Amigos do jazz + bossa

segunda-feira, 29 de junho de 2009

O CRISÂNTEMO E O BAOBÁ


O baobá (Adonsonia digitata) é uma gigantesca árvore africana, da família das bombáceas, que pode alcançar até 30 metros de comprimento e seu frondoso tronco pode chegar a mais de 10 metros de diâmetro. Árvore típica das savanas e de regiões semi-desérticas, possui uma enorme capacidade de acumular água em seu interior, o que lhe permite suportar o calor inclemente de regiões tão inóspitas, e pode viver alguns bons milhares de anos.


É um dos maiores organismos vivos do planeta e seu porte majestoso faz com que seja objeto de adoração por parte de diversos povos africanos. Em uma das mais célebres passagens d’O Pequeno Príncipe, Antoine de Saint-Exupéry narra as agruras do singelo principezinho ao tentar, inutilmente, livrar o seu minúsculo planeta de algumas dessas imponentes árvores – o protagonista chega a pedir ao aviador que lhe desenhe um carneiro para que este coma os baobás e, assim, possa se ver livre da praga.


O crisântemo (Chrysanthemum morifolium), por sua vez, é uma planta muito diferente, a começar pelo tamanho, pois mesmo as maiores das quase 100 espécies mal atingem um metro de altura. Trata-se de uma flor originária da China e cultivada ali há mais de dois mil e quinhentos anos, fazendo parte da mitologia local. No Japão, para onde foi levada por monges budistas, logo passou a ser usado como símbolo imperial.


Trazido ao ocidente no século XVII, por sua forma singela e de rara beleza, o delicado crisântemo se tornou enormemente popular e seu nome científico, extraído do grego, significa “flor de ouro”, podendo ser associado tanto ao amor quanto à amizade, de acordo com as tradições locais. Apesar de não requerer maiores cuidados, é uma planta que necessita de clima ameno e boa quantidade de água, sendo bastante improvável que consiga crescer em condições tão adversas quanto aquelas verificadas nas savanas africanas.


Na natureza, portanto, dificilmente se veria duas plantas de origem e compleição tão distintas convivendo em harmonia. Já na botânica do jazz, embora semelhante modalidade de simbiose possa até ser rara, existe um belíssimo exemplo que demonstra não ser impossível tal convivência – com inegável proveito para ambas as espécies. É o que ocorre no disco “East Coasting By Charlie Mingus”, onde dois dos maiores ícones do jazz reúnem seus colossais talentos pela primeira e única vez: Charles Mingus e Bill Evans. O baobá Mingus e o crisântemo Evans atuam aqui de forma tão harmônica e integrada que parecem ter sido feitos para viver juntos.


Em 1957, ano da gravação dessa pequena jóia para o selo Bethlehem, o enfezado Charles Mingus já era um músico prá lá de experiente e um respeitado compositor, vindo de trabalhos com os míticos Lionel Hampton, Charlie Parker, Red Norvo, Illinois Jacquet, Dizzy Gillespie, Thelonious Monk, Max Roach, Miles Davis, Bud Powell e Lennie Tristano. Passou algum tempo na orquestra de Duke Ellington, mas foi dispensado após uma homérica briga com outro rematado casca-grossa, o trombonista Juan Tizol. Nascido em 1922, em Nogales, no Arizona, e criado em Los Angeles, Mingus jamais deixou de trazer consigo a atmosfera agreste do lugar em que nasceu e criou uma das mais fabulosas obras do jazz, como músico, arranjador, band leader e compositor. Em seu currículo, composições sublimes (Goodbye Pork Pie Hat, My Jelly Roll Soul, Open Letter To The Duke) e discos antológicos (Mingus Ah-um, Pithecantropus Erectus, Blues And Roots) servem para dar uma pequena medida do seu incomensurável talento.


De personalidade oposta e sete anos mais novo que o líder, o introspectivo Bill Evans era, à época, um promissor músico iniciante. Nascido em Nova Jersey e graduado pela Louisiana University, Evans tinha um currículo bem menos alentado que o do contrabaixista. A rigor, somente tinha tocado, até então, com músicos de Nova Iorque, como o clarinetista Tony Scott e o guitarrista Mundell Lowe. Por ocasião da gravação de “East Coasting”, havia gravado um único álbum como líder, o “New Jazz Conceptions”, pelo selo Riverside, e o seu segundo disco, “Everibody Digs Bill Evans”, somente veria a luz do sol em 1958, ano em que também se juntaria a Miles Davis, com quem permaneceria por quase um ano. Dono de um fraseado lírico e de uma inesgotável capacidade de enternecer o ouvinte, Evans é considerado por muitos o pianista mais completo do jazz. Além de músico extraordinário, também é o compositor de alguns clássicos absolutos do repertório jazzístico, como “Waltz For Debby”, “Very Early”, “34 Skidoo” e “RE: Person I Knew”.


Para levar a cabo a empreitada, em um ano em que também deu ao mundo os seminais “The Clown” e “New Tijuana Moods”, Mingus convocou, além de Evans, alguns dos seus mais fervorosos colaboradores: o trombonista Jimmy Knepper (que haveria de experimentar, alguns anos mais tarde, a força dos poderosos punhos do chefe), o saxofonista Shafi Hadi, o trompetista Clarence Shaw e o indefectível Dannie Richmond às baquetas. São seis músicas, das quais cinco compostas pelo líder, além de uma emocionante releitura do standard “Memories Of You” (Blake/Razaf). No cd, relançado em 2005, existem takes alternativos de duas faixas.


“Memories Of You” abre o disco com um clima etéreo, com Knepper, Hadi e Shaw revezando-se em belos solos. Evans extravasa lirismo e sofisticação, fazendo o tapete harmônico para os metais em desfile. No aspecto composicional, é interessante notar que o vulcânico Mingus abre mão de sua habitual complexidade harmônica, presenteando o ouvinte com canções mais lineares (mas nunca óbvias), que demonstram a sua total reverência às tradições da música negra (blues, spirituals, dixieland, etc.). A faixa título evoca a influência de Parker, em um bebop com elevada dose de swing. Richmond exibe a sua competência de sempre e Knepper mostra porque é um dos trombonistas mais versáteis do post-bop. É emocionante ver o trabalho de Evans em um contexto tão bopper e perceber quão completo é esse músico fenomenal. O líder se permite atuar com uma invulgar discrição, limitando-se a fazer a marcação enquanto os demais músicos se esbaldam nos solos.


Com um início mais sinuoso, carregando nas tinturas de blues, “West Coast Ghost” é a mais mingusiana das músicas do disco. A disposição dos instrumentos, que vão se agregando aos poucos, com dissonâncias aqui e ali, mostra que além de compositor maior, Mingus era um arranjador soberbo e a algaravia dos instrumentos, que parecem dialogar a esmo, vai se costurando paulatinamente em torno do baixo. Lindos solos de Hadi, Shaw e Evans dão o complemento final a essa pequena gema sonora.


Na balada Celia, composta em homenagem à esposa, Mingus mostra que sabia ser lírico quando queria. Chama a atenção o majestoso entrosamento entre o piano de Evans e o naipe de metais, em mais um espetáculo de delicadeza e sofisticação melódica. “Conversation” é um blues assentado na força do tripé trombone-trompete-saxofone, com merecido destaque para a linha de baixo, que segura a onda com classe e robustez. Em outro tema puxado para o blues (“Fifty-First Street Blues”, cujo nome não nega a origem), quem se encarrega de manter a base harmônica é Richmond, com direito a viradas sensacionais, enquanto Hadi e Shaw dão um show à parte nos solos.


Trata-se, enfim, de um álbum maravilhoso, onde tradição e modernidade, vigor e delicadeza, linearidade e assimetria, cérebro e coração se equilibram de maneira quase poética. Aqui, o elevado senso harmônico/melódico do líder encontra guarida no seio de uma banda extremamente coesa e altamente dotada do ponto de vista técnico, criando assim um momento especial, onde os astros parecem conspirar para que tudo saia perfeito. Em sua transcendência, o jazz demonstra que mesmo à sombra do mais imponente dos baobás é possível colher-se o mais delicado e oloroso crisântemo.



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PS.: Post dedicado ao amigo Caldas Góis Jr., uma figura humana extraordinária e um grande músico, que tem feito um trabalho hercúleo na divulgação da cultura e da música maranhenses (e que o Matraca Digital possa voltar em breve às nossas telinhas!).

sexta-feira, 26 de junho de 2009

A DISCRETA ELOQÜÊNCIA DE UM MESTRE DA GUITARRA


Poucas vezes na história do jazz a capa de um disco disse tão pouco acerca de seu conteúdo quanto a deste extraordinário “A”. Um emaranhado de arame farpado paira, ameaçador, diante de um fundo azul celeste. Talvez a imagem, sombria ao extremo, fosse mais adequada a estampar a capa de um disco de heavy metal. Ou, talvez, a idéia por trás do uso de tão emblemático ícone, que de imediato se associa a prisões ou campos de concentração, seja alertar o ouvinte: cuidado! Por trás do fraseado sutil e relaxado do líder da gravação se esconde um dos músicos mais versáteis e bem dotados, do ponto de vista técnico, que já caminharam pela face da terra. Um verdadeiro lobo em pele de cordeiro ou um ferocíssimo tubarão branco fantasiado de afável golfinho. A se observar a capa por essa perspectiva, então talvez ela diga bastante acerca do álbum e do músico em questão.


Se é certo que a guitarra jazzística tem em Barney Kessel, Wes Montgomery e Joe Pass a sua Santíssima Trindade, não é menos verdade que Jimmy Raney, Jim Hall e Tal Farlow estão bem ali, coladinhos aos três primeiros, disputando cabeça a cabeça uma vaga nesse Olimpo. Aplicadíssimo discípulo do pai fundador Charlie Christian, Raney é um virtuose na mais completa acepção do termo, com total autoridade e absoluto domínio de todas as nuances do seu instrumento, tendo se consagrado como o mais completo dos guitarristas ligados ao cool jazz. De quebra, ainda é um compositor de grande inventividade, com uma obra bastante significativa, que inclui “Minor”, “The Flag Is Up”, “Jim’s Tune”, entre outras.


Da linhagem a que pertencem alguns dos músicos mais melodiosos do jazz, como os saxofonistas Paul Desmond e Lester Young, os pianistas Tommy Flanagan e Hank Jones e os trompetistas Art Farmer e Enrico Rava, Raney agrega a seu fraseado lírico e fluente uma agilidade incomum. Sobre sua maneira de tocar, é necessário que se diga que o guitarrista nunca soube o que é extrair uma nota áspera do seu instrumento. Transitando do mais feérico bebop à mais lânguida das baladas, há uma doçura natural em seu fraseado, que envolve a música tão ternamente quanto um macio chumaço de algodão envolve um precioso conjunto de cristais da Boêmia. Outra característica marcante é a eloqüência de suas frases, calcada em uma aparentemente contraditória economia de notas: Raney é daqueles músicos que privilegia os substantivos e dispensa os adjetivos inúteis, conseguindo, com isso, dizer muito falando bem pouco.


Nascido em 20 de agosto de 1927 em Louisville, Kentucky, James Elbert Raney começou a tocar profissionalmente bastante cedo. Aos 19 anos pontuava no combo do pianista e vibrafonista Max Miller, em Chicago. Em seguida, breves passagens por orquestras de swing – Woody Herman e Artie Shaw – e colaborações com artistas como Buddy DeFranco, Terry Gibbs, Al Haig e Jimmy Lyon. Permaneceu alguns anos com Stan Getz (de 1951 a 1952 e, novamente, de 1962 a 1963) e substituiu Tal Farlow no trio de Red Norvo (de 1953 a 1955). Ao mesmo tempo, desenvolveu uma carreira solo primorosa, com direito a ótimos álbuns, como “2 Guitars” (no qual divide o estúdio com o não menos talentoso Kenny Burrell) e “Jimmy Raney Featuring Bob Brookmeyer”, ao lado do trombonista preferido de dez entre dez músicos do West Coast jazz. De semelhante estirpe, “A” se inscreve com galhardia entre os melhores trabalhos de Raney.


Nas gravações do álbum, Raney contou com a preciosa participação de Hall Overton (piano), Teddy Kotick (baixo) e Art Mardigan (bateria) nas faixas “Minor”, “Some Other Spring”, “Double Image” e “On The Square”. As demais sessões contam com o eficiente trompete de John Wilson, sendo que Nick Stabulas substitui Mardigan na bateria. No repertório, algumas composições do líder e vários standards, que ganham versões que variam do soberbo ao sublime. O disco foi gravado nos dias 28 de maio de 1954 (faixas 1 a 4), 18 de fevereiro de 1955 (faixas 5 a 8) e 08 de março de 1955 (faixas 9 a 12) e é considerado um dos pontos culminantes da carreira do guitarrista.


Não é para menos. Bebop de excelente safra pode ser ouvido nas faixas “Minor” (de autoria do próprio Raney, mas baseada na incandescente “Bernie’s Tune”, de Bernie Miller, Jerry Lieber e Mike Stoler), “Double Image” (que evoca “There Will Never Be Another You” em alguns momentos) e “On The Square”. O guitarrista dedilha seu instrumento com precisão e criatividade, elaborando solos que encantam tanto pela velocidade quanto pela articulação das frases e o diálogo que mantém com Overton, pianista de formação clássica e de grandes recursos técnicos (chegou a elaborar arranjos para ninguém menos que Thelonious Monk), é dos mais fluentes.


Emérito baladeiro, em “You Dont Know What Love Is”, “Whats New” e “Someone To Watch Over Me”, quem dá as caras é o lado romântico de Raney, que extravasa lirismo e delicadeza a cada acorde. Nessas três músicas o diálogo mais veemente é travado com o trompetista Wilson, egresso da orquestra de Les Elgart, que exibe um elevado senso melódico e um inegável bom gosto. Belíssimo trabalho de Stabulas, enquanto o piano de Overton funciona como um discreto interlocutor, mantendo o eixo harmônico centrado nas intervenções da guitarra e do trompete. Na deliciosa “One More For The Mode”, talvez a melhor faixa do disco, o guitarrista faz uma releitura de um tema de Bach, mostrando que a distância entre o autor dos célebres Concertos de Brandenburgo e Charlie Parker não é tão grande assim.


Em “Tomorrow Fairly Cloudy”, um bebop classudo e nada óbvio de autoria de Raney, Wilson demonstra a sua habilidade também na execuções em andamento mais rápidos, o que se confirma ao se ouvir o seu excelente solo em “Cross Your Heart”. “A Foggy Day”, dos irmãos Gershwin, e “Spring Is Here”, da dupla Rodgers e Hart, também ganham versões mais aceleradas, com ênfase, desta feita, no piano de Overton, embora, em ambas, os solos do líder e do trompetista também sejam muito bonitos. Importa salientar que durante todas as 12 faixas as mãos firmes e eficientes de Kotick se encarregam de mostrar porque ele é um dos baixistas mais confiáveis (sempre foi um dos preferidos de Bird) da história do jazz – apesar de habilíssimo, pouco solava, concentrando sua energia na marcação.


No final da década de 60, desiludido com a escassa oferta de trabalho e imerso em problemas com álcool, Raney voltou à cidade natal e passou quase dez anos sem gravar. Em 1975, foi contratado pela gravadora Xanadu, pela qual lançou alguns ótimos discos. Nos anos 80, passou a gravar pela Criss Cross, tendo produzido excelentes álbuns, sempre no formato de trio ou quarteto. Seu filho Doug, além do sobrenome, herdou do pai o enorme talento e é um dos maiores nomes da guitarra jazzística em atividade. Jimmy sofreu, a partir de meados da década de 70, uma rara doença degenerativa, chamada Síndrome de Meniére, que provocava perda progressiva de audição, vertigens constantes e labirintite. Juntou-se à grande orquestra celestial (onde, diz-se, os neons nunca se apagam e o bourbon jamais termina) no dia 10 de maio de 1995, mas deixou uma obra respeitável, na qual “A” se destaca como um dos momentos mais encantadores.


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PS.: Post dedicado ao meu querido amigo Jarbas Couto e Lima, cuja presença luminosa é um oásis de inteligência e lucidez nas vidas daqueles que, como eu, têm a honra de privar de sua amizade.

terça-feira, 23 de junho de 2009

TOCANDO COM PARKER, 30 ANOS DEPOIS DE SUA MORTE


Clint Eastwood não teve dúvidas. Ao escolher os músicos que tocariam na trilha sonora da cinebiografia sobre Charlie Parker, que lançaria em 1988, apenas um nome veio-lhe à mente como sendo capaz de reproduzir com fidelidade o fraseado inconfundível do criador do bebop: o de Charles McPherson.


Posteriormente, ao perceber que ninguém – nem mesmo um dos seus mais dedicados e talentosos discípulos – poderia reproduzir com a perfeição necessária a sonoridade e, sobretudo, os solos de Bird, Eastwood, o engenheiro Bob Fernandez e o produtor musical Lennie Niehaus capitanearam um delicado processo de remasterização de músicas gravadas por Parker nos anos 40 e 50 para a Verve e Savoy e usaram esses temas para compor a trilha, sendo que os demais acompanhamentos ficaram a cargo de monstros sagrados como Walter Davis Jr., Barry Harris, Ron Carter, Ray Brown e outros tantos.


Todavia, McPherson não foi dispensado. Permaneceu com o grupo e participou de três faixas (“Ko Ko”, “Nows The Time” e “Ornithology”), incluídas na trilha sonora, dividindo o sax alto, graças ao milagre da tecnologia, com um músico morto havia mais de 30 anos. Realizou ali, por vias oblíquas, o sonho que acalentava desde meados dos anos 50, quando era um promissor saxofonista baseado em Detroit: tocar com o ídolo e mentor Charlie Parker.


Nascido em 1939 na pequena Joplin, Missouri, Charles McPherson foi criado em Detroit, onde estudou com o grande Barry Harris. Em 1959, quando já era um nome respeitado na cidade dos motores, mudou-se para Nova York. Em 1961, integrou-se à banda de Charles Mingus, com quem permaneceu até 1972. Nesse período, além do trabalho com o celebrado baixista, tocou com figuras de peso, como Eric Dolphy, Art Farmer, Kenny Drew, Toshiko Akiyoshi e Pepper Adams, bem como desenvolveu uma belíssima carreira solo. Trata-se de um verdadeiro “musician’s musician”, isto é, um músico incensado por seus pares, embora pouco conhecido do grande público.


O seu debut como líder se deu em grande estilo, em 1964, com o álbum Bebop Revisited!, gravado para a Prestige, onde o saxofonista paga um emocionante tributo aos grandes heróis do bebop, como Bud Powell, Fats Navarro, Tadd Dameron e, por óbvio, Charlie Parker. No acompanhamento, o antigo mestre Barry Harris marca presença ao piano. Ao seu lado, compondo a confiabilíssima seção rítmica, Albert “Tootie” Heath comanda a bateria e Nelson Boyd pilota o baixo. No trompete, a presença magnética do grande (e também subestimado) Carmell Jones, recém saído da orquestra de Gerald Wilson e às vésperas de juntar-se à banda de Horace Silver, onde participaria do antológico “Song For My Father”.


Uma demolidora versão de “Hot House” (Dameron) abre o disco e mostra que o saxofonista, embora bastante influenciado por Parker, possui personalidade suficiente para trilhar seus próprios caminhos. O duelo com o trompete de Jones (que, a rigor, dá a tônica do álbum inteiro) é incessante, com direito a ótimos solos e a um excelente trabalho de Heath nas baquetas. Em “Nostalgia”, é Jones quem paga tributo ao ilustre antecessor (e autor da música) Fats Navarro, usando e abusando de sua técnica soberba. O anfitrião não se faz de rogado e, com seu fraseado viril, delicia o ouvinte com um dos mais belos solos do disco. Harris exibe seu toque refinado, deixando perceber porque é um verdadeiro mestre quando se fala em harmonia. “Si Si”, de Parker, merece de Jones uma introdução matadora e se mantém em elevado grau de ebulição, sobretudo graças à atuação do líder, enquanto a seção rítmica, em especial Heath, transborda competência entrosamento.


Bud Powell, outro pai fundador do bebop, recebe uma bela homenagem em “Wail”, na qual um inspirado Harris conduz a linha melódica com uma competência invulgar, além de apresentar um solo excepcional – é outro herdeiro prestando a merecida reverência ao mestre. Impecáveis, Jones e McPherson protagonizam outro belíssimo duelo, destacando-se, em ambos, uma sonoridade cheia, sem arestas. Dois standards, “Embraceable You” e “If I Loved You” recebem um delicado e respeitoso tratamento, com destaque para o piano de Harris (extremamente eloqüente em sua proverbial discrição) e para o fraseado de McPherson – mais que aos ouvidos, essas duas baladas se dirigem ao coração dos ouvintes. Em ambos os casos o sax do anfitrião soa pungente, prenhe de lirismo e emotividade, com ecos de outra grande influência de McPherson, o fenomenal Johnny Hodges.


“Variations On A Blues By Bird” talvez seja o momento mais sublime do disco: trata-se de uma composição pouco conhecida de Parker, presente em uma obscura gravação da Dial, e que McPherson ouvia incessantemente em seus anos de formação. Bebop de altíssima combustão, a canção é conduzida em andamento ultra-rápido, com citação a outras composição de Bird, em especial “Scrapple From The Apple”. Os incendiários McPherson e Jones ateiam fogo em tudo o que encontram pela frente, no que são obsequiosamente auxiliados por Harris, Heath e Boyd, que se encarregam de fornecer aos primeiros quantidades incalculáveis de gasolina. Um disco espetacular, capaz de fazer a alegria de qualquer jazzófilo!


O grande Charles McPherson mora em San Diego, Califórnia, para onde se mudou em 1972, e continua trabalhando intensamente. Nos últimos anos tem excursionado com regularidade e participando de festivais ao redor do mundo, além de haver lançado discos bastante aclamados pela crítica especializada. É um dos pouquíssimos músicos em atividade que pode estufar o peito e dizer: “Eu toquei com Charlie Parker!” – pouco importando que a sessão tenha ocorrido mais de 30 anos depois da morte de Bird.

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PS.: Post dedicado ao amigo APÓSTOLO, grande fã de Bird e um dos mais atuantes colaboradores do CJUB (outra acolhedora casa virtual).

sexta-feira, 19 de junho de 2009

LEALDADE: UMA HISTÓRIA DO DETETIVE EDDIE EVANS NA CIDADE DO PECADO


“Sentimental Journey”. Até o final da música, a agulha irá percorrer exatos 9 minutos e 59 segundos. Nenhum a mais. Nenhum a menos. Já conferi umas duzentas vezes. Sento na velha poltrona e rememoro, ainda um pouco trêmulo, as últimas 48 horas. Não dormi um segundo e não quero dormir enquanto o grande Jackie estiver rolando na vitrola. “4, 5 and 6”, um grande disco. Posso esperar mais nove minutos e cinqüenta e nove segundos pra pregar o olho. Posso esperar a bolacha rodar inteira.
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Meu nome é Edward “Eddie” Evans e sou um tira. Não, não um tira qualquer, sou um tira de Nova Iorque. Essa é a minha cidade. Por seus esgotos imundos trafegam todas as coisas degradantes que o homem já concebeu. Prostituição, drogas, roubos, assassinatos, corrupção – aqui é o paraíso do pecado. A Grande Maçã. A cidade que nunca dorme, mas que embala seu esqueleto podre ao som do jazz. Minha função é tentar tirar uma pequena parcela da escória das ruas e colocá-la na cadeia. Às vezes, não dá pra guardar tanto lixo atrás das grades – e é nesse momento que eu faço meu serviço com mais prazer. Pode me chamar de fascista, mas é assim que as coisas funcionam. Já vi sujeira demais pra ter ilusões românticas.

Ned Cassidy era um bom tira – bom pai de família, ficha exemplar, foi meu parceiro durante quatro anos na 81 DP. Não teve a menor chance... Seis tiros. Pistola automática – provavelmente uma Browning 9mm, mas o resultado da autópsia só sai na semana que vem. Não interessa. Eu jurei que o bastardo que fez o serviço ia pagar caro. 48 horas. Sem pregar o olho. Em Nova Iorque você pode saber qualquer coisa, basta ter dinheiro ou contatos – ou ir buscar as informações à bala. Um tira honesto não tem dinheiro nem contatos. Não tive muita opção. Mal Waldron conduz a melodia com a classe de sempre – é um mestre. Jackie tá na capa fumando um cigarro e eu acendo um em sua homenagem. Já vi o cara dezenas de vezes, mas prefiro a fase dos anos 50. Prestige. Um grande disco.

O jazz é a minha religião. É a única coisa que existe mim e a insanidade absoluta que habita em cada beco mal-cheiroso dessa cidade. O Village Vanguard e o Birdland são meus santuários particulares e seus palcos, os altares profanos a quem dirijo minhas preces. Jackie emenda um solo, eu dou uma tragada e viajo com ele. Lembro claramente que desci a 7ª Avenida, cruzando a Rua 42. Passava das duas horas e ninguém com um mínimo de juízo ousa trafegar por ali nesse horário – mas eu não tenho juízo algum.

Encosto o carro, engatilho meu Smith Wesson 38 – ele nunca engasga, ele nunca trava sozinho, ele é infalível – e chamo o “Rato”. Doug O’Malley, o “Rato” é um traficantezinho irlandês que às vezes me serve de informante. É um bandidinho de quinta, tá na base da cadeia alimentar, mas quando se mata um tira, tem sempre alguém que vacila e entrega o serviço. Doug tem um ouvido espetacular pra essas coisas, mas se for visto conversando com um tira vai dar um passeio pelo Rio Hudson com um belo par de botas de cimento. Eu faço de conta que compro um papelote, entrego 20 dólares a ele e peço apenas um nome. Ele regateia e eu mostro o 38. O som sai abafado, quase inaudível: Jimmy Chan.

Jogo a fumaça longe. “Why I Was Born?” – título apropriado pra uma canção. Faz pensar. Não cheguei a conclusão alguma, mas me mandei pra Chinatown. Um bairro que é um inferno. Gente à beça. Carro à beça. Crime à beça. É difícil entrar lá e, mais ainda, sair vivo de lá. Jimmy Chan é o pior inimigo que alguém poderia ter. É influente, tem ligações com todo o submundo e é um dos quatro ou cinco sujeitos mais violentos de Nova Iorque. É um sádico – já vi o trabalho dele algumas vezes. Ned mandou ele pra cadeia há uns oito ou dez anos. Fraude fiscal. Um sujeito que matou mais de vinte pessoas foi preso por fraude fiscal. Passou três anos em cana e quando saiu estava muito mais poderoso do que quando entrou. Tem uns quarenta tiras na folha de pagamento e mais uns cinco vereadores, dois promotores e um juiz. Não ia ser nada fácil.

Tenho um amigo em Chinatown, mas entrar ali às quatro da manhã ia ser suicídio – e eu não tava a fim de morrer antes do Jimmy. Parei em uma lanchonete próxima, comi um hamburger com cerveja e esperei. Sete horas da matina. Muita gente na rua, mas um cara como eu chama atenção ali. Donald Byrd manda ver um solo fantástico em “Contour” e eu agora me vejo entrando na loja do meu chapa Li Cheng. Foi o melhor aluno da academia de polícia da sua época e o melhor instrutor que já tive. Tá aposentado, mas mantém embaixo do balcão uma espingarda calibre 12 e uma Magnum 357, só por precaução. Ninguém mexe com ele e ele não mexe com ninguém. Mas Ned também era amigo dele. E ele sabe o que eu tô fazendo ali.

A gente não conversa muito. Tudo o que eu quero saber é: quando, onde e quantos. Jimmy não anda com menos de quatro guarda-costas. Todos chineses e leais até a morte. Não dá pra pensar em uma estratégia de infiltração. Vou ter que esperar o melhor momento e fazer uma abordagem direta. Li coloca a placa de “Fechado” na porta da loja e me conduz por um corredor estreito, claustrofóbico. A gente sai em uma lavanderia, do outro lado do quarteirão. O QG do Jimmy fica a menos de 10 metros dali, do outro lado da rua. Li me tranqüiliza – os caras da lavanderia não viram nada, essa é a lei por aqui. Uma limusine preta tá parada na porta do Jimmy. Provavelmente blindada. Dois caras entram na frente. Jimmy entra logo em seguida e um outro carro, com mais dois caras, segue a limusine. Quatro capangas. Não vai ser nada fácil.

Levanto e viro o disco. Rezo pra que alguém invente um disco de um lado só – esse negócio de trocar o lado do disco é um saco! Pego uma Bud e ouço Parker emendando um “Confirmation”... Não, não é Parker, é o velho Jackie. Jackie é o herdeiro do cara, não tem jeito – já vi ele fazer isso ao vivo. Art Taylor e Doug Watkins segurando a onda. São 48 horas sem dormir. Eu e a cidade. Mas vai ter uma hora em que eu vou ter que parar. Ela não. Ela não pára. Nunca. Fico escondido num quartinho, no segundo andar da lavanderia. Se alguém desse com a língua nos dentes, eu ia dançar bonito. Não ia ter nem tempo de pensar. Essa possibilidade me deixa alerta. Li aparece de madrugada. Tá armado. Provavelmente, duas pistolas. Não fala nada, só acena de leve com a cabeça. Chegou a hora.

A limusine tá parada na rua deserta. Escuro. Todas as janelas que dão pra rua estão fechadas. Tem alguma coisa acontecendo. Jimmy é temido, mas não respeitado. Os caras daqui têm medo e ódio dele, mas nenhum respeito. Ele já estuprou e matou muita gente por aqui. Li sabe disso e acionou seus contatos. Ninguém vai mexer uma palha pra ajudar o Jimmy. Ninguém sabe de nada. Ninguém viu nada. Tem um monte de gente querendo dar o troco e isso é uma ótima notícia pra mim. Tudo que a gente tem a fazer é entrar na fortaleza do cara, enfrentar cinco sujeitos armados até os dentes e terminar o serviço.
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“When I Fall In Love”, outra tijolada. O olhar de Diane me acompanha enquanto eu desço a escada pela última vez. “When I Fall In Love”, outro título emblemático. Não vai acontecer de novo. Não nasci pra essas coisas. Eu penso em Diane algumas vezes, mas vou passando muito bem sem ela. Exceto quando a chuva cai e em Nova Iorque chove à beça. Sacudo a cabeça, tomo outro gole e volto a lembrar do que aconteceu, quadro por quadro.

O cara que tava na portaria caiu fácil, fácil. Descuidado. Excesso de confiança. Uma faca fez o trabalho em segundos – o cara nem teve tempo de estrebuchar. Li sempre foi muito bom com essas coisas. Conseguimos entrar sem problemas. Um corredor estreito e chegamos na sala. Uma mesa grande, com vestígios de cocaína e algumas garrafas vazias. Bom sinal. No chão, duas vagabundas dormem abraçadas. Nuas. Engatilho o 38 e sigo adiante. Um dos seguranças, meio bêbado de sono e álcool, aparece do nada, bem na minha frente. Lento, muito lento o babaca. Tive tempo de mirar antes de apertar o gatilho. Cento e tantos decibéis de chumbo e pólvora explodem na cara do sujeito. Mas a surpresa tava acabada.

Um farfalhar metálico começa a aumentar e o som vem da minha direita. É uma Uzi. Israelense. Uma boa arma, mas não tem muita precisão. Sorte minha. Li já está a postos e dou uns dois tiros só pra distrair o sujeito com a Uzi. Ele não cai na minha armadilha. Sabe que eu não estou sozinho. Ele pára e começa a gritar. Outra rajada, bem alta – provavelmente é uma Thompson. Pedaços da parede voam em minha direção. Eu tô protegido por uma coluna mas não vejo o Li. Dou mais três tiros e recarrego a arma. Agora são três caras atirando em minha direção. O Jimmy tá bem perto. Pausa no tiroteio e as duas vagabundas passam correndo. Não vejo o Li, mas ele se manifesta. Dois tiros e um dos caras cai. Mais dois tiros e a Thompson se cala. Só resta o Jimmy.

Dou um salto e fico bem próximo ao corredor de onde vinham os tiros. Cautelosamente, dou alguns passos. Tem alguma coisa na minha frente e percebo que são os pistoleiros do Jimmy. Imóveis. Li deixou o caminho livre pra mim. Sinto algo zunir bem perto do meu ouvido esquerdo. Me abaixo no reflexo e a parede onde eu estava encostado recebe dois petardos. Um segundo e minha cabeça teria ido pro espaço. Li faz um sinal – ele tá atrás de mim e eu volto pro começo do corredor. Dou a volta e saio por um pequeno pórtico. Li capricha na fuzilaria. Usa seu arsenal pra distrair o Jimmy enquanto eu dou a volta. É muito tarde quando o canalha percebe o truque: já tá na minha mira.

Vinte anos passam em meus olhos em um segundo. Vejo um desajeitado Ned tentando segurar a xícara de café, enquanto entra na viatura. Vejo o cadáver mutilado de uma garota chinesa, morta por Jimmy porque não quis sair com ele. 16 anos. A família não ajudou na investigação, mas todo mundo sabia quem tinha feito o serviço. Dou um único tiro. Preciso. Como um solo de Jackie. A cabeça do bastardo pende para o lado e depois pra trás. Eu nem me viro pra olhar a queda. O rastro de sangue e miolos deixado na parede diz tudo que eu preciso saber. Li não abre a boca, apenas sacode a cabeça e mostra a saída. Não vai aparecer nem nos jornais. No máximo, uma notinha sobre um enfarte sofrido pelo próspero comerciante chinês Jimmy Chan. Eu não me importo. Fiz o que tinha que fazer.

Eu sou um tira de Nova Iorque. Edward “Eddie” Evans. Essa é a minha cidade. Minha função é tentar tirar uma pequena parcela da escória das ruas e mandar pro xadrez. Às vezes, não dá pra guardar tanto lixo na cadeia – e é nesse momento que eu faço meu serviço com mais prazer. Hoje eu tô muito feliz. Não precisei mandar ninguém pra cadeia. Essa é a minha cidade e agora eu vou dormir ouvindo o velho Jackie. Tô acordado há 48 horas. Na vitrola, os últimos acordes de “Abstraction” anunciam a manhã que já chegou.


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PS.: Post dedicado ao novo amigo (e xará) Érico Peixoto que, entrincheirado no blog alternarte, dispara certeiras rajadas de inteligência e sensibilidade contra a banalidade e a mediocridade que assolam os nossos olhos e degradam os nossos ouvidos – espero que Chandler e Hammett também façam a sua cabeça.

terça-feira, 16 de junho de 2009

UMA BICICLETA EMOLDURANDO AS PAREDES DA SALA DE ESTAR


Horace Silver é um assombro! Em sua alentada discografia não há espaço para um único disco mediano. Esse soberbo pianista, que possui uma ligação muito especial com o Brasil, jamais gravou um mísero álbum irrelevante e, merecidamente, inscreveu seu nome com letras douradas na galeria dos maiores nomes do jazz de todos os tempos, como músico, arranjador e compositor de raro talento. Ainda por cima, é a prova mais avassaladora da falsidade do argumento de que as drogas seriam uma fonte primária ou a causa principal de um propalado aguçamento da inspiração – afinal, o compositor de “Doodlin”, “Nica’s Dream” e “Song For My Father” é um “careta” convicto.


Horace Ward Martin Tavares Silver (o pai americanizou o próprio nome quando casou com a mãe de Horace), nasceu a 2 de setembro de 1928, em Norwalk, Connecticut. Filho do imigrante cabo-verdiano John Tavares Silva (depois Silver), desde muito cedo, revelou uma excepcional aptidão para a música. O ambiente familiar contribuía para isso – de um lado, a mãe o levava aos cultos da igreja que freqüentava, onde o pequeno Horace conheceu os spirituals; do outro, o pai, violonista amador e emérito festeiro, que promovia concorridas reuniões para os patrícios e onde a animada música da terra natal rolava à vontade na vitrola da família Silver.


Sempre estimulado pelo pai, que lhe comprou o primeiro piano ainda na infância e o pôs para estudar com o severo organista de uma igreja da cidade, Horace foi um aluno disciplinado e bastante dedicado. Em 1948 mudou-se para Hartford, onde integrou um trio local. Em 1950, o trio acompanhou Stan Getz em uma apresentação na cidade. O saxofonista gostou do que ouviu e contratou os três para acompanhá-lo em uma breve turnê – que se transformou em uma parceria de quase dois anos – e o nome de Silver foi ficando conhecido nos meios jazzísticos. No mesmo ano, mudou-se para Nova York e ali pôde tocar com astros da estatura de Charles Mingus, Roy Haynes e Lou Donaldson. Acompanhou os ídolos Coleman Hawkins e Lester Young e conheceu o notável Art Blakey, ao lado de quem fundaria, em 1954, os Jazz Messengeres, onde permaneceria até 1956.


Contratado pela Blue Note, passou quase 30 anos na companhia e lançou discos históricos, destacando-se os badalados “Song For My Father”, seu maior sucesso comercial, “Horace-Scope”, “Six Pieces of Silver” e “Blowing The Blues Away”. Após sair dos Messengers, montou um quinteto, por onde passaram, entre outros, os trompetistas Kenny Dorham, Carmell Jones e Blue Mitchell, os saxofonistas Junior Cook, Joe Henderson e Hank Mobley, os baixistas Gene Taylor, Teddy Kotick e Teddy Smith e os bateristas Louis Hayes, Roy Brooks e Roger Humphries. Em 1957 lançou uma pequena obra-prima. “The Stylings Of Silver” dificilmente é relacionado entre as obras mais importantes do pianista (sequer consta da completa discografia do pianista indicada no Penguin Guide de 2006), mas nesse disco se encontra o embrião de muito do que o pianista iria fazer na década de 60, quando viveria o seu apogeu criativo.


Secundado por uma banda excepcional (Art Farmer no trompete, Hank Mobley no sax tenor, Teddy Kotick no baixo e Louis Hayes na bateria), Horace ajuda, com esse álbum fabuloso, a compreender a transição do bebop para o hard bop (do qual foi um dos mais eméritos criadores), sinaliza uma aproximação com a soul music (movimento que se consolidaria na década seguinte) e, de quebra, dá uma demonstração do seu superlativo talento composicional – é o autor de cinco das seis músicas gravadas. Percebem-se claramente ecos de Ellington, sua maior influência, especialmente na lindíssima versão de “My One And Only Love”, com o pianista mostrando que, além de transitar com rara maestria em ambiente mais “funky”, ele também sabe ser puro lirismo. Nem precisa dizer que Art Farmer – baladeiro por excelência – rouba a cena, embora o solo de Mobley também seja lindíssimo.


Voltando à atmosfera incandescente que permeia as demais faixas, o disco abre com a ótima “No Smokin”, um hard bop clássico, no qual Silver exercita a notória velocidade de seus dedos. Um trabalho de pratos atordoante é a contribuição de Hayes para a sessão, com direito a um grandioso solo ao final, que ainda tem como atrativo um excelente duelo entre Farmer e Mobley (como sempre, muito à vontade em um contexto mais “hot”). Na complexa “The Back Beat”, cheia de variações melódicas, o bebop é o mote condutor, com destaque para os solos antológicos de Mobley e Farmer. O anfitrião mantém-se quase o tempo todo ao lado de Kotick e Haynes fazendo a base rítmica, mas quando sola revela a importância de Monk (outra confessa influência) em sua formação.


“Souville” é puro blues. Baixo fazendo a marcação juntamente com o piano, trabalho magistral de Hayes nos pratos e metais altamente coesos. Mobley, mais uma vez, exibe sua técnica de forma avassaladora, construindo um dos melhores solos do disco e Silver faz uma discreta citação da clássica “Riders In The Sky”. As experimentações rítmicas de Silver são sintetizadas na ótima “Home Cookin”, talvez o grande destaque do disco. Bebop de ótima cepa, poderia ter sido composta por Gillespie (com quem Farmer soa extremamente parecido ao longo da sessão – quase é possível vê-lo com as bochechas infladas a la Dizzy) ou Parker, mas embora seja uma composição harmonicamente elaborada, sente-se nela a onipresença inefável do blues. Em “Metamorphosis”, outra composição nada linear e cheia de variações, um exuberante Silver serpenteia entre as intrincadas estruturas harmônicas, fazendo jus ao título, que sugere transformação. Novo show da dupla Farmer-Mobley, atuando com uma competência invulgar.


Relançado em 2002 com a habitual maestria de Rudy Van Gelder na remasterização, o álbum soa límpido e fresco, como se tivesse sido gravado ontem. Como curiosidade adicional, a capa, cuja fotografia foi tirada por Francis Wolff, foi a primeira a usar diversas cores em seu design (este, a cargo de Red Miles), contrariando a tendência de usar cores “chapadas”, que era uma das mais evidentes características gráficas da Blue Note. Um álbum irretocável, digno de figurar com destaque em qualquer prateleira e, certamente, um dos mais representativos do gênio criativo e avesso a qualquer espécie de preconceito musical de Silver.


Sobre suas afinidades com o Brasil, onde veio pela primeira vez em 1964 e voltou inúmeras outras vezes, o Mestre Lula, uma das maiores autoridades brasileiras em jazz, conta esta saborosa história, recolhida da sessão Histórias do Jazz, postada no blog do CJUB: “Num belo sábado de sol, parti com minha bicicleta para a praia de Icaraí onde tínhamos um futebol organizado, com onze de cada lado, camisas, balizas, redes e tudo o mais. Quase chegando, vi no calçadão a figura de Horace Silver. Freei a bicicleta e fiquei aguardando quem o acompanhava. Era Sérgio Mendes, que vinha saboreando um sorvete e quando me viu falou: "Olha o homem aí"! Saltei da bicicleta para as apresentações e para minha surpresa o pianista pediu para dar uma volta. Claro que acedi e ele saiu pedalando pelo calçadão como qualquer niteroiense”. Não se sabe se é verdade a história (espalhada por Sérgio Mendes) de que o Mestre Lula, depois desse dia, mandou empalhar a bicicleta e pendurá-la na parede de sua sala de estar, mas que Silver mereceria tal deferência, mereceria!


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PS.: Post dedicado ao Mestre Lula, um dos timoneiros da belonave CJUB e baluarte na luta pela defesa intransigente do nosso bem estar auditivo.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

DE HAVANA A NEW ORLEANS A BORDO DO TROMBONE DE LOU BLACKBURN


Lou Blackburn é mais um talentoso músico, compositor e arranjador que jamais mereceu a necessária atenção por parte do público e da crítica especializada. Seu nome sequer teve direito a uma singela resenha no Penguin Guide (2006), um dos mais completos guias de jazz. Os motivos? Talvez Freud ou Jung, mais aptos a destrinchar as insondáveis veredas da mente humana, consigam dar uma explicação cientificamente plausível. O certo é que dificilmente se verá o seu nome entre os mais badalados trombonistas do jazz, como J. J. Johnson, Kai Winding, Slide Hampton, Bob Brookmeyer ou Curtis Fuller. No entanto, os predicados técnicos para ombrear-se a esses gênios estão mais do que presentes em Blackburn. Seu fraseado é robusto, envolvente e extremamente melódico, lembrando bastante o nosso Raul de Souza. Além disso, tem uma pequena, mas muito interessante, obra como compositor.


O trombonista, nascido em 12 de novembro de 1922, na pequena cidade de Rankin, na Pensilvânia, tocou com grandes nomes do jazz, como Lionel Hampton, Harold Land, Cat Anderson, Paul Horn, Oliver Nelson, Charlie Ventura e Gerald Wilson, construindo uma sólida reputação entre os músicos do West Coast. Excursionou algum tempo com Charles Mingus, tendo participado das gravações do raro Mingus At Monterrey, de 1964, numa sessão que incluía, entre outros, o pianista Jaki Byard e o saxofonista Charles McPherson. Em outro grande momento, acompanhou o seu xará Lou Rawls no clássico “Tobacco Road”, de 1963.


Blackburn foi um ativo músico de estúdio, participando de gravações de inúmeras trilhas sonoras para o cinema e a TV. Também emprestou sua versatilidade e seu talento à música pop, tendo gravado com os Beach Boys e os Righteous Brothers, entre muitos outros. Apesar de haver se iniciado profissionalmente em orquestras de swing, o trombonista trafegava com extrema desenvoltura pelo bebop cerebral e pelo contagiante hard bop. Espírito aberto, ele também absorveu a influência de outros estilos musicais, como a soul music, a bossa nova, o blues e os ritmos latinos em geral e os incorporava com maestria ao idioma jazzístico.


Apesar de haver gravado bem poucos discos como líder, seus dois álbuns “Two Note Samba” e “Jazz Frontier”, reunidos em um único cd intitulado “The Complete Imperial Sessions” e lançados em 2006 pela Blue Note, dão uma boa amostra do seu talento incomum. A azeitadíssima banda que o acompanha é formada por Freddie Hill (trompete), pelo genial Horace Tapscott (piano), por John Duke (contrabaixo) e por Leroy Henderson (bateria). Um alegre desfile de ritmos permeia todo o disco, revelando todo o leque de influências sonoras do trombonista.


Abrindo o álbum, a eletrizante “Jazz Frontier”, um hard bop prá Horace Silver nenhum botar defeito. Em seguida, “Perception” e seu discreto toque de blues. Em ambas, o trombone do líder (e compositor dos temas) se destaca por sua inventividade e por seus solos altamente originais. Nas emocionantes “I Cover The Waterfront”, “Blues For Eurydice” e “Song For Delilah” (esta com um leve acento oriental), quem merece especial atenção é o trompete de Freddie Hill. Um dos pontos altos do disco é a climática “17 Richmond Park”, também de autoria do líder, com sua profusão de variações harmônicas e um diálogo arrebatador entre Blackburn e Tapscott.


Um agradável sabor latino emana de “Harlem Bossa Nova” e “Jazz-A-Nova”, mais puxadas ao calipso que à bossa nova propriamente. Já a nossa “Manhã de Carnaval”, de Luiz Bonfá e Antônio Maria, merece uma interpretação rica – e irreverente – onde as variações harmônicas transitam entre estilos os mais diversos, da valsa ao bebop, com um resultado surpreendentemente belo. “Two Note Samba”, embora homenageie o nosso adorado “Samba de uma nota só” é, em verdade, uma rumba estilizada, que poderia ter sido composta por qualquer um dos veneráveis integrantes do “Buena Vista Social Clube”.


“Skorpio”, “Ode To Taras” e “Grand Prix” são três musculosos had bop, com ótima interação do naipe de metais. Uma feérica releitura de “The Clan”, do grande Curtis Fuller, é o veículo encontrado por Blackburn para exibir um talento invejável. Velocidade, criatividade e perfeccionismo são as características de sua antológica execução, enquanto o piano de Tapscott providencia a passarela sonora sobre a qual o inspirado trombonista desfila muito à vontade. A clássica “Dear Old Stockholm” recebe um tratamento harmônico diferenciado, com um início bem mais lento que o habitual e, em seguida, vai acelerando até se tornar um bólido sonoro irrefreável. A bateria de Leroy Henderson, com um magnífico trabalho com os pratos, merece especial atenção.


Outro momento sublime é a doce interpretação de “Stella By Starlight”, onde paira soberano o trombone do líder, numa interpretação prenhe de lirismo e delicadeza. “Jan Bleu” é um hard bop nervoso, dissonante, com absoluto destaque para o piano caudaloso de Tapscott e para o baixo pulsante de John Duke. “Secret Love” evoca um agradável passeio pelas ruas de New Orleans, com direito a um solo magistral de Tapscott e a uma discreta citação a “When The Saints Go Marching In”, fazendo com que o ouvinte possa até sentir delicioso aroma do tradicionalíssimo gumbo.


Um disco extraordinário e que merece audição atenciosa, com sua infinidade de alternativas harmônicas e suas elaboradas texturas sonoras. No início da década de 70, Blackburn se mudou para a Europa (Suíça e Alemanha), onde permaneceria até a sua morte, em 1990. Jamais perdeu o apetite por novas sonoridades, tendo integrado a Orquestra Mombassa, dedicada a um interessante crossover entre o jazz e a música africana, além de haver tocado com diversos jazzistas estabelecidos no continente europeu, como Wolfgag Khöler, Henar Vincent e Ugonna Okegwo. Um músico de extraordinários recursos técnicos, que passou boa parte de sua vida tentando alargar as fronteiras do jazz e fazê-lo dialogar fraternalmente com outros estilos. Pelo que se ouve nesse álbum, ele obteve bastante êxito nessa nobre missão.


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PS.: Post dedicado ao amigo Pituco, mui digno embaixador do JAZZ + BOSSA na Terra do Sol Nascente.

terça-feira, 9 de junho de 2009

UM DEUS PASSEANDO PELA BRISA DA TARDE


Quando alguém é muito grande, dentro da atividade a que se dedica (Chaplin no cinema, Eisntein na física, Pelé no futebol, etc.), é muito difícil escrever sobre essa personalidade sem recorrer a velhos e surrados clichês. Portanto, para falar de Edward Kennedy Ellington, nascido a 29 de abril de 1899, em Washington – D. C., primeiramente haverei de falar de quatro outros gigantes do jazz. O primeiro deles é Thelonious Sphere Monk, um confesso tributário da arte e das inovações harmônicas concebidas pelo genial Duke. Tanto é que em 1955 gravou, pela Fantasy, o excepcional “Plays Duke Ellington”, ao lado dos luminares Oscar Pettiford e Kenny Clarke, considerado uma das suas mais consistentes obras como intérprete. Monk, sempre que instado a falar sobre suas influências, destacava como a primeira delas a figura ensolarada do fabuloso Duke e a gravação desse álbum é a prova mais veemente dessa admiração incondicional.

Outro gigante a que se recorre antes de falar sobre Duke é Charles Mingus. O contrabaixista que viria a se tornar um dos três ou quatro mais importantes compositores da história do jazz – para além de seu exponencial talento como instrumentista – passou uma breve temporada na orquestra de Ellington. Sua saída foi precipitada por uma briga com o trombonista Juan Tizol e a parceria, que se afigurava promissora, teve que esperar algumas décadas para se viabilizar, exatamente até a gravação do genial “Money Jungle”. Nesse disco reverencial, Mingus se dispõe a ser, juntamente com o outro gênio Max Roach, um singelo acompanhante para o Duke executar uma das suas obras mais soberbas. Sobre o álbum, o crítico George Wein, nas linner notes, escreveu: “Ellington! Mingus! Roach!! Um triunvirato, não um trio”. Não bastasse haver interpretado em seus discos diversas composições de Ellington, Mingus ainda haveria de dedicar à sua influência maior a lindíssima “Open Letter To The Duke”.

O terceiro gigante é Miles Davis. Goste-se ou não dele, o trompetista esteve presente em todos os movimentos mais importantes do jazz, seja como um discreto coadjuvante (bebop) ou como um destacado protagonista (cool jazz, hard bop, jazz modal, fusion) – sendo que de alguns desses movimentos pode até reivindicar a paternidade (não sem uma boa briga, haja vista a quantidade de outros pais dispostos a reconhecer como seus esses filhos, à exceção do controverso fusion). É dele a seguinte frase, dita num momento de singular e improvável modéstia: “Todos os músicos deveriam um dia se reunir e agradecer a Duke de joelhos, por tudo o que ele fez pela música norte-americana”.

Complementando a frase de Miles (ou enxugando-a para que ela possa conter a exata dimensão da grandeza de Ellington): “por tudo o que ele fez pela música”, não apenas a norte-americana. Seu talento como pianista, compositor, arranjador e band-leader não encontra paralelo na história do jazz e da música popular em geral. Por sua orquestra passaram alguns dos melhores dentre os melhores: Jimmy Blanton, Juan Tizol, Ben Webster, Cootie Williams, Johnny Hodges, Paul Gonsalves, Ray Nance, Russel Procope, Clark Terry, Harry Edison, Louie Bellson, Cat Anderson, entre incontáveis outros. Complemente-se dizendo que muitos desses homens jamais gravaram ou se apresentaram fora do contexto da orquestra do Duke, em um comovente exemplo de fidelidade e dedicação.

Ellington está entre os maiores compositores do repertório clássico da grande canção americana, ombreando-se a monstros sagrados como Irving Berlin, Cole Porter, Richard Rogers e George Gershwin. Nenhum – e nenhum mesmo – outro compositor foi tão gravado pelos músicos de jazz. Tampouco conheço algum outro músico de jazz que tenha inspirado tantos outros colegas a gravar discos inteiros em sua homenagem. Monk, como já foi dito, gravou o seu tributo. Chico Hamilton (num belíssimo disco que contou com a presença avassaladora de Eric Dolphy) fez o mesmo. Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan gravaram seus songbooks dedicados a Ellington. O Modern Jazz Quartet, Martial Solal, Kenny Burrell, McCoy Tyner, Zoot Sims e Oscar Peterson também fizeram, através de álbuns soberbos, suas leituras da produção do Duke. E que produção! De sua ourivesaria saíram jóias de incomensurável beleza como “Solitude”, “In A Sentimental Mood”, “Satin Doll”, “Sophisticated Lady”, “Do Nothing Till You Hear From Me”, “Mood Indigo”, “Prelude To A Kiss”, “Daydream” e centenas de outras obras-primas.

Ao contrário de outros pais fundadores, Ellington jamais foi refratário à evolução do jazz e sempre transitou com muita desenvoltura entre estilos tão díspares quanto o dixieland tradicional e o bebop revolucionário de Parker e Gillespie, embora a maior parte da sua produção possa ser, cronológica e estilisticamente, atribuída à escola do swing. E é nessa dicotomia entre tradição e modernidade característica da personalidade do Duke que entra o quarto gigante da nossa breve história, John Coltrane, um dos maiores inovadores do jazz e outro fã confesso, com quem dividiria o estúdio para a gravação do álbum “Duke Ellington & John Coltrane”.

Gravado em 26 de setembro de 1962, para a Impulse, este disco é um clássico memorável por muitas razões. Primeiro, por apresentar o Duke tocando em um formato não muito usual – apenas piano, saxofone (tenor e soprano), baixo (a cargo de Jimmy Garrison e Aaron Bell, que se revezam) e bateria (Elvin Jones e Sam Woodyard fazem o mesmo que os baixistas). Segundo, por permitir a Ellington que exiba todo o seu conhecimento do idioma jazzístico, indo do blues ao bebop, com direito a passagens pelo swing ortodoxo e até a pinceladas de free em algumas faixas. Terceiro, por permitir a todos os músicos que exibam uma competência técnica superior em seus respectivos instrumentos. Quarto, por reunir um repertório absolutamente magnífico, com cinco composições do Duke, uma de Coltrane e uma de Billy Strayhorn.

Uma atmosfera sofisticada e intimista permeia o álbum do início ao fim. Na primeira faixa, uma releitura arrebatadora de “In A Sentimental Mood”, com o piano bailando por sobre a melodia enquanto Coltrane desfila toneladas de lirismo. Na sessão rítmica, Aaron Bell e Elvin Jones dão o suporte necessário para o vôo soberano dos respectivos patrões. “Take The Coltrane” é uma curiosa incursão de Ellington pelas águas do free, com momentos bastante calcados no estilo e outros mais assentados no bebop “tradicional”. Uma bela homenagem ao parceiro mais jovem, que retribui com alguns dos solos mais surpreendentes do disco, aqui escudado por seus dois companheiros de quarteto.

Em “Big Nick” é a vez de Coltrane, autor da música, pagar tributo à deliciosa era do swing. Novo desempenho antológico de Trane, com um discretíssimo Ellington acionando com precisão cirúrgica as teclas do seu piano. Ecos do Harlem pontuam toda a canção, especialmente no solo do pianista. Garrison e Jones, soberbos como sempre, pavimentam o caminho para que os líderes possam brilhar. “Stevie” é um blues estilizado de autoria do Duke, que mostra a que veio com um lindíssimo trabalho do piano (agora a sessão rítmica é totalmente ellingtoniana). Destaque para a extraordinária linha de baixo e para os impressionantes arabescos sonoros que emanam do sax de Coltrane. Uma extraordinária versão de “My Little Brown Book”, sutil e delicada como toda obra do fiel escudeiro Strayhorn, exala uma discreta melancolia, realçada pelo fraseado envolvente e etéreo de Trane – outro ponto alto do disco. “Angelica” evoca discretos sabores latinos (a bateria de Jones, em alguns momentos, parece ter saído diretamente de uma ensolarada praia do Caribe), como se piano e saxofone dialogassem em espanhol, por supuesto!
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Fechando o disco, uma bela versão de “The Feeling Of Jazz” – curiosamente, um blues composto a seis mãos por Ellington, pelo cantor Bobby Troup e pelo trombonista George Simon – que mostra porque este estilo é tão importante para a existência daquele. Trane inspirado, Ellington majestosamente discreto, Elvin divino e Garrison soberbo – exatamente mais do mesmo. Uma obra despretensiosa e relaxada, com muitos momentos sublimes. Por isso mesmo, absolutamente indispensável em qualquer discoteca.

É certo que alguns incréus atribuem a Ellington uma estatura muito menor que a que este efetivamente tinha. Acusam-no de vampirizar ou até mesmo de se apropriar indevidamente de obras de seus músicos. Ocorre que o processo de troca de informações é inerente ao próprio jazz. O autor compõe um tema, os músicos que tocam com ele acrescentam alguma coisa e dão a sua leitura da canção e, voilá, a obra se aperfeiçoa. O jazz se caracteriza, exatamente, por ser uma obra em permanente estado de construção. Nesse processo Ellington, assim como todo grande compositor jazzístico, efetivamente incorporava as contribuições dos membros de sua orquestra, mas daí a acusá-lo de rufianismo musical vai uma distância tão grande quanto a que separa a sua obra da “obra” de um Frank Aguiar.


Três fatos dão a dimensão exata do respeito que Ellington tinha por seus músicos e que merecia por parte deles. Nos início anos 50, quando as orquestras estavam em baixa e a sua tocava em salões melancolicamente vazios, o Duke pagava do próprio bolso (com os rendimentos obtidos com a venda de seus discos, direitos autorais e elaboração de trilhas sonoras para o cinema e a televisão) os salários de seus músicos. Em 1967, ainda abalado pela morte do amigo e alma gêmea musical Billy Strayhorn, Ellington gravou um emocionante tributo ao parceiro, chamado “And Her Mother Called Him Bill”, inscrito entre as maiores obras-primas do jazz – conta-se que, nas gravações, alguns músicos, inclusive o líder, choravam copiosamente. E, por fim, ouça o célebre “Ellington At Newport”. Ao final da avassaladora performance do seu saxofonista, ouve-se a voz de um extasiado Ellington a exclamar: “Paul Gonsalves, Paul Gonsalves, Paul Gonsalves”! A breve intervenção do maestro é quase tão emocionante quanto o memorável solo de Gonsalves. É por essas e outras que Benny Green (o crítico, não o pianista), disse certa feita: “Ellington veio ao mundo do jazz para separar os homens dos meninos”. Não apenas separava os homens: escolhia os melhores deles para cerrar fileira ao seu lado. Monk, Mingus, Miles e Coltrane que o digam!
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PS.: Post dedicado ao amigo Sérgio Sônico, o antenadíssimo garimpeiro de todos os sons.

domingo, 7 de junho de 2009

O IRMÃO MAIS VELHO DE "KIND OF BLUE"


Certa feita, perguntaram para Charlie Watts, titular das baquetas dos Rolling Stones (grande fã de Charlie Parker e autor de alguns bons discos de jazz, inclusive com a participação de respeitados músicos ingleses como Evan Parker), quem era o maior baterista do mundo. Ele, sem qualquer resquício de falsa modéstia, foi brilhantemente preciso: “Em minha banda, o maior baterista do mundo sou eu”.


O mesmo pode ser dito de Miles Davis. Ali, naquele exíguo espaço dos palcos e estúdios, preenchido pelos cinco ou seis caras de sua banda, ele é o maior trompetista do mundo. E olha que nas incontáveis formações de seus combos, pontuaram gigantes como John Coltrane, Bill Evans, Ron Carter, Red Garland, Paul Chambers, Horace Silver, Wayne Shorter, entre muitos outros. Mas Miles é “o” líder e esses gênios todos sempre tiveram que se curvar à sua personalidade magnética. Ao posicionar a embocadura do trompete, colocar surdina e começar a soprar, Miles Davis deixa de ser um músico e se transforma em um mito.


Alguns iconoclastas haverão de insurgir-se contra essa afirmação e, certamente, dirão: “Gillespie era muito melhor que Miles” ou “Clifford Brown punha Miles no bolso”! Mas Davis, que decerto não era um virtuose, tampouco era apenas um músico. Ele era o chefe, o patrão, o sujeito que com um único olhar ou um grunhido ininteligível enquadrava todos os caras da sua banda – fossem eles uma lenda viva como Oscar Pettiford ou um quase iniciante como Herbie Hancock. Miles tocava de costas para platéias que pagavam fortunas para lhe assistir, por um único motivo: porque ele podia fazê-lo!


O soco dado em Coltrane em uma determinada oportunidade é emblemático: afundado nas drogas, o saxofonista desperdiçava seu talento e seus parcos recursos em uma vertiginosa descida aos infernos. Miles, descontente com a apatia do seu tenorista, o despediu com um vigoroso soco na cabeça – e olha que Coltrane tinha quase o dobro do seu tamanho. A amizade ficou abalada e John foi tocar com Monk, aperfeiçoando o seu estilo. Abandonou as drogas e, algum tempo depois, não apenas a paz foi selada como foi reintegrado à banda, participando das gravações do magistral “Kind Of Blue”.


Mas porque falar tanto de Miles, se o líder e primeiro nome nos créditos do disco “Something Else” é o do rechonchudo Julian “Cannonball” Adderley? Por que não dizer logo que esse maravilhoso saxofonista alto, irmão do também ótimo trompetista Nat Adderley, nasceu em 15 de setembro de 1928, em Tampa, na Flórida? Porque não informar ao leitor que, após estabelecer-se em Nova York, em 1955, o talentosíssimo Cannonball chegou a ser chamado de “The New Bird”? Porque demorar tanto para dizer que Adderley agregou sua exuberância técnica à banda de Davis em 1957 e ali permaneceu até o final de 1959, contribuindo para tornar imortais gemas como “Porgy And Bess” ou “Milestones”? Porque não falar que além de transitar com absoluta maestria entre as mais variadas escolas jazzísticas, do bebop ao cool, passando pelo hard bop, Adderley ainda foi um dos mais bem-sucedidos jazzistas, explorando com habilidade incomum as possibilidades comerciais do chamado “soul jazz”?


A resposta é simples: porque o disco de que estamos tratando se chama “Somethin’ Else” e, apesar do nome em destaque nos créditos, Cannonball Adderley aqui é, em verdade, um coadjuvante de luxo para o verdadeiro dono da festa: ele mesmo, o trompetista de órbitas salientes e língua afiada, Miles Dewey Davis III. Até o título do álbum foi tirado de uma canção sua e não será exagero afirmar que este disco é uma espécie de irmão mais velho do incensado “Kind Of Blue”, gravado pelo sexteto de Davis no ano seguinte e com a valiosa colaboração de Adderley no sax alto.


É bem verdade que Davis era proprietário de um ego muito maior que o gigantesco talento e quando reclamava para si a paternidade do cool jazz ou do jazz modal, é preciso se dar um desconto à sua megalomania e ter em conta que, embora sua participação nesses movimentos fosse emblemática, ele não estava sozinho na empreitada. Com efeito, George Russell, a cabeça pensante por trás de Ezz-thetics, já havia intuído as primeiras trilhas para o jazz modal em meados dos anos 50. Quanto ao cool, o noneto montado no final dos anos 40 incluía quatro outros possíveis “pais” da criança – Gerry Mulligan, John Lewis, Gil Evans e Lee Konitz – haja exame de DNA. Mas ninguém pode negar a importância de Miles como catalisador – e, sobretudo, disseminador – dessas correntes.


Voltando ao o disco, gravado em sessão única no dia 9 de março de 1958, para a Blue Note, ele apresenta, além dos mencionados Davis e Adderley, o piano etéreo de Hank Jones, o baixo pulsante de Sam Jones e um Art Blakey surpreendentemente contido – diria quase delicado – na bateria. Aqui talvez comece o flerte de Davis com as estruturas modais, que iria resultar em um badalado casamento, pouco mais de um ano depois. Percebe-se isso logo na primeira faixa, uma preciosa versão de “Autumn Leaves”, onde Davis explora, com seus agudos, as mais improváveis possibilidades harmônicas da canção, sempre escudado pelo veemente sax de Cannonball. Em outro standard, o trompete límpido de Miles dá um tratamento mais ortodoxo à lindíssima “Dancing In The Dark”, mas ainda assim permite-nos perceber certos vislumbres da carpintaria modal, da qual em breve seria o artífice mor.


Em “Somethin’ Else”, Miles sugere os caminhos que mais tarde iria percorrer com maior intensidade, criando uma canção climática, com destaque para o piano de Jones, que soa metálico, bem de acordo com a atmosfera cool pretendida por Davis. Um nada melancólico Cole Porter emerge da versão de “Love For Sale”, com direito a uma lindíssima introdução, a cargo de Jones, e a um maravilhoso solo de Adderley, enquanto o trompete de Davis pontua a canção o tempo todo. O grande momento de Cannonball talvez seja em “One For Daddy-O”, composição do seu irmão Nat, na qual o saxofonista elabora uma delicada arquitetura sonora, com destaque para o respeitoso diálogo mantido com o trompete. A sacolejante “Bangoon” (faixa bônus no CD relançado em 1999 através da série RVG Edition) permite a Blakey que se solte um pouco mais, sobressaindo-se, também, o piano de Jones (autor da música).


Um álbum clássico, enfim! Um finíssimo petisco musical, capaz de agradar aos paladares mais refinados, à altura dos grandes clássicos perpetrados por Davis como líder, como Miles Ahead, Milestones, Seven Steps To Heaven e o próprio Kind Of Blue. Esqueça o ego que não cabia em um álbum triplo, o péssimo humor e o proverbial “mau-caratismo” de Miles. Nos quase 43 minutos de prazer que “Somethin’ Else” proporciona aos ouvidos, quem se apresenta é ele, o maior trompetista do mundo.



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PS 1.: Post dedicado aos amigos d’além mar Pescador, Miguel Ângelo, Elisa (do blog bebedeiras de jazz), Cigarrajazz e Carlos Azevedo (do blog The Cat Scats).
PS 2.: Postagem efetuada ao som de "I Remember Miles", de Benny Golson (sax tenor), com o auxílio luxuoso de Eddie Henderson (trompete), Curtis Fuller (trombone), Tony Reedus (bateria), Mulgrew Miller (piano) e Ray Drummond (baixo).

quinta-feira, 4 de junho de 2009

UM PASSEIO PELO LADO ENSOLARADO DA RUA, AO LADO DE LEROY VINNEGAR


A expressão “walking bass” designa uma forma de acompanhamento feito pelo contrabaixo que simula o caminhar humano – daí significar, literalmente, “baixo caminhante”. No jazz, essa modalidade de execução é fundamental para marcar o ritmo da música – o contrabaixo é acionado de forma ininterrupta, sem pausa para respirar, auxiliando a compor, geralmente ao lado da bateria e do piano, a chamada seção rítmica. É o instrumento que tem a nobre missão de manter a linha melódica original, permitindo assim que o solista – estrela maior do espetáculo jazzístico – possa brilhar.

O contrabaixo é o mais grave dos instrumentos habitualmente utilizados no jazz e o mais robusto deles, à exceção, obviamente, do piano. Considerando a sua generosa caixa de ressonância, o braço e o espigão (haste metálica fixada na parte inferior da caixa de ressonância, com a ponta emborrachada, para dar maior fixação ao instrumento), este portentoso instrumento chega, facilmente, a alturas superiores a 1,80m. Todavia, esse gigante gentil tem uma amplitude vocal bastante limitada, jamais chegando aos registros ensurdecedores de uma bateria, por exemplo.

Geralmente os baixistas são sujeitos discretos, que cumprem o seu papel de sustentáculo rítmico com uma sobriedade e um estoicismo dignos de um samurai. De um modo geral, contrabaixistas estão sempre impecavelmente alinhados, como o fleumático Percy Heath e o elegante Ray Brown. Também é comum que sejam figuras extremamente reservadas, nos palcos e fora deles, como o taciturno Charlie Haden, o arredio Jimmy Garrison e o circunspecto Ron Carter. Não por acaso, o escritor Patrick Süskind, em seu romance “O contrabaixo”, usa o instrumento como metáfora para justificar a solidão e a amargura do protagonista – um contrabaixista de uma orquestra não identificada, que responsabiliza o seu instrumento por todos os fracassos de sua vida, especialmente no campo afetivo.

Destoando dessa linhagem quase heráldica dos contrabaixistas jazzísticos, o exuberante Charles Mingus, tão corpulento quanto seu instrumento e dono de uma verborragia proporcional ao seu talento, é a exceção que confirma a regra. Dono de uma exuberância similar – embora não conste que costumasse espancar seus músicos, como fazia Mingus – Leroy Vinnegar foi o arquétipo do anti-contrabaixista. Não que lhe faltasse elegância nos trajes ou na música, mas o nosso bravo contrabaixista não era homem de ficar paradinho no fundo do palco, enquanto os outros músicos se divertiam. Dono de um estilo alegre, Vinnegar desenvolveu a técnica do “walking bass”, que foi então guindada a um elevado nível de excelência, tendo sua influência se estendido para além da escola West Coast, da qual foi um dos maiores expoentes.

Autodidata, Vinnegar nasceu em Indianápolis em 1928 e no início da década de 50 mudou-se para Chicago, associando-se ao pianista Bill Russo. Ali, tocou com músicos do calibre de Sonny Stitt e Johnny Griffin. Em 1954 mudou-se para Los Angeles, onde conheceu os jovens músicos que estavam revolucionando o jazz californiano – os irmãos Conte e Pete Candoli, Hampton Hawes, Shorty Rogers, Stan Getz, Shelly Manne, entre outros. Incorporou-se a essa turma e, em pouco tempo, já era o baixista por excelência do West Coast, sem demérito ao “pai fundador” Howard Rumsey.

Músico prolífico, participou de centenas de gravações entre os anos 50 e 90, tendo gravado em contextos tão díspares quanto no delicado “My Fair Lady”, ao lado de Andre Previn e Shelly Manne, no emocionante “Blue Serge”, acompanhando o grande Serge Chaloff, e no eletrizante “Swiss Movemente”, ao lado dos profetas do soul jazz, Eddie Harris e Les McCann. Sua estréia como líder se deu em 1957, com o álbum Leroy Walks!, gravado para a Contemporary, cujo título fazia referência ao estilo de tocar popularizado por ele.

Para a gravação, foram convocados alguns dos ícones do West Coast, como o trompetista e arranjador Gerald Wilson, o pianista Carl Perkins (morto no ano seguinte, aos 31 anos, em virtude dos abusos de álcool e drogas) e o multiinstrumentista inglês Victor Feldman, que naquelas sessões pilotou o vibrafone. Completando o time, o saxofonista tenor Teddy Edwards (antigo adversário de Dexter Gordon em célebres duelos nos anos 40 mas que, por motivos insondáveis, jamais teve mesmo o reconhecimento que seu rival) e o pouco conhecido baterista Tony Bazley – que não se deixa intimidar e manda muitíssimo bem.

Trata-se de um disco conceitual, gravado muito antes da expressão se popularizar. Como fio condutor, todas as canções tem como título ou como mote o verbo caminhar. A primeira delas, o blues “Walk On”, é um tour-de-force para contrabaixo, com destaque absoluto para o líder do grupo, com uma soberba marcação, e para Edwards, responsável por um belísimo solo. O afiado sexteto mantém o alto nível nos standards “Would You Like To Take a Walk” e “On The Sunny Side Of The Street”, tocadas com leveza e elegância. Na primeira, sobressai-se o vibrafone de Feldman e, na segunda, o trompete de Wilson conduz a melodia.

Em uma sessão tipicamente West Coaster, simplicidade e despojamento são exigências básicas e o anfitrião faz o possível para deixar todos os convidados à vontade. Esse clima relaxado perpassa todo o disco e mesmo a clássica Walkin’ – imortalizada por Miles Davis – exala um frescor praieiro que, dificilmente, músicos de outras paragens conseguiriam imprimir. Aqui o diálogo entre o piano de Perkins e o trompete de Wilson (ele mais uma vez!), alcança uma fluência telepática, mas o solo de Edwards também merece destaque. A belíssima “I’ll Walk Alone” serve de vitrine para o virtuosismo de Feldman, cuja técnica rivalizava com a do celebrado Milt Jackson, e é um dos pontos altos do disco, com excelente integração entre baixo, piano e bateria. Um disco que traz jazz de excelente safra, tocado por exímios instrumentistas!

Vinnegar ainda gravaria uma espécie de “continuação” desse álbum, o excelente “Leroy Walks Again!”, em 1962, mas a sua discografia como líder é bastante rarefeita. Depois de uma longa vida dedicada ao jazz, o baixista usufruiu de uma merecida semi-aposentadoria a partir dos anos 80, baseando-se na tranqüila Portland, de onde somente sairia para participar de algumas raras gravações ou apresentações, selecionando muito bem os convites que eventualmente aceitaria. Morreu em 1999, em virtude de um enfarte, mas deixou seu nome inscrito entre os grandes nomes do contrabaixo. Afinal, quantos jazzistas podem dizer que criaram um estilo tão único ou que influenciaram tantos músicos?

segunda-feira, 1 de junho de 2009

STEVE LACY, O GÊNIO QUE REINVENTOU O SAX SOPRANO


Em uma fria e deserta praia ao norte da Califórnia, um casal apaixonado troca carinhos e juras de amor eterno. O frêmito que percorre seus corpos denuncia a paixão que os une. Ao seu lado, um cabeludo magricela sopra um nauseabundo sax soprano, cometendo uma série interminável de xaroposos acordes, capazes de fulminar, em apenas poucos segundos, qualquer diabético que passasse por ali. O clima é de total enlevo – parece que ninguém seria capaz de perturbar aquela bucólica atmosfera.


Não obstante, a idílica sessão é interrompida subitamente, quando uma pequena lancha atraca na praia. Desembarcam cerca de dez homens, fortemente armados, e se dirigem, com semblantes nada amistosos, até o local onde estavam os nossos três amigos. Os homens do barco eram piratas somalis que, fugindo de uma patrulha americana, perderam o caminho de casa e ficaram algumas semanas à deriva, até encontrar aquela acolhedora faixa de areia. Sem que dissessem uma única palavra, engatilham suas mortíferas Kalashnikovs e disparam, impiedosamente, contra o indefeso trio, que perece ali mesmo. A débil tentativa de acalmar aqueles espíritos indômitos com uma açucarada versão de “Feelings” fora em vão!


Os homens não perdem tempo. Enquanto alguns despem os cadáveres, outros preparam uma enorme fogueira. Após semanas no mar, comendo apenas minúsculas porções de carne de camelo seca e restos de pão, eles agora poderiam saborear um nababesco banquete, digno dos seus valorosos ancestrais. No dia seguinte, todas as revistas de celebridade do universo estampariam, em suas capas, a estarrecedora manchete: “Kenny G, Julia Roberts e Campbell Scott devorados por canibais somalis”.


Um final que, se não propriamente feliz, certamente seria o mais adequado ao sujeito que atirou na lama o sax soprano e que quase fez com que esse elegante instrumento fosse relegado ao ostracismo por todos aqueles que apreciam a boa música. Mas o instrumento que fez a glória do grande Sidney Bechet agora estava vingado: nunca mais haveria de ser tão vilipendiado pelo lamuriento sopro de Mr. G.


Além de Bechet, outros fabulosos músicos se dedicaram ao sax soprano, como John Coltrane, Courtney Pinne, Benny Carter e o universalíssimo brasileiro Vítor Assis Brasil. Esse instrumento, contudo, nunca granjeou a popularidade que seus primos, o sax alto, o sax tenor e o sax barítono, mereceram dentro da comunidade jazzística. Todavia, há um músico que, dedicando-se apenas ao sax soprano, construiu uma respeitadíssima carreira no jazz e legou aos aficionados uma obra extremamente pessoal, calcada na sonoridade etérea desse singular instrumento: Steve Lacy.


O nova-iorquino Steven Norman Lackritz nasceu em 23 de julho de 1934, no bairro do Brooklyn. De origem judia, Steve se apaixonou pela música de Duke Ellington ainda na infância e aos 13 anos já extraía da clarineta os seus primeiros acordes. Aos 16, trocou a clarineta pelo sax soprano, graças à influência de Sidney Bechet, e dedicou-se ao jazz tradicional. Nos anos 50 conheceu o pianista Cecil Taylor, ligado à música de vanguarda, que o contratou para sua banda. Nesse período, abandonou o dixieland e descobriu a obra de Thelonius Sphere Monk, o compositor a quem passaria a dedicar boa parte de sua energia e talento. Ouvindo milhares de vezes as gravações do Mad Monk, Lacy produziu uma incontável série de discos dedicados a seu ídolo maior, fazendo releituras extremamente originais da produção monkiana e inscrevendo seu nome entre os maiores inovadores do jazz.


A primeira incursão de Lacy pela obra de Monk está registrada no álbum Reflections, gravado para a Prestige em uma única sessão, no dia 17 de outubro de 1958. Trata-se de um álbum extraordinário em todos os sentidos, um dos melhores do saxofonista, que ainda haveria de legar à posteridade uma discografia extensa e altamente recomendável. A começar pela escolha do impecável repertório, integrado por sete magistrais composições de Monk. Embora nenhuma delas seja das mais conhecidas (pelo menos não tão conhecidas como “Round Midnight”, “Epistrophy”, “Straight, No Chaser” ou Bemsha Swing, por exemplo), todas são de altíssimo nível, revelando toda a complexidade harmônica e melódica que o monge era capaz de conceber.

Outro ponto alto do disco são os músicos escolhidos por Lacy para acompanhá-lo. No piano, o sinuoso Mal Waldron, espécie de irmão gêmeo musical de Monk, com seus acordes espaçados e sua percussividade singular, quase metálica. Na bateria, o fenomenal Elvin Jones, que demonstra porque é um dos mais versáteis músicos do jazz, capaz de desfilar à vontade tanto em um violento hard bop quanto em uma lírica atmosfera cool. No baixo, o velho amigo Buell Neidlinger, um músico erudito quase desconhecido, que batia ponto na prestigiosa Houston Simphony Orchestra
mas que também era apaixonado por jazz, tendo gravado com certa regularidade com Cecil Taylor e Anthony Braxton.


Parece haver uma eletricidade sobrenatural percorrendo as gravações e impregnando aqueles quatro músicos. “Four In One”, que abre o disco, é um bebop tipicamente monkiano, com um andamento quebradiço, nada previsível. Jones pode ser apontado o maior destaque da faixa, com o seu tradicionalmente belo trabalho de pratos – mas dos outros deve-se dizer que estão nada menos que soberbos. A segunda música é uma balada intimista, mas com um discreto swing, que dá nome ao álbum e permite a Lacy uma exibição de técnica apurada e lirismo, enquanto o piano de Waldron parece brincar por sobre os acordes da canção.


“Skippy”, “Hornin’ In” e “Bye-ya”, com suas estruturas complexas e suas repentinas alterações rítmicas, são os veículos mais que perfeitos para o quarteto demonstrar toda a sua capacidade de improvisação e a sua completa sintonia. Elvin e Waldron estão perfeitos e o discreto Neidlinger mantém o esqueleto harmônico das composições com rara maestria. O seu baixo não se impõe pela velocidade ou pelo virtuosismo, mas pela precisão com que se coloca em face dos demais instrumentos – parece não estar ali, mas o ouvinte sente a sua pulsação. Em “Let’s Call This”, Lacy usa uma afinação mais aguda e incisiva, como se quisesse realçar as obliqüidades da canção. Em mais uma balada, a emocionante “Ask Me Now”, saxofone e piano interagem de forma quase telepática, com um instrumento fazendo o contraponto lírico à passagem do outro, e, outra vez, percebe-se o magistral trabalho de Neidlinger, a sustentar a base rítmica da música com discrição e sobriedade.


Espírito inquieto, Lacy sempre esteve aberto a novas experiências musicais, gravando nos mais diversos contextos: álbuns solo, duos, tributos a Monk, pequenos combos e big bands. Muito ligado a todas as formas de manifestação artística, sua influência ultrapassa as fronteiras do jazz e se espraia pelas artes plásticas, cinema e literatura. No final dos anos 60, com a pequena visibilidade do jazz nos Estados Unidos, mudou-se para a França, onde foi acolhido com entusiasmo pelos numerosos jazzófilos daquele país. Gravou com grandes nomes do jazz europeu, como o italiano Enrico Rava, o francês Jean-Jacques Avenel e o inglês Evan Parker. Morreu em 04 de junho de 2004, em decorrência de um câncer no fígado, que jamais deixou que o abatesse. Seu compromisso com a vida e com a arte que professava era tão grande que mesmo muito doente, ainda se apresentava ao vivo até poucos dias antes de falecer.



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PS.: Post dedicado ao capitão John Lester, cruzado moderno e incansável paladino que, a bordo da nave Jazzseen, enfrenta com muita galhardia o dragão da vulgaridade e da descartabilidade musical.

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