou, além do piano, violino e canto coral, a princípio com professores particulares. Na adolescência, ingressou na Guildhall School Of Music And Drama, em Londres, onde estudou música clássica e piano.

Embora sua família fosse bastante ligada à música, não via com bons olhos o envolvimento da garota com o jazz. As discussões familiares eram uma constante, porque seus pais não aceitavam o precoce encantamento de Marian por músicos americanos, especialmente “Fats” Waller, Duke Ellington, Mary Lou Williams e Teddy Wilson.

Para desgosto da família, em 1938, então com 20 anos, Marian abandonou os estudos na “Guildhall”, a fim de se juntar ao “Billy Mayerl’s Claviers”, um grupo de “vaudeville” integrado por 04 pianistas. Ela decidiu adotar o nome de Marian Page e com o grupo excursionou pela Europa. Durante a II Guerra Mundial, a pianista ajudou a entreter as tropas aliadas que lutavam contra o nazismo, integrando alguns grupos musicais organizados pelas forças armadas norte-americanas. 

Durante uma turnê pela Bélgica e pela Alemanha em 1944, ela conheceu o cornetista Jimmy McPartland. A afinidade musical logo evoluiu para uma relação afetiva e os dois se casaram na base militar dos aliados em Aachen, na Alemanha. Marian adotou o sobrenome do marido e o casal decidiu se fixar nos Estados Unidos em 1946, estabelecendo-se em Chicago. Logo após a sua chegada, Jimmy tocou com diversos grupos da cidade e da região de Boston, e montou um quinteto ao lado da esposa pianista, que era atração fixa do Brassrail Lounge.

Em 1949 o casal se mudou para Nova Iorque, onde Jimmy se juntou ao grupo do guitarrista Eddie Condon. Marian, por seu turno, começou a liderar seus próprios trios, apresentando-se em vários clubes da cidade. Em 1952, Marian fez sua estréia como atração principal do “Hickory House”, na emblemática Rua 52. Na primeira formação, a pianista era acompanhada pelo contrabaixista Max Wayne e pelo baterista Mousie Alexander. Posteriormente, Bill Crow substituiu Wayne e, em 1953, o grande Joe Morello assumiu a bateria, saindo em 1957 para integrar o seminal quarteto de Dave Brubeck.

Marian e seu trio permaneceram na casa até 1960, mas também costumavam a se apresentar com regularidade no The Embers, dividindo os letreiros com gigantes como George Shearing, Jonah Jones e Red Norvo. Nas palavras do venerável Luiz Orlando Carneiro, a pianista já era uma artista madura e exibia um estilo bastante pessoal, que “não chocava os tradicionalistas e nem aborrecia os modernistas”. Seus futuros trios seriam integrados por músicos de primeira linha, como os baixistas Steve Swallow, Eddie Gomez e Steve La Spina e os bateristas Jake Hanna, Joey Baron e Dave Bailey.

Nesse ínterim, McPartland deu início à sua extensa carreira discográfica como líder, gravando para selos como Savoy e Capitol. Ela chegou a gravar alguns temas em duo com o genial Bud Powell em meados dos anos 50. Em 1955, ela começou a lecionar música em escolas de Manhattan e também passou a escrever colunas sobre jazz para jornais e revistas como The Boston Globe, Down Beat e Melody Maker. Muitos dos seus textos seriam compilados, em 1987, pela Oxford University Press e lançados em um livro intitulado “All in Good Time”.

Em uma entrevista à Down Beat, Marian esclareceu os motivos que a levaram a se aventurar pela educação musical, ministrando cursos, palestras e oficinas em escolas e universidades dos Estados Unidos: “Eu fiquei com muito medo de que o rock & roll fosse aniquilar o jazz, por isso fiz questão de ir até às escolas. Eu sabia que não conseguiria lutar contra o rock & roll, mas queria que as crianças soubessem que havia outros tipos de música”.

Em 1958, McPartland foi uma das duas únicas mulheres (a outra foi Mary Lou Williams) a aparecer na célèbre foto de Art Kane, juntamente com alguns dos maiores nomes do jazz em uma escadaria no Harlem. Publicada na revista Life a fotografia histórica foi objeto do documentário “Great Day In Harlem”. Outro momento marcante foi a sua atuação ao lado do saxofonista Gerry Mulligan, na edição daquele mesmo ano do Newport Jazz Festival.

A década de 60 foi particularmente difícil para Marian, tanto do ponto de vista pessoal como profissional. O mercado do jazz retraíra-se de forma assustadora e muitos músicos resolveram se mudar para a Europa, onde o interesse pelo estilo permanecia em alta. Em 1963 ela foi contratada por Benny Goodman, para acompanhá-lo em uma temporada na Inglaterra. Também realizou turnês em companhia dos pianistas Teddy Wilson e George Shearing.

Em 1964, a pianista estreou na rádio “WBAI-FM” de Nova Iorque, com um programa semanal em que apresentava gravações e entrevistava convidados.  A rádio “Pacifica” da Costa Oeste passou a transmitir esse programa semanal, que abriu caminho para o posterior programa “Marian McPartland’s Piano Jazz”, série transmitida pela NPR (“National Public Radio”), com o primeiro programa transmitido em 04 de junho de 1978.

Nos programas da NPR Marian tocava piano e recebia convidados – gente do calibre de Tony Bennett, Wynton Marsalis, Dizzy Gillespie, Ray Charles, Gerry Mulligan, Rosemary Clooney, Benny Green, Geoff Keezer, Geri Allen, Mary Lou Williams, Billy Taylor, Lee Konitz, Bill Evans, Ramsey Lewis, Herbie Hancock e Oscar Peterson – para entrevistas e atuação, sendo que boa parte desses programas foi gravada em CD, em uma série homônima do programa. Ao longo de mais de 700 edições, chegou a ser o programa cultural de mais longa permanência no ar, em uma rádio pública.

Marian e Jimmy se separaram em meados daquela década, mas a pianista conservou o sobrenome do ex-marido. Embora se mantivesse em atividade regular, inclusive gravando para selos como Argo, Dot, Time e Sesac, ela não se sentia satisfeita com o tratamento dado pelas gravadoras aos artistas de jazz. Decidiu fundar, em 1969, a sua própria gravadora, chamada “Halcyon Records”, pela qual gravaram grandes nomes como Earl Hines, Teddy Wilson, Joe Venuti e Dave McKenna.

Nos anos 70 começou a longa e prolífica associação com a “Concord Jazz”, a convite do seu fundador e presidente Carl Jefferson. Foram mais de 50 gravações, inclusive ao lado do ex-marido Jimmy McPartland. Naquela década, Marian compôs a trilha sonora dos documentários “Mark” (agraciada com o prêmio de melhor trilha sonora nos festivais de cinema de Edimburgo e Veneza), “Mural” e “The Light Fantastic Picture Show”. Também se tornou atração fixa do clube Cafe Carlyle, em Nova Iorque, a partir de 1974, a convite do sensacional Bobby Short, com quem dividia os sets naquela casa.

Marian emprestou seu talento para abrilhantar dezenas de festivais de jazz pelo mundo, com destaque para os de Nice, Montreux, Antibes, Berlin, Monterey, Kansas City Women's Jazzfest e o JVC Jazz Festival. Ela e Jimmy voltaram a se apresentar juntos na edição de 1978 do Newport Jazz Festival. Marian também é uma compositora bastante inventiva e dentre suas obras, podemos citar “Ambiance”, “There'll Be Other Times”, “With You In Mind”, “Twilight World” e “In The Days Of Our Love”. Suas composições foram gravadas por gente do gabarito de Tony Bennett, Peggy Lee, Johnny Mercer, Sarah Vaughan, Gary Burton, George Shearing, Cleo Laine, The Thad Jones/Mel Lewis Orchestra e muitos outros.

A década de 80 encontrou-a ainda bastante envolvida com o ensino musical, mas sem deixar de conduzir o seu programa na NPR. A partir de então, ela vem colecionando uma impressionante sucessão de prêmios e homenagens por sua obra, como o “Peabody Award”, em 1983, a indicação para o “International Association Of Jazz Education Hall Of Fame”, em 1986, e o “ASCAP-Deems Taylor”, em 1991.

Em janeiro de 1990 McPartland entrou no estúdio da Concord para gravar o disco que é um verdadeiro marco em sua carreira. Trata-se do sensacional “Plays The Benny Carter Songbook”, no qual a pianista se debruça, com talento e sensibilidade, sobre a obra composicional do genial Benny Carter, que inclusive participa de algumas faixas, tocando sax alto. No apoio, estão os experientes John Clayton (contrabaixo) e Harold Jones (bateria).

A faixa de abertura é “When Lights Are Low”, provavelmente a composição mais conhecida de Carter, composta em dupla com Spencer Williams. O swing delicado de Marian e sua enorme capacidade para transitar do jazz tradicional para as formas mais contemporâneas, impregnam o tema de um acentuado tempero bop. Seus improvisos são límpidos, ágeis e de grande expressividade. O ritmo sincopado proposto por Jones e o acompanhamento certeiro de Clayton tornam ainda mais charmosa esta bela versão.

“I'm in the Mood for Swing”, também composta em parceria com Spencer Williams, conta com a exuberante participação de Carter. O saxofonista mostra que, aos 82 anos, ainda estava em plena forma e que seu fraseado continua vibrante e arejado. Clayton produz um som robusto e seu solo é um amálgama de perícia técnica e paixão. Marian evoca a Era do Swing, com uma interpretação alegre e despretensiosa, com uma primorosa utilização dos registros mais graves, especialmente durante os solos.

“A Kiss from You” é fruto da parceria entre Carter e Johnny Mercer. Mais uma vez o autor se faz presente e seu prazer de tocar contagia os demais integrantes do quarteto. Mostrando porque é um dos mais destacados contrabaixistas da atualidade, Clayton emula a virilidade de um Ray Brown, adotando uma pegada firme e extremamente melódica. A formidável atuação de Jones com as escovas e a riqueza de timbres construída por McPartland fazem dessa balada em tempo médio uma das faixas mais emocionantes do álbum.

Carter não participa de “Key Largo”, que foi escrita juntamente com Leah Worth e Karl Suessdorf. Trata-se de uma balada impressionista, com tinturas de bossa nova, na qual a percussão sutil de Jones e o piano etéreo de McPartland dialogam com sensibilidade e bom gosto. Em seguida, é a vez da agitada “Another Time, Another Place”, onde Carter, literalmente, rouba a cena. Seu solo mantém-se no limiar entre a tradição do swing e as ousadias harmônicas do bebop. Os outros integrantes do quarteto proporcionam o arcabouço rítmico mais do que perfeito para que o “Rei” possa exibir seu amplo e incontestável domínio do sax alto.

Outra balada, “Summer Serenade”, prima pelas harmonias sutis e pela melodia refinada, que lembra as composições de Billy Strayhorn. Executada pelo trio, a faixa apresenta um arranjo envolvente, com um ótimo trabalho percussivo de Jones e uma levada econômica de McPartland. “Doozy” é um blues sincopado, com pitadas de dixieland e ragtime, no qual a pianista emprega com muita astúcia e propriedade a técnica do stride piano. Benny volta a se juntar ao trio, para mais uma performance empolgante, criando efeitos bastante interessantes ao saxofone.

Ray Sonin é o co-autor de “Lonely Woman” e Sammy Cahn é o parceiro em “Only Trust Your Heart”, dois belos exemplos de baladas classudas, que reafirmam o talento de Carter para esse tipo de composição. Na primeira, a execução fica a cargo do trio, com destaque para a sonoridade lustrosa e consistente de Clayton. Na segunda, Carter e McPartland brilham ao estabelecer um diálogo de enorme intensidade emocional entre piano e saxofone. Ambos são dotados de uma técnica superior, mas não abrem mão da emotividade e da fluência, transformando a audição desta faixa em uma experiência das mais encantadoras. Atente-se para a formidável atuação de Clayton, cujo solo, utilizando o arco, é um dos momentos mais sublimes do disco.

“Evening Star” mantém-se no território das baladas e aqui o trio dá ênfase ao aspecto melódico, com Marian reproduzindo riffs lentamente, quase como se estivesse em uma liturgia. As modulações de seu piano evocam o vai e vem das ondas do mar, lembrando em algumas passagens as construções impressionistas de Debussy. Clayton usa os registros mais graves do contrabaixo para ajudar a elaborar uma atmosfera romântica ligeiramente sombria.

O arranjo brincalhão de “Easy Money” nos transporta para os agitados anos 40 e Carter retorna para o encerramento mais que festivo. O saxofonista é pura graça e leveza, com improvisos sempre insinuantes e precisos. Jones comete um solo de grande eloqüência rítmica, emulando o vigor de um Art Blakey e a líder, muito à vontade, se esmera para reproduzir o som alegre das bandas da Era do Swing. Um disco encantador, que dá bem a dimensão da estatura de Marian como pianista, além de lançar luzes sobre o aspecto composicional de Benny Carter, cuja obra sempre ficou obscurecida por conta de seu excepcional trabalho como intérprete e arranjador.

Marian foi a primeira mulher a receber o prêmio de Jazz Educator of the Year, concedido pela National Association of Jazz Educators, em 1986. Outra honraria importante foi-lhe outorgada pela revista Down Beat: o Lifetime Achievement Award, em 1994. Destacam-se, ainda, o “Grammy Trustees”, por sua obra como escritora, educadora e apresentadora do mais longo programa de rádio em emissora pública, o “Marian McPartland’s Piano Jazz” na “NPR”, e as indicações para o “Long Island Music Hall Of Fame”, em 2006, e para o “National Radio Hall Of Fame”, em 2007.

Desde 2000 a pianista exibe o precioso título de Jazz Master, concedido pela National Endowment for the Arts. Os títulos honorários recebidos por ela também impressionam, seja pela quantidade, seja pelo nível das instituições outorgantes: Ithaca College, Hamilton College, Union College, Bates College, Bowling Green University, University of South Carolina, Eastman School of Music, Berklee College of Music e City University of New York, apenas para citar alguns.

Em 2003 Marian comemorou os 25 anos do seu programa com uma transmissão feita diretamente do “Kennedy Center”, tendo como convidado o cantor e pianista Peter Cincotti. Naquele mesmo ano, a pianista se apresentou juntamente com a cantora Norah Jones, no Tanglewood Jazz Festival, em Massachusetts, e comemorou seu 85º aniversário com um concerto no célebre clube Birdland, que contou com as presenças de astros como Tony Bennett e Nnenna Freelon. Em 2008, McPartland completou 90 anos e durante as festividades a Concord lançou o album “Twilight World”, cujo grande destaque é a versão de “Lonely Woman”, de Ornette Coleman.

Pouco antes disso, compôs e apresentou, em 2007, a sinfonia “A Portrait Of Rachel Carson”. A obra homenageia a bióloga, zoóloga, ambientalista e escritora americana, autora do livro “Silent Spring” e pioneira no movimento global de defesa do meio ambiente. Em 2010 a pianista foi condecorada com o título de “Officer Of The Order Of The British Empire”, uma das mais prestigiosas comendas concedidas pelo Império Britânico. Honraria das mais justas para quem, nas palavras do produtor George Wein “fez mais pelos pianistas de jazz que qualquer outra pessoa no mundo inteiro”.

Para Pedro “Apóstolo” Cardoso, Marian possui “um conhecimento enciclopédico do jazz, abordando ao piano e com propriedade os “standards” e os estilos mais variados da Arte Popular Maior, graças aos longos anos de estrada e à longa atuação em seu programa de rádio, em que recebeu e contracenou com os mais diversos ícones do “piano-jazz”. Seu estilo pode ser definido como flexível e complexo, com improvisação muito inventiva tanto harmônica quanto rítmica e não centrado em uma única escola (percorre com fluidez desde o “dixieland” até o “bebop”), sempre com “swing” subjacente e sem afetação”.

Apesar da idade, Marian ainda se mantém lúcida e em atividade regular, costumando realizar apresentações em clubes de Nova Iorque com freqüência. A receita da longevidade é simples: “acredito que trabalhar é a melhor coisa que alguém pode fazer na vida, sobretudo quando você faz aquilo que gosta e pode compartilhar o fruto do seu trabalho com outras pessoas. Eu não sou aquele tipo de pessoa que passa o dia inteiro no jardim regando plantas”.
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quarta-feira, 16 de novembro de 2011

PAPAI SABE TUDO




Antes de Charlie Parker e Dizzy Gillespie inventarem o bebop, o jazz passou por outras revoluções. Foi assim que o estilo saiu de Nova Orleans em direção às cidades mais desenvolvidas da região norte do país, acompanhando o fluxo migratório da enorme população negra que fugia da miséria e da segregação racial características do sul. Os negros partiam em busca de uma nova dignidade econômica e social no próspero norte, especialmente em Nova Iorque, Detroit e Chicago. Também foi sob essa perspectiva histórica que o jazz deixou o ambiente libidinoso das casas de tolerância para ganhar corações, mentes e quadris em salões de baile dos Estados Unidos e do mundo.

Nascia o swing e, com ele, uma nova forma de diversão, baseada em um ritmo contagiante e em uma orquestração frenética, onde se sobressaíam os poderosos naipes de metais. O jazz ia saindo, timidamente, do gueto e começava a se tornar uma música respeitável. Também se tornava uma música democrática, pois nos milhares de salões de dança, teatros e casas de espetáculos espalhados pelo país, o jazz fazia a todos – brancos e negros (nem sempre dividindo o mesmo espaço físico, claro!) – chacoalhar o esqueleto e se divertir a granel.

Figuras como Jelly Roll Morton, Louis Armstrong, King Oliver, Duke Ellington e Sidney Bechet, entre outros, foram fundamentais para a popularização do estilo, fazendo do jazz a trilha sonora por excelência, das quatro primeiras décadas do século XX. Não é à toa que esses músicos sejam considerados verdadeiros “Pais Fundadores” do jazz e a eles podemos agregar o nome de outra figura seminal: Earl Kenneth Hines!

Esse fabuloso pianista nasceu no dia 28 de dezembro de 1903, em Duquesne, Pensilvânia, em uma família extremamente musical. Seu pai, Joseph, trabalhava no porto e tocava trompete em uma orquestra semiprofissional chamada Eureka Brass Band. A mãe, Mary, tocava órgão e foi quem deu ao pequeno Earl as primeiras lições do instrumento. Dois outros filhos do casal, Nancy e Boots, também enveredariam pela área musical, tornando-se pianistas.

Aos nove anos Earl iniciou os estudos formais de piano, pelas mãos de Emma Young, uma renomada professora de McKeesport, cidadezinha próxima a Duquesne. Em seguida, foi estudar piano clássico com Von Holz e começou a realizar os primeiros concertos. A família se mudou para Pittsburgh, cidade mais desenvolvida e capital do estado, quando Hines tinha treze anos. Os estudos musicais continuaram na Schenley High School, onde foi matriculado.

Nessa época, ocorreu um fato que mudaria para sempre as inclinações musicais de Hines. Levado por um tio ao Liederhouse, importante clube de jazz da cidade, o garoto se apaixonou pelo estilo e decidiu abandoner a promissora carreira de concertista para se dedicar àquele estilo mundano e sedutor. Aos 15 anos, montou um trio, juntamente com um violinista e um baterista, apresentando-se em bailes e quermesses da região de Pittsburgh.

No ano seguinte, já desfrutava de uma boa reputação nos meios musicais da cidade e tomou a decisão de abandonar a escola, para dedicar-se apenas à música. Em 1922 Hines foi contratado pelo bandleader Lois B. Deppe, para tocar no mesmo Liederhouse que lhe abriu a mente para o jazz, ganhando então a respeitável quantia de quinze dólares por semana.

Com Deppe, Hines passou a viajar pelo país, apresentando-se na Virgínia, em Ohio e em Nova Iorque. Em 1923 o grupo estava em Richmond, Indiana, onde Hines participou de sua primeira sessão de gravação. No ano seguinte, Earl decidiu montar seu próprio grupo e, atendendo a uma recomendação do lendário pianista Eubie Blake, fixou-se em Chicago, cujo cenário musical era dos mais estimulantes.

Naquela cidade, o jovem de apenas 19 anos não demorou a se enturmar com os músicos locais. Gente como Louis Armstrong, Jelly Roll Morton e Benny Goodman, que estava ajudando a imprimir uma nova face ao jazz. Seus primeiros trabalhos foram nas bandas de Sammy Stewart, Erskine Tate e Carroll Dickerson. Em 1926 Hines montou um trio com Louis Armstrong e Zutty Singleton, atração fixa do Café Sunset, casa que, comentava-se à época, era de propriedade da Máfia.

O clube encerrou suas atividades em 1927 e Hines foi contratado pelo clarinetista Jimmy Noone, cuja banda se apresentava no Apex Club. Em 1928 Hines voltou a se reunir a Louis Armstrong, cujos grupos Hot Five e Hot Seven cujas gravações se tornariam verdadeiros clássicos do jazz. Temas como “West End Blues”, “Fireworks”, “Skip the Gutter” e “Basin Street Blues” dariam a Armstrong o status de principal nome do jazz daquele período e a contribuição de Hines foi fundamental para que isso acontecesse.

Contando com a presença de talentos como do baterista Singleton, do banjoísta Mancy Cara, do trombonista Fred Robinson e do clarinetista Jimmy Strong, as bandas lideradas por Armstrong redefiniram não apenas as concepções estéticas do jazz como deram uma nova dimensão aos solistas. Tanto ele quanto Hines eram virtuoses e os diálogos entre trompete e piano deixavam abismada a audiência que acorria aos shows e comprava os discos dos Hot Five e dos Hot Seven.

Ainda em 1928, Hines fez as suas primeiras gravações como líder, para o selo QRS, interpretando temas como “A Monday Date,” “Blues in Third” e “57 Varieties”. No dia 28 de dezembro daquele ano, o pianista comemorou os seus 25 anos fazendo a primeira apresentação como líder de sua própria big band, principal atração do luxuoso Grand Terrace Ballroom, de propriedade do célebre gangster Al Capone. Hines lembra desse período: “O Grand Terrace era o Cotton Club de Chicago e nós éramos uma mistura de orquestra de baile com banda de jazz”. A orquestra tocava de segunda a segunda, fazendo três espetáculos por noite – aos sábados, eram quarto shows.

A orquestra se tornou conhecida nacionalmente graças à transmissão dos concertos feita pelo rádio. Foi assim que temas como “G.T. Stomp”, “Piano Man”, “Harlem Laments” e “You Can Depend on Me” se tornariam grandes sucessos. Por conta disso, a orquestra de Hines costumava excursionar pelo país, mas se manteve como principal atração do Grand Terrace até 1940. Findo o contrato com o clube, o pianista continuou a liderar a orquestra, por onde passaram nomes como Buddy Johnson, Trummy Young, Billy Eckstine, Ray Nance, Dizzy Gillespie e Charlie Parker.

Sucessos como “Jelly Jelly”, “Boogie-Woogie on the St. Louis Blues” e “Stormy Monday Blues” ajudariam a manter a big band como uma das mais populares da Era do Swing. Todavia, em 1946, Earl foi obrigado a suspender suas atividades, por causa dos ferimentos que sofreu em um grave acidente automobilístico, em uma estrada próxima a Houston, no Texas. Recuperado dos ferimentos, em 1947 ele decidiu montar um clube em Chicago, chamado El Grotto, mas a aventura não deu certo e ele amargou um prejuízo de trinta mil dólares – uma verdadeira fortuna na época. Além disso, o swing começava a perder força e tornava-se muito caro manter uma orquestra, razão pela qual ele decidiu desfazer a sua em 1948.

Naquele mesmo ano, Hines voltou a tocar com o antigo parceiro Louis Armstrong, em sua banda Louis Armstrong’s All Stars, que realizou longas e bem-sucedidas excursões pela Europa, destacando-se a apresentação no Festival de Nice. A formação incluía craques como o trombonista Jack Teagarden, o clarinetista Barney Bigard, o baixista Arvell Shaw e o baterista “Big” Sid Catlett. Mas nem tudo eram flores e o irrequieto pianista deixou os All Stars em 1951, por conta de sérios desentendimentos com Armstrong.

Hines decidiu então liderar seus próprios combos, mas seu trabalho não teve muita repercussão e ele, considerado o pai do moderno piano jazzístico, acabou tendo que tocar em bandas de dixieland para ganhar a vida. Aliás, a crítica é unânime em atribuir a Hines o mérito de ter sido o primeiro pianista a criar uma linguagem eminentemente jazzística ao piano, daí o apelido “Fatha”, uma corruptela de “Father” (pai).

Como explica o venerável crítico Whitney Balliett, “antes dele, a maioria dos pianistas de jazz eram artistas ou blues ou pianistas ligados ao stride. Hines preencheu o espaço entre essas abordagens com um estilo que se aproximava daquele praticado pelos instrumentistas de sopro. Até então, ninguém havia tocado piano daquela maneira”.

Ao contrário da maioria dos artistas de jazz surgidos nos anos 20 ou 30, ele jamais se acomodou e, durante os mais de 60 anos de carreira, nunca deixou de correr riscos e nem de acrescentar novos elementos à sua música.  Ao longo das décadas, assimilou a complexidade harmônica do bebop e suas idéias se mantiveram surpreendentemente arejadas. Diferentemente de Armstrong,  acompanhava com interesse o trabalho dos jazzistas mais ousados e jamais recusou-se a interagir com renovadores do jazz como Monk, Powell, Parker ou Gillespie.

Em 1955, Hines passou a se apresentar com regularidade no Hangover Inn, em San Francisco, Califórnia. Conciliando o trabalho no clube com excursões pela Europa e Canadá, o pianista estabeleceu-se na região de Bay Area, onde permaneceu em uma relativa obscuridade até 1959. Nesse ano, ele voltou a chamar a atenção do público, por conta de sua apresentação com o cantor Jimmy Witherspoon, no Monterey Jazz Festival. A banda comandada por Hines incluía luminaries como o trompetista Roy Eldridge, o clarinetista Woody Herman e os saxofonistas Coleman Hawkins e Ben Webster, e foi um dos pontos altos daquela edição do festival.

Em 1960 ele deixou o emprego no Hangover Club e voltou a se apresentar pelos Estados Unidos, desaparecendo de cena mais uma vez. Montou um clube em Oakland, na Califórnia, em 1963, mas o empreendimento não deu certo e ele fechou as portas no ano seguinte. 1964 marcou um novo ressurgimento em sua carreira, graças a uma elogiada temporada no Little Theatre, em Nova Iorque, promovida pelo crítico Stanley Dance. Redescoberto, ele voltou a se apresentar em clubes badalados da cidade e a tocar em festivais ao redor do planeta. No ano seguinte, seu nome foi justamente incluído no “Jazz Hall of Fame”.

A Downbeat o elegeu o “Pianista nº 1 do mundo” em 1966 e no mesmo ano foi escolhido pelo Jazz Journal como “Jazzman of the Year”. Ainda em 1966 o pianista esteve na União Soviética, em uma turnê promovida pelo Departamento de Estado Norte-americano, e foi condecorado com o título de “Embaixador da Boa-Vontade”. A década seguinte foi de trabalho intenso, com gravação de álbuns seminais, como “Tour De Force”  (1201 Music, 1972), “Plays George Gershwin” (Musidisc, 1973), “West Side Story” (Black Lion, 1974) e “The Father of Modern Jazz Piano” (MF Records, 1977).

Gravou álbuns em parceria com outros gigantes do jazz, como o saxofonista Paul Gonsalves, o violinista e o vibrafonista Lionel Hampton. Como sideman, colocou seu talento a serviço de gente como Jack Teagarden, Bobby Hackett, Johnny Hodges, Benny Carter, Jonah Jones, Buck Clayton, Oliver Nelson, Dave Brubeck, Jaki Byard, Eddie “Lockjaw” Davis, Roy Eldridge, Duke Ellington, Stan Getz, Gene Krupa, Gerry Mulligan, Pee Wee Russell, Lester Young, Charles Mingus, Helen Humes e muitos outros.

A discografia solo de Hines ultrapassa os 70 álbuns, lançados por selos como Riverside, Epic, Black & Blue, Atlantic, MCA, Decca, Stash, Red Baron, MPS, Delmark, Prestige, Chiaroscuro, Xanadu, Columbia e Capitol, apenas para mencionar alguns. Uma de suas últimas gravações como líder é o excelente “Honor Thy Fatha” (Real Time), no qual ele está acompanhado dos experientes Red Callender (que também toca tuba em uma faixa) e do baterista Bill Douglass.

O álbum foi gravado nos dias 27 e 30 de março de 1978 e dá uma ótima idéia da versatilidade de Hines, bem como da sua absoluta ausência de preconceito musical, pois ao lado de composições de monstros sagrados como Duke Ellington ou Fats Waller, ele também incluiu no repertório temas de compositores muito mais jovens, como Thelonious Monk, Horace Silver e Joe Zawinul.

É de autoria de Zawinul, aliás, a faixa de abertura, a contagiante “Birdland”, um dos grandes sucessos do grupo fusion Weather Report. Com Callender utilizando a tuba, o tema é um apanhado de elementos do jazz clássico, em especial o dixieland e o swing, com fartas doses de soul jazz. Hines é hábil ao extremo, transitando com leveza e graça entre as regiões graves e agudas do piano, compensando na parte rítmica uma certa perda de agilidade provocada pela troca do contrabaixo pela tuba.

“Blue Monk” jamais soou tão carregada de blues quanto na versão de Hines e seus comandados. O pianista apara as dissonâncias monkianas, a fim de explorar o lado melódico do tema com uma paixão quase furiosa. A técnica stride, característica dos anos 20, é usada com muita autoridade pelo líder. Destaque para a percussão cheia de nuances de Douglass.

Recordando os tempos de concertista erudito, Hines, em um belíssimo trabalho solo, interpreta “Humoresque”, do compositor tcheco Antonin Dvorák, que aqui é firmemente calcada no ragtime e mostra a influência, ainda que remota, da música clássica européia na gênese do jazz.

Um medley com duas composições de Fats Waller, “Squeeze Me/Ain't Misbehavin'”, vem a seguir. Com um arranjo irreverente, o trio desenvolve os temas com um discreto acento de blues, de maneira leve e muito relaxada. A emblemática “Sophisticated Lady”, de Duke Ellington, Irving Mills e Mitchell Parish, ganha um arranjo bluesy, onde Hines, em algumas passagens, acelera o andamento e elabora harmonias bastante complexas, tornando a canção quase irreconhecível.

O trio elabora uma swingante versão de “Old Fashioned Love”, composta por James P. Johnson, em parceria com Cecil Mack. O fraseado moderno de Hines permitiu que ele assimilasse a influência do bebop e a abordagem do pianista revela de maneira bastante convincente a ligação existente entre o jazz clássico e o moderno. Interessante observar o quanto o trabalho de Callender é importante para que Hines possa transitar com a maior naturalidade entre as harmonias caudalosas do bebop e as harmonias mais comportadas do swing e do ragtime.

Uma das canções mais conhecidas e gravadas de todos os tempos, “Misty” é fruto da imaginação fértil de Erroll Garner. O líder tem um estilo mais comedido que o do autor, mas sabe trabalhar os acordes mais exuberantes com sobriedade e elegância. A interpretação solo de Hines acentua o aspecto mais blueseiro dessa balada, uma das mais lindas do repertório jazzístico.

Para finalizar, Horace Silver marca presença com a sua “The Preacher”, clássico absoluto do soul jazz. Os spirituals e o gospel que Hines ouvia e tocava na juventude permeiam a interpretação vigorosa do trio. Seus improvisos são ágeis e seu domínio dos registros agudos é particularmente empolgante, mas a velocidade sempre é colocada a serviço da harmonização. O trabalho de Callender e de Douglass é notável.

O disco ainda traz como bônus takes alternativos de “Birdland” e “Blue Monk” e confirma a grandiosidade do talento de Hines. Não é à toa que o álbum seja, nas palavras do crítico Scott Yanow, “um dos registros mais significativos na longa e ilustre carreira de Earl Hines”. Para o fã brasileiro fica o consolo de que o disco foi lançado há alguns anos pela gravadora Trama.

A década de 80 flagra Hines com sérios problemas cardíacos mas mesmo assim ele prossegue com os concertos e gravações. Sua última apresentação aconteceu uma semana antes de sua morte, ocorrida em Oakland, Califórnia, no dia 22 de abril de 1983. Sua influência pode ser sentida na obra de pianistas de várias gerações, como Teddy Wilson, Art Tatum, Jay McShann, Erroll Garner, Bud Powell, McCoy Tyner e Oscar Peterson.

Admirado por seus pares, Hines era reconhecido no meio jazzístico como um nome capital na evolução do jazz. Em uma entrevista à Metronome, Billy Strayhorn declarou: “Tecnicamente ele é pouco ortodoxo, harmonicamente é intrigante. De fato, é praticamente impossível imitar seu estilo. Seus fãs formam uma legião, sua influência é tremenda e sua dimensão artística é incomparável”. Fazendo coro com o fiel escudeiro, Duke Ellington vaticinou “as raízes do bebop estão no estilo pianístico de Earl Hines”.

Para finalizar, interessante ler o que escreveu sobre ele o crítico Leonard Feather : “Hines goza do respeito unânime entre pianistas e críticos, sendo reconhecido como um dos gênios em seu instrumento. Seu profissionalismo e capacidade de se comunicar com uma audiência são inigualáveis. Seu domínio do piano é total, permitindo-lhe ficar à vontade em pequenos combos, no acompanhamento vocal ou em uma big band. Embora Hines sempre tenha se proclamado um pianista da banda e não propriamente um solista, seu trabalho solo, gravado perto do fim de sua carreira, possui uma qualidade impressionante”.

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segunda-feira, 14 de novembro de 2011

PARA ALÉM DA CORTINA DE FERRO




Dusko Gojkovich nasceu no dis 14 de outubro de 1931, na cidade de Jajce, que na época fazia parte da antiga Iugoslávia (atualmente, a cidade pertence à Bosnia-Herzegovina), embora tenha optado pela nacionalidade sérvia, quando o país unificado pelo Marechal Josip Broz Tito entrou em colapso e se desfez em meia dúzia de novos países.

A paixão musical despertou cedo e de 1948 a 1953 ele estudou na Acadamia de Música de Belgrado. Na então capital iugoslava, Dusko, cujo primeiro ídolo foi o lendário Roy Eldridge, ouvia jazz com devoção e tocava trompete em bandas de dixieland  e swing. Em 1949 foi recrutado para a big band da Rádio Belgrado. Concluído o curso, o jovem trompetista de apenas 23 anos resolveu tentar a sorte na Alemanha Ocidental, atendendo ao convite da pianista alemã Jutta Hipp, que estava em turnê pela Iugoslávia.

O ano era 1954 e não demorou muito para que fosse contratado para a Frankfurt All Stars Band. Nesse grupo, o sérvio participou de sua primeira gravação, em 1956, chamando a atenção do bandleader germânico Max Greger, com quem trabalhou por alguns meses. Logo em seguida, Kurt Edelhagen, líder de uma das mais renomadas orquestras alemãs, o contratou para ser o primeiro trompetista de sua big band. Para que se tenha uma idéia da importância de Edelhagen no cenário jazzístico alemão, basta dizer que entre os seus arranjadores estavam expoentes como Francy Boland e Claus Ogermann.

Dusko já havia adquirido uma boa experiência no circuito de clubes de Frankfurt, tendo acompanhado diversos ases do jazz em turnê pela Alemanha, como Chet Baker e Stan Getz. 1958 foi um ano inesquecível, pois o trompetista foi convidado a fazer parte da Newport International Youth Band, grupo formado por jovens jazzistas europeus, que se apresentou com sucesso na edição daquele ano do Newport Jazz Festival. Alguns dos seus colegas na banda eram o trombonista alemão Albert Mangelsdorff, o pianista suíço George Gruntz e o guitarrista húngaro Gábor Szábo.

A apresentação em um festival tão importante abriu as portas do Mercado europeu para Gojkovich, que durante os três anos seguintes foi uma das atrações mais assíduas dos festivais de jazz do Velho Continente. Em 1961 ele decidiu retomar os estudos musicais e escolheu o prestigioso Berklee School of Music, onde estudou arranjo e composição. Em Boston, foi aluno do lendário trompetista Herb Pomeroy e passou a tocar também o flugelhorn.

Dusko fez parte do Berklee School Quintet e da big band da instituição, onde pôde tocar com outros alunos que, num futuro próximo, se tornariam nomes relevantes no cenário jazzístico, como o vibrafonista Gary Burton, os saxofonistas Sadao Watanabe e Steve Marcus, o pianista Mike Nock e o contrabaixista Dave Young.

Gojkovich estava tão focado nos estudos musicais que chegou a recusar vários convites para se juntar a bandas como as de Count Basie, Stan Kenton e Benny Goodman. Somente em 1963, após a conclusão do curso – feito com uma bolsa de estudos – ele se sentiu à vontade para retomar a carreira profissional e logo foi contratado pelo trompetista e bandleader canadense Maynard Ferguson para se juntar à sua big band, em substituição ao sueco Rolf Ericson, por sua vez, estava se mudança para a orquestra de Duke Ellington, onde ocuparia o lugar de ninguém menos que Clark Terry.

Uma honra para o jovem iugoslavo, que seria o responsável pelo segundo trompete da banda. Quanto ao líder, eis a sua opinião sobre o homem e o músico: “Ele é uma das pessoas mais maravilhosas que conheci. Um sujeito muito tranqüilo e gentil, e sempre positivo, alegre e divertido. Além disso, Maynard é um trompetista fantástico. Talvez algumas pessoas pensem que existam muitos trompetistas como ele, mas isso não é verdade. E ele jamais saiu por aí se proclamando um gênio do instrumento. Mas é isso que ele é, sobretudo quando está solando: um gênio do trompete”.

A convivência musical durou pouco mais de um ano, pois Ferguson foi obrigado, por razões econômicas, a desmanchar a sua orquestra, em 1964. Mas serviu como vitrine para o trabalho de Gojkovich, que logo em seguida foi contratado para integrar a orquestra de Woody Herman. Com Herman, o trompetista fez uma longa excursão pela África, a convite do Departamento de Estado norte-americano.

Após a turnê africana, foi a vez da orquestra excursionar pela Europa Oriental, que então vivia sob o domínio comunista e o conjunto de países do leste europeu era conhecido como Cortina de Ferro. A banda tocaria na Hungria, Romênia, Tchecoslováquia e Iugoslávia. Depois de mais de dez anos sem retornar ao país de origem, Dusko não escondia a aflição. Ele lembra: “Eu estava bastante nervoso quando chegamos em Belgrado. Recordo de ter dito aos meus companheiros Bill Chase e Nat Pierce que se eles me vissem sendo conduzido por uns caras de uniforme azul, podiam procurar outro trompetista porque eu provavelmente seria mandado para a Sibéria”. De qualquer modo, o trompetista passou incólume pela turnê e continuou sua trajetória profissional sem maiores sobressaltos.

O convívio com Herman também foi muito marcante na trajetória pessoal e professional de Gojkovich, que cresceu bastante não só como solista, mas principalmente como compositor e arranjador. Ele reconhece a importância do bandleader e recorda: “Woody Herman me encorajava bastante. Ele não apenas aceitava minhas sugestões como chegou a gravar diversas composições minhas, além de me dar oportunidade para elaborar arranjos para a banda”. A parceria durou apenas um ano, pois o trompetista sentiu a necessidade de retornar à Europa e priorizar a carreira solo.

De volta à Alemanha em 1965, ele gravou seu primeiro álbum como líder, “Swinging Macedonia” (Enja), cujo repertório incluía vários temas folclóricos dos Bálcãs, executados em ritmo de jazz. No acompanhamento, destacam-se o sempre instigante Mal Waldron ao piano e o jovem saxofonista Nathan Davis, que futuramente seria o criador e líder da célebre Paris Reunion Band.

Estabelecido como um dos principais nomes do jazz do Velho Continente, Dusko também acompanhou alguns dos gigantes norte-americanos em concertos e gravações pela Europa, destacando-se Miles Davis, Dizzy Gillespie, Gerry Mulligan, Sonny Rollins, Duke Jordan, Freddie Hubbard, Lee Konitz, Phil Woods, Art Farmer, Clark Terry, Woody Shaw e Slide Hampton.

Em 1966, ele decidiu se fixar em Munique, onde montou um grupo com o saxofonista Sal Nistico, ex-companheiro na big band de Woody Herman e que seria seu parceiro constante ao longo dos próximos anos. Dois anos depois, em 1968, entrou para a célebre The Kenny Clarke-Francy Boland Big Band, onde pode conviver com alguns dos mais talentosos jazzistas de todos os tempos, como Benny Bailey, Ake Persson, Idrees Sulieman, Ronnie Scott, Johnny Griffin, Sahib Shihab, Jimmy Woode e Billy Mitchell, entre outros. No ano seguinte, Dusko montaria o Summit Quintet, em parceria com o baterista Philly Joe Jones, que na época morava na Europa.

O vínculo com a big band de Kenny Clarke e Francy Boland perduraria até 1973, quando o trompetista se desligou da orquestra. Desde o início da década de 70 Dusko mantinha um projeto paralelo, liderando a sua própria big band, na qual pontuavam vários músicos europeus de primeira linha, como os trompetistas Palle Mikkelborg e Rolf Ericsson, o saxofonista Ferdinand Povel e o clarinetista Frank St. Peter. Ali Gojkovich pôde exercitar com maior liberdade a sua vocação para o arranjo e a composição, e manteve a orquestra em atividade até 1976.

Com o fim da sua big band, o trompetista voltou a trabalhar como freelancer, elaborando arranjos para orquestras alemãs, como a Dutch Skymasters, a Munich Big Band e a NDR Big Band. Também montou um hepteto com o trombonista norte-americano Slide Hampton, que chegou a fazer algum sucesso na segunda metade dos anos 70, sobretudo no circuito europeu de festivais de jazz. Também participou, como sideman, de shows e gravações de gente como Don Menza, Buddy De France, Big Joe Patton, Tete Montoliu, Nathan Davis, Alvin Queen e do ex-patrão Kenny Clarke.

Em 1986  ele refez a sua big band, a qual, desde então, se mantém em atividade. No ano seguinte, após um hiato de mais de quinze anos sem gravar um disco em seu próprio nome, lançou o elogiado “Celebration”, pelo selo japonês DIW, no qual está apoiado por uma sessão rítmica estelar: o pianista Kenny Drew, o baterista Al Levitt e o contrabaixista Jimmy Woode.

O trompetista passaria outros sete anos sem gravar como líder, mas em 1993 o panorama mudou radicalmente. Assinou com a gravadora alemã Enja, por onde havia lançado seu primeiro álbum solo, ainda nos anos 60, e despejou no mercado uma dúzia de excelentes álbuns, que se alinham entre os melhores já gravados no continente europeu. O primeiro deles foi o estupendo “Soul Connection: Vol. 1”, gravado entre os dias 28 e 29 de junho de 1993 e que recebeu o German’s Jazz Critics Award do ano seguinte.

Além de excelente intérprete, Dusko é um compositor muito criativo – sete das oito faixas são de sua autoria – e um arranjador talentoso. Secundado pelos excelentes Tommy Flanagan (piano), Eddie Gomez (contrabaixo) e Mickey Roker (bateria), o trompetista fica à vontade para mostrar suas diversas facetas, manejando com igual maestria o trompete e o flugelhorn. Complemente-se dizendo que o álbum também conta com a presença do saxofonista Jimmy Heath em cinco das nove faixas.

A primeira delas é, exatamente, a que dá nome ao disco e sua estrutura é bastante assentada no blues, embora tenha elementos do soul jazz de um Horace Silver ou de um Lee Morgan. O líder é um trompetista econômico e suas intervenções primam pelo rigor harmônico, muito mais que pela velocidade ou pela profusão de acordes. Heath honra o apelido de “Little Bird” e improvisa com sagacidade e inteligência, dando ao tema um inescapável conteúdo bop. O sempre elegante Flanagan é um esteta, sempre muito preocupado com a beleza e com o bom gosto daquilo que toca e seu solo, impecável, é um amálgama de limpidez e fluência.

A seguir, Dusko presta homenagem àquele que, ao longo dos anos, assumiu o papel que havia sido de Roy Eldridge em seus anos de formação: Miles Davis, seu ídolo e principal influencia. A emocionante “Ballad for Miles” é uma balada hipnótica, na qual o líder aplica a surdina ao seu trompete e a sonoridade obtida emula a do líder, de maneira quase mediúnica. Flanagan ajuda a criar o clima introspectivo com uma abordagem minimalista, dedilhando as teclas com a delicadeza e o refinamento habituais.

A movimentada “Inga” é tributária da música brasileira e sua levada irresistível tem fartos elementos de samba e bossa nova. Gomez produz um solo instigante e seu contrabaixo ensolarado transborda alegria. Roker é a coluna vertebral rítmica e está muito à vontade nesse ambiente bossanovístico. O mesmo vale para o líder e para Heath, que parecem ter sido forjados nas noites sessentistas do Beco das Garrafas.

Imortalizada por Dinah Washington, “I'll Close My Eyes”, de Bernice Petkere, é a única música que não foi composta por Gojkovich. Executada em um contagiante tempo médio, a canção ganha um charme extra com a utilização, por parte do líder, de uma graciosa surdina. A performance de Flanagan é magistral, não apenas no que diz respeito ao acompanhamento mas também no extasiante solo. Gomez se mostra um improvisador formidável e brinda o ouvinte com um solo exuberante.

Apesar do título, “Blues Time” é bebop de excelente safra, cadenciado e extremamente melódico. O blues se agrega como um elemento mais complementar que propriamente estrutural e o líder proporciona, ao flugelhorn, uma aula magna de inventividade, improvisando com engenho e perspicácia. Heath, bopper de quatro costados, tem amplo espaço para solar e seus diálogos com Gojkovich lembram outras parcerias históricas, como Art Farmer e Benny Golson ou Freddie Hubbard e Wayne Shorter, na época dos Jazz Messengers.

Dando uma acalmada no clima, é a vez da introspectiva “Adriatica”, balada classuda que em algumas passagens lembra “In a Sentimental Mood”, do eterno Duke Ellington. Heath transborda emotividade e Dusko, mais uma vez com a surdina, evoca Miles, com o uso de poucas notas, geralmente alongando-as ao máximo, criando um efeito ao mesmo tempo lírico e distante. A destacar, ainda, o formidável trabalho de Roker, cuja elegância percussiva é suficiente para inscrevê-lo entre os mais refinados bateristas de todos os tempos.

A animada “NYC” é uma bela homenagem do trompetista a Nova Iorque. Dusko utiliza a surdina com bastante competência e seu fraseado é ágil (embora não exatamente veloz) e envolvente. Pianista formado na melhor escola do bebop, Flanagan desenvolve o tema de maneira bastante convincente, adicionando-lhe histamina e frescor. A formidável pulsação de Roker, incansável, também merece ser ouvida atentamente.

“Blues Valse” tem uma áurea misteriosa e lembra os trabalhos de Donald Byrd do início dos anos 60, quando manteve uma alentada parceria com o extraordinário Pepper Adams. Gojkovich é dono de uma técnica invulgar e seu domínio do flugelhorn é absoluto. Ele parece não ter pressa alguma, preferindo escolher as notas com parcimônia e esmero, como se as esculpisse pacientemente. Sua interação com a sessão rítmica, em especial com Flanagan, é quase telepática.

Para encerrar, mais um tema rápido, o hard bop “Teamwork Song”, título que traduz com perfeição a sintonia existente entre os músicos. Um ótimo trabalho de equipe, onde todos brilham, trocam informações e se divertem em igual medida. Gojkovich tem uma atuação discreta, ocupando-se mais do acompanhamento, enquanto a performance de Heath, maior destaque individual nessa faixa, é ensolarada. Ele transita entre os registros graves e os agudos com tamanha autoridade que dá a entender que tocar sax tenor é uma das tarefas mais simples do mundo. O excepcional trabalho de Flanagan, introduzindo generosas pitadas de blues ao tema, é outro ponto alto.

O trompetista ainda gravaria, em 1996, “Soul Connection: Vol. 2”, desta feita liderando uma big band, para quem compôs dos temas e elaborou todos os arranjos. Outros trabalhos de destaque em sua discografia são “Bebop City”, de 1995 (a seu lado, os saxofonistas Ralph Moore e Abraham Burton, o pianista Kenny Barron, o contrabaixista Ray Drummond e o baterista Alvin Queen), e “Balkan Blue”, álbum duplo de 1996, no qual Dusko se apresenta em dois contextos distintos: no primeiro álbum, ele toca com o quinteto do saxofonista italiano Gianni Basso  e no segundo ele recebe os músicos da orquestra da North German Radio (NDR), sendo que aqui os arranjos ficaram sob a responsabilidade do amigo Palle Mikkleborg.

Em 2004 Dusko voltou a gravar com uma orquestra, desta feita a “All Star Big Band” de Belgrado, no disco “A Handful of Soul”. Ele também fez incursões pela música brasileira, nos discos “Samba do Mar” (2003) e “Samba Tzigane”, de 2008, seu álbum mais recente. O repertório dos dois é essencialmente composto de clássicos da bossa nova como “Insensatez”, “Chega de saudade”, “O grande amor” e “Este seu olhar”, sendo que o segundo conta com a participação do flautista brasileiro Márcio Tubino.

Durante as comemorações do aniversário de 75 anos, Gojkovich realizou um concorrido concerto em Belgrado. Atualmente, além da big band e do trabalho como músico e arranjador freelancer, ele costuma se apresentar pelo mundo à frente do “Straight Six”, banda de orientação hard-bopper nos moldes dos Jazz Messengers, integrada por Joerg Reiter (piano), Marc Abrams, (contrabaixo), Bruno Castellucci (bateria), Joe Gallardo (trombone) e Heinz Hermann (sax tenor e flauta).


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