Jean-Baptiste Reinhardt é considerado um dos mais importantes guitarristas da história do jazz. Ele também foi o mais influente jazzista europeu das décadas de 30 a 50, tendo desenvolvido um estilo de tocar bastante pessoal e uma sonoridade tão peculiar que jamais conseguiu ser imitada. Nascido em uma comunidade cigana em Liberchies, na Bélgica, no dia 23 de janeiro de 1910, viveu uma vida repleta de aventuras e a intensidade de suas experiências pessoais se refletiu em sua música, ajudando a compor uma figura lendária, que até hoje intriga e emociona os fãs do jazz.
A vida nômade e instável foi uma realidade constante. Seus pais, Jean-Eugène Weiss e Laurence Reinhardt, moravam em um carroção e seguiam à risca a tradição cigana de não passar muito tempo em um mesmo lugar. Em 1914, por conta da eclosão da I Guerra Mundial, sua família empreendeu uma série de viagens, fixando-se temporariamente em Nice, na França, na região da Córsega, na Itália, e até mesmo no norte da África. Ao final do conflito, a caravana decidiu se fixar nos arredores de Paris. Foi na Cidade Luz que Django, apelido que recebeu na infância, descobriu duas de suas maiores paixões: a música e a boêmia.
Aos 12 anos Django, que já conhecia os rudimentos do violão cigano, ganhou de um vizinho um banjo e adotou o instrumento com grande paixão. Sua habilidade deixava perplexos até mesmo músicos mais experientes. Autodidata, tinha uma enorme criatividade e um senso rítmico quase sobrenatural e em pouquíssimo tempo passou a dominar todos os segredos do instrumento. Além disso, o convívio com artistas, boêmios, prostitutas, malandros e outras figuras do submundo fascinava o jovem músico e ajudava a moldar o seu comportamento errático e até mesmo irresponsável.
No final dos anos 20, uniu-se ao acordeonista Jean Vaissade e ao xilofonista Francesco Cariolato. Os três formaram um grupo especializado em interpretar canções francesas e napolitanas, impregnadas com um indiscutível acento cigano, que se apresentava com regularidade no clube Schérazade. Suas primeiras gravações foram realizadas em março de 1928, com o grupo de Vaissade e Django recebeu quinhentos francos pelo trabalho. Em outubro daquele mesmo ano, gravou com o acordeonista Victor Marceau.
Seu primeiro contato com o jazz norte-americano se deu em 1924, quando assistiu, no L'Abbaye de Thélème, restaurante situado na Place Pigalle, a uma apresentação da banda “Novelty Jazz Band”, conduzida pelo pianista Billy Arnold. O garoto ficou encantado com aquela espécie completamente nova de música, e passou a incorporar alguns elementos harmônico-melódicos do jazz, misturando-os à música cigana que fazia.
Django era um profundo conhecedor da tradição musical cigana e sabia tocar música flamenca, além de canções folclóricas húngaras e romenas, por causa do intenso contato com ciganos originários da Espanha, da Hungria e da Romênia. Embora não tivesse educação formal e nem musical, ele era dotado de uma prodigiosa memória e era capaz de compor e reproduzir temas bastante complexos.
Além disso, também gostava bastante de música erudita e seus compositores favoritos eram Bach, Debussy e Ravel. Por conta de sua habilidade, o guitarrista tocou com músicos renomados da época, como os acordeonistas Vétese Guérino, Maurice Alexander, Fredo Gardoni, Jean Vaissade e Marceau Verschueren. Contudo, sua falta de disciplina e sua crônica incapacidade de cumprir horários tornavam a sua contratação algo temerário.
Como bem explica o pesquisador Augusto Pellegrini, Django “sempre se comportou como cigano e como nômade. Tinha um profundo desprezo pelas convenções sociais, vivia na marginalidade, apreciava jogos de azar e ambientes do submundo, e se tornou um músico extremamente irresponsável, sem respeitar horários ou compromissos, além de impor uma forte tirania a seus companheiros”.
Em novembro de 1928 Django sofreu um terrível acidente. Ao voltar para o acampamento, após uma apresentação no clube La Java, em Montmartre, ele derrubou uma vela no carroção onde vivia com a mulher, Bella. Esta fazia flores artificiais de celulóide para vender e o carroção estava repleto de produtos altamente inflamáveis. O resultado é que Django sofreu sérias queimaduras nas costas, nas pernas e na mão esquerda. Os médicos, inclusive, queriam amputar-lhe a perna atingida, mas o músico não permitiu.
A recuperação foi longa e dolorosa. O guitarrista foi obrigado a usar muletas para caminhar e sua carreira musical foi seriamente ameaçada, pois ele perdeu a mobilidade de dois dedos da mão esquerda. Com muita disposição e força de vontade, Django desenvolveu uma técnica de tocar completamente diferente. Como os tendões dos dedos mínimo e anelar foram muito atingidos e o fogo restringiu enormemente a funcionalidade desses dedos, ele passou a realizar seus solos com os dedos indicador, polegar e médio.
Nesse período, abandonou o banjo e voltou-se para a guitarra cigana, tornando o instrumento irremediavelmente associado à sua personalidade. Em 1931 já estava de volta aos palcos, tocando com o acordeonista e contrabaixista Louis Vola, no clube Pal Beach, em Cannes, e fazendo parte, durante um breve período, da orquestra de Léon Volterra, que se apresentava com regularidade na boate Amatelots, também em Cannes. Outra associação importante foi com o pianista Stéphane Mougin. Mougin, aliás, dominava o idioma jazzístico com bastante fluência e foi com ele que Django aprofundou seus conhecimentos do estilo.
Outro fator importante para direcionar a carreira do guitarrista para o jazz foi a amizade com o pintor Émile Savitry, grande fã de jazz e que costumava convidar Django e seu irmão mais novo, o também guitarrista Joseph, para ir à sua casa, a fim de ouvirem álbuns de músicos como Louis Armstrong, Duke Ellington, Joe Venuti, Lionel Hampton e Eddie Lang. Os irmãos Reinhardt ouviam aquelas músicas e procuravam reproduzir em suas guitarras a sonoridade e o fraseado dos grandes jazzistas, e se tornaram divulgadores e verdadeiros entusiastas do estilo.
Após perambular por cidades como Cannes, Toulon e Lyon, Django retornou a Paris, onde passou a freqüentar o Café La Croix, ponto de encontro de jornalistas, escritores, artistas, músicos e intelectuais. Tornou-se amigo do escritor e cineasta Jean Cocteau e do cantor Jean Sablon. A banda da casa era integrada pelo saxofonista André Ekyan e pelo violonista Stéphane Grappelli, que em pouco tempo se tornariam amigos do guitarrista.
Em 1932, o crítico Hughes Panassie e o produtor Charles Delaunay fundaram o Hot Club de France, que congregava os jazzófilos franceses e promovia audições de discos, concertos e palestras. Graças à intervenção do velho amigo Savitry, membro do clube, Django fez uma apresentação no local, em 1933, e deixou a audiência extasiada. O concerto rendeu-lhe o convite para integrar, no ano seguinte, o grupo liderado por Louis Vola, que era atração fixa do Hotel Claridge. Os outros membros eram o guitarrista Roger Chaput, o violinista Stéphane Grappelli e o saxofonista Alix Combelle.
Não demorou muito e Django se destacou como o grande virtuose do grupo, passando a imprimir ao grupo uma sonoridade pessoal e cheia de referências à música cigana. Vola, Chaput, Grappelli e Django resolveram permanecer juntos e o grupo, já acrescido de Joseph Reinhardt na guitarra, passou a se chamar Quintette du Hot Club de France. Um dos primeiros concertos foi realizado no auditório da Ecole Normale de Musique e a repercussão, salvo a opinião de alguns críticos mais conservadores, foi consagradora.
A principal crítica que alguns faziam à sonoridade de Django provinha, justamente, daquilo que tornava a sua abordagem, tão especial e diferente de tudo o que estava sendo feito naquele período: a enorme influência da música cigana. O crítico Wayne Jefferies explica: “uma das críticas feitas ao trabalho de Django pelos puristas do jazz têm sido os sobretons ciganos em seu estilo. Considerando os antecedentes de Django, é inevitável que algum deste sabor tenha vindo à tona. De fato, isto contribuiu para seu estilo altamente original, que era muito novo lá atrás no começo dos anos 30”.
Aclamado por público e crítica o quinteto fazia apresentações concorridas e seus discos, lançados por selos como Decca, Ultraphone e HMV, estavam sempre entre os mais vendidos da França. Muitas das composições mais conhecidas de Django datam desse período, como “Minor Swing”, “Nuages”, “Melodie au crépuscule”, “Djangology” e “Vous et moi”. Em 1935, a revista Jazz-Tango publicou: “Django Reinhardt é comparável aos melhores instrumentistas norte-americanos”. No ano seguinte, seria a vez do crítico inglês Leonard Hibbs, em artigo publicado na revista Swing London, dizer que as gravações do grupo “representam algo original, ainda completamente satisfatório, na arte do hot rhythm”.
O grupo fez, em fevereiro de 1935, uma antológica apresentação na Salle Pleyel, ao lado do saxofonista Coleman Hawkins. Muitos foram os músicos norte-americanos que, de passagem pela Europa, tocaram com o quinteto: Teddy Hill, Dickie Wells, Rex Stewart, Barney Bigard, Eddie South, Benny Carter, entre outros. O grupo excursionou por todo o continente europeu, fazendo apresentações sempre muito elogiadas, incluindo turnês pela Espanha, Inglaterra e países escandinavos.
Na Inglaterra, o quinteto tocou no Cambridge Theatre e no London Palladium, merecendo do jornalista Edgar Jackson, da revista The Gramophone a seguinte análise: “Reinhardt continua o mesmo mago da guitarra. Grappelli ainda é o único rival de Venuti e um melhor acompanhamento dificilmente pode ser imaginado”.
Todavia, problemas internos ameaçavam romper o precário equilíbrio do conjunto. Grappelli e Django brigavam bastante, sobretudo por causa da proverbial irresponsabilidade do guitarrista. Joseph, tratado com mão de ferro pelo irmão, abandonou o grupo, argumentando que havia se cansado de ser o “carregador da guitarra de Django”. Foi substituído por Marcel Bianchi. Pouco depois, Roger Chaput, que também não andava lá muito satisfeito, deu lugar a Pierre Ferret.
Django ganhou bastante dinheiro nessa época e uma das suas primeiras providências foi comprar um Buick novinho em folha. Como não sabia dirigir, contratou um motorista e partiu para um acampamento cigano, a fim de rever seus velhos amigos. Chegando no local, o motorista se assustou com a animação do pessoal e fugiu. O guitarrista tentou se exibir ao volante para os amigos, mas só conseguiu mesmo foi provocar um acidente.
A polícia foi chamada e quase leva Django para a cadeia. Ao se identificar para os policiais, estes custaram a crer que aquele sujeito mal vestido e de aspecto sujo pudesse ser o renomado Django Reinhardt, estrela do Quintette du Hot Club de France. Mas o guitarrista não se fez de rogado: apanhou o instrumento e realizou um concerto em homenagem aos zelosos homens da lei que, encantados com o que viram e ouviram, até se esqueceram de prendê-lo.
Em 1939 a II Guerra Mundial eclodiu e o Quintette du Hot Club de France foi obrigado a encerrar suas atividades. Grappelli permaneceu na Inglaterra, onde o grupo cumpria uma turnê, mas Django optou retornar a Paris. Apesar dos perigos representados pela ocupação nazista – os alemães odiavam os ciganos e haviam mandado milhares deles para os campos de concentração – Django passou os cinco anos seguintes em relativa segurança. Nisso foi ajudado por um graduado oficial da Força Aérea Alemã, chamado Dietrich Schulz-Köhn, que, apreciador de jazz e grande fã do guitarrista, não permitiu que Reinhardt fosse importunado.
Durante a guerra, Django se apresentava com freqüência nos poucos clubes da cidade que ainda permitiam apresentações ao vivo. Tocou com o saxofonista Alix Comballe e em 1940 decidiu reestruturar o Quintette du Hot Club de France, contando com o irmão Joseph na guitarra rítmica, o baixista Francis Lucas, o baterista Pierre Fouad e o clarinetista Hubert Rostaing.
Em 1943, Reinhardt se casou com sua prima, Sophie “Naguine” Ziegler, com quem teve um filho, Babik Reinhardt, nascido no ano seguinte e que seguiria os passos do pai e do tio, tornando-se um renomado guitarrista. Ainda em 1944, Reinhardt gravou com alguns integrantes da orquestra de Glenn Miller, como o pianista Mel Powell, o baterista Ray McKinley e o clarinetista Peanuts Hucko, após a libertação de Paris pelos aliados.
Com o término da guerra, Reinhardt e Grappelli voltaram a tocar juntos, tendo saído em turnê pela Inglaterra. Em 1946 a dupla viajou para os Estados Unidos, excursionando com Duke Ellington. Django tocou em diversas cidades norte-americanas, como Cleveland, Chicago, Saint Louis, Detroit, Kansas City, Pittsburgh, até desembarcar em Nova Iorque, onde se apresentou no Carnegie Hall, nos dias 23 e 24 de novembro. Embora tenha sido um sucesso de público, a turnê não deixou o guitarrista satisfeito, pois fora obrigado a trocar sua velha guitarra acústica Selmer Maccaferri por uma guitarra Gibson amplificada.
Consta, ainda, que o novo instrumento tinha uma afinação diferente da que Django estava acostumado e a sua sonoridade incomodava o guitarrista. Tanto é que em muitos espetáculos ele se mostrava pouco à vontade com a banda, limitando-se a tocar alguns poucos acordes e quase não solava. De qualquer forma a excursão lhe permitiu, além do convívio com Ellington, travar conhecimento do bebop feito por Charlie Parker e Dizzy Gillespie. Reza a lenda que, em Nova Iorque, Django tentou entrar em contato com os dois, mas ambos estavam em turnê e o encontro não foi possível.
De volta à França, Django continuou a demonstrar uma enorme incapacidade de adaptação à vida gregária. Certa feita ele simplesmente abandonou no acostamento de uma rodovia um carro recém adquirido, pelo singelo motivo de que a gasolina havia acabado. Costumava faltar aos shows e era comum desaparecer por longos períodos, nos quais geralmente ia para o campo o para a praia, a fim de ficar isolado.
No final dos anos 40 Reinhardt se apresentou na primeira edição do festival de jazz de Nice e excursionou pela Itália. Em fevereiro de 1951 fez uma elogiada temporada no Clube St. Germain, em Paris, liderando um quinteto integrado por alguns jovens e talentosos músicos franceses, todos eles ligados ao bebop, destacando-se o saxofonista Hubert Fol e seu irmão, o pianista Raymond.
Wayne Jefferies ajuda a compreender a evolução do guitarrista e a importância desse período, já que foi aí que Django fundiu, com grande sucesso, a sua conhecida sonoridade com as linhas modernas do bebop: “Conquanto seus solos se tornassem menos cordais e suas linhas mais semelhantes a Christian, ele reteve sua originalidade. Sua técnica infalível, suas improvisações ousadas, “no limite”, combinadas com seu vastamente avançado senso harmônico o levaram a alturas musicais que Christian e muitos outros músicos do bebop nunca chegaram perto. Os espetáculos ao vivo no Club St. Germain, em fevereiro de 1951 são uma revelação. Django está no auge da forma; cheio de novas idéias que são executadas com incrível fluidez, linhas angulares cortantes e que sempre retém aquele feroz balanço”.
Naquele mesmo ano, decidiu se fixar no interior e escolheu Samois-sur-Seine, cidadezinha localizada nas margens do rio Sena e próxima a Fontainebleau. Ali viveria tranqüilamente, dedicando boa parte do seu tempo à pintura e à pescaria, até o dia 16 de maio de 1953, quando sofreu um AVC fulminante. Ele ainda chegou a ser levado para um hospital em Fontainebleau, mas não resistiu e faleceu.
Seu último registro fonográfico foi lançado em cd pela Gitanes, na série Jazz In Paris, com o título “Nuages”. Trata-se, na verdade, da reunião de duas sessões de gravação distintas. A primeira foi realizada em 10 de março de 1953, na qual o guitarrista está acompanhado pelo pianista Maurice Vander, pelo contrabaixista Pierre Michelot e pelo baterista Jean-Louis Viale.
Foram oito os temas gravados com essa formação, sendo que posteriormente, no dia 08 de abril, seriam gravadas mais quatro músicas, agora com o acompanhamento do vibrafonista Sadi Lallemand, do jovem pianista Martial Solal (tinha apenas 25 anos), do baixista Pierre Michelot (único músico, além do líder, a estar presente nas duas sessões) e do baterista Pierre Lemarchand.
A abertura fica por conta de “Blues for Ike”, na qual a abordagem moderna e quase selvagem de Django demonstra que ele estava bastante antenado com o que havia de mais moderno no panorama musical da época. Usando uma guitarra elétrica Gibson e agora completamente adaptado ao instrumento, o líder trafega pelas veredas do blues com classe e um domínio absoluto do ritmo, da melodia e da harmonia. O pianista Vander e o baixista Michelot também merecem destaque, por suas atuações impecáveis.
Composta por Kurt Weill em 1938, “September Song” era um dos temas preferidos de Django, que já havia gravado a canção em 1947, ao lado do clarinetista Hubert Rostaing. A interpretação do quarteto é relaxada e a performance do líder revela a maestria de alguém que, aparentemente, nasceu com uma guitarra nas mãos. “Night and Day”, de Cole Porter, ganha uma interpretação vigorosa. A sonoridade de Django é visceral e seus improvisos são de grande intensidade emocional.
“Insensiblement” e “Manoir de Mes Rêves” são duas baladas românticas, ambas de autoria do guitarrista e recheadas de elementos da música cigana. Apesar da atmosfera intimista, o líder encontra bastante espaço para improvisar e mostra que também possuía grande facilidade para engendrar harmonias sofisticadas. A sessão rítmica atua com discrição e sensibilidade, revestindo de grande elegância os dois temas.
“Nuages” é, provavelmente, a composição mais conhecida de Django e foi gravada por gente como Herb Ellis, Oscar Peterson, Tal Farlow, Sidney Bechet, Benny Carter, Paul Desmond, Charlie Haden, Lionel Hampton, Milt Jackson, Barney Kessel, Flip Phillips, Phil Woods e muitos outros. O próprio autor gravou cerca de 13 versões, entre 1940 e 1953, mas esta última é considerada uma das mais belas. Django é um intérprete emocionado e lírico, que dedilha o instrumento com total domínio e extrai de cada nota um amálgama de graça e beleza, sem abrir mão do virtuosismo incontido e transbordante de criatividade.
“Brazil” é o título pelo qual a nossa “Aquarela do Brasil” é conhecida no exterior. O quarteto conjuga o swing do jazz com a malemolência do samba, com um resultado vibrante e encantador. “I'm Confessin' (That I Love You)” é a última música gravada na sessão do dia 10 de março e nela o guitarrista trabalha as harmonias de forma absolutamente original, reinventando o tema e imprimindo um andamento em tempo médio repleto de charme e de uma certa nostalgia.
“Soir” é o primeiro dos quatro temas gravados no dia 08 de abril. A qualidade da gravação não é tão boa quanto a da primeira sessão, pois foi feita em um estúdio caseiro. De qualquer maneira, a sessão rítmica é das mais estimulantes, com destaque para o vibrafone de Lallemand que dialoga, em altíssimo nível, com a guitarra de Reinhardt e seu estilo lembra o de Milt Jackson.
“Chez Moi À Six Heures” é um bebop rápido e vibrante. O quinteto atua com enorme energia e as intervenções de Solal e de Lallemand são tão criativas e exuberantes quanto as do líder. “I Cover the Waterfront”, de Johnny Green e Edward Heyman, é uma balada delicada, quase austera, e a performance do guitarrista é tão pungente quanto a célebre interpretação de Billie Holiday.
Para encerrar, outro petardo, a certeira “Deccaphonie”. Suas linhas melódicas são modernas e o fraseado de Django é ágil, intenso, furioso e altamente criativo. Lemarchand espanca a bateria sem misericórdia e sua atuação é altamente inflamável. Outro ponto alto é a soberba intervenção do vibrafonista, que conjuga velocidade e uma técnica assombrosa. Apesar de mostrar uma faceta menos conhecida de Reinhardt, este álbum sintetiza muito bem o rumo que o guitarrista poderia imprimir às suas concepções musicais, se não tivesse falecido pouco tempo depois.
A contribuição de Django para a música é das mais ricas e sua obra, imensa do ponto de vista quantitativo e qualitativo, é obrigatória para qualquer fã de jazz. Mesmo depois de sua morte Django ainda recebe inúmeras homenagens. O cineasta Woody Allen dirigiu “Sweet and Lowdown” (no Brasil, “Poucas e boas”), e dedicou o filme, estrelado por Sean Penn, ao guitarrista. Há até mesmo um planeta com seu nome: 94291 Django.
Músicos de vários estilos e gerações, como Jimi Hendrix, Carlos Santana, Les Paul, Barney Kessel, Chet Atkins, Joe Pass, Herb Ellis e Joe Diorio reputam a sua influência como decisiva. Joe Lewis compôs a belíssima “Django” em sua homenagem e o tema é um dos mais conhecidos do repertório do Modern Jazz Quartet, tendo sido gravado por gente como Grant Green, Ray Bryant, Benny Golson, Michel Legrand, Bill Evans, Jim Hall, Gary Burton, Eugene Maslov e Wynton Marsalis, entre outros. Anualmente são realizados diversos festivais dedicados exclusivamente a celebrar a vida e a obra do guitarrista, em países como Itália, Estados Unidos, França, Bélgica e Inglaterra.
Atualmente, os caminhos abertos por Django, o chamado “Jazz Manouche” (ou jazz cigano) encontra ressonância no trabalho desenvolvido por músicos como Lollo Meier, Philippe Catherine, John Jorgenson, Birélli Lagrene, Tchavolo Schimidt, Stochelo Rosenberg, Dorado Schmitt, Stephane Wrembel, Angelo Debarre e Ritary Gaguenetti, entre muitos outros. No Brasil, destaca-se o excepcional trabalho do Hot Club de Piracicaba, capitaneado pelo guitarrista Fernando Seifarth. Como se pode perceber, a obra de Django é universal e absolutamente imorredoura.
Obs.: postagem dedicada à amiga M. J. Falcão e aos amigos do blog Cozinha dos Vurdóns, apaixonados pelo jazz Manouche. Como aperitivo, além das faixas executadas por Django, duas composições do guitarrista são interpretadas por Lollo Meier e pelo Hot Club de Piracicaba.
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19 comentários:
Ótima resenha, realmente a história de Django é notável e mais notável sua musicalidade jazzística. Jazz manouche é muito interessante e o pessoal do HCP dá um toque especial.
Abraço
Mario Jorge
Estimado ÉRICO:
Pura maravilha ! ! !
Vai para os arquivos e, como sempre desnecessários,PARABÉNS !
Caros MaJor e Apóstolo,
Sejam muito bem-vindos.
A música e seus mistérios - como é que um sujeito que nasceu em um ambiente completamente alheio ao mundo do jazz, que até a idade adulta praticamente não tinha nenhum contato com o estilo, pode ter se tornado um dos seus maiores expoentes? E que ainda por cima teve que reaprender a tocar, por causa do acidente?
Só os deuses da música para explicar esse milagre!
Obrigado pelas presenças ilustres - desnecessário dizer que seu texto publicado no encarte do cd do Hot Club de Piracicaba foi a linha mestra que guiou esta resenha, Mestre Apóstolo!
Um fraterno abraço aos dois!
Querido Érico,
Obrigada por ter dedicado a nós essa resenha.
Romá nasce com a música nos dedos e no ouvido e como a alma é livre não há nada que o coração não aprenda ou não se lembre. Sentir a música e depois estudá-la. Isso é Django, isso é romá. As músicas da Hungria e da Romênia possuem uma musicalidade própria e Django sabia disso, cresceu com essa liberdade musical.
Tocou como tocava seu coração e sua alma, se recuperou porque a sobrevivencia e a dificuldade fazem parte da história desse povo até hoje.
Os Manouche sempre foram grandes, gigantescos na música e ele, Django herdou esse dom na íntegra.
Esquecem os historiadores de dizer que ele nunca abandonava um amigo e que passava horas permitindo que o vento e suas raizes lhe encaminhassem a sonoridade dela, sua magestade a melodia. Instrumentista e instrumento não eram dois, mais sim um. Assim como sua alma e a sua música, não haviam espaços, sempre coezo.
Preste atenção nas suas gravações, ele não espera o espaço pra tocar, não existe espaço, ele toca.
Apaixonadas pelo Jazz Manouche, pelo jazz dos carroções, dos vurdóns. Das fogueiras da Lousiania e das labaredas da Romênia nas noites de frio.
Quanto ao aperitivo, acho que acompanha melhor um bom e velho churrasco cigano ... mais isso é coisa pra outro post.
Muito bom o pessoal do Hot Club de Piracicaba. Vamos prestar mais atenção neles.
Com carinho das 5, 5 bjs e até qualquer hora.
Nais Tuke - Desvalessa
Grande Django!
Caros Salsa e "Cozinha dos Vurdóns",
Como disse a primeira, Django "Tocou como tocava seu coração e sua alma", era essencialmente intuitivo e transpirava emoção e autenticidade naquilo que fazia. Realmente, ali se pode comprovar que "instrumentista e instrumento não eram dois, mas sim um".
Foi um desbravador de caminhos e contribuiu para despertar o interesse pela rica cultura cigana.
Obrigado pelas presenças - fico feliz que tenham gostado da postagem (e também das músicas)!
Um fraterno abraço!
Este o O CIGANO!
E como tocava, o cidadão!
Valeu, Mestre Edinho!
Bravo pelo post, èrico amigo! Belo, completo, fiquei finalmente a "conhecer" o percurso de Django. As minhas idas à internet à procura de "material", deixavam-me sempre insatisfeita.
Parabésn, pois!
Quanto à "dedicatória", bem...fiquei comovida porque sinto que é bom haver esta "comunicação" musical, esta forma de amizade e respeito "virtuais" -tão reais no fundo.
Muito obrigada, Érico San!
O falcão
Caro Érico
Eu sou um grande fã do Django. Eu considero isso um grande músico, que marcadamente influenciada música e jazz europeu antes da guerra. Parabéns por este post.
Prezados MJ Falcão e Hector,
Sejam muito bem-vindos. Suas presenças internacionais dão charme e colorido especial ao jazzbarzinho!
À primeira, digo que me sinto honrado em privar da sua amizade e que o nosso convívio, embora apenas virtual, me é bastante enriquecedor!
Ao segundo, realmente Django foi o primeiro músico Europeu a influenciar os jazzistas dos Estados Unidos (depois viriam outros grandes músicos, como NHOP, Miroslav Vitous, Petrucciani, Tubby Hayes, etc.).
Um músico realmente muito importante para a história do jazz e fico feliz que tenham gostado do texto!
Um fraterno abraço, diretamente do Brasil!
Querido Érico!
Feliz por alguns motivos especiais:
Placa de som reinstalada; ouvir o som da caixa do teu blog; e esta primorosa postagem sobre DJANGO.
Amo Django, essa paixão que nos invade . A arte e o jazz são sempre bem representados, em sua história, por este homem maravilhoso, artista incomum e muito bem lembrado, por você. Parabéns. Abraço, beijo e saudade.
Maysa
E aí, Prima!
É sempre muito bom ter o seu astral altíssimo por perto!
Pois é, estarei em Vitória, a convite dos amigos Lester, Salsa e Grijó, para lançar o "Confesso que ouvi". Será no dia 25 e seria uma honra contar com sua excelsa presença!
De qualquer forma, tô morrendo de vontade de lançar o "filhote" aí na Cidade Maravilhosa. Com a ajuda dos amigos cariocas Tandeta, Sérgio, Edinho e tantos mais, acho que vai rolar em breve!!!
Um fraterno abraço e que agora você possa curtir todos os sons!!!
Dear Gran Boss Érico,
Há muitos anos, em entrevista a uma TV americana, o genial Duke Ellington afirmou que o jazz teve quatro grandes gênios: Louis Armstrong, Coleman Hawkins, Art Tatum e Django Reinhardt.
A propósito de Django, nos anos 70 tive a sorte de ouvir em Buenos Aires e conversar com o grande guitarrista argentino Oscar Alemán.
Como ele passou a década de 30 em Paris, foi amigo de Django e inclusive substituia-o quando o cigano não podia tocar, contou-me episódios pitorescos sobre o irrequieto guitarrista.
Django era um tremendo mulherengo sempre às voltas com suas conquistas e, devido a isso, sua ciumenta esposa, conhecendo seus hábitos de conquistador inveterado, à noite saía à sua procura pelos cabarés de Paris. A esposa era notória barraqueira, armava as maiores confusões quando não o encontrava, principamente ao avistar Alemãn tocando no cabaré no lugar que o marido deveria tocar, indo direto a ele gritando a plenos pulmões: "Onde está aquele sem-vergonha?", ao que Alemán limitava-se a balbuciar: "Não sei, não o vi hoje". Certa noite, ao entrar no cabaré. a baixinha avistou Django aos abraços e beijos com uma moça e partiu para a ignorância, dando-lhes socos o pontapés, sobrando algumas bolachas para Alemán, pois ela sabia que este acobertava o infiel marido. Foram todos parar na delegacia e no final, após uma longa espinafração do delegado, sairam de lá devidamente "amaciados". Django e a furiosa esposa, reconciliados, foram para casa gozar as delícias de uma noite de amor; Alemán, com o rosto inchado e muitas dores, efeito das bolachas que levara, foi para casa sofrendo na carne pelas estripulias do travesso amigo cigano.
Isso tudo e outras coisas mais ele contou entrecortadas por inúmeras gargalhadas relembrando as "delícias" das noites nos cabarés de Paris nos anos 30.
Keep swinging,
Raffaelli
Esse é o Mestre José Domingos Raffaelli - testemunha ocular e auditiva de todos os grandes momentos do jazz (e se não diretamente, no mínimo ouviu das melhores fontes as melhores histórias dos grandes nomes do jazz)!!!!
Infelizmente, nada tenho do Oscar Aleman, embora saiba que ele foi um dos maiores nomes do jazz portenho (ao lado do pianista Enrique Villegas, de quem tenho alguns discos, cortesia dos amigos Sérgio Sônico, Fabrício e Edinho).
O Django devia ser mesmo uma figuraça!
Muito bom tê-lo conosco aqui no jazzbarzinho, mestre!
Um fraterno abraço!
Caro Érico,
Oscar Alemán teve vários LPs editados na Argentina (talvez hajam sido reeditados em CD).
Num deles, Alemán brilha intensamente à fren5e da big band do brilhante saxofonista e arranjador Jorge Andres (há muito vivendo em New York, onde também gravou vários CDs).
Há anos solicitei a Anders que cedesse um daqueles arranjos para a Rio Jazz Orchestra, do Rio, que ele gentilmente atendeu prontamente.
Infelizmente, por reazões que ignoro, a RJO jamais tocou esse arranjo.
Keep swinging,
Raffaelli
P.S, Logicamente, Alemãn foi influenciado por Django.
Mestre Raffaelli,
Só agora vi seu comentário!
Peço desculpas pelo atraso - pedi um disco do Alaman no Amazon (o título é Oscar Aleman y los cinco caballeros).
Será bom conhecer um pouco da sua obra e depois vou tentar descolar outros discos.
Abração!
Excelente post!
Valeu, Thiago!
Abração e venha sempre, ok?
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