Amigos do jazz + bossa

terça-feira, 29 de março de 2011

MELODIA SENTIMENTAL




Não há palavras para descrever o carinho e a atenção que me foram dispensados em minha recente estada em Vitória. Cheguei no dia 24, por volta das 08:00, e havia no aeroporto um verdadeiro comitê de boas vindas: meu tio Frutuoso, meu amigo John Lester e todo o staff da armada Jazzseen – o circunspecto Frederico Bravante, o elegante Tobias Serralho (que não apenas é maranhense de boa cepa, mas também um fiel devoto de São José de Ribamar), o descolado Roberto Scardua e a belíssima Paula Nadler, que despertava os olhares sequiosos dos marmanjos do pedaço.


Após uma interminável série de abraços e beijinhos (estes, reservados apenas à Paula, é obvio), embarcamos para um tour gastronômico-musical pela bela orla de Vitória e Vila Velha, onde está localizado aquele verdadeiro santuário do bom gosto chamado Casa Bonita. Por conta de motivos profissionais, meu tio não pôde nos acompanhar na empreitada, mas recomendou que eu não deixasse de provar as delícias da cozinha capixaba, especialmente a moqueca de badejo.


Chegando a Vila Velha, tive a honra de ser apresentado à simpaticíssima Mrs. Lester, Fabiana, anfitriã das mais atenciosas e que logo providenciou hectolitros de café e uma quantidade amazônica de deliciosos biscoitinhos de canela. Sempre regada a um ótimo jazz, a conversa fluía com naturalidade e eu me sentia cada vez mais em casa.


Foi quando adentrou as dependências do recinto o pintor ítalo-capixaba Paulo Nardelli, cujos quadros, no Espírito Santo, são comercializados com exclusividade pela Casa Bonita. Efusivo e descontraído como um bom descendente de italianos, Paulo me pareceu alguém que já conhecia há muito tempo. Não demoramos a entabular uma animada conversa paralela, saindo um pouco do tema central – o jazz, é claro – para falarmos um pouco de artes plásticas, na medida dos meus parcos conhecimentos sobre a matéria.


Nesse momento, Lester propôs que abríssemos uma garrafa do vinho catalão Flor de Englora, safra 2006. Embora ainda fossem 11 da manhã, a proposta foi unanimemente aceita e, enquanto abria a garrafa, Lester explicava que o vinho era elaborado com 63% de Red Grenache, 32% de Carignen, 2% de Merlot, 2% de Syrah e 1% de Ull d'llebre, e era produzido pela Cellers de Baronia. Após os brindes, o líquido precioso foi degustado com sofreguidão pelos presentes e, pouco depois, rumamos, em comboio, para Vitória, onde almoçaríamos no tradicional restaurante Pirão.


Chegando ao local, encontramos o famoso Chico Brahma, um dos expoentes do Clube das Terças, que após as apresentações, desculpou-se por não nos acompanhar, já que estava indo para a sua inescapável aula de jiu-jitsu. Assim, nos estabelecemos em uma animada mesa e iniciamos os trabalhos gastronômicos, sem esquecermos de dar continuidade aos trabalhos etílicos, desta vez à base da deliciosa Antárctica Original. Sob o olhar perplexo do inacreditável Supla – o filho adolescente de Marta e Eduardo Suplicy, que, ao que tudo indica, estava em Vitória para fazer um show – Paula devorava uma casquinha de siri, enquanto os outros se refestelavam com uma saborosa entrada de frutos do mar.


Pedimos algumas moquecas, devoradas com zelo e bonomia, tomamos mais algumas cervejas e nos despedimos – afinal, estava exausto da viagem e precisava descansar um pouco. O sempre solícito John Lester ofereceu-se para levar-me até a casa dos meus tios, no bucólico Jardim da Penha, mas perdeu-se no caminho. Após 40 minutos rodando pelas intermináveis pracinhas do bairro, finalmente chegamos ao destino. Subi, tomei um banho rápido e capotei na cama, a fim de me preparar para o dia seguinte, que se afigurava longo.


Na sexta, dia 25, a primeira coisa que fiz foi uma visita ao poeta, escritor, jornalista e radialista Marien Calixte, que há mais de 50 anos comando o programa “O Som do Jazz”. É o mais antigo programa de jazz da América Latina e vai ao ar às segundas-feiras, das 20h às 22 horas, pela Rádio Universitária FM (104,7 Mhz). Meu tio, que trabalha na UFES, havia falado com ele sobre o livro e ele, gentilmente, nos convidou para uma visita à sua casa. Chegando ali, eu e meu tio tivemos a honra de conhecer um casal maravilhoso. Marien e Dona Teresinha são bem-humorados, educados, inteligentes, alegres, atenciosos e encantadores e nos cobriram de gentilezas.


Meu tio e eu ficamos quase três horas na casa dos dois, conversando e tomando um delicioso suco de pêssego, feitinho na hora. Fiquei encantado com a coleção de discos Marien, que, ao final da visita, nos presenteou com vários livros de sua autoria. Para júbilo da minha modesta pessoa, Marien disse que iria ao lançamento do Confesso e eu, é claro, fiquei embevecido.


À tarde, passeio por Vitória e Vila Velha, desta feita na companhia do meu amigo Antônio Carlos, que veio de São Luís especialmente para o lançamento. Visitamos o Convento de N. Sra. da Penha e, após um rápido happy hour no Saideira, barzinho muito gostoso na Praia do Canto, voltei pro apartamento dos meus tios para tomar um banho e trocar de roupa. Estava chegando o grande momento.


E que noite maravilhosa foi aquela! Estavam todos lá no Wunderbar Kaffee: meus tios Frutuoso e Alzira, minha prima Míriam, Dona Celina e Cristina (mãe e irmã de Alzira) e muitos amigos deles. Os amigos blogueiros Mr. Lester, Salsa, Grijó, Don Oleare, Frederico Bravante, Tobias Serralho, Roberto Scardua e Paula Nadler estavam na fila do gargarejo. O Clube das Terças compareceu em peso: Reinaldo Santos Neves, Chico Brahma, Garibaldi Magalhães, João Luiz, Pedro Nunes, Paulinho da Embratel, Fernando Achiamé e o sensacional Luiz Paixão, decano do jazz no Espírito Santo que, gentilmente, exibiu-me algumas de suas preciosidades: autógrafos de Billie Holliday, Oscar Peterson, J. J. Johnson, Kay Winding, Roy Eldridge, Ray Brown, Dave Brubeck, Buddy Rich, Illinois Jacquet, Gene Krupa e muitos outros. Compromissos anteriores impediram que o amigo blogueiro (e membro do Clube das Terças) Rogério Coimbra comparecesse ao lançamento.



Antônio Carlos levou uma galera enorme, com destaque para o simpaticíssimo Ziel (que além de super gente boa ainda toca guitarra) e o Barney (fã dos esportes radicais, que deu um tempo no paraglider para ir ao lançamento). Meu amigo Luís Cláudio Branco levou os colegas da AMATRA XVII, que compuseram uma das mesas mais animadas e concorridas da noite. Correu à boca miúda que o implacável Predador estava no local, mas, protegido pelo dispositivo de invisibilidade do detonador atômico, não se deixou ver pelos presentes. De qualquer sorte, ninguém soube explicar como o texto “A aboborização de Miles Davis”, de Garibaldi Magalhães, foi parar na minha mesa, com uma singela dedicatória: “Para Mr. Cordeiro, com um abraço do Predador”.


Duas presenças, em especial, me deixaram bastante emocionado: a do amigo Olney Figueiredo, o Figbatera (que saiu de Cataguazes apenas para prestigiar o evento), e do mestre Marien Calixte (devidamente acompanhado por Dona Teresinha). A noite foi animada pelo trio Jazz Letall, que contou com canjas do meu amigo Salsa, de vários músicos locais e do grande Figbatera, que simplesmente deu um show!!! Luiz Paixão mostrou que, aos 85 anos, ainda possui o swing e a disposição de um garoto e cantou vários standards. Realmente, uma noite inesquecível.



Mais tarde, round midnight, eu Salsa, Fig e a esposa ainda encontramos forças para encerrar a noite em grande estilo, no barzinho Devassa, onde devoramos deliciosos pasteizinhos de tutu. A volta para casa foi uma aventura: peguei carona na motocicleta do Salsa e atravessamos a ponte Ayrton Senna a 120 por hora! Ele carregando o Antenor (seu inseparável sax tenor) e eu lutando para não perder o equilíbrio, com a Maria Callas no colo. Bem, a Maria Callas é o sax soprano do Salsa, portanto, nada de pensamentos licenciosos...



No sábado, uma pequena viagem a Domingos Martins, um maravilhoso happy hour no Wunderbar Kaffee (com as excelsas presenças do Salsa, do Fig e de sua esposa) e, à noite, uma deliciosa bacalhoada no apartamento de Mr. Lester, cuja bem aquinhoada coleção de CDs é capaz de provocar inveja em qualquer jazzófilo. Ali tivemos a honra de ouvir um delicioso duo de saxofones: Lester no alto e Salsa no tenor, acompanhados da elegante guitarra de Pedro Nunes.



No domingo, fui até Guarapari com meus tios e Cristina, e comemos deliciosas moquecas de camarão e de badejo, no Curuca. Na segunda, com o coração apertado, voltei a São Luís. Mas Vitória e os inúmeros amigos que fiz por lá, voltaram comigo e estão muito bem agasalhados em um cantinho do meu coração.


Obs.: Esta postagem foi escrita ao som do álbum “Interferências”, do pianista italiano Turi Collura, que me foi dado de presente pelo João Luiz Mazzi (ele também me brindou com o disco “Filigrana”, de sua irmã Ester Mazzi). No disco, Collura está acompanhado por Ney Conceição no baixo acústico, Daniel Garcia nos saxofones, Nelson Faria e Giancarlo Collura nas guitarras, Guilherme Dias Gomes e Daniel Dias nos trompetes, Rafael Barata na bateria e João Schmid nos vocais.


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quarta-feira, 23 de março de 2011

CONFESSO QUE OUVI EM VITÓRIA-ES



No dia 25/03, sexta feira, a partir das 19:30, estarei em Vitória-ES, para fazer o lançamento do livro "Confesso que ouvi" na capital capixaba. O evento será no Wunderbar Kaffee, cujo endereço é: Av. Rio Branco, 1305 - esquina com a Chapot Presvot - Praia do Canto.
Convido todos os amigos do Espírito Santo, ao tempo em que agradeço, de coração, o apoio e o empenho dos blogueiros capixabas (e amigos fraternos) Francisco Grijó, John Lester, Luiz "Salsa" Oliveira, Osvaldo Oleare e Rogério Coimbra. Também mando um agradecimento todo especial ao queridos tios Frutuoso e Alzira Cordeiro, que têm sido incansáveis na divulgação do livro. Tenho certeza de que será uma noite bastante agradável e o som vai ficar por conta do saxofonista Salsa, craque na escrita e na música.

sexta-feira, 18 de março de 2011

ELE É O BOM, É O BOM, É O BOM...


Quando o saxofonista Scott Hamilton apareceu para o mundo, em meados dos anos 70, o jazz vivia uma série crise de identidade. Se, por um lado, o fusion, que combinava (muitos) elementos do rock com (poucos) elementos do jazz, deu a figuras como Miles Davis, Joe Zawinul, Freddie Hubbard, Donald Byrd ou Wayne Shorter status de pop stars, por outro lado boa parte das obras enquadradas nessa vertente peca por apresentar qualidade artística inversamente proporcional ao talento desses grandes músicos.

Na contramão do fusion, o free jazz ainda conservava uma aura transgressora, rebelde e politizada, semelhante àquela que permeou o nascimento do bebop. Todavia, o estilo mantinha uma sintaxe tão hermética que parecia prescindir da presença do público para existir enquanto expressão artística. Com o free, o jazz mergulhou em um mundo sombrio e deu a impressão de que seus músicos, sempre com a cara enfezada e um ar sisudo, haviam perdido a capacidade de rir de si mesmos, de se divertir.

Antes que Wynton Marsalis viesse, qual um cavaleiro medieval, resgatar a alegria e a espontaneidade do jazz, livrando-o da padronização pasteurizada representada pelo fusion e do experimentalismo autista simbolizado pelo free, Hamilton despontou, sem tanto alarde, nos meios musicais norte-americanos e deixou clara a sua mensagem: “it don’t mean a thing, if it ain’t got that swing”! Ou seja, o jazz significa muito pouco se abolir o swing.

De lá para cá, muita coisa mudou no panorama jazzístico. Os Young Lions dos anos 80, capitaneados por Wynton Marsalis, passaram a dar as cartas e influenciaram dezenas de novos músicos. Abriu-se espaço para neotradicionalistas como Javon Jackson, Brad Mehldau, Mulgrew Miller, Benny Green, Geoff Keezer, Charles Fambrough, Robin Eubanks, Wallace Roney, Terence Blanchard, Eric Alexander, Marcus Roberts, Jesse Davis, Kenny Garrett, Terel Stafford, Ken Peplowski, Antonio Hart, Peter Bernstein, Curtis Lundy, James Carter, Mike LeDonne, Grant Stewart, Francesco Cafiso e incontáveis outros.

Chegando aos quarenta anos de carreira, Scott pode se orgulhar de ter contribuído para consolidar esse panorama alentador, embora a sua importância, infelizmente, ainda não seja devidamente reconhecida. De qualquer forma, ninguém pode tirar-lhe o mérito de ser o principal herdeiro da tradição iniciada por Lester Young e Coleman Hawkins, o que não é pouco.

Hamilton nasceu no dia 12 de setembro de 1954, na cidade de Providence, Rhode Island e sua intimidade com a música se manifestou desde muito cedo. O jazz fazia parte do cotidiano, pois seu pai, um apaixonado pelo swing, dispunha de uma alentada discoteca, essencialmente baseada nas grandes orquestras dos anos 30 e 40. Aos cinco anos recebeu as primeiras lições bateria, aos seis aprendeu alguns rudimentos de piano e aos oito começou os estudos de clarinete, mas somente aos dezesseis passou para o saxofone tenor.

Em pouquíssimo tempo, já fazia parte de orquestras locais de R&B e sua sonoridade rica e encorpada chamou a atenção de ninguém menos que Roy Eldridge. Por indicação do trompetista, Scott foi tentar a sorte em Nova Iorque, em 1976. Um dos seus primeiros empregos ao chegar à cidade foi na banda de Hank Jones, que era atração fixa do Michael’s Pub. Em seguida, trabalhou com Benny Goodman e com as cantoras Anita O’Day e Rosemary Clooney.

Foi naquele período que gravou, pelo pequeno selo Famous Door, o seu primeiro disco como líder, chamado “Swinging Young Scott” (1976), acompanhado pelo trompetista Warren Vaché, pelo pianista John Bunch, pelo contrabaixista Michael Moore e pelo baterista Butch Miles. Embora a repercussão do disco tenha sido branda, seu talento logo despertou a atenção do baterista Jake Hanna, que assistiu a uma apresentação sua no clube Condon’s e ficou extasiado.

Imediatamente, Hanna entrou em contato com Carl Jefferson, fundador da Concord, que não hesitou em contratar o jovem saxofonista. Era 1977 e naquele mesmo ano Scott lançou seu primeiro disco pela gravadora: “Scott Hamilton is A Good Wind Who Is Blowing Us No Ill”. Fã de Ben Webster, Illinois Jacquet, Zoot Sims, Gene Ammons e Eddie “Lockjaw” Davis, Hamilton despejou esse rosário de influências em um álbum coeso e completamente imerso na melhor tradição jazzística, que naquela época parecia estar esquecida.

Contando com uma sessão rítmica das mais experientes, integrada pelo pianista Nat Pierce, pelo baixista Monty Budwig e pelo baterista Jake Hanna, além da participação do trompetista Bill Berry, a estréia não poderia ser mais auspiciosa. O álbum ajudou a resgatar o interesse do mercado pelo jazz acústico e mereceu do crítico Leonard Feather as seguintes palavras: “Em tempos de tanta poluição sonora a nos esmagar, ele é, quase que literalmente, um alívio para os ouvidos doloridos, um bálsamo para desfazer os danos auditivos”.

Não que Hamilton desconhecesse a força criativa de saxofonistas mais modernos, como Sonny Rollins ou John Coltrane. Apenas, a música que esses titãs faziam não se encaixava nas suas próprias concepções musicais. Ele explica: “Eu sempre toquei da maneira como toco agora. Eu escutava Trane, mas nunca ouvi nada que realmente quisesse aproveitar em minha própria forma de tocar. E isso sempre foi algo consciente. Eu jamais pensei em tocar de outra maneira ou em outro estilo”.

Tocar com músicos de gerações anteriores é uma constante na carreira do saxofonista. Além do veterano pianista John Bunch, que integrou um dos seus primeiros quartetos e o acompanhou em seu primeiro disco como líder, Scott pode se orgulhar de parcerias com luminares como Al Cohn, Ruby Braff, Buck Pizzarelli, Woody Herman, Tony Bennett, Gerry Mulligan, Flip Phillips, Maxine Sullivan, Herb Ellis, Buddy Tate, Ray Brown, Jimmy Witherspoon, Vic Dickenson, Jo Jones, Red Norvo e Dave McKenna.

No final dos anos 80 fixou-se em Londres, tornando-se atração constante em clubes locais como o Pizza Express Jazz Club e o Ronnie Scott’s. Também fez parte de inúmeras bandas all-stars, como a Concord Jazz All Stars, a Concord Super Band e a George Wein’s Newport Jazz Festival All Stars. Fez parte da célebre “World's Greatest Jazz Band”, fundada por Dick Gibson, Yank Lawson e Bob Haggart, da qual também fizeram parte, entre outros, Vic Dickenson, Carl Fontana, Bud Freeman, Peanuts Hucko, Ralph Sutton e outros expoentes.

Seu passaporte registra passagens pelos quatro cantos do mundo e incontáveis países: Suécia, Alemanha, Canadá, Portugal, Japão, Escócia, França, Espanha, Itália, Polônia, Suíça e Holanda são apenas alguns deles. Já se apresentou em alguns dos festivais mais importantes do planeta, como Nice, Estoril, Irvine, Angra do Heroísmo, Toronto, Brecon, Northsea, Fujitsu-Concord e JVC Jazz Festival.

O público que acorre a esses espetáculos tende a concordar com o que escreveu o crítico John Barrett Jr., da Jazz Review: “O que eu mais gosto em sua forma de tocar é a sua consistência, sua habilidade para interpretar velhos standards da forma como essas canções foram originalmente concebidas e, ainda assim, apresentar alterações sutis e refrescantes, que as tornam novas outra vez”.

No início da carreira Scott teve sérios problemas com o álcool, que quase comprometeram o seu sucesso profissional. Felizmente, em 1982, ele deixou a bebida e conseguiu manter as rédeas da vida e da carreira. Em sua longa e frutífera associação com a Concord, ele já atuou em quase 100 gravações, seja como líder, seja como acompanhante. Nessa condição, atuou em álbuns de gente como Ed Bickert, Susannah McCorkle, Ken Peplowski, Cal Tjader, Charlie Byrd, Gene Harris, Gerry Mulligan e Ernestine Anderson.

Como líder, é bastante difícil escolher apenas um de seus discos, tamanha a qualidade do material que ele, habitualmente, produz. Mas existe um disco tão encantador que, dificilmente, os fãs de Hamilton deixarão de incluir entre as melhores coisas feitas pelo saxofonista. Trata-se de “After Hours”, gravado nos dias 18 e 19 de dezembro de 1996, no estúdio Sound On Sound, em Nova Iorque, com produção de John Burk.

Mais uma vez, Scott se encontra à frente de um quarteto, formação que parece preferir a qualquer outra. Seus acompanhantes são ninguém menos que os fabulosos Tommy Flanagan no piano, Bob Cranshaw no contrabaixo e Lewis Nash na bateria, uma sessão rítmica de sonho. Com uma sessão rítmica dessa, seria difícil para um músico apenas mediano ter uma performance ruim. Quando o líder é um gigante em seu instrumento, então, o resultado não poderia ser menos que soberbo!

“Beyond the Bluebird” é uma balada de autoria de Flanagan, com uma pegada bluesy cativante. Conjugando a simplicidade do blues com a estética refinada de quem acompanhou Ella Fitzgerald por mais de dez anos, Flanagan exibe uma técnica magistral e a elegância do seu toque encontra no sopro potente e resoluto de Scott um parceiro à altura. O talento descomunal de Nash é o complemento mais que propício a essa verdadeira exibição de gala dos dois titãs.

A adoração de Hamilton pelo swing é mais que conhecida. Mas ele também é um exímio bopper, como se pode perceber na espetacular versão de “Woody' N’ You”, de Dizzy Gillespie. Com um ataque rápido e vigoroso, ele improvisa com avidez e arrojo desconcertantes. Tal como fazia o ídolo Hawkins, Scott serpenteia pelas veredas do jazz moderno com tamanha desenvoltura que parece ter sido um habituée das noitadas no Minton’s Playhouse, nos anos 40. A faixa tem um discretíssimo acento latino, que lhe confere um charme adicional, e mais uma atuação de tirar o fôlego de Nash.

“Blues in My Heart” foi composta por Benny Carter e a interpretação do quarteto é reverente, quase circunspecta. O contrabaixo poderoso de Cranshaw dá um aspecto sombrio ao tema e contrasta com o piano límpido e arisco de Flanagan. Trata-se de um blues em seu estado puro, no qual Scott exibe um fraseado musculoso, gutural e absolutamente imerso na tradição de Coleman Hawkins ou Don Byas.

“Bye Bye Blues” é uma balada em tempo médio de autoria de Dave Bennett, Chauncey Gray, Fred Hamm e Bert Lown. A abertura vibrante e colorida fica a cargo de Nash, que ao longo de todo o tema demonstra uma vitalidade invejável, e logo em seguida os demais instrumentos se integram de maneira bastante harmônica. A melodia é simples e despretensiosa, com os quatro atuando em uma atmosfera de puro relaxamento.

A balada “What's New?” é uma das canções mais espetaculares do repertório de Billie Holiday, tendo sido composta por Johnny Burke e Bob Haggart em 1939. A abordagem do quarteto cria um clima luxuriante e, ao mesmo tempo, opressivo, merecendo atenção a sofisticação harmônica que Flanagan imprime ao tema. O sopro enfumaçado de Hamilton simboliza bem o abandono e o desencanto de que trata a letra da música.

A sacolejante “You're Not the Kind”, de Will Hudson e Irving Mills, teve em Fats Waller um dos seus primeiros intérpretes, mas foi imortalizada por Sarah Vaughan. A abordagem do quarteto é descontraída, alegre e sumamente despojada, merecendo todos os encômios a extraordinária sensibilidade de Hamilton para recriar antigas composições e atingir uma entonação que consegue ser, ao mesmo tempo, surpreendente como exige o verdadeiro jazz e bastante agradável aos ouvidos, sem resvalar nos maneirismos e obviedades do chamado “smooth jazz”.

Com um pezinho no blues, “Black Velvet”, de James Mundy e Al Stillman, é uma balada em tempo médio carregada de lirismo. A sonoridade cheia e calorosa, que é a assinatura do saxofonista, interage em altíssimo nível com o refinamento lírico de Flanagan. Soberbos na sessão rítmica, Cranshaw e Nash parecem se divertir bastante, com direito a solos breves, porém intensos. A destacar, o animadíssimo diálogo entre saxofone e bateria na parte final do tema, ao estilo “pergunta e resposta”.

A bossa nova está presente, na interpretação excitante de “How Am I To Know?”, de autoria de Jack King e da escritora (e letrista bissexta) Dorothy Parker. Arranjo elegante, empatia absoluta entre os músicos, improvisos ousados, excelente senso de tempo e um swing cativante são as características mais evidentes dessa faixa. A atuação do líder é irrepreensível, propiciando ao ouvinte um delicioso banquete sonoro. Destaque também para primoroso o solo de Cranshaw.

“Some Other Spring” é um clássico de Arthur Herzog e Irene Kitchings e também fez parte do repertório de Lady Day. É a mais introspectiva do disco, com direito a uma execução fantasmagórica de Flanagan, cujo dedilhado emula um sussurro. Hamilton realça o clima sombrio, com uma interpretação contida e de elevado conteúdo emocional.

A sonoridade robusta e dinâmica de Hamilton cai como uma luva na crepitante “Steeplechase”, de Charlie Parker. Como era característica primordial em Bird, também Hamilton faz a arte de tocar saxofone parecer a coisa mais simples do mundo. Sua sonoridade ecoa tranqüila, lúdica, despojada, mesmo durante os solos mais complexos. As arrojadas harmonias concebidas por Flanagan e a percussão arrebatadora de Nash são os outros destaques do tema. Um disco para figurar como destaque absoluto em qualquer coleção e, mais importante, para ser ouvido milhares e milhares de vezes.

Em 2005, Hamilton comemorou seu retorno a Nova Iorque em grande estilo, ao se juntar a Bill Charlap, Peter Washington e Kenny Washington, um dos mais prestigiados trios da atualidade, nas gravações de “Back In New York”, também para a Concord. Em 2007 foi eleito o melhor saxofonista da primeira edição do Ronnie Scott’s Jazz Awards. Em fevereiro de 2008 fez uma elogiada série de shows no Lincoln Center, em Nova Iorque.

Com seu bigode e sua indumentária que lembram um dândi, Hamilton já foi comparado a um personagem de seu xará Scott Fitzgerald, que retratou como ninguém a atmosfera irreverente e hedonista dos anos 20. Talvez não seja por acaso que as músicas da época sejam tão caras ao saxofonista, sobre quem o crítico Lloyd Sachs escreveu: “Quanto mais eu ouço esse jovem veterano, mais me convenço de que hoje existem pouquíssimos jazzistas capazes de produzir um som tão admirável”.

Casado com a japonesa Manami, Hamilton tem brindado o ouvinte de jazz com jóias do quilate de “East Of The Sun” (de 1993, cujo repertório foi escolhido pelos leitores da revista japonesa “Swing Journal”), “Organic Duke” (de 1994, onde atua ao lado do organista Mike LeDonne, em um repertório quase que exclusivamente baseado em composições de Duke Ellington) e “On Red Door” (de 1998, um dueto com o guitarrista Bucky Pizzarelli, no qual ambos prestam tributo ao grande Zoot Sims).

Todos esses discos foram lançados pela Concord, mas o saxofonista também tem lançado, nos últimos anos, álbuns pelas pequenas gravadoras Woodville e Arbors. Scott também tem feito parcerias com músicos da nova geração, como o saxofonista inglês Alan Barnes e o pianista italiano Rossano Sportiello. Seu quarteto atual é integrado pelos músicos britânicos John Pearce (piano), Dave Green (contrabaixo) e Steve Brown (bateria).

Por meio das palavras do crítico Dave Gelly, pode-se depreender um pouco da magia que torna a sonoridade de Hamilton tão especial: “Escutar a seqüência de um solo de Scott Hamilton é como ouvir um bom papo em seu fluxo total. Primeiro vem a voz, o som inimitável, depois vem a certeza de seu saxofone tenor, o estilo informal e, finalmente, a fluência incrível e seu comando eloqüente da linguagem do jazz”.

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sábado, 12 de março de 2011

CORAÇÕES PSICODÉLICOS


A árvore genealógica de Charles Lloyd registra ancestrais Cherokees, mongóis, irlandeses e africanos. Tamanho grau de miscigenação talvez possa explicar a sonoridade e as opções musicais desse fabuloso saxofonista, em cujo dicionário palavras como fronteiras e preconceito parecem não existir. Nascido em Memphis, Tennessee, no 15 de março de 1938, sua relação com a música sempre foi muito intensa. Ao mesmo tempo em que as ondas do rádio faziam chegar a seus ouvidos os acordes do blues, do jazz e da country music, ele era um ouvinte atento da tradição do gospel e dos spirituals, que ouvia na igreja batista freqüentada pela família.

Aos 10 anos recebeu o primeiro saxofone e logo começou a extrair do instrumento os primeiros sons, influenciado pelos ídolos Charlie Parker, Coleman Hawkins e Lester Young. A educação musical formal viria pelas mãos de Irving Reason, mas Lloyd também estudou piano com o extraordinário Phineas Newborn, um dos mais célebres jazzistas de Memphis. Freqüentou a Manassas High School, onde, ainda na infância, fez amizade com os trompetistas Booker Little e Louis Smith e com o pianista Harold Mabern.

Mais tarde, tornou-se amigo e parceiro, em incontáveis jams, dos saxofonistas Frank Strozier e George Coleman, que também se tornariam importantes músicos de jazz. A interação com músicos desse quilate foi definitiva para a formação de Lloyd e lhe abriu a mente para outras sonoridades. O resultado é que, em pouco tempo, ele começou a se destacar como um saxofonista bastante original e cheio de idéias novas.

Como bem ensina o Mestre Pedro “Apóstolo” Cardoso: “O som de Lloyd é cálido, colorido e expressionista, permanecendo seguramente ancorado nos anos 70 do século passado, tendo como característica de originalidade a de situar-se na encruzilhada do “free-jazz” com as raízes folclóricas (pela própria origem em sua terra natal), de modo a atingir público mais amplo que o dos amantes do jazz”.

A carreira profissional começou ainda na adolescência, primeiramente tocando em orquestras locais de R&B, tendo acompanhado grandes nomes do blues, como Roscoe Gordon, Willie Mitchell, Roosevelt Sykes, B.B.King, Howlin' Wolf e Johnny Ace, entre outros. Em 1956, com apenas 18 anos, o saxofonista resolveu se fixar na Califórnia, tendo estudado composição e regência na University Of Southern Califórnia, onde foi aluno do renomado Halsey Stevens, uma das maiores autoridades norte-americanas em Bartok.

Nos horários de folga, Lloyd participava de gigs em clubes de Los Angeles, tendo se aproximado de um grupo de jovens músicos que desejava revolucionar a cara do jazz. Eram eles Ornette Coleman, Charlie Haden, Eric Dolphy, Billy Higgins, Scott La Faro, Don Cherry, Paul Bley e Bobby Hutcherson, entre outros. Mas o jazz mais ortodoxo também tinha espaço na agenda de Lloyd e ele foi integrante, durante algum tempo, da orquestra do trompetista Gerald Wilson.

Lloyd também se dedicou à educação musical e trabalhou como professor até 1961. Após deixar a orquestra de Wilson, uniu-se ao grupo do baterista Chico Hamilton, onde substituiu o amigo Eric Dolphy, e ali permaneceu até 1963. Na banda de Hamilton, Lloyd aperfeiçoou seu talento composicional e também passou a elaborar arranjos. Também foi ali que conheceu o guitarrista húngaro Gabor Szabo, de quem se tornaria amigo e um constante parceiro musical nos anos vindouros.

Entre 1964 e 1965, integrou o sexteto de Julian “Cannonball” Adderley, onde substituiu o grande Yusef Lateef. No grupo também atuavam os talentosos Herbie Hancock, Ron Carter e Tony Williams. Naquela época, Lloyd passou a adotar também a flauta e lançou seus primeiros discos como líder, para a Columbia. O primeiro deles foi “Discovery!” (1963), produzido por George Avakian e que contava com as presenças do pianista Don Friedman, dos baixistas Richard Davis e Eddie Kahn e dos bateristas J. C. Moses e Roy Haynes.

Essa foi a primeira vez que o trabalho de Lloyd chamou a atenção da crítica especializada, mas essa formação durou pouco tempo. A influência mais visível, durante esse período, é John Coltrane, não tanto no aspecto da sonoridade, mas, sobretudo, por causa da extrema familiaridade com ritmos orientais e pela ousadia na busca por novos caminhos musicais.

Em seguida, ele formou um novo grupo, agora tendo a seu lado os amigos Gabor Szabo e Ron Carter e ficando a bateria a cargo de Pete LaRoca ou Joe Chambers. Apesar da boa receptividade, o guitarrista deixou o grupo porque, segundo ele, precisava retomar as suas raízes musicais. Em uma entrevista, Szabo declarou que a saída se deu amigavelmente, apenas por razões puramente musicais: “Charles tocava de uma maneira muito mais furiosa e energética que eu. Eu era mais econômico com as notas e, então, resolvi deixar o grupo e desde então tenho liderado os meus próprios conjuntos”.

Em novembro de 1964, o saxofonista foi a estrela do documentário “Jazz Discovery: Charles Lloyd”, produzido por Avakian e exibido pelo canal KQED-TV, de San Francisco. Entre 1965 e 1966, Lloyd tentou diversas formações, incluindo parcerias com Herbie Hancock, Steve Kuhn, Reggie Workman e Tony Williams. Também formou um quarteto, ao lado de Joe Zawinul, Sam Jones e Louis Hayes, seus companheiros no grupo de Cannonball, mas essas experiências não frutificaram.

Somente em fevereiro de 1966 o saxofonista encontraria parceiros irmanados em concepções musicais semelhantes às suas. Eram eles o pianista Keith Jarrett, o baterista Jack DeJohnette e o contrabaixista Cecil McBee (posteriormente substituído por Ron McClure), todos na casa dos vinte anos e, em comum, possuíam, além da formação técnica espetacular e do amplo conhecimento das mais diversas sintaxes do jazz, uma completa aversão ao conservadorismo e um apetite aparentemente insaciável pelo novo.

Graças à intervenção de George Avakian, o quarteto foi contratado pela Atlantic Records, onde gravou quase uma dezena de álbuns, boa parte deles centrada nas composições de Lloyd e de Jarrett. A receptividade de público e de crítica foi espetacular, sendo que “Forest Flower” (1966) ultrapassou a marca de um milhão de cópias vendidas, uma cifra espantosa para os modestos padrões do jazz, e tocou exaustivamente nas rádios FM dos Estados Unidos.

As influências do quarteto são as mais diversas, incluindo pitadas de bebop, fusion, post-bop, blues, avant-garde, rock, psicodelismo e soul jazz. No mesmo ano em que foi formado, o grupo se exibiu, com estrondoso sucesso, nos festivais de Monterey (onde foi gravado “Forest Flower”), Newport e Antibes, na França. No ano seguinte, Lloyd e seus comandados romperam paradigmas ao se apresentar no célebre Fillmore Auditorium, casa de espetáculos de San Francisco, que até então era reservada exclusivamente para cantores e grupos de rock, como Jimi Hendrix, Janis Joplin, Cream e Grateful Dead.

A influência psicodélica está presente não apenas no título do álbum, como também na capa colorida, que reproduz a estética hippie tão em voga na época. Os integrantes do quarteto se vestiam a caráter, usando batas e camisolões floridos, além de pulseiras e acessórios típicos da contracultura. Os Estados Unidos viviam o pesadelo do Vietnã e a postura desafiadora de Lloyd e seu grupo encontrava ampla ressonância entre os jovens. Não é à toa que o grupo costumava sair em turnê com bandas de rock psicodélico, como Grateful Dead, Jefferson Airplane, The Byrds e Paul Butterfield Blues Band.

O show no Filmore foi realizado no dia 27 de janeiro de 1967 já com Ron McClure no lugar de Cecil McBee e, posteriormente, foi lançado em LP com o título “Love-In”. O disco é uma miscelânea de informações musicais, cujo resultado final é bastante coeso e surpreendentemente acessível. A faixa de abertura é a coltraneana “Tribal Dance”, cuja estrutura fugidia e dissonante exige do líder e, sobretudo, de Jarrett uma entrega absoluta. A comunicação entre os membros do grupo é telepática, com destaque para a exuberância polirrítmica de DeJohnette.

Usando a flauta, Lloyd faz da sussurrante “Temple Bells” uma verdadeira viagem espiritual, que remete à atmosfera dos templos indianos. É uma composição do líder, minimalista, onde os demais instrumentos são apenas sugeridos. O clima esquenta com o blues “Is It Really The Same?”, de autoria de Jarrett, no qual Lloyd volta ao tenor com toda energia. Sua sonoridade não é tão rascante quanto a de Coltrane ou de Rollins, mas é profundamente original, sobretudo na maneira como ele alonga as notas mais agudas. Seus solos possuem uma profundidade e um vigor que estimulam os companheiros a dar o máximo de si. Como resultado dessa permanente exigência, a atuação de Jarrett não é menos impactante e vigorosa, mas já exibindo, todavia, indícios do pianista cerebral que viria a se tornar nos anos seguintes.

A interpretação de “Here, There and Everywhere”, da dupla Lennon e McCartney, é enternecedora. Lloyd passeia, completamente à vontade, pelo pop sofisticado dos garotos de Liverpool e o resultado é uma interpretação limpa, sem arabescos, completamente centrada na simplicidade e na beleza da melodia. Jarrett encontra espaço para improvisar e seu solo, conciso, revela que quando existe concatenação de idéias, o discurso harmônico dispensa a profusão de notas.

O quarteto entra em clima de festa com o tema que dá nome ao disco, soul jazz de primeiríssima linha, dançável e vibrante. Composta por Lloyd, que também aqui toca flauta, a faixa é impregnada de groove, com uma percussão infecciosa e uma linha de baixo sensacional. Atente-se para a vitalidade com que Jarrett investe contra as teclas do piano, e seu solo, intricado e contagiante, revela uma energia quase selvagem.

Da lavra de Jarrett, “Sunday Morning” é um blues estilizado, que flerta com o rock e traz elementos de soul jazz e stride. O líder não participa da sessão e o pianista brilha, em uma atuação impetuosa, percussiva e de enorme criatividade. Para encerrar, um medley composto por “Memphis Dues Again” e “Island Blues”, temas mais ásperos e pouco ortodoxos. O primeiro situa-se no limiar do free jazz, sendo, basicamente, uma livre improvisação do líder, a bordo do sax tenor. O segundo é uma fanfarra, com pitadas de blues e dixieland, e é bem menos hermético que o anterior. Um disco para ser descoberto e que conjuga ímpeto criativo, visceralidade e ousadia em igual medida. Certamente, ajuda a compor a trilha sonora de uma era mas pode ser ouvido nos dias de hoje sem maiores sobressaltos. A música que emana dele é atemporal.

Saudado como o último grande inovador a emergir nos anos 60, Lloyd passou o restante da década em permanente lua-de-mel com público e crítica. Excursões pela Europa eram uma constante – entre 1966 e 1968 foram nada menos que seis viagens, incluindo aí países do Leste Europeu, então extremamente fechados e nada receptivos a qualquer contato com o ocidente. Seu quarteto foi um dos primeiros grupos norte-americanos a excursionar pela extinta União Soviética, em 1969. Também tocou na Ásia e no Oriente Médio, roteiros então pouco usuais para músicos de jazz.

Lloyd era um dos poucos músicos de jazz a praticamente abolir as apresentações em clubes e pequenas boates, tamanho o interesse que seus concertos despertavam no público. Hoje pode parecer exagero, mas na segunda metade da década de 60 apenas Coltrane e Miles Davis desfrutavam de prestígio comparável ao seu. A prova disso, além dos milhões de álbuns vendidos e das turnês com lotação esgotada, foi a sua eleição, em 1967, como “Jazz Artist Of The Year”, pela revista Down Beat.

No entanto, nem tudo eram flores. As divergências internas eram intensas e em 1968 foi a vez de DeJohnette deixar o posto, sendo substituído pelo não menos talentoso Paul Motian. No ano seguinte, abalado pelo falecimento de sua mãe e envolvido com drogas, Lloyd dissolveu o quarteto e partiu para uma profunda viagem rumo ao autoconhecimento. Embora não tenha abandonado completamente a música – chegou a lançar alguns discos nos anos 70, por selos como KAPP e A&M e atuou como sideman em álbuns de artistas como Roger McGuinn, Beach Boys, Canned Heat e The Doors – o saxofonista diminuiu sensivelmente o seu ritmo de trabalho.

Passou a se dedicar à meditação transcendental e deixou Malibu, na Califórnia, indo residir em Big Sur, cidade californiana onde também viviam outros artistas extremamente inquietos e originais, como os escritores Langston Hughes, Henry Miller, Lawrence Ferlinghetti e Jack Kerouac. Também retomou as atividades como educador musical e passou a se dedicar ao sax soprano. Ao lado do cantor Mike Love, vocalista dos “Beach Boys”, e do produtor Ron Albach, Lloyd criou a produtora “Lovesongs”.

Em 1977 mudou-se para a França e, mais tarde, para a Suíça. Na Europa, em 1981, foi apresentado pelo percussionista Tox Drohar a um jovem pianista de apenas 18 anos chamado Michel Petrucciani. A química entre os dois foi imediata e após alguns trabalhos em duo, resolveram formar um quarteto que incluía o baixista Palle Danielsson e o baterista Ship Theus. Com essa formação, Lloyd e Petruccianni gravaram, em 1982, dois álbuns: “Michel” e “Montreux 82”, ambos para a Elektra. O grupo ainda gravou, no ano seguinte, o álbum “A Night In Copenhagen” (Blue Note), que conta com a participação do vocalista Bobby McFerrin em duas faixas.

Em 1985, ele reuniu-se a Michel Petrucciani, Jack DeJohnette e McBee para um concerto no Town Hall, em Nova Iorque, em comemoração à volta da Blue Note Records ao mercado fonográfico. No ano seguinte, o saxofonista sofreu uma Diverticulite de Meckel, doença rara e, em boa parte dos casos, fatal. Embora tenha sofrido uma cirurgia que lhe retirou parte do intestino, felizmente superou os problemas de saúde e voltou a tocar pouco tempo depois.

A partir da sua união com Petrucciani, Lloyd voltou com tudo ao cenário jazzístico e, tal como havia feito na década de 60, tornou-se um emérito descobridor de novos talentos. Por seus grupos passaram nomes hoje consagrados, como Jason Moran, Brad Mehldau, Eric Harland, John Abercrombie, Larry Grenadier e Geri Allen, entre muitos outros. Segundo o crítico suíço Yvan Ischer “ver e ouvir Charles Lloyd em ação é sempre um evento, não apenas porque este saxofonista percorreu até hoje inúmeras encruzilhadas, mas, sobretudo, porque ele possui uma verdade inquebrantável que faz dele um músico completamente original. É isso o que chamamos graça”.

Em 1989 iniciou uma prolífica associação com o selo alemão ECM. Seu primeiro disco pela nova gravadora foi “Fish Out Of Water”, onde o saxofonista se faz acompanhar por uma sessão rítmica escandinava, formada pelos suecos Cobo Stenson (piano) e Palle Danielsson (baixo) e pelo norueguês Jon Christensen (bateria). Seus álbuns pela ECM se caracterizam por uma sonoridade introspectiva e profundamente espiritualizada. Via de regra, são recebidos com entusiasmo pela crítica, como é o caso de “Lift Every Voice” (2002), “Rabo de Nube” (2008 – vencedor do prêmio de melhor álbum do ano da revista Jazz Times, em votação da crítica e do público) e “Mirrors” (2010).

Ele se mantém em intensa atividade, tocando e gravando com regularidade. Em 2006, por exemplo, foi a principal atração do Festival de Monterey, onde comemorou o quadragésimo aniversário de sua primeira apresentação no local. Em 2010 realizou concertos na África do Sul e Austrália. Para o ano de 2011 sua já estão agendadas apresentações na França, Bélgica, Romênia e no North Sea Jazz Festival, na Holanda.

Mais uma vez recorrendo aos enciclopédicos conhecimentos do Mestre Apóstolo, pode-se dizer que Lloyd “possui amplo domínio técnico dos instrumentos que toca de forma bem extrovertida, com amplo vibrato, poderoso volume, fraseado bem irregular com destaque para as fugas na direção dos ‘sobre agudos’, pela contínua busca de notas artificiais no sax tenor e na flauta. É um obstinado tecelão de climas passionais como conseqüência dos ‘ostinatos’ que executa ‘obstinadamente’. Sem erro, podemos incluir Llloyd entre os maiores e melhores difusores da estética coltraneana”.

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terça-feira, 8 de março de 2011

MAMBEMBE, CIGANO, DEBAIXO DA PONTE, TOCANDO...


Jean-Baptiste Reinhardt é considerado um dos mais importantes guitarristas da história do jazz. Ele também foi o mais influente jazzista europeu das décadas de 30 a 50, tendo desenvolvido um estilo de tocar bastante pessoal e uma sonoridade tão peculiar que jamais conseguiu ser imitada. Nascido em uma comunidade cigana em Liberchies, na Bélgica, no dia 23 de janeiro de 1910, viveu uma vida repleta de aventuras e a intensidade de suas experiências pessoais se refletiu em sua música, ajudando a compor uma figura lendária, que até hoje intriga e emociona os fãs do jazz.

A vida nômade e instável foi uma realidade constante. Seus pais, Jean-Eugène Weiss e Laurence Reinhardt, moravam em um carroção e seguiam à risca a tradição cigana de não passar muito tempo em um mesmo lugar. Em 1914, por conta da eclosão da I Guerra Mundial, sua família empreendeu uma série de viagens, fixando-se temporariamente em Nice, na França, na região da Córsega, na Itália, e até mesmo no norte da África. Ao final do conflito, a caravana decidiu se fixar nos arredores de Paris. Foi na Cidade Luz que Django, apelido que recebeu na infância, descobriu duas de suas maiores paixões: a música e a boêmia.

Aos 12 anos Django, que já conhecia os rudimentos do violão cigano, ganhou de um vizinho um banjo e adotou o instrumento com grande paixão. Sua habilidade deixava perplexos até mesmo músicos mais experientes. Autodidata, tinha uma enorme criatividade e um senso rítmico quase sobrenatural e em pouquíssimo tempo passou a dominar todos os segredos do instrumento. Além disso, o convívio com artistas, boêmios, prostitutas, malandros e outras figuras do submundo fascinava o jovem músico e ajudava a moldar o seu comportamento errático e até mesmo irresponsável.

No final dos anos 20, uniu-se ao acordeonista Jean Vaissade e ao xilofonista Francesco Cariolato. Os três formaram um grupo especializado em interpretar canções francesas e napolitanas, impregnadas com um indiscutível acento cigano, que se apresentava com regularidade no clube Schérazade. Suas primeiras gravações foram realizadas em março de 1928, com o grupo de Vaissade e Django recebeu quinhentos francos pelo trabalho. Em outubro daquele mesmo ano, gravou com o acordeonista Victor Marceau.

Seu primeiro contato com o jazz norte-americano se deu em 1924, quando assistiu, no L'Abbaye de Thélème, restaurante situado na Place Pigalle, a uma apresentação da banda “Novelty Jazz Band”, conduzida pelo pianista Billy Arnold. O garoto ficou encantado com aquela espécie completamente nova de música, e passou a incorporar alguns elementos harmônico-melódicos do jazz, misturando-os à música cigana que fazia.

Django era um profundo conhecedor da tradição musical cigana e sabia tocar música flamenca, além de canções folclóricas húngaras e romenas, por causa do intenso contato com ciganos originários da Espanha, da Hungria e da Romênia. Embora não tivesse educação formal e nem musical, ele era dotado de uma prodigiosa memória e era capaz de compor e reproduzir temas bastante complexos.

Além disso, também gostava bastante de música erudita e seus compositores favoritos eram Bach, Debussy e Ravel. Por conta de sua habilidade, o guitarrista tocou com músicos renomados da época, como os acordeonistas Vétese Guérino, Maurice Alexander, Fredo Gardoni, Jean Vaissade e Marceau Verschueren. Contudo, sua falta de disciplina e sua crônica incapacidade de cumprir horários tornavam a sua contratação algo temerário.

Como bem explica o pesquisador Augusto Pellegrini, Django “sempre se comportou como cigano e como nômade. Tinha um profundo desprezo pelas convenções sociais, vivia na marginalidade, apreciava jogos de azar e ambientes do submundo, e se tornou um músico extremamente irresponsável, sem respeitar horários ou compromissos, além de impor uma forte tirania a seus companheiros”.

Em novembro de 1928 Django sofreu um terrível acidente. Ao voltar para o acampamento, após uma apresentação no clube La Java, em Montmartre, ele derrubou uma vela no carroção onde vivia com a mulher, Bella. Esta fazia flores artificiais de celulóide para vender e o carroção estava repleto de produtos altamente inflamáveis. O resultado é que Django sofreu sérias queimaduras nas costas, nas pernas e na mão esquerda. Os médicos, inclusive, queriam amputar-lhe a perna atingida, mas o músico não permitiu.

A recuperação foi longa e dolorosa. O guitarrista foi obrigado a usar muletas para caminhar e sua carreira musical foi seriamente ameaçada, pois ele perdeu a mobilidade de dois dedos da mão esquerda. Com muita disposição e força de vontade, Django desenvolveu uma técnica de tocar completamente diferente. Como os tendões dos dedos mínimo e anelar foram muito atingidos e o fogo restringiu enormemente a funcionalidade desses dedos, ele passou a realizar seus solos com os dedos indicador, polegar e médio.

Nesse período, abandonou o banjo e voltou-se para a guitarra cigana, tornando o instrumento irremediavelmente associado à sua personalidade. Em 1931 já estava de volta aos palcos, tocando com o acordeonista e contrabaixista Louis Vola, no clube Pal Beach, em Cannes, e fazendo parte, durante um breve período, da orquestra de Léon Volterra, que se apresentava com regularidade na boate Amatelots, também em Cannes. Outra associação importante foi com o pianista Stéphane Mougin. Mougin, aliás, dominava o idioma jazzístico com bastante fluência e foi com ele que Django aprofundou seus conhecimentos do estilo.

Outro fator importante para direcionar a carreira do guitarrista para o jazz foi a amizade com o pintor Émile Savitry, grande fã de jazz e que costumava convidar Django e seu irmão mais novo, o também guitarrista Joseph, para ir à sua casa, a fim de ouvirem álbuns de músicos como Louis Armstrong, Duke Ellington, Joe Venuti, Lionel Hampton e Eddie Lang. Os irmãos Reinhardt ouviam aquelas músicas e procuravam reproduzir em suas guitarras a sonoridade e o fraseado dos grandes jazzistas, e se tornaram divulgadores e verdadeiros entusiastas do estilo.

Após perambular por cidades como Cannes, Toulon e Lyon, Django retornou a Paris, onde passou a freqüentar o Café La Croix, ponto de encontro de jornalistas, escritores, artistas, músicos e intelectuais. Tornou-se amigo do escritor e cineasta Jean Cocteau e do cantor Jean Sablon. A banda da casa era integrada pelo saxofonista André Ekyan e pelo violonista Stéphane Grappelli, que em pouco tempo se tornariam amigos do guitarrista.

Em 1932, o crítico Hughes Panassie e o produtor Charles Delaunay fundaram o Hot Club de France, que congregava os jazzófilos franceses e promovia audições de discos, concertos e palestras. Graças à intervenção do velho amigo Savitry, membro do clube, Django fez uma apresentação no local, em 1933, e deixou a audiência extasiada. O concerto rendeu-lhe o convite para integrar, no ano seguinte, o grupo liderado por Louis Vola, que era atração fixa do Hotel Claridge. Os outros membros eram o guitarrista Roger Chaput, o violinista Stéphane Grappelli e o saxofonista Alix Combelle.

Não demorou muito e Django se destacou como o grande virtuose do grupo, passando a imprimir ao grupo uma sonoridade pessoal e cheia de referências à música cigana. Vola, Chaput, Grappelli e Django resolveram permanecer juntos e o grupo, já acrescido de Joseph Reinhardt na guitarra, passou a se chamar Quintette du Hot Club de France. Um dos primeiros concertos foi realizado no auditório da Ecole Normale de Musique e a repercussão, salvo a opinião de alguns críticos mais conservadores, foi consagradora.

A principal crítica que alguns faziam à sonoridade de Django provinha, justamente, daquilo que tornava a sua abordagem, tão especial e diferente de tudo o que estava sendo feito naquele período: a enorme influência da música cigana. O crítico Wayne Jefferies explica: “uma das críticas feitas ao trabalho de Django pelos puristas do jazz têm sido os sobretons ciganos em seu estilo. Considerando os antecedentes de Django, é inevitável que algum deste sabor tenha vindo à tona. De fato, isto contribuiu para seu estilo altamente original, que era muito novo lá atrás no começo dos anos 30”.

Aclamado por público e crítica o quinteto fazia apresentações concorridas e seus discos, lançados por selos como Decca, Ultraphone e HMV, estavam sempre entre os mais vendidos da França. Muitas das composições mais conhecidas de Django datam desse período, como “Minor Swing”, “Nuages”, “Melodie au crépuscule”, “Djangology” e “Vous et moi”. Em 1935, a revista Jazz-Tango publicou: “Django Reinhardt é comparável aos melhores instrumentistas norte-americanos”. No ano seguinte, seria a vez do crítico inglês Leonard Hibbs, em artigo publicado na revista Swing London, dizer que as gravações do grupo “representam algo original, ainda completamente satisfatório, na arte do hot rhythm”.

O grupo fez, em fevereiro de 1935, uma antológica apresentação na Salle Pleyel, ao lado do saxofonista Coleman Hawkins. Muitos foram os músicos norte-americanos que, de passagem pela Europa, tocaram com o quinteto: Teddy Hill, Dickie Wells, Rex Stewart, Barney Bigard, Eddie South, Benny Carter, entre outros. O grupo excursionou por todo o continente europeu, fazendo apresentações sempre muito elogiadas, incluindo turnês pela Espanha, Inglaterra e países escandinavos.

Na Inglaterra, o quinteto tocou no Cambridge Theatre e no London Palladium, merecendo do jornalista Edgar Jackson, da revista The Gramophone a seguinte análise: “Reinhardt continua o mesmo mago da guitarra. Grappelli ainda é o único rival de Venuti e um melhor acompanhamento dificilmente pode ser imaginado”.

Todavia, problemas internos ameaçavam romper o precário equilíbrio do conjunto. Grappelli e Django brigavam bastante, sobretudo por causa da proverbial irresponsabilidade do guitarrista. Joseph, tratado com mão de ferro pelo irmão, abandonou o grupo, argumentando que havia se cansado de ser o “carregador da guitarra de Django”. Foi substituído por Marcel Bianchi. Pouco depois, Roger Chaput, que também não andava lá muito satisfeito, deu lugar a Pierre Ferret.

Django ganhou bastante dinheiro nessa época e uma das suas primeiras providências foi comprar um Buick novinho em folha. Como não sabia dirigir, contratou um motorista e partiu para um acampamento cigano, a fim de rever seus velhos amigos. Chegando no local, o motorista se assustou com a animação do pessoal e fugiu. O guitarrista tentou se exibir ao volante para os amigos, mas só conseguiu mesmo foi provocar um acidente.

A polícia foi chamada e quase leva Django para a cadeia. Ao se identificar para os policiais, estes custaram a crer que aquele sujeito mal vestido e de aspecto sujo pudesse ser o renomado Django Reinhardt, estrela do Quintette du Hot Club de France. Mas o guitarrista não se fez de rogado: apanhou o instrumento e realizou um concerto em homenagem aos zelosos homens da lei que, encantados com o que viram e ouviram, até se esqueceram de prendê-lo.

Em 1939 a II Guerra Mundial eclodiu e o Quintette du Hot Club de France foi obrigado a encerrar suas atividades. Grappelli permaneceu na Inglaterra, onde o grupo cumpria uma turnê, mas Django optou retornar a Paris. Apesar dos perigos representados pela ocupação nazista – os alemães odiavam os ciganos e haviam mandado milhares deles para os campos de concentração – Django passou os cinco anos seguintes em relativa segurança. Nisso foi ajudado por um graduado oficial da Força Aérea Alemã, chamado Dietrich Schulz-Köhn, que, apreciador de jazz e grande fã do guitarrista, não permitiu que Reinhardt fosse importunado.

Durante a guerra, Django se apresentava com freqüência nos poucos clubes da cidade que ainda permitiam apresentações ao vivo. Tocou com o saxofonista Alix Comballe e em 1940 decidiu reestruturar o Quintette du Hot Club de France, contando com o irmão Joseph na guitarra rítmica, o baixista Francis Lucas, o baterista Pierre Fouad e o clarinetista Hubert Rostaing.

Em 1943, Reinhardt se casou com sua prima, Sophie “Naguine” Ziegler, com quem teve um filho, Babik Reinhardt, nascido no ano seguinte e que seguiria os passos do pai e do tio, tornando-se um renomado guitarrista. Ainda em 1944, Reinhardt gravou com alguns integrantes da orquestra de Glenn Miller, como o pianista Mel Powell, o baterista Ray McKinley e o clarinetista Peanuts Hucko, após a libertação de Paris pelos aliados.

Com o término da guerra, Reinhardt e Grappelli voltaram a tocar juntos, tendo saído em turnê pela Inglaterra. Em 1946 a dupla viajou para os Estados Unidos, excursionando com Duke Ellington. Django tocou em diversas cidades norte-americanas, como Cleveland, Chicago, Saint Louis, Detroit, Kansas City, Pittsburgh, até desembarcar em Nova Iorque, onde se apresentou no Carnegie Hall, nos dias 23 e 24 de novembro. Embora tenha sido um sucesso de público, a turnê não deixou o guitarrista satisfeito, pois fora obrigado a trocar sua velha guitarra acústica Selmer Maccaferri por uma guitarra Gibson amplificada.

Consta, ainda, que o novo instrumento tinha uma afinação diferente da que Django estava acostumado e a sua sonoridade incomodava o guitarrista. Tanto é que em muitos espetáculos ele se mostrava pouco à vontade com a banda, limitando-se a tocar alguns poucos acordes e quase não solava. De qualquer forma a excursão lhe permitiu, além do convívio com Ellington, travar conhecimento do bebop feito por Charlie Parker e Dizzy Gillespie. Reza a lenda que, em Nova Iorque, Django tentou entrar em contato com os dois, mas ambos estavam em turnê e o encontro não foi possível.

De volta à França, Django continuou a demonstrar uma enorme incapacidade de adaptação à vida gregária. Certa feita ele simplesmente abandonou no acostamento de uma rodovia um carro recém adquirido, pelo singelo motivo de que a gasolina havia acabado. Costumava faltar aos shows e era comum desaparecer por longos períodos, nos quais geralmente ia para o campo o para a praia, a fim de ficar isolado.

No final dos anos 40 Reinhardt se apresentou na primeira edição do festival de jazz de Nice e excursionou pela Itália. Em fevereiro de 1951 fez uma elogiada temporada no Clube St. Germain, em Paris, liderando um quinteto integrado por alguns jovens e talentosos músicos franceses, todos eles ligados ao bebop, destacando-se o saxofonista Hubert Fol e seu irmão, o pianista Raymond.

Wayne Jefferies ajuda a compreender a evolução do guitarrista e a importância desse período, já que foi aí que Django fundiu, com grande sucesso, a sua conhecida sonoridade com as linhas modernas do bebop: “Conquanto seus solos se tornassem menos cordais e suas linhas mais semelhantes a Christian, ele reteve sua originalidade. Sua técnica infalível, suas improvisações ousadas, “no limite”, combinadas com seu vastamente avançado senso harmônico o levaram a alturas musicais que Christian e muitos outros músicos do bebop nunca chegaram perto. Os espetáculos ao vivo no Club St. Germain, em fevereiro de 1951 são uma revelação. Django está no auge da forma; cheio de novas idéias que são executadas com incrível fluidez, linhas angulares cortantes e que sempre retém aquele feroz balanço”.

Naquele mesmo ano, decidiu se fixar no interior e escolheu Samois-sur-Seine, cidadezinha localizada nas margens do rio Sena e próxima a Fontainebleau. Ali viveria tranqüilamente, dedicando boa parte do seu tempo à pintura e à pescaria, até o dia 16 de maio de 1953, quando sofreu um AVC fulminante. Ele ainda chegou a ser levado para um hospital em Fontainebleau, mas não resistiu e faleceu.

Seu último registro fonográfico foi lançado em cd pela Gitanes, na série Jazz In Paris, com o título “Nuages”. Trata-se, na verdade, da reunião de duas sessões de gravação distintas. A primeira foi realizada em 10 de março de 1953, na qual o guitarrista está acompanhado pelo pianista Maurice Vander, pelo contrabaixista Pierre Michelot e pelo baterista Jean-Louis Viale.

Foram oito os temas gravados com essa formação, sendo que posteriormente, no dia 08 de abril, seriam gravadas mais quatro músicas, agora com o acompanhamento do vibrafonista Sadi Lallemand, do jovem pianista Martial Solal (tinha apenas 25 anos), do baixista Pierre Michelot (único músico, além do líder, a estar presente nas duas sessões) e do baterista Pierre Lemarchand.

A abertura fica por conta de “Blues for Ike”, na qual a abordagem moderna e quase selvagem de Django demonstra que ele estava bastante antenado com o que havia de mais moderno no panorama musical da época. Usando uma guitarra elétrica Gibson e agora completamente adaptado ao instrumento, o líder trafega pelas veredas do blues com classe e um domínio absoluto do ritmo, da melodia e da harmonia. O pianista Vander e o baixista Michelot também merecem destaque, por suas atuações impecáveis.

Composta por Kurt Weill em 1938, “September Song” era um dos temas preferidos de Django, que já havia gravado a canção em 1947, ao lado do clarinetista Hubert Rostaing. A interpretação do quarteto é relaxada e a performance do líder revela a maestria de alguém que, aparentemente, nasceu com uma guitarra nas mãos. “Night and Day”, de Cole Porter, ganha uma interpretação vigorosa. A sonoridade de Django é visceral e seus improvisos são de grande intensidade emocional.

“Insensiblement” e “Manoir de Mes Rêves” são duas baladas românticas, ambas de autoria do guitarrista e recheadas de elementos da música cigana. Apesar da atmosfera intimista, o líder encontra bastante espaço para improvisar e mostra que também possuía grande facilidade para engendrar harmonias sofisticadas. A sessão rítmica atua com discrição e sensibilidade, revestindo de grande elegância os dois temas.

“Nuages” é, provavelmente, a composição mais conhecida de Django e foi gravada por gente como Herb Ellis, Oscar Peterson, Tal Farlow, Sidney Bechet, Benny Carter, Paul Desmond, Charlie Haden, Lionel Hampton, Milt Jackson, Barney Kessel, Flip Phillips, Phil Woods e muitos outros. O próprio autor gravou cerca de 13 versões, entre 1940 e 1953, mas esta última é considerada uma das mais belas. Django é um intérprete emocionado e lírico, que dedilha o instrumento com total domínio e extrai de cada nota um amálgama de graça e beleza, sem abrir mão do virtuosismo incontido e transbordante de criatividade.

“Brazil” é o título pelo qual a nossa “Aquarela do Brasil” é conhecida no exterior. O quarteto conjuga o swing do jazz com a malemolência do samba, com um resultado vibrante e encantador. “I'm Confessin' (That I Love You)” é a última música gravada na sessão do dia 10 de março e nela o guitarrista trabalha as harmonias de forma absolutamente original, reinventando o tema e imprimindo um andamento em tempo médio repleto de charme e de uma certa nostalgia.

“Soir” é o primeiro dos quatro temas gravados no dia 08 de abril. A qualidade da gravação não é tão boa quanto a da primeira sessão, pois foi feita em um estúdio caseiro. De qualquer maneira, a sessão rítmica é das mais estimulantes, com destaque para o vibrafone de Lallemand que dialoga, em altíssimo nível, com a guitarra de Reinhardt e seu estilo lembra o de Milt Jackson.

“Chez Moi À Six Heures” é um bebop rápido e vibrante. O quinteto atua com enorme energia e as intervenções de Solal e de Lallemand são tão criativas e exuberantes quanto as do líder. “I Cover the Waterfront”, de Johnny Green e Edward Heyman, é uma balada delicada, quase austera, e a performance do guitarrista é tão pungente quanto a célebre interpretação de Billie Holiday.

Para encerrar, outro petardo, a certeira “Deccaphonie”. Suas linhas melódicas são modernas e o fraseado de Django é ágil, intenso, furioso e altamente criativo. Lemarchand espanca a bateria sem misericórdia e sua atuação é altamente inflamável. Outro ponto alto é a soberba intervenção do vibrafonista, que conjuga velocidade e uma técnica assombrosa. Apesar de mostrar uma faceta menos conhecida de Reinhardt, este álbum sintetiza muito bem o rumo que o guitarrista poderia imprimir às suas concepções musicais, se não tivesse falecido pouco tempo depois.

A contribuição de Django para a música é das mais ricas e sua obra, imensa do ponto de vista quantitativo e qualitativo, é obrigatória para qualquer fã de jazz. Mesmo depois de sua morte Django ainda recebe inúmeras homenagens. O cineasta Woody Allen dirigiu “Sweet and Lowdown” (no Brasil, “Poucas e boas”), e dedicou o filme, estrelado por Sean Penn, ao guitarrista. Há até mesmo um planeta com seu nome: 94291 Django.

Músicos de vários estilos e gerações, como Jimi Hendrix, Carlos Santana, Les Paul, Barney Kessel, Chet Atkins, Joe Pass, Herb Ellis e Joe Diorio reputam a sua influência como decisiva. Joe Lewis compôs a belíssima “Django” em sua homenagem e o tema é um dos mais conhecidos do repertório do Modern Jazz Quartet, tendo sido gravado por gente como Grant Green, Ray Bryant, Benny Golson, Michel Legrand, Bill Evans, Jim Hall, Gary Burton, Eugene Maslov e Wynton Marsalis, entre outros. Anualmente são realizados diversos festivais dedicados exclusivamente a celebrar a vida e a obra do guitarrista, em países como Itália, Estados Unidos, França, Bélgica e Inglaterra.

Atualmente, os caminhos abertos por Django, o chamado “Jazz Manouche” (ou jazz cigano) encontra ressonância no trabalho desenvolvido por músicos como Lollo Meier, Philippe Catherine, John Jorgenson, Birélli Lagrene, Tchavolo Schimidt, Stochelo Rosenberg, Dorado Schmitt, Stephane Wrembel, Angelo Debarre e Ritary Gaguenetti, entre muitos outros. No Brasil, destaca-se o excepcional trabalho do Hot Club de Piracicaba, capitaneado pelo guitarrista Fernando Seifarth. Como se pode perceber, a obra de Django é universal e absolutamente imorredoura.


Obs.: postagem dedicada à amiga M. J. Falcão e aos amigos do blog Cozinha dos Vurdóns, apaixonados pelo jazz Manouche. Como aperitivo, além das faixas executadas por Django, duas composições do guitarrista são interpretadas por Lollo Meier e pelo Hot Club de Piracicaba.

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