Amigos do jazz + bossa

domingo, 30 de maio de 2010

FANGIO, SENNA SCHUMACHER E... JOHNNY GRIFFIN?


Reza a lenda do jazz que, em meados dos anos 40, Lionel Hampton precisava, desesperadamente, de um tenorista para a sua orquestra. O titular, Jay Peters, havia sido convocado para o serviço militar e, com uma série de concertos já agendados, seria impossível ao vibrafonista esperar muito tempo.


A solução foi contratar, meio que às cegas, um jovem saxofonista de apenas 17 anos e que havia concluído o ensino médio na semana anterior. Apesar das ótimas referências, o bandleader jamais havia ouvido o garoto tocar. Feito um breve contato por telefone, Hampton mandou-lhe apenas o dinheiro da passagem, pedindo-lhe que fosse a Toledo, Ohio, onde a orquestra se apresentaria na noite seguinte.


Chegando ao local a poucos minutos da apresentação, o empolgado rapaz se dirigiu até o local em que os outros músicos faziam o aquecimento e se apresentou:


- Sr. Hampton, eu sou John Griffin, o novo saxofonista da orquestra.


Ao que Hamp retrucou:


- Tudo bem meu filho, junte-se à rapaziada. Cadê o seu tenor?


E o subitamente apavorado Griffin limitou-se a gaguejar:


- Te-te-te-tenor? Ma-ma-ma-mas eu não toco sax tenor. Eu toco sax alto!


Bem, de fato não se sabe se o conteúdo da conversa foi esse mesmo ou se incluiu uma série de impropérios por parte do desesperado Hampton. O certo é que Griffin, literalmente pôs a viola no saco (no caso, o sax alto) e voltou para Chicago, sua cidade natal, onde, não se sabe como, arranjou um velho saxofone Conn.


Mesmo sem jamais haver tocado o sax tenor antes, dedicou-se com tamanha seriedade ao aprendizado que em menos de uma semana já dominava completamente o instrumento. Poucos dias depois, apresentou-se novamente a Hampton, fez uma rápida exibição e pronto: um dos mais talentosos saxofonistas de todos os tempos estava mais do que pronto para iniciar a sua brilhante carreira!


O episódio dá bem uma idéia da tenacidade e da dedicação de John Arnold Griffin III à causa do jazz. Nascido em 24 de abril de 1928, o garoto cresceu em um ambiente em que se respirava música: a mãe era pianista e na igreja local e o pai era trompetista amador. Em casa, além dos tradicionais gospels e spiritual, a família ouvia incessantemente blues e jazz. O legendário baixista Milt Hinton, amigo da família, costumava aparecer na casa dos Griffin e encantava o pequeno Johnny com suas deliciosas histórias sobre os grandes nomes do jazz.


Pequeno, no caso de Griffin, não é força de expressão: dono de um físico franzino, ele compensaria a baixa estatura com uma assombrosa capacidade de tocar o saxofone a uma velocidade supersônica, o que lhe valeu o apelido de Little Giant e, posteriormente o título de “saxofonista mais rápido do mundo”. Mas, embora tivesse como ídolos Ben Webster, Don Byas e Johnny Hodges, o saxofone não foi o primeiro instrumento a cair nas graças de Johnny: aos seis anos começou os estudos de piano e, um pouco mais tarde, resolveu aprender guitarra, instrumento que tocava na igreja freqüentada pela família.


Aos treze, recebeu as primeiras lições de clarinete na DuSable High School, tendo como primeiro professor Walter Dyett, renomado violinista que também era o diretor musical da escola e que foi professor de jazzistas de peso, como Gene Ammons, Nat King Cole, Dinah Washington, Richard Davis, Von Freeman, John Gilmore, Eddie Harris, Johnny Hartman, Benny Green, Clifford Jordan, Julian Priester e Wilbur Ware, entre muitos outros. Pelas mãos do rigoroso Dyett, Griffin passou por praticamente toda a família dos sopros, incluindo o oboé e a trompa, até se decidir pelo sax alto.


Embora sua formação musical fosse bastante eclética, Griffin sentia que o jazz de então estagnava e não propunha nada de novo. O swing dava sinais de exaustão e não havia no horizonte uma forma de expressão musical que traduzisse as inquietações de toda uma geração de jovens instrumentistas. A “revelação” veio ao ouvir uma versão, em um 78 rotações, de “Hootie Blues”, com a orquestra de Jay McShann. O saxofonista tocava absolutamente diferente de qualquer outra coisa que o jovem Griffin já tivesse ouvido e a identificação com aquela música foi imediata: nascia ali a admiração incondicional por Charlie Parker. As sementes do bebop estavam plantadas e haveriam de florescer em breve.


Com apenas 15 anos, Griffin iniciava sua vida profissional tocando com o bluesman T-Bone Walker, em diversos clubes de Chicago. Foi por conta do trabalho com Walker que Griffin foi convidado para trabalhar na orquestra de Lionel Hampton, em junho de 1945. O saxofonista permaneceria na big band até julho de 1947 e embora tenha participado de inúmeras gravações para selos como MCA e Decca, uma, em especial, fez um estrondoso sucesso: um 78rpm, de Bing Crosby, acompanhado pela orquestra de Hamp, com “Pinetop’s Boogie Woogie” e com “On The Sunny Side Of The Street”.


Após deixar a orquestra de Hampton, Griffin mudou-se para Nova Iorque, onde fundou um sexteto, ao lado do ex-companheiro Joe Morris. A banda era atração fixa do clube Café Society e incluía o trombonista Matthew Gee, o pianista Elmo Hope, o baixista Percy Heath e o baterista Philly Joe Jones. Por intermédio de Hope, Griffin foi apresentado a Bud Powell e Thelonious Monk, que se tornariam grandes amigos do saxofonista.


No final da década de 40, Griffin tocou com Tony Mayo, Arnett Cobb e Jo Jones, até ser convocado para servir o exército, em 1951. Inicialmente, Griffin e mais alguns oficiais negros seriam destacados para combater na Guerra da Coréia. Contudo, a sorte bafejou o Little Giant que, após uma apresentação com a orquestra do exército, foi destacado para integrar uma orquestra baseada no Havaí, porque esta precisava de um oboísta. Desse modo, ele escapou de ir para o front e ter o mesmo destino que seus ex-companheiros de batalhão, quase todos mortos em combate.


Retornando à vida civil em 1953, Griffin passou alguns anos em Chicago, voltando a morar em Nova Iorque em março de 1957, a convite de Art Blakey, para integrar os seus Jazz Messengers, em uma formação que incluía Spanky DeBrest, Sam Dockery, Bill Hardman e Jackie McLean. Um dos grandes álbuns dos Messengers, “A Night In Tunisia” (Atlantic, 1957), foi gravado nesse período.


No ano anterior, havia gravado para a Blue Note o seu primeiro álbum como líder, chamado “Introducing Johnny Griffin”. Pela mesma gravadora, lançaria em 1957 o antológico “A Blowing Session”, ao lado de uma seleção de feras que incluía Lee Morgan, John Coltrane, Hank Mobley, Wynton Kelly, Paul Chambers e o patrão Art Blakey.


Paralelamente, desenvolveu uma prolífica carreira como freelancer e vieram, então, participações em álbuns de gente como Junior Mance, Wilbur Ware, Clark Terry, Wynton Kelly, Blue Mitchell, Ira Sullivan, Chet Baker, Machito, Philly Joe Jones, Nat Adderley, Ahmed Abdul-Malik, Randy Weston, Tadd Dameron, Wes Montgomery e muitos mais. Por seus conjuntos passaram figuras importantes, como Donald Byrd, Art Taylor, Pepper Adams, Barry Harris, Ron Carter, Harold Mabern, e incontáveis outros.


No início de 1958, Griffin uniu-se ao quarteto do pianista, e velho amigo, Thelonius Monk, substituindo John Coltrane. Demonstrando ser um saxofonista de rara habilidade e bastante versátil, Griffin adequou-se à perfeição às sinuosas peculiaridades harmônicas de Monk e a parceria rendeu alguns álbuns importantes, como “Misterioso” e “Thelonious In Action: Recorded At The Five Spot Café”, ambos pela Riverside em 1958.


No final daquele ano, retornou a Chicago, onde se apresentava regularmente em clubes e boates locais, embora não deixasse de vir a Nova Iorque, a fim de participar de gravações, seja como líder, seja como sideman. Um dos seus discos mais extraordinários – embora dos menos conhecidos – é “Way Out!”, gravado nos dias 26 3 27 de fevereiro de 1958.


Secundado pelos fabulosos Kenny Drew (piano), Wilbur Ware (baixo) e Philly Joe Jones (bateria), o disco encontra Griffin no auge de sua forma, esbanjando vitalidade, talento e criatividade. Todas as faixas, à exceção de “Cherokee”, são de autoria de compositores de Chicago.


O blues “Where Is Your Overcoat, Baby?” abre os trabalhos com uma atuação soberba de Ware, responsável por um dos mais belos solos do disco, atacando as cordas do seu contrabaixo com ferocidade e arrojo. O piano de Drew aqui é inquieto, arisco, metálico, aproximando-se das peripécias monkianas. Jones, como sempre, mantém uma relação tórrida e orgânica com a bateria, executando passagens marciais com extrema competência. Griffin não fica atrás e hipnotiza os ouvidos com uma abordagem envolvente, mestrando que não existe, necessariamente, incompatibilidade entre velocidade e sutileza.


Improvisador nato, o líder exibe a sua técnica colossal em “Hot Sausage”, de Jodi Christian. Não é à toa que o mestre Pedro “Apóstolo” Cardoso assim o define: “Johnny Griffin foi saxofonista de lirismo bem incisivo, com som elegante, cálido e ainda assim com acentuada dose de “acidez”, fogoso e brilhante. O “Little Giant” foi executante de tessitura plena de contrastes, suportada por uma técnica altamente superior à média dos tenoristas, que nos faz descobrir toda a dimensão da sonoridade do sax tenor”.


“Sunny Monday”, de John Hines, é uma balada nada convencional, impregnada de elementos de valsa mas com inegável apelo ao blues em várias passagens. O sax do líder reina absoluto, às vezes soando indócil, às vezes romântico, mas sempre com muita fluência. Drew entrega um solo arrebatador, talvez o mais lírico do álbum, enquanto Jones se encarrega de mostrar porque é considerado um mestre na arte da bateria.


“Cherokee” sempre foi considerada um verdadeiro desafio aos mais habilidosos intérpretes, especialmente por conta das interpretações de Charlie Parker, que são um verdadeiro paradigma do bebop. A versão de Griffin é de um dinamismo vulcânico. Com o seu swing arrebatador, sua velocidade inacreditável e sua capacidade ímpar de esmiuçar cada possibilidade harmônica de um tema, o saxofonista se impõe como uma das vozes mais instigantes do jazz. Seus solos são caudalosos, magnéticos, intensos, devastadores. Destaque também para a estupenda atuação de Jones, capaz de transpor para a bateria toda a inquietude e a ousadia do líder.


Mais um tema de Hines, “Terry’s Tunes” é um blues em tempo médio, cheio de groove. A facilidade com que Griffin alterna os graves e os agudos e os seus inacreditáveis malabarismos sonoros deixam o ouvinte boquiaberto. O articulado Drew é outro músico com enorme intimidade com a sintaxe do blues e também com a tradição pianística do stride. O baixo de Ware é arredio, malandro, consegue envolver sem fazer nenhum esforço – coisa que só os grandes dentre os grandes são capazes de fazer – e o seu diálogo com Griffin, no estilo chamado e resposta, é um dos momentos mais emocionantes do álbum.


“Little John”, que encerra o disco, é uma típica quase-balada, daquelas que se ouve estalando os dedos e balançando a cabeça. A técnica superior de Griffin se revela em sua inteireza, com suas típicas alterações de registro, passando dos graves aos agudos em fração de segundo, sem perder a cadência. Drew, seja no acompanhamento, seja no solo repleto de blues, é um pianista que concilia o uso inteligente dos espaços com um swing devastador. Philly e Ware, cujo solo é primoroso, transmitem segurança e coesão.


Entre 1960 e 1962, Griffin manteve um quinteto com o também tenorista Eddie Lockjaw Davis, que gozou de grande popularidade e gravou alguns ótimos álbuns, para selos como Fantasy, Jazzland e Prestige. Destaque para o fabuloso “Looking At Monk”, de 1961, onde os saxofonistas prestam tributo ao gênio composicional de Thelonious Monk. Com eles, estavam Junior Mance (piano) e dois ex-colaboradores de Monk: Larry Gales (baixo) e Ben Riley (bateria).


Em 1963, o Little Giant decidiu, assim como muitos outros jazzistas da época, se mudar para a Europa, estabelecendo-se, primeiramente, em Paris. Contribuíram para a decisão o execrável racismo que ainda contaminava a sociedade norte-americana, problemas de ordem familiar e fiscal, além do descontentamento com o espaço que o chamado free jazz vinha ganhando, o que reduzia ainda mais as já rarefeitas oportunidades de trabalho nos Estados Unidos.


Griffin permaneceu por cerca de seis meses como atração fixa do clube Blue Note, em Paris. A partir daí, realizou concertos por toda a Europa, incluindo Alemanha, Holanda, Bélgica, Itália, Espanha, Suécia, Dinamarca, Inglaterra e outros. Em 1964 tocou com Bud Powell e no ano seguinte fez uma série de apresentações ao lado de Wes Montgomery.


Sua carreira se consolidava e ele tocou com músicos europeus de renome, como os contrabaixistas Pierre Michelot, Guy Hayat e Niels-Henning Ørsted Pedersen, os pianistas Martial Solal, Francy Boland, Franco D’Andrea e Tete Montoliou e os bateristas Alex Riel, Daniel Humair e Jacques Gervais e os trompetistas Dusko Gojkovic e Palle Mikkelborg. Também trabalhou com outros músicos expatriados, como Jimmy Woode, Art Taylor, Benny Bailey, Horace Parlan, Idrees Sulieman, Dexter Gordon, Duke Jordan e muitos outros.


Em 1967 integrou-se à Fancy Boland – Kenny Clarke Big Band, com quem gravou diversos álbuns. No mesmo ano, acompanhou o amigo Thelonious Monk em uma excursão européia. Em 1970, nova mudança, desta feita para a cidade de Bergambacht, na Holanda, onde se casaria com a holandesa Miriam. Alguns anos mais tarde, o irrequieto Griffin retornaria à França, fixando-se, em definitivo, em Mauprevior uma pequena cidade localizada a cerca de 400 quilômetros de Paris.


A participação em festivais era uma constante na vida do saxofonista, que, em 1975, fez apresentações memoráveis em Montreux, com as bandas de Dizzy Gillespie e Count Basie. Antibes, Umbria, Montreal, Ljubliana, Atlanta, Marciac foram outros festivais importantes, nos quais Griffin deixou a sua marca. Ainda durante os anos 70, ele resgatou a antiga parceria com Eddie Lockjaw Davis. Sua extensa discografia está registrada em selos como EmArcy, Galaxy, Black Lion, Storyville, Gitanes, Verve, SteepleChase, além, é claro, dos álbuns clássicos para a Prestige, Riverside e Blue Note.


Em 1978, fez um retorno triunfal aos Estados Unidos, com apresentações que foram sucesso de público e crítica, especialmente por ocasião dos concertos dados no Carnegie Hall e no Ann Arbor Jazz Festival, ao lado de Dexter Gordon. A partir daí, Griffin voltou todos os anos ao país natal, sempre por ocasião do seu aniversário, no mês de abril, apresentando-se, religiosamente, em Chicago e Nova Iorque, mas sempre retornando ao que chamava de “meu amado campo francês”.


Dono de uma personalidade afável e bem humorada, Griffin era um exímio contador de estórias e era considerado pela cantora Dee Dee Bridgewater, que também reside na França, como “um verdadeiro anjo do jazz”. Esse anjo retornou ao convívio celestial no dia 25 de julho de 2008, aos 80 anos, após sofrer um ataque cardíaco. Sua última apresentação aconteceu quatro dias antes, no dia 21 de julho, em Hyéres, mas a sua obra está imortalizada nas centenas de gravações que ele deixou, boa parte delas em catálogo e disponível nas melhores casas virtuais do ramo.

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quarta-feira, 26 de maio de 2010

MAMA ÁFRICA


O jazz nasceu da amálgama entre diversos ritmos afro-americanos, como as work songs, os spirituals, o blues e o ragtime – este, por sua vez, foi concebido sob forte influência da música européia. Aliás, a música européia – assim como a caribenha – também pode ser encontrada na origem remota do jazz, seja pela influência que ritmos como o minueto, a polca e a valsa exerceram sobre os primeiros jazzistas, seja pela utilização, dentro do ambiente do jazz, de instrumentos intimamente ligados à tradição da música erudita, como o piano e o cornet (espécie de precursor do trompete).


Geograficamente, Nova Orleans, que no início do século XX era um importante centro de comércio do sul dos Estados Unidos, é considerada o berço do jazz. A cidade, fundada em 1718 por Jean Baptiste le Moyne e localizada às margens do Rio Mississipi, era a capital da Luisiana, até então colônia francesa na América do Norte e que, por conta do Tratado de Paris, passou ao domínio espanhol em 1763. A presença de franceses, espanhóis, ingleses e afrodescendentes fez dali um caleidoscópio de culturas, que interagiam e assimilavam elementos umas das outras, como em nenhum outro lugar dos Estados Unidos.


Poucos músicos se dedicaram tanto à compreensão e ao estudo das raízes africanas do jazz quanto Randolph Edward Weston. Pesquisador incansável e dono de uma das personalidades mais singulares do universo jazzístico, Randy Weston pertence àquela raríssima estirpe de artistas que transcende as fronteiras da música como forma de expressão artística. Para esse verdadeiro esteta do piano, a música é mais que uma forma de arte: é uma maneira de ver o mundo, de expressar os sentimentos de um povo e uma das mais poderosas formas de comunhão entre os homens.


Nascido em uma família extremamente ligada à música – é primo do pianista Wynton Kelly – Weston veio ao mundo no dia 06 de abril de 1926, em Nova Iorque. Seus pais eram imigrantes jamaicanos e moravam em Bedford-Stuyvesant, um distrito do Brooklyn, onde o garoto cresceu em uma vizinhança cercada de futuros astros do jazz, como Max Roach, Ahmed Abdul-Malik, Cecil Payne, Duke Jordan, Ray Copeland e Eddie Heywood, entre outros.


O pai, Frank Weston, era um barbeiro apaixonado pelo jazz e pela música caribenha, que costumava ouvir em casa, para deleite do pequeno Randy, que se dividia entre o desejo de ser jogador profissional de basquete e a carreira musical. Frank também costumava levar o filho para assistir às grandes orquestras que se apresentavam no Harlem, em especial as de Fletcher Henderson e Duke Ellington, e essas apresentações sedimentaram a opção do garoto pela música. O interesse pela história da África também lhe foi despertado pelo pai, que o estimulava a conhecer mais sobre suas origens e sobre a cultura africana.


Graças à influência do pai, o garoto começou a ter as primeiras aulas de piano clássico, ainda na infância. A transição para o jazz foi algo bastante natural para quem tinha Coleman Hawkins, Fats Waller, Duke Ellington e Count Basie como verdadeiros heróis. Posteriormente, Weston conheceria Thelonious Monk, que acabaria por se tornar amigo da família – ele morava nas cercanias e costumava visitar o apartamento dos Weston – e sua maior influência musical.


Os anos quarenta, quando Monk, Bird e Dizzy capitaneavam a chamada “revolução do bebop”, representaram um momento bastante especial para o garoto negro e bastante orgulhoso de suas origens africanas. Era a primeira vez que os negros reclamavam para a si a paternidade do jazz e lhe impunham uma nova e desafiadora direção e Weston estava bem ali, no meio dos acontecimentos. Sempre ouvira seu pai lhe dizer: “Você é um africano nascido na América”.


O bebop, para além da afirmação da cultura afro-americana, tinha a importância simbólica de ser uma maneira de se comunicar com os seus ancestrais. Randy assistia com freqüência a concertos e jams nos clubes nova-iorquinos, cada vez mais convencido de que seu futuro estava intimamente ligado à música – e não havia outro tipo de música que mais lhe tocasse a alma que aquela nova e revolucionária forma de jazz.


Em 1945, ainda durante a II Guerra Mundial, Weston foi convocado e serviu ao exército, tendo chegado ao posto de sargento, servindo em bases no Japão e nas Filipinas. No ano seguinte, ao retornar à vida civil, ele abriu, juntamente com o pai, um restaurante no Brooklyn, freqüentado pela nata dos bopperes da época, e continuou seus estudos musicais. A carreira como pianista profissional somente se consolidaria no início da década seguinte, primeiramente em bandas de rhythm’n blues bands, como as de Bull Moose Jackson, Frank “Floorshow” Culley e Eddie Cleanhead Vinson.


A partir de 1951, formou seus primeiros trios e começou a trabalhar como atração fixa em importantes clubes de Nova Iorque, como o Cafe Bohemia, o Birdland, o Five Spot e o Playroom, de propriedade do compositor e também pianista Cy Coleman. Em 1953 foi convidado por Kenny Dorham a se juntar ao seu grupo e no mesmo ano atuou, por algum tempo, sob a liderança do velho amigo Cecil Payne.


Em 1954, passou uma temporada como atração fixa do clube Music Inn, em Lenox, Massachusetts, sendo que durante o dia trabalhava como cozinheiro em um restaurante local, a fim de complementar o orçamento doméstico. No mesmo ano, foi contratado pela Riverside Records e gravou o seu primeiro álbum como líder, chamado “Cole Porter In a Modern Mood”. O álbum teve ótima repercussão junto à crítica e em 1955 Weston foi eleito pianista revelação pela Down Beat Magazine.


Ao mesmo tempo, suas composições, em especial “Saucer Eyes”, “Pam's Waltz”, “Gingerbread”, “Little Niles” “Berkshire Blues” e “Hi-Fly” começavam a ser conhecidas no meio jazzístico e seriam gravadas por músicos como Cecil Payne, Hank Jones, Cannonball Adderley, Monty Alexander, Kenny Burrell, Ron Carter, Dexter Gordon, Jimmy Heath, Oscar Pettiford, Max Roach, Mel Tormé e, suprema honraria, pelo velho ídolo Coleman Hawkins.


Também em meados dos anos 50, Weston iniciou uma profícua parceria musical com a trombonista Melba Liston, que resultaria em uma profusão de álbuns, como “Little Niles” (Blue Note, 1958), “Destry Rides Again” (United Artists, 1959), “Highlife: Music From the New African Nations” (Colpix, 1963) e “Tanjah” (Polydor, 1973), por exemplo. Além das gravadoras já mencionadas, o pianista lançou álbuns por selos como Riverside, Milestone, Sunnyside, Denon, Roulette, CTI, Jazzland e Enja.


Ao longo da carreira, Weston atuou ao lado de alguns dos nomes mais importantes do jazz, seja na qualidade de líder, seja como sideman. Dentre eles, destacam-se Dizzy Gillespie, Art Blakey, Johnny Coles, Ray Copeland, Idrees Sulieman, Charles Mingus, Johnny Griffin, Charlie Persip, Slide Hampton, Elvin Jones, Coleman Hawkins, Freddie Hubbard, Julius Watkins, Wilbur Little, Pharoah Sanders, Booker Ervin, Clifford Jarvis, Roy Haynes, David Murray e muitos outros.


Em sua discografia, um álbum chama especial atenção: “Get Happy With The Randy Weston Trio”, onde o pianista está acompanhado por Sam Gill (contrabaixo) e pelo baterista Wilbert Granville Theodore Hogan, mais conhecido nos meios jazzísticos como G. T. Hogan. Gravado para a Riverside no estúdio do mago Van Gelder, em Hackensack, no dia 21 de março de 1956, o álbum revela um músico em pleno amadurecimento, mas nem um pouco intimidado com a responsabilidade.


Ainda depurando o estilo percussivo e cheio de dissonâncias que iria caracterizar a sua obra a partir dos anos 50, Weston apresenta um repertório eclético, que inclui composições próprias, standards, ritmos caribenhos e até um tema baseado no folclore russo. A primeira faixa, que dá nome ao álbum, é uma saborosa versão de “Get Happy” (Harold Arlen e Ted Koehler), na qual Weston faz uso vigoroso das notas graves, mas não deixa de imprimir ao tema uma elevada dose de swing.


Em seguida, vem o calipso “Fire Down There”, que posteriormente Sonny Rollins tomaria emprestado do folclore caribenho para criar a sua famosa “St. Thomas”. Aqui a percussão de Hogan merece os maiores encômios. O standard “Where Are You” recebe uma interpretação bastante emotiva, sombria em alguns trechos, traduzindo o desespero de alguém em busca da amada mas que tem a certeza de que ela não está mais lá.


“Under Blunder” é um blues assimétrico e cheio de dissonâncias, de autoria do líder. A influência de Monk é bastante evidente, tanto no estilo percussivo que Weston usa em sua execução como na própria estrutura harmônica do tema, com direito a um ótimo trabalho de Gill.


O baixista também é o grande destaque da versão arrebatadora de “Dark Eyes”, colhida do folclore russo e que é executada uma energia contagiante. “Summertime”, talvez o standard mais gravado de todos os tempos, ganha uma versão calcada no blues, com uma atmosfera lúgubre, que remete aos rigores do trabalho nos campos de algodão do Sul dos Estados Unidos.


Mais uma vez o blues está presente, em “Bass Knows”, outra composição de Weston. Como de hábito, o pianista foge das formas tradicionais e ortodoxas do blues, temperando a sua interpretação personalíssima com elementos de extrema ousadia. Um tema cheio de singularidades e alternâncias harmônicas, certamente um dos mais intrigantes do álbum.


O maestro Duke Ellington também é reverenciado, em uma calorosa interpretação de sua “C Jam Blues”. Aqui a integração do trio é total, merecendo especial atenção o excepcional trabalho de Hogan com os pratos e a velocidade inebriante de Weston. Gill mantém-se na retaguarda, mantendo intacta a coesão do grupo. A próxima faixa, aliás, é do próprio Gill, a delicadíssima “A Ballad”, um poema sonoro rico em ternura e encantamento. Encerrando os trabalhos, a vibrante “Twelfth Street Rag”, com sua estrutura de ragtime com pegada bop, ajuda a fazer deste disco uma das melhores maneiras de se mergulhar no personalíssimo universo de Randy Weston.


Nos anos 60, Weston incorporou, definitivamente, elementos da música africana em seu repertório. Compôs a suíte “Uhuru Africa”, que contou com a participação do poeta Langston Hughes. Seu álbum “Highlife: Music From the New African Nations”, com arranjos de Melba Liston e com forte influência da música do Caribe, recebeu muitos elogios por parte da crítica especializada.


Em 1961, realizou a sua primeira turnê pela África, tendo visitado a Nigéria e em 1963, repetiu a dose. Voltou ao continente africano em 1967, a convite do Departamento de Estado dos Estados Unidos e, ao chegar ao Marrocos, destino final da excursão, Weston decidiu estabelecer-se naquele país. A primeira providência foi abrir um clube de jazz em Tânger, chamado “African Rhythms Club” e que manteve em funcionamento entre 1967 e 1972.


No Marrocos, mergulhou fundo no estudo da tradição musical africana, inclusive com a colaboração de músicos da etnia Gnawa. Sua curiosidade acerca das raízes da música o levou a realizar pesquisas em países como Togo, Costa do Marfim, Gana, Libéria e Tunísia. Também continuou a se apresentar em festivais ao redor do mundo, muitas vezes acompanhado pelo filho, o baterista Niles Weston. Em meados dos anos 70, mudou-se para a Europa, fixando residência em Paris.


Nos anos 80, Weston retornou ao Marrocos, onde passou mais alguns anos, mas jamais abandonou os palcos, fazendo inúmeras apresentações, ao lado do baixista Jamil Nasser e do baterista Idris Muhammad. Embora tenha gravado relativamente poucos álbuns, pelo menos dois merecem ser destacados: “Well, You Needn’t” (Verve, 1989), um emocionado tributo ao ídolo Thelonious Monk, e “The Spirits Of Our Ancestors” (Verve, 1991), que contou com a perticipação de ninguém menos que Dizzy Gillespie.


As homenagens recebidas ao longo dos últimos anos são praticamente incontáveis. Em 1986, o Brooklyn Academy of Music promoveu a Randy Weston Week, uma semana de concertos em sua homenagem. Em 1989, foi convidado para ser artista residente no New England Conservatory. Foi indicado compositor do ano, pela Downbeat Magazine em 1994, 1996 e 1999. Em 1997 recebeu, do governo francês, o título de Cavaleiro da ordem das Artes e das Letras. Em 1999 foi convidado para atuar como músico residente na Universidade de Harvard, com direito a concertos e palestras para estudantes e professores.


Em 2001, recebeu o honroso título de Master Of Jazz, concedido pela National Endowment for the Arts. Em 2006 o Brooklin College lhe concedeu o título de Doutor Honoris Causae. Outro momento emocionante foi a participação no concerto que marcou a inauguração da Biblioteca de Alexandria, no Egito, em 2002. Naquele mesmo ano, Weston se apresentou, juntamente com músicos Gnawa na Catedral de Canterbury.


Weston continua ativo e, embora já tenha ultrapassado a casa dos 80 anos, continua inquieto e desafiador. Seu interesse pela música africana não arrefeceu e a sua influência perante as novas gerações de jazzistas é cada vez maior. Suas palavras podem traduzir melhor a importância de sua devoção à causa da música: “Onde quer que eu vá, tento explicar que, se você ama a música, tem que entender de onde ela veio. A música é construída a partir de valores espirituais. Em outras palavras, não pode existir civilização sem música. As sociedades africanas tradicionais possuem músicas para cada atividade e essa tradição chegou até a América com os escravos. Assim, em qualquer lugar que estajamos – Cuba, Brasil ou Jamaica – a África está presente. Não importa o nome que se dê à música – blues, bossa nova, salsa, samba – todos esses ritmos são contribuições africanas à civilização ocidental. Se você retirar os elementos africanos da música, você não terá nada”.


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domingo, 23 de maio de 2010

MOMENTOS ROUBADOS



O saxofonista, clarinetista, maestro, arranjador, compositor e bandleader Oliver Edward Nelson veio ao mundo no dia 04 de junho de 1932, na cidade de Saint Louis, estado do Missouri. A música era algo bastante natural à família Nelson: o avô materno, de ascendência portuguesa, era músico amador e tocava diversos instrumentos, um de seus irmãos mais velhos, Eugene Nelson, também era saxofonista e havia integrado a orquestra de Cootie Williams, durante a década de 40 e sua irmã, Leontine Nelson, era cantora e pianista. O piano, aliás, foi o primeiro instrumento do pequeno Oliver, cujas lições começou a receber quando tinha apenas seis anos. Não por acaso, seu primeiro ídolo foi Willie “The Lion” Smith.

Ao onze, encantado com a maravilhosa sonoridade que Johnny Hodges impunha à orquestra de Duke Ellington, decidiu trocar o piano pelo saxofone alto – embora no futuro também fosse se destacar no sax soprano e no tenor. Paralelamente aos estudos, Nelson começou bastante cedo a carreira profissional, tocando em diversas bandas da cidade natal. A partir de 1947, tocaria com a Jeter-Pillars Orchestra e com as orquestras de George Hudson, Nat Towles e Eddie Randall.

A primeira grande chance veio em 1950, quando foi contratado para tocar e elaborar os arranjos da orquestra de Louis Jordan, com quem faria a sua primeira gravação, em 1951. A parceria foi desfeita em 1952, por conta da convocação de Nelson pela marinha, onde fez parte da orquestra e serviu em bases no Japão e na Coréia do Sul. Após sair da corporação, em 1954, Nelson decidiu retornar a Saint Louis, a fim de estudar teoria musical e arranjo na Washington University. Pouco depois, entraria para a Lincoln University, em Jefferson City, onde se graduaria em composição, no ano de 1958.

Durante o período na universidade, a segregação racial ainda era bastante intensa no sul dos Estados Unidos e os restaurantes eram fechados aos alunos negros. Por essa razão, Nelson era obrigado a almoçar dentro do carro. Alguns anos depois, já considerado um dos mais importantes compositores e arranjadores do país, Nelson voltaria à Lincoln University como professor convidado, quando a chaga da segregação racial, felizmente, já havia sido definitivamente abandonada.

Casado com Eileen Mitchell e com um filho pequeno para criar (Oliver Nelson Jr., que no futuro seria músico também), Nelson resolveu mudar-se para Nova Iorque, em busca de melhores possibilidades de trabalho. Ali, integrou-se às orquestras de Erskine Hawkins e Wild Bill Davis, além de ter sido contratado como arranjador do célebre Apollo Theater, no Harlem. Em 1959, tocou por alguns meses com a big band de Louie Bellson e começou a liderar seus próprios conjuntos.

Entre 1960 e 1961, Nelson fez parte da orquestra de Quincy Jones, tendo excursionado pelos Estados Unidos e pela Europa com freqüência. Também nessa época, tocou brevemente nas orquestras de Duke Ellington (sax alto) e Count Basie (sax tenor), e elaborou os arranjos para big band do álbum “Trane Whistle”, de Eddie Lockjaw Davis. Outro trabalho que lhe deu enorme notoriedade foi a feitura dos arranjos do álbum “Bashin”, de Jimmy Smith, em 1962.

Como acompanhante, atuou com, entre outros, Cannonball Adderley, Etta James, Gene Ammons, Gary McFarland, Sonny Stitt, Mundell Lowe, Art Farmer, Joe Williams, Nancy Wilson, J. J. Johnson, Della Reese, Red Garland e Sonny Rollins sendo que em muitos dos álbuns desses artistas Nelson também era o responsável pelos arranjos – e nesse metier, Nelson era praticamente imbatível, com trabalhos para, entre outros, Wes Montgomery, Billy Taylor, Stanley Turrentine, Benny Golson, Louis Armstrong, Johnny Hartman, Ray Brown, Milt Jackson, Jimmy Rushing, Pee Wee Russell e muitos mais.

Entre 1959 e 1961, Nelson gravou diversos discos para a Prestige, tendo a seu lado acompanhantes da estatura de Kenny Dorham, Eric Dolphy, Roy Haynes, Ray Bryant, Art Taylor, Richard Wyands, King Curtis e Jimmy Forrest. Apesar da boa receptividade desses álbuns, a maior parte da crítica e do público considera o álbum “The Blues And The Abstract Truth” (Impulse, 1961) a sua obra-prima. De fato, trata-se de um álbum verdadeiramente indispensável, que apresenta a versão definitiva do standard “Stolen Moments” (de sua autoria e que havia sido gravado no ano anterior por Eddie Lockjaw Davis) e traz performances extraordinárias de Bill Evans, Freddie Hubbard e Eric Dolphy.

Mas o álbum sobre o qual se deseja falar é o bem menos conhecido e muito menos incensado “Screamin’ The Blues”. Gravado para a Prestige no dia 27 de maio de 1960, no Estúdio Van Gelder, o álbum apresenta Nelson à frente de um sexteto composto, ainda, por Eric Dolphy (sax alto, clarinete baixo e flauta) Richard Williams (trompete), Richard Wyands (piano), George Duvivier (contrabaixo) e Roy Haynes (bateria). Trata-se do primeiro de uma série de memoráveis encontros entre Nelson e o ultravirtuose Eric Dolphy e os resultados são, sob qualquer ponto de vista, notáveis.

O álbum faz, basicamente, uma releitura do blues, dando-lhe uma abordagem contemporânea, mas sem abrir mão do feeling. A tensão entre modernidade e tradição está bastante visível – ou melhor, audível – na faixa de abertura, que também dá nome ao álbum. Em seus 10min58seg de pura energia, Nelson, com o tenor, e Dolphy, com o clarinete baixo, fazem um passeio que remonta à origem do jazz e à tradição de reproduzir nos instrumentos de sopro a voz humana – daí o título, pois aqui o blues é “gritado” com enorme intensidade. Magistrais as participações de Duvivier e Wyands, merecendo destaque também o fabuloso solo do pouco conhecido Richard Williams (com trabalhos ao lado de Charles Mingus, Grant Green, Lou Donaldson, Yusef Lateef e na Thad Jones-Mel Lewis Orchestra).

Em seguida, um blues de andamento marcial, “March on, March on”, de Esmond Edwards, também produtor do disco. A bela introdução fica a cargo de Duvivier, e, aos poucos, todos os demais instrumentos vão se agregando ao tema. Pela ordem, os solos são elaborados por Williams, Nelson (que pilota o sax tenor), Dolphy (a bordo de um flamejante sax alto), Wyands e, novamente, Duvivier.

A levada irresistível de “The Drive”, composta pelo líder, é um dos pontos altos do álbum e uma das duas únicas que não se aferra à estrutura do blues – é um hard bop pulsante e de muito groove. Já foi dito que as músicas de Nelson são fáceis de ouvir e difíceis de tocar e esta afirmação fica bastante evidente nesta faixa. Haynes, com sua percussão articulada, e os infatigáveis Wyands e Duvivier dão o suporte e a coesão necessários para os vôos de Dolphy, particularmente inspirado, Nelson e Williams, cujo estilo melodioso e lírico, mesmo nos contextos mais quentes, é comparável ao do grande Kenny Dorham.

O blues retorna com força total em “The Meetin’”, uma verdadeira pérola da oficina de sons de Nelson, com uma pegada gospel e repleta de evocações a mestres como Jay McShann e Ray Charles. Dolphy parece decidido a ultrapassar todas as fronteiras harmônicas impostas pela física ao sax alto e seu solo é pungente, assimétrico, selvagem, dramático, genial. Também são dignas de nota as fabulosas performances de Williams e de Wyands, cujo solo reproduz com intensidade o melhor da tradição do blues.

“Three Seconds” também bebe na fonte do blues, mas bem menos ortodoxo em sua concepção. Solos muito bem construídos, por parte do líder, de Williams e, como sempre, de Dolphy. Wyands é o responsável por um dos mais belos solos do álbum, no qual exibe influências da música erudita, em especial Chopin. Estupenda a atuação de Duvivier, cuja segurança e familiaridade com as sutilezas do blues impressionam.

Bebop para big bands. Esse é o mote de “Alto-itis”, mais um tema de Nelson, que encerra o disco. Escrita especialmente para este álbum a faixa celebra a destreza do autor e do seu convidado mais que especial. O duelo entre os dois é fabuloso – Nelson mais centrado na tradição bop, fielmente assentado na trilha aberta por predecessores ilustres como Parker e Dolphy extremamente arrojado e preocupado em apontar novas direções para o saxofone jazzístico. Habilidade, destreza e técnica a serviço do jazz, que fazem deste um álbum indispensável a qualquer discoteca, destacando-se também a maravilhosa remasterização, a cargo do próprio Van Gelder.

Após o período na Prestige, Nelson fez alguns trabalhos para a Argo e a Verve, e continuou a sua vitoriosa carreira de músico e arranjador, sendo um dos mais disputados dos anos 60. Provavelmente, é o único sujeito no mundo que trabalhou com Thelonious Monk (fez os arranjos do álbum “Monk’s Blues”, de 1968) e Ringo Starr (foi um dos arranjadores do disco “Sentimental Journey”, de 1970). Aliás, elaborar arranjos para astros da música pop era uma constante na carreira de Nelson, que trabalhou com Diana Ross, Leon Thomas, The Temptations, James Brown, Esther Philips e Ray Charles.

Nelson foi o responsável pelos arranjos e pela condução da orquestra que atuou no álbum “Leonard Feather's Encyclopedia of Jazz All Stars”, uma compilação gravada pela Verve em 1966 para a série Encyclopedia of Jazz, produzida pelo renomado crítico Leonard Feather, onde pontuavam os estelares J.J. Johnson, Phil Woods, Ron Carter e Clark Terry. Em 1969 realizou o antigo sonho de excursionar pela África.

Por sua própria all-star big band, que permaneceu em atividade entre 1966 e 1975, passaram músicos do calibre de Phil Woods, Grady Tate, Conte Candoli, Jack Nimitz, Tom Scott, Bill Perkins, Frank Strozier, Ed Thigpen, Jerome Richardson e muitos outros, fazendo apresentações em Berlin, Montreux e Nova Iorque. Em 1967, mudou-se para Los Angeles, a fim de trabalhar como compositor e arranjador de trilhas sonoras para a televisão, primeiramente para a série “Ironside”, produzida pela rede NBC. Posteriormente, vieram scores para os seriados “Columbo” (também produzido pela NBC e estrelado por Peter Falk), “The Six Million Dollar Man” e “The Bionic Woman” (estes dois últimos, produzidos pela ABC, foram um estrondoso sucesso nos 70).

Também compôs a trilha para o western “Death of a Gunfighter” (no Brasil, “A morte de um pistoleiro”, com Richard Widmark e Lena Horne, de 1969) e escreveu os arranjos para a trilha sonora do filme “O último tango em Paris”, composta por Gato Barbieri. Nelson também compunha peças eruditas, como sinfonias, e era um apaixonado pela educação musical, sendo que a partir de 1969 dava concorridos cursos de verão na Washington University, para os quais costumava levar, como artistas convidados, amigos como Phil Woods, Mel Lewis, Thad Jones, Sir Roland Hanna e Ron Carter. Também escreveu o livro “Patterns for Saxophone”, bastante popular entre os estudantes de saxofone.

Em 1970, Nelson gravou “Black, Brown And Beautiful”, disco tributo em homenagem a Mertin Luther King, assassinado dois anos antes. Além de composições do próprio Nelson, o disco incluía temas de Duke Ellington e do nosso maestro Tom Jobim (“Meditação”). Entre os músicos que participaram do projeto, estavam o baixista Ron Carter, o guitarrista Denis Budimir, o jovem trompetista Randy Brecker, os trombonistas Garnett Brown e Al Grey, os bateristas John Guerin, Shelly Manne e Roy Haynes, os saxofonistas Johnny Hodges e Jerome Richardson e os pianistas Roger Kellaway, Hank Jones e Earl Hines.

No dia 28 de outubro de 1975, quando se encontrava no auge do prestígio como arranjador, Oliver Nelson faleceu de maneira precoce e absolutamente inesperada. Tinha apenas 43 anos e um futuro brilhante pela frente. Primeiramente, atribuiu-se a sua morte a um ataque cardíaco fulminante, especialmente porque nos últimos dias ele vinha trabalhando exaustivamente na elaboração da trilha sonora da série “The Six Million Dollar Man”. Posteriormente, soube-se que o verdadeiro motivo de sua morte foi uma pancreatite aguda – doença traiçoeira que ataca o fígado e que, na enorme maioria dos casos, é fatal. Resta o consolo de sua obra, uma das mais belas e consistentes em toda a história do jazz.

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quinta-feira, 20 de maio de 2010

ÊXITO FUGAZ



Harold Floyd Brooks nasceu em Fayetteville, Carolina do Norte, no dia 07 de junho de 1932, juntamente com o irmão gêmeo, Harry. Juntavam-se a uma família já bastante numerosa e eram, respectivamente, o sétimo e o oitavo filhos de David e Cornelia Brooks. O porte físico franzino de Harold fez com que os colegas da escola o apelidassem de Tina (pronuncia-se “Teena”, uma corruptela de “tiny”, que significa muito pequeno).


Ainda na cidade natal, começou o aprendizado do saxofone e o seu primeiro instrumento foi um sax “C-melody”, bastante comum nos anos 30 e 40, mas que atualmente é muito pouco usado no jazz ou na música em geral. Também chamado de tenor afinado em dó, era o saxofone favorito de alguns músicos da era do swing, como Frank Trumbauer. Grandes nomes do jazz chegaram a usar esse curioso instrumento, cujas características mecânicas e sonoras o situam entre o sax alto e o tenor, como Coleman Hawkins e Benny Carter, mas hoje em dia apenas Anthony Braxton, Joe Lovano e outros poucos saxofonistas o utilizam com alguma regularidade.


Em 1944, a família Brooks se mudou para Nova Iorque, estabelecendo-se no Bronx e, na ocasião, o jovem Tina trocou o “C-melody” pelo sax tenor. Um dos seus irmãos mais velhos, o também saxofonista David “Bubba” Brooks (ligado ao R&B, tocou com Sonny Thompson, Jimmy McCracklin, Charles Williams, Don Pullen, Jimmy McGriff e Bill Doggett e era um confesso discípulo do estilo viril de Arnett Cobb), o auxiliou na transição. Curiosamente, a principal influência do Brooks mais jovem era o lírico Lester Young.


Em 1950, Bubba Brooks deixou a banda de Sonny Thompson e Tina o substituiu por alguns meses, tendo então participado de sua primeira gravação, em 1951. Em seguida, vieram trabalhos em diversas outras bandas de R&B, como as dos pianistas Charles Brown e Amos Milburn e a do trompetista Joe Morris. Nesse período, complementou sua educação musical com aulas de harmonia ministradas por Herbert Bourne, com quem estudou por cerca de um ano.


Em 1955 foi contratado por Lionel Hampton para uma excursão, mas não chegou a gravar com o vibrafonista. Em compensação, o convívio com outros músicos de jazz despertou-lhe o interesse pela música que Dexter Gordon, Sonny Rollins e outros tenoristas estavam fazendo. Contribuiu para incrementar esse interesse o trabalho como integrante da banda do Blue Morocco, um clube situado no Bronx. Ali, Tina conheceu e fez amizade com o pianista Elmo Hope e com o trompetista Benny Harris, que posteriormente o apresentaria a Alfred Lion.


O principal executivo da Blue Note ficou vivamente impressionado com os dotes musicais do jovem saxofonista e o incluiu entre os músicos que acompanhavam o organista Jimmy Smith – Lou Donaldson, Lee Morgan, Kenny Burrell e Art Blakey – na gravação de “House Party”, em 25 fevereiro de 1958. As sessões foram tão proveitosas que acabaram rendendo mais dois álbuns: “The Sermon” e “Confirmation”, sendo que em algumas faixas Smith lidera um combo com a seguinte formação: Lee Morgan, George Coleman, Curtis Fuller, Eddie McFadden, Kenny Burrell e Donald Bailey.


De qualquer forma, a semente estava plantada. Após as gravações com Jimmy Smith, Tina Brooks fez diversos trabalhos para a Blue Note, sob a liderança de Kenny Burrell, Freddie Hubbard (de quem se tornaria grande amigo epara quem compôs “Gypsy Blue” e “Open Sesame”), Freddie Redd e Jackie McLean. Infelizmente, o saxofonista já havia mergulhado no tenebroso mundo das drogas, o que o tornava pouco confiável para qualquer gravadora – mesmo a Blue Note, onde além do carrinho de Lion, também contava com a amizade e a proteção de Ike Quebec, então produtor da companhia.


Não que o mítico selo da Nota Azul fosse desprezar um talento colossal por conta de sua dependência química. Afinal de contas, ali pontuavam malucaços da estirpe de Lee Morgan, Sonny Clark e Art Blakey – curiosamente, três músicos que acompanhariam Brooks em um dos seus melhores álbuns. Portanto, a Blue Note não era nenhum convento de adoráveis freirinhas!


Exatamente por conta disso, o saxofonista acabou por gravar quatro discos como líder: “Minor Move” (de 1958), “True Blue” (de 1960, e que seria o único lançado durante sua vida), “Back To The Tracks” (também de 1960) e “The Waiting Game” (de 1961). Todos são de uma qualidade assombrosa, e entre os acompanhantes, músicos da estatura de Johnny Coles, Kenny Drew, Philly Joe Jones, Art Taylor, Paul Chambers, Sam Jones, Duke Jordan e outros luminares.


Difícil tarefa, a de destacar apenas um deles. Logo, a escolha do álbum resenhado se deu por métodos absolutamente científicos: “mamãe mandou eu escolher esse daqui...”. Felizmente, qualquer resultado redundaria em um disco esplendoroso e o vencedor dessa disputa foi... “Minor Move” – o primeiro álbum gravado por Brooks na qualidade de líder.


Exatamente o disco que contou com os pirados e talentosos Lee Morgan (trompete), Sonny Clark (piano) e Art Blakey (bateria), e mais o certinho e tão talentoso quanto Doug Watkins (baixo). Como se dizia antigamente, um quinteto do balacobaco! As gravações foram feitas no dia 16 de março de 1958, sob a batuta do mago Rudy Van Gelder, mas somente em 1980 essa jóia veria a luz do sol, graças a um lançamento da Blue Note japonesa. Para júbilo dos fãs de jazz do resto do planeta, o cd foi posteriormente lançado pela série Connoisseur, em 2000.


Exibindo uma potência sonora e uma vitalidade ímpares, o grupo abre os trabalhos com “Nutville”, composição epopéica de Brooks. Trata-se de um blues em tempo médio, irrigado com altas doses de histamina. O piano de Clark é energético e cheio de groove, com direito a solos sensacionais. A influência de Sonny Rollins, com sua vitalidade e criatividade incessantes, fica patente nos solos de Brooks e o “enfant terrible” Morgan, do alto dos seus 19 anos, incendeia a sessão.


“The Way You Look Tonight”, de Jerome Kern e Dorothy Fields, recebe um arranjo acelerado, mas que respeita as estruturas melódicas da canção e mantém o seu inato lirismo. O líder agrega fluência e inventividade ao tema, dando-lhe um frescor que enternece os ouvidos. Morgan, absoluto, é o retrato da exuberância: seus solos são complexos, ricos, sendo quase possível tocar o som que se espalha a partir das caixas acústicas e a inabalável dobradinha Watkins-Blakey é segura como poucas.


Mais um standard executado em tempo médio, “Star Eyes” era um dos temas preferidos de Charlie Parker e Brooks paga um soberbo tributo ao mestre de todos os mestres do sax alto, com solos de extremo bom gosto e elevada combustividade. Primorosa a intervenção de Clark, tanto no acompanhamento quanto nos solos, que pode mostrar o vigoroso improvisador que sempre foi. Morgan faz parecer fáceis as mais impressionantes peripécias ao trompete, tamanha a sua intimidade com o instrumento.


Brooks também é o autor da faixa que dá nome ao disco, outro petardo sonoro no qual os sopros do líder e de Morgan dão um sentido exponencial ao termo “em estado de ebulição”. Destaque para a forma como o baixo aveludado de Watkins, herdeiro direto de Oscar Pettiford, dialoga com o piano de Clark e a bateria de Blakey, numa demonstração de entrosamento e sincronismo impressionantes.


A versão do quinteto para “Everything Happens to Me” é nada menos que sublime. Uma balada altamente lírica, onde Brooks demonstra sua reverência ao genial Lester Young. O solo de Morgan é breve e desconcertante e Blakey parece ter forrado com veludo as suas baquetas, ttamanha a delicadeza dde sua percussão. Impossível não se emocionar com a atmosfera de três da madrugada, que remete a amantes insones, cigarros acesos e gelo se liquefazendo no copo de whisky. Discaço!


Apesar das circunstâncias favoráveis, a instabilidade emocional de Brooks devastou-lhe a possibilidade de uma carreira bem sucedida. No meio do ano em que gravou esse disco, por exemplo, ele simplesmente desapareceu da cena musical por quase um ano, somente vindo a dar as caras em agosto de 1959, para participar de algumas faixas do álbum “Swingin’”, de Kenny Burrell.


Em 1961 Tina gravou seu último disco para a Blue Note e passou a viver de forma errática, a reboque da dependência química que lhe roubava a carreira, a saúde e a dignidade. Chegou a participar de shows e jams na região do Bronx e a sua última performance conhecida foi ao lado de Ray Charles, em 1963. Depois disso, as notícias sobre sua vida são incertas. Sabe-se apenas que no dia 13 de agosto de 1974 Brooks faleceu, em virtude de falência dos rins e do fígado, e que há alguns anos já não conseguia tocar.


Uma grande perda para o jazz, não apenas pelo que efetivamente fez – e que, apesar da discografia rarefeita, foi muito do ponto de vista qualitativo – mas também pelo que poderia ter feito. Sobre o talento de Brooks e sua forma personalíssima de tocar, escreveu o crítico Eric Novod: “Suas improvisações inspiradas, fruto da combinação de linhas graciosas do blues com o mais complexo bebop, faziam dele um dos maiores nomes do sax tenor”.


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