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domingo, 27 de maio de 2012

SOBRE HERÓIS E TUMBAS




Não é exagero dizer que James Louis Johnson é o inventor de uma verdadeira escola dentro do jazz. Trombonista, compositor, arranjador e bandleader, ele, praticamente sozinho, transpôs as novas possibilidades harmônico-melódicas propostas pelo bebop para o seu instrumento, modernizando-lhe a sonoridade e elevando-lhe a um inédito paradigma técnico. Antes dele, o trombone era um instrumento quase anacrônico, cuja utilização era inequivocamente reservada aos grupos de dixieland e orquestras do swing.

Assim como Parker no sax alto, Gillespie no trompete ou Bud Powell no piano, o trombonista, mais conhecido no meio jazzístico por seu apelido, J. J. Johnson, passou a ser fonte de inspiração e modelo para, virtualmente, todos os músicos que o sucederam, como Curtis Fuller, Carl Fontana, Slide Hampton, Julian Priester, Benny Powell, Bob Brookmeyer, Steve Turre, Conrad Herwig, e o nosso Raul de Souza.

Ele nasceu no dia 22 de janeiro de 1924, na cidade de Indianápolis, estado de Indiana. Sua educação musical começou cedo. Aos nove anos já recebia as primeiras lições de piano, dadas pela mãe, a pianista amadora Nina Johnson. Seu pai, o reverendo James Horace Johnson, era pastor da igreja metodista e um homem extremamente severo e disciplinador. O contato com a música, além do aprendizado em casa, se dava, essencialmente, por meio das canções gospel cantadas na igreja comandada pelo pai.

J. J. estudou na Crispus Attucks High School e ali travou contato com o jazz. Graças à idolatria por Lester Young, ele, aos treze anos, decidiu se tornar saxofonista, optando pelo sax barítono. Menos de um ano depois, e já influenciado pela sonoridade de precursores como Jack Teagarden, Dickie Wells, Lawrence Brown, Trummy Young e J. C. Higginbotham, Johnson abandonou o saxofone para se dedicar ao trombone, instrumento que haveria de consagrá-lo e que ele, apesar das atribulações da vida futura, jamais abandonaria.

Sua primeira experiência profissional foi na banda de Clarence Love, no ano de 1941, pouco depois de haver concluído o ensino médio. No ano seguinte, foi contratado pelo bandleader Snookum Russell, cuja orquestra tinha como destaque absoluto o excepcional trompetista Fats Navarro, de quem se tornaria um grande amigo e que seria o primeiro músico a lhe mostrar uma concepção mais moderna e arrojada do jazz.

Sobre a influência de Navarro, um músico apenas quatro meses mais velho, Johnson declarou: “Naquela época ele já era um músico completo e tocava em um nível elevadíssimo, enquanto eu era apenas um iniciante”. Também naquela época, J. J. foi apresentado à música de Fred Beckett, integrante da orquestra de Lionel Hampton e considerado um dos primeiros trombonista a adotar uma abordagem mais moderna.

Após a sua saída da orquestra de Russell, Johnson retornou à cidade natal. Desempregado e com poucas perspectivas profissionais, ele foi trabalhar em um restaurante, como lavador de pratos. Sempre que podia, no entanto, participava de gigs em clubes da cidade e uma de suas apresentações foi vista pelo cantor Earl Coleman, que o recomendou para uma vaga na orquestra de Benny Carter. Antes, porém, o trombonista foi submetido a uma audição pelo saxofonista, conhecido por ser extremamente rigoroso na seleção de seus músicos.

Aprovado com louvor, J. J. passou a fazer parte da big band de Carter em 1942. As primeiras gravações do trombonista foram feitas naquela orquestra, com destaque para o seu primeiro solo, em “Love for Sale”, durante uma sessão realizada em outubro de 1943, para a Capitol. Também foi ali que Johnson começou a escrever os seus primeiros arranjos. A partir de 1944, ele passou a ser uma presença constante nos concertos do projeto Jazz at the Philharmonic, realizados sobretudo em Los Angeles, com produção do incansável Norman Granz.

A convivência com Benny foi um grande aprendizado e J. J. teve como colegas de banda, em suas diversas formações, gente do naipe do baterista Max Roach, do trompetista Freddie Webster e do baixista Curly Russell. Johnson costumava dizer que Carter “foi o músico mais impressionante com quem já trabalhei”, mas a parceria acabou em 1945, após J. J. sofrer uma agressão, por motivos raciais, depois de uma apresentação da orquestra em uma casa noturna em Los Angeles. A separação foi amigável, tanto que ele deixou em poder de Benny todos os arranjos que havia escrito para a orquestra.

Entre 1945 e 1946, o trombonista integrou a máquina de swing de Count Basie, que na época vivia uma espécie de encruzilhada criativa. Tanto é que durante os poucos meses passados ali, Johnson participou de pouquíssimas sessões de gravação. Após deixar Basie, J. J. passou algumas semanas na orquestra de Woody Herman, até ser contratado por Dizzy Gillespie, cujo quinteto era um dos mais requisitados nos clubes da célebre Rua 52, em Nova Iorque. Foi ali que Johnson aperfeiçoou a sua técnica e moldou sua própria maneira de traduzir a sintaxe bop.

O patrão Gillespie ficou encantado com a abordagem proposta por Johnson e percebeu que estava diante de algo completamente novo. O trompetista declarou em uma oportunidade: “Eu sempre acreditei que o trombone poderia ser tocado de uma maneira diferente, que um dia alguém ia inventar um novo jeito de tocar esse instrumento. E Johnson é esse homem”. Apesar do bom relacionamento entre os dois, o trombonista deixou Dizzy no ano seguinte, para trabalhar com Illinois Jacquet, seu ex-companheiro na orquestra de Basie.

Ao mesmo tempo, J. J. começou a organizar seus próprios grupos e realizar gravações como líder. Por seus conjuntos da época passariam sumidades como os bateristas Shadow Wilson e Max Roach, os saxofonistas Sonny Stitt e Sonny Rollins e os pianistas Bud Powell e Hank Jones. O trombonista pode ser ouvido em várias gravações de Charlie Parker, realizadas em dezembro de 1947, para a Dial Records. Essas sessões foram as primeiras lideradas por Bird, após o seu longo e traumático período de internação no Camarillo State Mental Hospital.

Em 1949, tendo deixado a banda de Jacquet, J. J. montou um sexteto co-liderado por ninguém menos que Stan Getz e Fats Navarro. Embora tivesse sido bem recebido pelo público e tocasse com regularidade nos clubes da Rua 52, especialmente no Three Deuces, o grupo foi desfeito pouco depois. Ainda naquele ano, é digna de registro a participação do trombonista no célebre noneto de Miles Davis, que deu ao mundo o precioso “Birth of the Cool”, um dos álbuns mais influentes da primeira metade dos anos 50.

Johnson chegou a participar dos Metronome All-Stars, no início dos anos 50, fez alguns trabalhos com o trompetista Kenny Dorham e, em 1951, co-liderou uma banda com o baixista Oscar Pettiford e o trompetista Howard McGhee. O grupo excursionou pela Ásia, apresentando-se em bases norte-americanas no Japão e na Coréia. De volta aos Estados Unidos, J. J. excursionou com o “Jazz Inc.”, banda que reunia nomes como Miles Davis, Zoot Sims, Milt Jackson (revezando-se no vibrafone e no piano), Percy Heath e Kenny Clarke, cujos shows eram produzidos pelo lendário radialista e apresentador Simphony Sid. O grupo não obteve a receptividade esperada, apesar dos talentos envolvidos, e foi rapidamente desfeito.

As ofertas de trabalho começaram a se reduzir drasticamente, motivo pelo qual Johnson se viu obrigado a trabalhar como inspetor de projetos da Sperry Gyroscope Company, uma fábrica de equipamentos militares com sede em Long Island. Foram dois anos de trabalho na companhia, conciliando, na medida do possível, o emprego formal com gigs e gravações, incluindo algumas sob a liderança de Miles Davis, como “Miles Davis, Vol. 2” (Blue Note, 1953) e o clássico “Walkin” (Fantasy, 1954). J. J. também desenvolveu uma estreita colaboração com o pianista francês Henri Renaud, então morando em Nova Iorque.

Somente em 1954, graças a uma iniciativa do produtor Ozzie Cadena, da Savoy Records, o trabalho de Johnson voltou a receber o merecido destaque. A proposta era arriscada: montar um grupo com uma sessão rítmica e dois trombonistas, no caso J. J. e Kai Winding. Nascia o “Jay and Kai Quintet”, um dos pequenos grupos mais interessantes daquela década e que causou verdadeiro furor no universo jazzístico.

Antes do estrondoso sucesso do quinteto com Winding, Johnson, ainda na condição de empregado da Sperry, lançou um álbum que tem um lugar especial no coração dos seus fãs. Trata-se do formidável “The Eminent J. J. Johnson – Volume One”. Gravado no dia 20 de junho de 1953, para a Blue Note, o disco apresenta uma verdadeira constelação: Clifford Brown no trompete, Jimmy Heath nos saxes tenor e barítono, seu irmão Percy no contrabaixo, John Lewis no piano e Kenny Clarke na bateria.

Com seus riffs poderosos e sua melodia contagiante, “Capri” é um tema de autoria do saxofonista Gigi Gryce e abre o disco. O esmero de Johnson na articulação das frases é visível mesmo nos tempos mais acelerados e seu domínio do idioma bop é absoluto. O toque de Heath é fluido, sumamente fiel às concepções parkerianas, e seus duelos com o instigante Brown são de tirar o fôlego. Clarke é um dínamo em fúria e contrapõe-se à discrição e à solidez da dupla John Lewis e Percy Heath, cujo entrosamento vinha sendo forjado no então nascente Modern Jazz Quartet.

Johnson é o destaque incontestável de “Lover Man”, clássico de Roger “Ram” Ramirez, Jimmie Davis e Jimmy Sherman. O trombonista, cujo sopro é sempre cálido e aconchegante, constrói passagens melodiosas e de beleza singular, sempre com enorme bom gosto, refinamento e emotividade. O breve solo de Lewis, límpido e gracioso, mas também de grande conteúdo emocional, é uma resposta das mais eloqüentes àqueles que o acusam, injustamente, de ser um intérprete excessivamente cerebral. As intervenções de Jimmy Heath e Brown são parcimoniosas e elegantes.

“Turnpike” é o único tema do líder e quem merece os maiores encômios é o endiabrado Clifford Brown. Com sua pegada agressiva e desafiadora, quase insolente, ele exige dos companheiros uma entrega e uma vibração em igual medida. Johnson e Jimmy Heath, que aqui utiliza o sax barítono, mantém a excelência técnica em níveis estratosféricos e respondem às provocações do trompetista com ataques igualmente alucinantes. Digna de nota também é a vigorosa contribuição de Lewis, cuja postura revela um intérprete destemido e um investigador profundo das entranhas harmônicas do bebop.

Lewis, contribui, ainda, com a intrincada “Sketch 1”, uma balada em tempo médio que remete a seus sofisticados trabalhos à frente do MJQ. O pianista também se encarrega pelo belíssimo arranjo, com Jimmy Heath mais uma a bordo do sax barítono e Brown fazendo uma rara utilização do trompete com surdina. O sexteto acelera o andamento na segunda metade da faixa e aqui é a vez de Johnson chamar para a si a responsabilidade, encantando o ouvinte com seu sopro caloroso e intenso.

Em “It Could Happen to You”, de James Van Heusen e Johnny Burke, Johnson exibe mais uma vez suas qualidades de fabuloso intérprete de baladas. As presenças de Brown e Jimmy Heath são discretas, sóbrias, quase pontuais, e as atenções se voltam exclusivamente para o líder da sessão, que brilha com uma plenitude solar. O acompanhamento comedido de Lewis, a percussão minimalista de Clarke e a hipnótica condução de Percy fazem desta faixa a mais lírica e pungente do disco.

Harold Arlen e Ted Koehler são os autores de “Get Happy”, cuja levada infecciosa faz dela uma das preferidas pelos jazzistas. A melodia possui as características inflamáveis que a aproximam do bebop e a versão do sexteto é caudalosa, pulsante, com amplo espaço para os solos exuberantemente ferozes de Johnson, Jimmy e Brown. Lewis alia sua técnica soberba à vitalidade de um iniciante e improvisa com inteligência e empolgação.

Um álbum indispensável em qualquer discoteca de jazz e que traz como um atrativo a mais três faixas-bônus, com takes alternativos de “Capri”, “Turnpike” e “Get Happy”. Além disso, o disco que teve, originalmente, Doug Hawkins na engenharia de som, é um dos raríssimos casos em que o mago Rudy Van Gelder aceitou fazer a remasterização para o lançamento em cd, em 2001, o que garante uma primorosa qualidade sonora.

Voltando à parceria entre Jay e Kai, os dois realizaram centenas de apresentações em clubes e festivais pelo mundo, além de diversos discos para selos como Savoy, Bethlehem, Prestige, Columbia e Atlantic, sempre com grande aceitação por parte da crítica e do público. Pelos grupos dos trombonistas passariam luminares do porte do guitarrista Billy Bauer, dos pianistas Bill Evans e Dick Katz, dos baixistas Charles Mingus e Paul Chambers e dos bateristas Kenny Clarke e Osie Johnson. Mas a fórmula havia se desgastado e os dois decidiram se separar em 1956.

De qualquer maneira, os dois continuaram amigos e se reuniriam várias vezes nos anos vindouros. Em 1958, excursionaram pela Europa, em 1960 gravaram o excepcional álbum “The Great Kai & J. J.”, para a Impulse!, e entre 1968 e 1969 gravaram dois discos para a CTI. Johnson e Winding também podem ser ouvidos no excelente “Sassy Swings Again” (1967), o último álbum de Sarah Vaughan para a Mercury Records, que também traz participações de gigantes como Clark Terry, Charlie Shavers e Joe Newman.

Apesar de ser um sujeito reservado e discreto, Johnson era muito bem-humorado. Reza a lenda que depois de uma performance do poeta e escritor Jack Kerouac, um dos precursores da literatura beat e apaixonado por jazz, no Village Vanguard, os dois passaram horas conversando. Em um dado momento, Kerouac, que era amigo de monstros como Zoot Sims e Al Cohn e raramente andava sem uma reserva amazônica de uísque, disse ao atento interlocutor: “Na verdade, eu gostaria de ser músico, sabe? Acho que eu seria um grande saxofonista”. Sem perder a compostura, o fleumático J. J. respondeu: “É mesmo? Não sei porquê, mas acho que você tem mais jeito de trompetista”.

Johnson também era um homem bastante determinado. Foi um dos músicos que mais combateram o chamado “cabaret card”, espécie de autorização dada pela polícia de Nova Iorque para que os músicos pudessem tocar na cidade. Esse sistema era francamente restritivo ao livre exercício da profissão e freqüentemente era usado como mecanismo de coação, pois era necessária a sua renovação periódica. Thelonious Monk, por exemplo, passou vários anos sem poder se apresentar nos clubes de Nova Iorque porque o seu “cabaret card” foi cassado.

Desde o final da década de 40 Johnson se encontrava virtualmente impedido de tocar em clubes de Nova Iorque, porque seu próprio “cabaret card” havia sido arbitrariamente cassado. Durante muito tempo ele conseguiu driblar a vigilância policial, e para isso contava com a boa vontade dos donos dos clubes. Além do mais, embora fosse um músico de sucesso – durante uma excursão à Suécia, por exemplo, ainda nos tempos do quinteto com Winding, ele havia levado vinte mil pessoas a um espetáculo ao ar livre – seu cachê era relativamente modesto para um artista de sua envergadura.

O próprio J. J. relatou ao crítico Ira Gitler que os donos dos clubes ficavam surpresos com o valor do cachê cobrado por ele. Consta que um desses proprietários, durante uma temporada em um estado do Meio-Oeste, teria lhe dito: “Mas como é possível um artista do seu nível cobrar tão pouco? Eu estava disposto a pagar o dobro para ter você em meu clube”.

Durante um processo movido por ele contra o Departamento de Polícia de Nova Iorque, seu depoimento, prestado no dia 14 de maio de 1959, foi fundamental para a futura abolição dessa restrição absurda. Conhecido no meio musical por sua seriedade, profissionalismo e cultura, J. J. impressionou o juiz da causa, Jacob Markowitz, que aceitou seus argumentos e lhe concedeu um “cabaret card” permanente, em um julgamento que acabou servindo como precedente para que outros músicos obtivessem o mesmo benefício. Uma das testemunhas arroladas por Johnson no processo foi o apresentador de TY Steve Allen, que comandava um dos programas de maior sucesso da época.

Com o fim da parceria com Winding, Johnson formou uma série de pequenos grupos, cuja principal característica era a excelência técnica dos seus comandados. Figuras da estirpe dos saxofonistas Bobby Jaspar e Clifford Jordan, do cornetista Nat Adderley, do baixista Arthur Harper, do trompetista Freddie Hubbard, dos pianistas Wynton Kelly, Tommy Flanagan e Cedar Walton e dos bateristas Elvin Jones e Albert “Tootie” Heath foram alguns dos nomes que tocaram em suas bandas.

O trombonista gravou álbuns com Stan Getz (“Stan Getz and J.J. Johnson at the Opera House”, Verve, 1960) e André Previn e excursionou com Miles Davis no início dos anos 60. A partir daí, cansado da estafante rotina de viagens e concertos, passou a priorizar o trabalho como arranjador e compositor. Além disso, como confessou ao crítico Ira Gitler, queria poder dar mais atenção à família, especialmente aos filhos adolescentes, Kevin e William, que na época davam seus primeiros passos na música. Curiosamente, nenhum deles optou pelo trombone. O primeiro escolheu a bateria e o segundo, o saxofone tenor.

O intérprete Johnson gravou relativamente poucos álbuns como líder durante aquele período, com destaque para “J. J.’s Broadway” (Verve, 1963). Já o compositor Johnson manteve uma agenda sempre movimentada. Uma de suas composições, “Poem for Brass” foi incluída na compilação “Music for Brass”, de 1957, organizada por Gunther Schüller, um dos maiores entusiastas da chamada Third Stream, corrente jazzística que incorporava elementos da música erudita.

O tema chamou a atenção de John Lewis, que no final da década de 50 também era o diretor artístico do Festival de Monterey, e o pianista encomendou a Johnson algumas composições na linha da Third Stream. O resultado veio sob a forma de duas peças extensas e sofisticadas, “El Camino Real” e “Sketch for Trombone and Orchestra”, apresentadas por J. J. ao público na edição de 1959 do festival. As influências mais visíveis nesses trabalhos são de compositores eruditos como Maurice Ravel e Paul Hindemith.

Em 1961 foi a vez de “Perceptions”, suíte em seis movimentos, executada pela primeira vez durante o First International Jazz Festival, realizado no ano seguinte, em Washington, D. C., tendo Dizzy Gillespie como principal solista. Outra obra de grande importância na carreira de Johnson foi “Rondeau for Quartet and Orchestra”, gravada pelo Modern Jazz Quartet, com a participação de uma orquestra de cordas e uma sessão de sopros.

Em 1965 Johnson gravou, em Viena, na Áustria, a sua composição “Euro Suíte” ao lado de uma orquestra regida pelo maestro Friedrich Gulda. Em 1968, Johnson compôs a suite “Diversions” para a American Wind Symphony, orquestra baseada emPittsburgh. Ao mesmo tempo, desenvolvia uma bem-sucedida carreira como compositor de jingles para publicidade e trabalhou como consultor técnico da Marc Brown Associates – MBA Music, Inc. Naquela companhia, suas sugestões foram bastante úteis para que Robert Moog desenvolvesse sua principal invenção, o sintetizador.

Em 1970, a convite de Quincy Jones, Johnson trocou a tranqüilidade de Teaneck, Nova Jérsei, pela vida frenética em Los Angeles, na Califórnia. Ali, compôs ou arranjou trilhas sonoras para o cinema e a TV, destacando-se filmes como “Across 110th Street”, “Trouble Man” (com Marvin Gaye), “Cleopatra Jones”, “Top of the Heap” e “Willie Dynamite” e séries como “The Mod Squad”, “Starsky & Hutch”, “Barefoot in the Park”, “Mike Hammer”, “The Big Easy”, “Future Cop”, “Travels with Flip” e “The Six Million Dollar Man”, sendo que muitas delas fizeram grande sucesso, especialmente a última, estrelada por Lee Majors.

Embora tenha lançado alguns discos como líder nos anos 70 e 80, e tenha participado de gravações ao lado de Count Basie e Al Grey, Johnson se manteve afastado dos palcos por praticamente quinze anos, excetuando-se duas turnês pelo Japão, em 1977 e 1982, e uma excursão à Europa, em 1984. Durante sua temporada californiana, ele também fez parte da Coconut Grove Orchestra, sob a liderança de Sammy Davis Jr. e da orquestra do programa televisivo de Carol Burnett.

Somente em novembro de 1987, novamente estabelecido em Indianápolis, é que Johnson retornaria ao mundo do jazz e o fez com enorme apetite. Montou um quinteto formado pelo saxofonista Ralph Moore, pelo pianista Stanley Cowell, pelo baixista Rufus Reid e pelo baterista Victor Lewis, com o qual realizou uma temporada de grande sucesso no Village Vanguard, em Nova Iorque, seguida por uma turnê que englobou boa parte dos Estados Unidos, Europa e Japão. No ano seguinte, novamente durante uma temporada no Village Vanguard, gravou dois álbuns ao vivo, com um repertório composto por standards, lançados pelo selo Antilles.

Em agosto de 1988, outro momento marcante em sua carreira. Juntamente com o velho amigo Stan Getz, Johnson reuniu mais de 15 mil pessoas em um concerto no Grant Park, em Chicago. No final daquele ano, durante uma excursão pelo Japão, sua esposa Vivian sofreu um sério AVC e perdeu boa parte dos movimentos. Durante os três anos seguintes, Johnson se dedicou exclusivamente à esposa, cancelando todos os compromissos profissionais.

Com a morte da esposa, em 1991, ele retornou, paulatinamente, às atividades. Naquele mesmo ano, gravou um álbum em homenagem à falecida esposa “Vivian” (Concord, 1992). Naquele mesmo ano conheceu Carolyn Reid, que se tornaria sua segunda esposa. Gravou para selos como Verve, Pablo e BMG, participou de discos de Wynton Marsalis, Steve Turre e Abbey Lincoln e foi indicado ao Grammy em diversas categorias.

Atuou como artista residente em várias instituições de prestício, como a Kentucky State University, a Harvard University e o Oberlin College. Sua última apresentação ao vivo, realizada em novembro de 1996, foi, justamente, em uma instituição de ensino: um concerto no William Paterson College. Em 1997 lançou seu último álbum, “The Brass Orchestra” (Verve), que contou com as participações de craques como Jimmy Heath, Slide Hampton, Jon Faddis, Wayne Shorter e Don Sickler.

Depois disso, preferiu permanecer em casa, em Indianápolis, trabalhando exclusivamente como compositor e arranjador. Respeitado e querido no meio musical, colecionou honrarias, como a inclusão do seu nome no Down Beat Hall of Fame, em 1995, um doutorado honorário concedido pela Indiana University, em 1988, e em 1996 foi a vez de receber o título de Jazz Master, dado pela National Endowment for the Arts (NEA).

O trombonista escreveu dois livros, “J. J. Johnson Collection: Trombone” e “Exercises and Etudes for the Jazz Instrumentalist”, com as transcrições de seus solos e arranjos, ambos publicados pela editora Hal Leonard. Em 2000 foi lançada a sua biografia, “The Musical World of J. J. Johnson” (Scarecrow Press), escrita por Joshua Berrett e Louis Bourgois III. Naquela época, todavia, ele já sofria os efeitos de um devastador câncer de próstata, cujo tratamento não foi capaz de curar. O trombonista preferiu acabar com o sofrimento, suicidando-se com um tiro na cabeça, no dia 04 de fevereiro de 2001.

Sua morte foi um choque para a comunidade musical e o seu funeral foi acompanhado por dezenas de músicos de jazz, como Larry Ridley, Max Roach e Jimmy Heath. Durante os serviços fúnebres, Slide Hampton apresentou um arranjo de “Lament”, à frente de um naipe de nove trombones, elaborado especialmente para homenagear o falecido amigo e grande inspirador. Entre os executantes, estavam Steve Turre, Robin Eubanks e Phil Ranelin. Composições de sua lavra, como “Wee Dot” e a própria “Lament”, permanecem até hoje como standards do jazz.

Para o amigo Jimmy Heath, J. J. “foi o maior trombonista da minha geração. Ele usava o trombone de uma maneira revolucionária, fazendo as notas deslizarem suavemente e era capaz de falar a linguagem do bebop com clareza e precisão extremas. Depois que ele surgiu, todo mundo queria imitá-lo”.

Steve Turre, um dos seus mais talentosos discípulos, resumiu a importância de Johnson para o desenvolvimento do idioma jazzístico: “J. J. fez com o trombone a mesma coisa que Charlie Parker fez com o sax alto. Ninguém tocaria da forma como se toca hoje se não fosse o seu pioneirismo. Ele foi um mestre do trombone, o mestre definitivo do século XX. E sua importância não se resume ao intérprete, pois ele também foi um dos maiores compositores e arranjadores da história do jazz”.

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sábado, 19 de maio de 2012

A CIDADELA DOS MALDITOS





Quanto tempo um homem é capaz de esperar,

Até que descubra que mudança alguma irá acontecer?

Até que perceba que as estrelas morrem a cada manhã?

Até que renuncie às noites intermináveis de suor e medo?

Quanto tempo um homem é capaz de clamar

Diante dos altares mudos e impiedosos?

Os sulcos no seu rosto são tudo o que lhe restou

A face urdida pelo arado do tempo

Esculpida pela foice amarga da desilusão

É o resultado de uma semeadura regada com lágrimas

O gesto suave da admiração, o refúgio do amor casto e seguro,

Não passam de recordações lamentosas e vadias

Os anjos, aqueles reverentes hóspedes celestes,

Se esqueceram de cobrar o tributo terreno

E as preces, eclipsadas pelo pó, de nada valeram

O suspiro do vento espalha ao longe as misérias daquele homem

Seus pensamentos são confusos e desobedientes

Os campos não dão frutos, apenas rama exaltada indigna

Acabaram-se os passeios pela cidade

Ela feneceu e também as suas amabilidades,

Abandonada à própria sorte,

A cidade é como a mulher que traz no ventre

Um inquilino indesejado e sórdido

O que ontem era o abrigo da virtude e da harmonia,

A cartografia acolhedora de toda a sorte de afetividades,

É hoje um antro negro de morte e devassidão

Os trabalhadores desapareceram,

Assim como o estalajadeiro, o médico e o tabelião

O boticário, as lavadeiras e o bedel

Sumiram as carpideiras e não há ninguém para chorar pelos mortos

Pedintes e prostitutas caminham a esmo pelas ruas silenciosas

Maldizem a sorte, mas não têm força para fugir dali

Os monarcas coroados abdicaram ao trono

E, como espectros insidiosos, desvaneceram na bruma

Os templos faustosos de outrora prostraram-se

À sombra da hera maligna e dos espinhos taciturnos

A terra infértil se opõe ao plantio

E o campo verde transformou-se em um alagadiço pútrido

Os grãos dourados esturricaram e viraram fuligem

O capim verdejante é uma guirlanda de urtigas

Adeus esplendor, adeus colheitas, adeus humano chão

O vento anárquico chicoteia a pele

A luz febril faz as cores desmaiarem em cinza

É um novo Sol que surge a cada manhã,

Um Sol que não aquece, mas queima

Um Sol que não ilumina, mas ofusca

O homem perdeu a si mesmo e também a sua fé

A esperança é uma falácia rústica e desabrigada

Uma mentira ignóbil, contada sem esmero ou convicção

Acabou-se o labor glorioso e digno, a faina angelical diária

Os tempos sombrios caminham com imperturbável zelo,

Não se ouvem os cânticos dos homens e seus sotaques virtuosos

Ah! Morte benfazeja e terna! Mãe gentil e atenciosa,

Que não se verga à opulência dos brasões ou das linhagens

Dá àquele homem o sono agradável do esquecimento,

Confirma-lhe os presságios da brevidade elementar

Concede-lhe o mais precioso dos tesouros,

Que vale mais que o diamante reluzente, que a opala e o rubi

Pacifica o coração de teu filho,

Preenche-lhe aquela região vazia

Sê para ele o canto do pássaro, o êxtase amoroso e tranqüilo

Sê para ele o vôo coordenado e ordeiro,

Transporta-o até o espaço brilhante

Leva embora o apego confuso e improdutivo

Nada pode ser mais exasperador para escravo

Do que ter os olhos livres para ver o que jamais desfrutará

Eu vi a montanha sonolenta se vergar

E descobri que não há liberdade sem rendição

Eu senti o hálito de Tanatos e rezei em seu louvor

Frustrei-me em meu propósito, mas percorri todos os ciclos,

Ah! Morte benfazeja e terna! Mãe gentil e atenciosa,

Que não se verga à opulência dos brasões ou das linhagens

Dá àquele homem o sono agradável do esquecimento,

Confirma-lhe os presságios da brevidade elementar

Concede-lhe o mais precioso dos tesouros,

Que vale mais que o diamante reluzente, que a opala ou o rubi

Outorga àquele homem de rosto amarfanhado,

Que há milênios não passa do eu de um hoje perpétuo,

A pausa eterna e indeclinável,

A interrupção simétrica do ultraje,

O repouso digno e reparador,

A quem não mais suporta

O desconsolo impávido de uma alma baldia.

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Charles Lawrence Persip tem uma extensa folha de ótimos serviços prestados ao jazz e participou de incontáveis gravações, ao lado de alguns dos maiores nomes do estilo, como Sonny Stitt, Lee Morgan, Dinah Washington, Melba Liston, Sonny Rollins, Kenny Dorham, Archie Shepp, Zoot Sims, Harry “Sweets” Edison, Phil Woods, Red Garland, Mal Waldron, George Russell, Gil Evans, Randy Weston, Don Ellis, Cannonball Adderly, Benny Golson, Oliver Nelson, Eric Dolphy, Irene Krall, Roland Kirk, Gene Ammons, Curtis Fuller, Clarck Terry e muitos outros.

No entanto, jamais obteve um reconhecimento, por parte de crítica e público, proporcional a seu talento. Baterista de grandes recursos técnicos e dono de uma pegada vibrante, ele nasceu no dia 26 de julho de 1929, em Morristown, mas foi criado em Newark, ambas no estado de Nova Jérsei. Desde muito cedo ele demonstrou enorme aptidão musical e consta que aos três anos já dava os primeiros passos na bateria, sempre apoiado pelos pais, Francis Persip e Doris Mary.

Quando ingressou na West Side High School, em Newark, tudo o que o garoto queria era fazer parte do time de futebol americano. Mas a música acabou falando mais alto e ele participaria de diversas bandas e orquestras colegiais, até a conclusão do ensino médio. Recebeu aulas particulares de um dos mais renomados bateristas da região, chamado Al Germansky, e durante cerca de dois anos Charlie freqüentou a Hartt School of Music, em Nova Jérsei.

Todavia, ele foi obrigado a abandonar os estudos para se dedicar à carreira profissional, em 1951. Seus primeiros empregos foram em bandas locais de R&B e naquela época seu maior ídolo era Shadow Wilson. Durante uma jam com Dizzy Gillespie, Persip conheceu o grande Kenny Clarke, considerado um dos pais da bateria do bebop, que também estava presente naquela sessão.

Clarke se afeiçoou ao garoto e se tornou uma espécie de mentor do jovem baterista, apresentando-o à nata dos músicos de Nova Iorque e dando-lhe preciosos conselhos, tanto do ponto de vista técnico como no que diz respeito à condução de sua carreira. Naquela época, Persip despontava como uma das grandes promessas da bateria e foi depurando o seu estilo em gigs com monstros como Walter Davis Jr., Hank Mobley, James Moody, Benny Green, Sahib Shihab, J. J. Johnson e Charlie Parker.

Em 1953, Charlie ingressou na banda de Tadd Dameron, deixando-a no final daquele ano para tocar com Dizzy Gillespie. O baterista foi um dos mais assíduos colaboradores de Dizzy naquele período, trabalhando tanto na big band quanto nos vários pequenos grupos liderados pelo trompetista. A parceria durou até 1958, quando Persip assumiu o posto no quinteto de Harry “Sweets” Edison. Ao mesmo tempo Persip se tornava um dos mais requisitados músicos de estúdio de Nova Iorque, razão pela qual foi obrigado, novamente, a interromper os estudos musicais formais, desta feita na Juilliard School of Music.

Após uma rápida passagem pelas bandas de Bill Potts, com quem gravou o elogiado “The Jazz Soul of Porgy and Bess” (United Artists, 1959), e de Jerome Richardson, que na época era uma das atrações fixas do Birdland, o passo seguinte foi trabalhar na orquestra de Harry James, onde aportou por indicação de Buddy Rich. Tratava-se de uma das poucas big bands remanescentes da Era do Swing que ainda se mantinha em atividade regular.

O ano era 1959 e Charlie foi obrigado a se mudar para Las Vegas, onde James era uma das mais disputadas atrações nos cassinos, hotéis e casas noturnas da cidade. Apesar da ótima remuneração, Persip não se sentia à vontade ali, tocando um repertório que muito pouco tinha a ver com as suas concepções musicais. Ele recorda o que sentiu durante aquele período: “Eu estava ganhando um bom dinheiro, mas do ponto de vista artístico percebia que aquele trabalho não me acrescentava muita coisa”.

O baterista então pediu dispensa da banda e retornou a Nova Iorque, no final daquele ano. Desta feita, com o firme propósito de montar o seu próprio grupo. Para isso, arregimentou alguns jovens músicos que despontavam no cenário novaiorquino: o trompetista Freddie Hubbard, o pianista Ronnie Matthews, o saxofonista tenor Roland Alexander e o contrabaixista Ron Carter. Deu à banda o nome de “The Jazz Statesmen” e com essa formação gravou seu primeiro álbum como líder.

Trata-se do excelente “Charlie Persip and The Jazz Statesmen”, gravado para o selo Bethlehem no dia 02 de abril de 1960. Por causa de compromissos profissionais assumidos anteriormente, Hubbard teve que se ausentar do estúdio e não pôde participar de todas as cinco faixas do álbum, sendo substituído em uma delas pelo também jovem e talentoso Marcus Belgrave.

A abertura fica a cargo de “Sevens”, tema musculoso, de autoria de Alexander, que entabula diálogos ensandecidos com Hubbard. A cumplicidade nas trocas de compassos, os improvisos furiosos, a volatilidade que emana dos solos, o domínio técnico exemplar, tudo se soma para dar à execução aquela espécie de brilho que somente acontece em combos extremamente entrosados. Ressalte-se, por fim, as vigorosas intervenções do líder, dono de uma levada realmente irresistível.

No único standard do disco, “The Song Is You”, de Jerome Kern e Oscar Hammerstein II, o quinteto apresenta um arranjo em tempo ultra rápido. Com uma base perfeita, proporcionada por Carter e Matthews, os outros três podem se dedicar com maior ênfase aos solos e às improvisações, sempre arrebatadoras. Influenciado por John Coltrane e Sonny Rollins, Alexander possui um estilo robusto e agressivo, preferindo transitar pelos registros mais graves do seu instrumento. Persip se empolga e se a sua performance tiver que ser descrita em um único adjetivo, este seria: vulcânica.

O blues “Right Down Front” é uma composição de Sarah Cassey e aqui o trompete fica por conta de Belgrave, que não se mostra nem um pouco intimidado, e a permuta não traz qualquer prejuízo à coesão do grupo. A ênfase com que Carter vibra as cordas do contrabaixo dá um toque de crueza e profundidade à execução.  O líder constrói uma ancoragem rítmica pulsante, avassaladora, em franco contraste com a abordagem de Matthews, cujo piano impõe um verniz de refinamento e sofisticação ao tema.

Com Hubbard de volta ao posto, é a vez de “Soul March”, mais uma contribuição do versátil Alexander. O andamento marcial, a sonoridade opulenta e o indisfarçável apelo ao blues em algumas passagens fazem desta uma das mais empolgantes faixas do álbum. O maior destaque individual talvez seja Persip, que exibe uma profusão de recursos rítmicos, uma energia aparentemente inesgotável e uma voracidade impressionante.

Para fechar o disco, o tema escolhido foi “The Champ (A Suite in Six Movements)”, de autoria do ex-patrão de Persip, Dizzy Gillespie. Trata-se, como o próprio título sugere, de uma longa suíte de quase dez minutos, que percorre diversas vertentes do jazz, incluindo o bebop, o hard bop e o soul jazz, com passagens significativas pelo blues. A atmosfera e os andamentos variam, indo do explosivo ao sombrio, do refinado ao primitivo, com amplo destaque para a percussão endiabrada, por vezes quase tribal, de Persip. Um álbum que dignifica qualquer discoteca de jazz e que serve como amostra do talento de alguns jovens que, em pouco tempo ajudariam a renovar a linguagem jazzística com sua ousadia e competência.

Ainda em 1960, Persip foi contratado por Billy Eckstine e acabou se tornando, além de baterista, diretor musical da banda do cantor, que somente se encerraria em 1973. Ao longo da década de 70, iniciou e desenvolveu um prolífico trabalho como educador musical, dando aulas em instituições de Nova Iorque, como o Jazzmobile Inc. e a New School for Jazz and Contemporary Music (onde trabalha até hoje, na qualidade de Professor Associado).

Persip é um grande contador de histórias e muito bem-humorado. Certa vez, Elvin Jones, seu grande amigo, estava bastante ansioso antes das gravações de “My Favorite Things”, um dos álbuns mais importantes de John Coltrane, porque não dominava, com a necessária segurança, o andamento em 3/4. Persip rememora: “Eu e Elvin éramos grandes amigos. Um dia ele me falou de uma gravação que faria com Coltrane, onde um tema era em um andamento em 3/4. Então ele me perguntou: ‘Como é que você consegue tocar isso? Eu não sei tocar essa droga!’ Eu fiquei um pouco chocado, pois Elvin era um baterista excepcional e de grande capacidade técnica. Eu dei algumas dicas a ele e se você escutar ‘My Favorite Things’ vai perceber que ele aproveitou direitinho as dicas que eu dei”, diz às gargalhadas.

Em 1980, formou o “Superband”, uma big band com orientação francamente bop, cujo primeiro álbum, homônimo, foi gravado naquele ano para o selo Stash. Era a primeira vez que Persip entrava em um estúdio como líder, após um hiato de vinte anos. O segundo disco “In Case You Missed It” (1984) e o terceiro, “No Dummies Allowed” (1987), foram gravados para o selo italiano Soul Note.

O grupo, agora com o nome de “Supersound”, ainda gravaria mais um álbum, “Intrinsic Evolution”, uma produção independente, bancada pelo próprio baterista em 2008, por intermédio do selo CDBY. Pelas diversas formações da big band passariam nomes hoje consagrados, como os saxofonistas Gary Smulyan e Bob Watson, o pianista Gary Dial e o trompetista Jack Walrath.

Persip também se arriscou na literatura didática, tendo lançado o livro “How Not to Play Drums: Not for Drummers Only” (Second Floor Music, 2003), cujo título bem-humorado faz uma provocação a determinado tipo de músico mais preocupado em exibir sua capacidade técnica do que propriamente em tocar. Como exemplifica o próprio Charlie: “Eu gosto de solar, mas acredito que o solo tenha que ter um sentido rítmico e melódico. Muitos solos de bateria começam e terminam como meras demonstrações de técnica, e não como uma expressão da musicalidade do seu autor”.

Charlie continua na ativa, juntando-se a um seleto grupo de bateristas octogenários, como Roy Haynes, Chico Hamilton e Jimmy Cobb. Ainda faz shows com regularidade, dá aulas e grava sempre que é convidado. De olho no futuro, mas sem deixar de se emocionar com os feitos do passado: “Eu gosto de falar sobre o que eu estou fazendo neste momento e dos meus planos para o futuro. Um dos motivos pelos quais eu não gosto de falar muito do que fiz é porque muitas das pessoas com quem trabalhei já se foram. Mas os jovens sempre querem saber sobre aquela época, e às vezes é doloroso, para mim, falar de amigos queridos que eu jamais verei novamente”.


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segunda-feira, 14 de maio de 2012

O FEIJÃO E O SONHO




É difícil crer que alguém conhecido como “Feijão” pudesse ser um homem sensível e de hábitos refinados. Com um apelido desses, o mais provável é que o sujeito fosse um homem rude, ainda mais quando se sabe que ele recebeu essa alcunha por conta do seu apetite insaciável por prosaicos feijões. Mas todos os que conviveram com o nosso querido “Feijão”, ou melhor, “Bean”, são unânimes em louvar a sua polidez, a sua elegância no falar e no trajar e sua cordialidade.

Os músicos com quem tocava eram os primeiros a reconhecer as suas qualidades. Para o pianista Sir Charles Thompson, que fez parte de sua banda nos anos 40, “Bean” era “um homem culto e extremamente elegante”. Era também bastante generoso no pagamento dos cachês e não foram poucos os ex-integrantes de sua banda que o apontaram como um excelente patrão.

Bem, mas afinal de contas quem é esse tal “Bean” e qual a importância dele para o jaz? Ora, o tal “Bean” é ninguém menos que Coleman Randolph Hawkins, um dos pais fundadores do jazz e, sem dúvida alguma, um dos seus principais estetas. Sua importância? Durante um concerto, o cantor Jon Hendrics assim o apresentou à platéia: “Este é Coleman Hawkins, o homem para quem Adolphe Sax inventou o saxofone”. Precisa dizer mais alguma coisa?

Hawkins nasceu no dia 21 de novembro de 1904, em Saint Joseph, no estado do Missouri. Sua família, ao contrário do que sucedia com a maioria dos negros da época, tinha uma ótima situação financeira e o garoto jamais passou necessidade. Pôde estudar em boas escolas, como a Topeka High School, e, um luxo para um jovem negro naquele tempo, também freqüentou uma escola de música, o Washburn College, em Topeka, no estado do Kansas.

Dono de uma musicalidade inata, Hawkins era capaz de ler partituras e tocava piano (começou aos cinco anos), violoncelo (aos sete) e, aos nove, saxofone C-Melody, uma espécie de híbrido entre o alto e o tenor. Apesar de desejar que o filho se direcionasse para uma carreira menos instável que a de músico profissional, os pais de Hawkins sempre o apoiaram em suas decisões. Inclusive quando ele, aos 17 anos, decidiu ingressar na orquestra de Jesse Stone.

Pouco depois, chamaria a atenção da cantora Mamie Smith, que o contratou para tocar no seu grupo, chamado “Jazz Hounds”. Ali, Hawkins trabalharia ao lado de outro gigante do jazz, o clarinetista e saxofonista soprano Sidney Bechet. Na banda de Smith, onde permaneceu até meados de 1923, o jovem participou de suas primeiras gravações e adotou, em caráter definitivo, o saxofone tenor, em substituição ao C-Melody. Seu próximo emprego foi na orquestra de Wilbur Sweatman, mas a permanência ali foi breve.

Em janeiro de 1924 o saxofonista foi contratado pelo bandleader Fletcher Henderson e se mudou para Nova Iorque. Um dos seus companheiros na big band era ninguém menos que Louis Armstrng, outra figura seminal na história do jazz. “Bean” e “Satchmo”, mais velho e bem mais experiente, se tornariam amigos e o jovem saxofonista aprendeu bastante com o parceiro trompetista. Outra influência bastante importante para a depuração da sonoridade de Hawkins foi o pianista Art Tatum, que conheceu no final daquela década.

Coleman se tornaria, com o passar dos anos, um dos esteios sonoros da orquestra de Henderson e, depois da saída de Armstrong, seu solista mais notável. Foram dez anos de vivência conjunta e durante aquele período ele ajudou a tornar o saxofone popular no universo jazzístico, a ponto de “rivalizar e, posteriormente, superar o trompete como o mais iconográfico dos instrumentos do jazz”, conforme ensina o respeitado Gary Giddins.

Embora fosse um músico respeitado, Hawkins pouco se arriscava fora da big band de Henderson. Entre suas raríssimas gravações feitas sem a orquestra, destacam-se as realizadas em 1929, ao lado dos “Mound City Blue Blowers”, onde tocavam craques como Eddie Condon, Gene Krupa e Jack Teagarden. Outro grupo paralelo, onde o saxofonista também atuou com alguma constância, foi o “McKinney Cotton Pickers”, liderado pelo baterista William McKinney e que tinha em sua formação o pianista James P. Johnson, o saxofonista Benny Carter e o trompetista Sidney De Paris.

Com a chegada dos anos 30, ele consolidou-se como “a voz dominante do saxofone e, apesar do surgimento de contemporâneos como Charlie Holmes, Johnny Hodges, Frank Trumbauer e Jimmy Dorsey, todos seguiam Hawkins”, nas certeiras palavras do crítico inglês Richard Cook. Como músico de apoio, Hawk, outro dos seus apelidos, fez algumas gravações com Henry “Red” Allen, para o selo ARC, e Benny Goodman, para a Columbia.

Roberto Muggiati explica que a partir do início da nova década Coleman “evoluiu para o estilo que se tornaria típico do sax tenor: um timbre robusto, cheio de vibrato, notas em cascata, mais ligadas, praticamente soldadas uma à outra – dentro da característica mais elástica do instrumento – e uma tendência de improvisar menos dentro da melodia (como um Louis Armstrong) e mais sobre os acordes, a seqüência harmônica do tema, antecipando o bebop”. Até o aparecimento de Lester Young, que surgiu com um estilo mais aveludado e uma abordagem menos incisiva, Hawkins era o principal paradigma dos tenoristas do jazz.

A parceria com Fletcher seria rompida em 1934, quando o saxofonista recebeu uma excelente oferta de trabalho. O problema é que ele teria que se mudar para Londres. O ano era 1934 e Hawkins não titubeou ao aceitar o convite para se juntar à orquestra de Jack Hylton. No Velho Continente, Coleman dividiu os palcos com grndes músicos europeus, como Django Reinhardt e Stephane Grappelli, e compatriotas residentes ou de passagem por lá, como Benny Carter e Bill Coleman.

Hawkins era tratado como um astro na Europa e percorreu o continente realizando concertos durante os cinco anos em que viveu por lá. Somente em 1939, face à iminência da III Guerra Mundial, ele voltou aos Estados Unidos. Não demorou a causar uma pequena revolução no jazz, com a sua célebre gravação de “Body and Soul”, feita para a Bluebird naquele mesmo ano e que apresenta um dos  mais belos solos de saxofone da história do jazz. O sucesso da gravação foi tão grande, que lhe rendeu o título de “Saxofonista do ano” da revista Downbeat e o inspirou a tentar novos vôos.

No ano seguinte, com a popularidade em alta, Coleman arriscou-se na complicada tarefa de comandar a própria big band, mas o resultado, do ponto de vista financeiro, foi ruinoso. Ele então decidiu liderar apenas grupos pequenos e estabeleceu-se como atração fixa em vários clubes da Rua 52, em Nova Iorque. O jazz passava por sua mais importante revolução, que começaria silenciosamente em um pequeno clube do Harlem chamado Minton’s Playhouse.

Coleman percebeu a força criativa dessa nova música, chamada bebop, e o extraordinário talento dos seus inventores, notadamente Charlie Parker e Dizzy Gillespie. “Bean” foi um dos primeiros músicos da velha escola a assimilar as inovações harmônicas e rítmicas provocadas pelo bebop e atuou e gravou com muitos dos seus expoentes. Inclusive com Parker e Dizzy, naquela que é considerada a primeira gravação oficial do bebop, em 1944.

Por seus grupos passaram, entre outros, portentos como Thelonious Monk, Dizzy Gillespie, Don Byas, Oscar Pettiford, Miles Davis, Max Roach, Howard McGhee, J. J. Johnson, Idrees Sulieman e Fats Navarro, todos intimamente ligados ao bebop. O saxofonista também foi um dos participantes mais assíduos dos concertos promovidos por Norman Granz no projeto “Jazz at the Philharmonic”, entre 1946 e 1950.

Transitando entre a modernidade e a tradição, Coleman realizou concertos e gravações históricas ao lado de músicos que, como ele, eram oriundos do swing. Foi o caso de suas apresentações ao lado de Henry “Red” Allen e Roy Eldridge na edição de 1957 do Newport Jazz Festival. Outro momento soberbo naquela década é o album “Coleman Hawkins Encounters Ben Webster”, também de 1957 e gravado para a Verve, que conta com as participações de Oscar Peterson (piano), Herb Ellis (guitarra), Ray Brown (contrabaixo) e Alvin Stoller (bateria).

Na sua extensa discografia, um álbum merece todos os encômios e mostra, melhor que qualquer outro, as qualidades que fizeram dele um ídolo tanto para os fãs do swing quanto do bebop e do hardbop. Produzido por Orrin Keepnews e gravado nos dias 12 e 15 de março de 1957, para a Riverside, “The Hawk Flies High” traz o veterano o saxofonista à frente de um hepteto formidável: J. J. Johnson no trombone, Idees Sulieman no trompete, Hank Jones no piano, Barry Galbraith na guitarra, Oscar Pettiford no contrabaixo e Jo Jones na bateria.

“Chant” abre o disco com uma energia furiosa. Composta por Hank Jones, é bebop de primeiríssima qualidade, com solos empolgantes, improvisos desafiadores e carradas de swing. O líder mostra as qualidades que fizeram dele a principal influência de Dexter Gordon, John Coltrane e Sonny Rollins, alguns dos seus mais legítimos herdeiros musicais. Outro que tem uma atuação infernal é Pettiford, que extrai do contrabaixo, um instrumento eminentemente rítmico e de uma sonoridade limitada pelos tons graves, harmonias e timbres repletos de texturas.

A fogosa “Juicy Fruit” é um blues acelerado de autoria de Sulieman, cuja performance aqui é uma das mais notáveis em toda a sua carreira. Ele consegue sustentar uma nota por quase dois minutoa, sem claudicar ou sair do tom, numa fabulosa exibição de fôlego e técnica. Johnson também tem momentos fulgurantes e o seguro Jo Jones é um poderoso sustentáculo rítmico. O sopro de Hawk é viril, incisivo, rascante, impetuoso e, virtualmente, arrebatador. Destaque também para o dedilhado fleumático e para as notas impecáveis do sempre elegante Hank Jones.

Composta por William Smith, a balada em tempo médio “Think Deep” possui um portentoso alicerce de blues. A sonoridade volumosa de Hawk e sua tonalidade imponente são uma espécie de conclamação. Impossível deixar de ouvir os seu majestoso chamado e Johnson e Galbraith respondem da maneira mais garbosa possível. O volátil Sulieman, excelente intérprete de blues, acrescenta um pouco de pimenta a essa mistura fascinante e suas intervenções são realmente explosivas.

Único standard do álbum, “Laura” é fruto da parceria entre David Raksin e Johnny Mercer e a versão do grupo é simplesmente grandiosa! Com uma abordagem plácida e uma sonoridade que não perde a eloqüência, Hawkins é a imagem da doçura. Como já havia feito com “Body and Soul”, também aqui a versão do saxofonista se sobrepõe em um novo patamar de excelência. Destaque também para a impactante participação de Johnson, outro formidável intérprete de baladas, com seu discurso melódico aveludado e citações emocionantes de “Tenderly”.

Hardbop de ótima procedência, “Blue Lights” foi composta pelo grande – e subestimado – Gigi Gryce. A introdução fica a cargo do eletrizante Galbraith, logo seguido por um solo de enorme riqueza tonal do sempre surpreendente Sulieman. Tingida de blues e com uma levada infecciosa, a faixa ainda apresenta um Pettiford devastador, não apenas como esteio rítmico, mas também como solista de raro talento. O líder e Johnson trocam frases enérgicas, serpenteantes e inesperadas, dentro da melhor tradição bop.

“Sancticity” é a única composição de autoria do líder incluída no disco e resgata a espontaneidade dos heróicos tempos do swing. Rápido e vibrante, o tema poderia facilmente figurar no repertório de Count Basie. A pulsação é ininterrupta, com uma seqüência de solos – Johnson, Hawkins, Sulieman e Hank Jones – de tirar o fôlego e deixar extasiado qualquer amante do jazz. Se existe um álbum indispensável na longa discografia de Hawkins (e, para dizer a verdade, bem poucos não o são) é este!

No terço final da década de 50, Coleman assinou com a Prestige, por onde lançou uma série de ótimos álbuns, como “Hawk Eyes” (1959), “At Ease with Coleman Hawkins” (1960) e “The Hawk Relaxes” (1961). Sempre atento às novas linguagens do jazz, Hawk, às vésperas de completar 60 anos, também se rendeu às dolentes harmonias da bossa nova, tendo gravado o ótimo “Desafinado” para a Impulse, em 1962, com direito a versões de “O pato”, “Um abraço no Bonfá” e “Samba de uma nota só”. Seu lado mais tradicional o impeliu a gravar com os contemporâneos Pee Wee Russell (“Jam Session in Swingville”, Prestige, 1961) e Duke Ellington (“Ellington”, Impulse, 1962).

O intrépido Hawkins jamais temeu desafios, razão pela qual aceitou dividir os créditos do fantástico “Sonny Meets Hawk” com o discípulo Sonny Rollins, que, juntamente com John Coltrane, era o mais importante e influente tenorista dos anos 60. O encontro histórico foi gravado em 1963, para a RCA Victor, e a sessão rítmica era composta por músicos bem mais jovens que “Bean”, alguns deles bem conhecidos por suas ligações com o jazz de vanguarda: o pianista Paul Bley, os baixistas Henry Grimes e Bob Cranshaw e o baterista Roy McCurdy.

Os problemas com o álcool, todavia, começaram a cobrar-lhe um alto preço e, a partir de 1965 ele praticamente se viu obrigado uma aposentadoria compulsória. Seus últimos anos foram de solitária reclusão, uma terrível ironia do destino para o homem que compôs “Stuffy”, um dos temas mais alegres do jazz. O sopro forte e voluptuoso de Hawkins se calaria para sempre no dia 19 de maio de 1969, por conta de complicações decorrentes de uma pneumonia e da cirrose hepática. Seu corpo foi enterrado no Woodlawn Cemetery, no Bronx, em Nova Iorque.

Os críticos não hesitam em louvar o talento de Hawkins e nem em reconhecer o seu gênio criador. Mas as melhores e mais apropriadas palavras sobre ele não foram proferidas por um crítico e sim por um músico, o saxofonista francês Alix Combelle: “Era como uma catedral. Saía uma tal potência daquele instrumento, uma qualidade, um veludo, um volume... A gente tinha a impressão de que Hawkins estava lá dentro! Geralmente, há uma separação entre o solista e o instrumento, mas, no caso dele, parecia que o som saía do próprio homem”.

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