
Nome estranho deram ao garotinho nascido em 07 de junho de 1921, na cidade de Greensboro, Carolina do Norte: Talmadge Holt Farlow. Filho de um guitarrista amador, o pequeno Talmadge, ao tempo em que recebia do pai as primeiras lições do instrumento que o consagraria, resolveu abrir mão de boa parte do seu quase impronunciável nome e adotar um apelido bem simples: Tal Farlow.
Até o início da década de 40, tocar guitarra era, para Farlow, apenas um divertimento corriqueiro. Aos dezenove anos, ele parecia conformado com a modesta carreira de ilustrador de cartazes, quando ouviu, pela primeira vez, a magia de Charlie Christian e sua guitarra eletrificada.
A paixão foi imediata e o jovem Farlow não apenas passou a ouvir com habitualidade os discos de Benny Goodman, como também passou a estudar os solos de Charlie Christian naquelas gravações. Raspou as suas economias (exatos vinte dólares) e encomendou um amplificador nas Lojas Sears.
Nessa época, também descobriu a orquestra de Count Basie (graças, sobretudo, ao lirismo do sax de Lester Young, cujos solos ele reproduzir na guitarra) e, em seguida, os boppers, sobretudo Charlie Parker e Al Haig, duas influências confessas. Em 1943, associou-se ao pianista Jimmy Lyons, ao lado de quem fez inúmeros espetáculos para os militares sediados na Base Aérea de Greensboro.
Em 1944, o guitarrista passou a integrar o trio da pianista Dardanelle Breckenbridge, tendo se apresentado em várias cidades, como Baltimore, Filadélfia e, finalmente, Nova Iorque. Ao mesmo tempo em que o trio se tornava atração fixa do Copa Lounge, Farlow aproveitava para assistir, na famosa Rua 52, aos espetáculos dos ídolos Charlie Parker, Bud Powell, Thelonius Monk e Dizzy Gillespie.
Entre 1945 e 1948 a carreira do guitarrista desenvolveu-se sem grande repercussão. Após algum tempo tocando com nomes pouco conhecidos como Freddie Thompson, Lenny DeFranco (irmão de Buddy DeFranco, com quem tocaria no final daquela década) e Margie Hyams (onde substituiu ninguém menos que Mundell Lowe), Farlow, que nunca havia deixado de trabalhar como desenhista e ilustrador, finalmente teve a oportunidade que precisava.
Em 1949, foi convidado por Buddy DeFranco para integrar o seu grupo e, no final do mesmo ano, uniu-se ao trio do vibrafonista Red Norvo, que incluía o baixista Red Kelly (substituído, posteriormente, por Charles Mingus). Baseado em Los Angeles, o trio permaneceu em atividade até 1953 e adquiriu a reputação de um dos combos mais originais e inovadores dos anos 50. Nesse período, Farlow desenvolveu e refinou a sua técnica, passando a ser reconhecido como “o guitarrista mais rápido do mundo”.
Após deixar o trio de Red Norvo, Farlow tocou com Artie Shaw, Gil Melle e Howard McGhee. Em 1955, convidado por Cy Baron (proprietário do clube novaiorquino Composer), montou um trio com o pianista Eddie Costa e o baixista Vinne Burke (essa formação pode ser ouvida no fenomenal “The Swinging Guitar Of Tal Farlow”, gravado em 1956, para a Verve), que se tornou atração fixa do clube até 1958, quando aquela casa noturna encerrou suas atividades.
Farlow se casou no mesmo ano e, partir daí, o envolvimento com a música foi relegado ao segundo plano. Priorizou sua atividade como desenhista e ilustrador, restringindo seu contato com o jazz aos discos e programas radiofônicos. Ocasionalmente, participava de jams com músicos locais ou com os muitos amigos que costumavam visitá-lo em sua mansão em Sea Bright (Nova Jérsei), como Jim Hall, Jimmy Raney, Gene Bertoncini e Attila Zoler.
Em 1967, ensaiou um retorno à música, tocando por alguns meses no The Frammis Club, em Nova Iorque, e participou das gravações do álbum “Up, Up And Away”, sob a liderança do saxofonista Sonny Criss. Em 1968, foi um dos destaques do Festival de Newport e, no ano seguinte, uniu-se aos “George Wein’s All Stars”, onde também tocava o velho amigo Red Norvo.
Ainda em 1969, lançou pela Prestige o aclamado “The Return Of Tal Farlow”, que marca a sua volta aos estúdios, como líder. Nos anos 70, ele voltou a ser uma presença constante em clubes e casas noturnas, além de participar com maior assiduidade de festivais, como o de Newport e o Concord Summer Festival. Também nessa época, lançou seu próprio método de ensino de guitarra, chamado de “Tal Farlow Method”.
Em 1976, gravou o primeiro disco para a Concord, chamado “A Sign Of The Times”. Ao seu lado, duas lendas do jazz: o baixista Ray Brown e o pianista Hank Jones. O encontro desses três titãs não poderia ser mais encantador. São três mestres incontestáveis nos respectivos instrumentos, interagindo como velhos amigos e partilhando com o ouvinte a cumplicidade íntima de quem ajudou a construir, graças ao próprio talento e nada mais, a própria história do jazz.
Abrindo o disco, o swing elegante de “Fascinating Rhythm”, pérola dos Irmãos Gershwin, ganha uma roupagem à altura de sua nobre linhagem. Em um arranjo que ressalta a sua célebre velocidade, o guitarrista põe seus dedos agílimos a serviço da música, sem qualquer espécie de exibicionismo. Jones é o contraponto lírico às estonteantes harmonias de Farlow, enquanto Brown faz a ponte entre a delicadeza do primeiro e o arrojo do segundo.
Na balada “You Don’t Know What Love Is”, é Jones quem dita o ritmo da execução, de maneira lânguida, realçando o drama – de forma docemente contida – do amor não correspondido. Há um quê de bolero no arranjo e discretas citações a “It Might As Well Be Spring”, além de uma atuação impecável de Brown.
“Put On A Happy Face” e “Stompin’ At The Savoy” retomam a atmosfera alegre dos bailes de swing. A criatividade de Farlow e seu apuradíssimo senso melódico se apresentam em toda a sua inteireza e os solos de Brown, em ambas as faixas, são verdadeiras antologias de bom gosto e técnica.
Apesar de autodidata, Farlow sempre foi um músico de extrema personalidade e conseguiu construir uma linguagem própria, reconhecível aos primeiros acordes. Mesmo em músicas gravadas milhares de vezes, como a onipresente “Georgia On My Mind”, de Hoagy Carmichael e Stewart Gorrell, ele sempre consegue imprimir a sua voz e extrair algo de novo, ainda mais quando conta com coadjuvantes da estirpe de Jones e Brown.
A dupla Rodgers e Hart contribui com “You Are Too Beautiful”, outra balada romântica e altamente emotiva. Merece maior atenção a técnica, típica de Farlow, de arranhar com suavidade as cordas da guitarra, dando a impressão de que há um baterista usando as escovinhas no acompanhamento.
Um dos pontos altos do disco é a primorosa versão de “In Your Own Sweet Way”, de Dave Brubeck, na qual o piano de Jones e a guitarra do líder conduzem a melodia pelos sinuosos caminhos do bebop – mas, a bem da verdade, é bom frisar que esse permanente diálogo deve muito de sua fluência à preciosa intervenção de Brown, sempre muito eficiente e seguro.
É de Brown, inclusive, a autoria da ótima “Bayside Blues”. Trata-se, por óbvio, de uma fabulosa incursão pelo blues, com Farlow extraindo de sua guitarra lamentos que conduzem o ouvinte às excruciantes condições de trabalho nas plantações de algodão do Deep South. Jones, que tem o blues na alma, é a sutileza e a plangência em pessoa. Um disco não menos que fabuloso, que pode servir como porta de entrada à maravilhosa arte de Tal Farlow.
Sobre o guitarrista e sua forma altamente pessoal de tocar, contumaz vencedor de prêmios em revistas como Down Beat e Metronome, escreveu o Mestre Pedro “Apóstolo” Cardoso, com a habitual propriedade:
“Tal Farlow mandou fabricar uma guitarra com diapasão curto, o que lhe permitia um fraseado extremamente veloz e uma sonoridade muito suave. Essa guitarra lhe permitia tocar e golpear as cordas com as pontas dos dedos, obtendo efeitos rítmicos muito bons (para, em conseqüência, dispensar o acompanhamento de bateristas)”.
Nos anos 80 e 90, Farlow continuou a gravar com certa regularidade e jamais deixou de se apresentar em clubes e festivais ao redor do mundo, incluindo Europa e Japão. Em 1997, recebeu o diagnóstico de um câncer no esôfago, que acabaria por levá-lo à morte, no dia 25 de julho de 1998.