Amigos do jazz + bossa

quinta-feira, 29 de julho de 2010

MAYNARD, UM LUTADOR



Dono de uma renda per capita de quase 40.000 dólares anuais e de indicadores sociais dos mais elevados do planeta, o Canadá é famoso por ser a terra do invocado James “Logan” Howlett, da Tropa Alfa, da Polícia Montada, do hóquei sobre o gelo e do sanguinário wolverine (um parente radical da lontra, também conhecido como carcaju).

No que se refere ao jazz, o Canadá deu ao mundo nomes como Oscar Peterson, Paul Bley, Gil Evans e a diva Diana Krall, e foi ali que se reuniu o, provavelmente, mais espetacular combo jazzístico a ter se apresentado em qualquer palco do planeta: Charlie Parker, Bud Powell, Dizzy Gillespie, Charles Mingus e Max Roach estavam juntos em Toronto, em maio de 1953, quando gravaram o seminal “Jazz At Massey Hall”.

Outra grande contribuição canadense para o jazz foi o trompetista Walter Maynard Ferguson, nascido no distrito de Verdun, Montreal, no dia 04 de maio de 1928. Filho de um casal de músicos – a mãe era violinista da Ottawa Symphony Orchestra – começou a estudar música com apenas quatro anos. Primeiramente, o violino e depois, o piano. O trompete chegou-lhe às mãos quando tinha nove anos, idade em que ingressou no French Conservatory of Music, a fim de receber educação musical formal. Seu primeiro herói no instrumento foi, por óbvio, Louis Armstrong.

Com 11 anos, já se apresentava na orquestra da Canadian Broadcasting Corporation, um dos mais importantes grupos de comunicação do país. Ali, o garoto assombrava a audiência, tocando com a maior competência e naturalidade os grandes sucessos do swing e os standards do jazz. Em sua homenagem, o compositor Morris Davis escreveu a música “Serenade For A Trumpet In Jazz”.

Enquanto cursava a Montreal High School, montou um pequeno grupo de jazz, o “Montreal Victory Serenaders”, que congregava os talentos de Maynard, do seu irmão, Percy, e do futuro astro Oscar Peterson. Aos 15 anos e com a anuência dos pais, Ferguson abandonou a escola e matriculou-se no Conservatoire de Musique du Québec à Montréal, onde estudou entre 1943 e 1948, sob a tutela de Bernard Baker.

Naquela época, já era reconhecido em seu país como um músico de técnica superior. Integrou a “Chez Maurice Ballroom”, sob a liderança do saxofonista Roland David e acompanhou renomados músicos locais, como o saxofonista Stan Wood e o trompetista Johnny Holmes. Com tantos predicados, sentiu-se à vontade para o primeiro grande desafio: vencer na terra do jazz.

Imbuído deste propósito, desembarcou nos Estados Unidos em 1948. Seu primeiro emprego foi na orquestra de Boyd Raeburn, mas logo vieram trabalhos ao lado de Jimmy Dorsey e Charlie Barnet, onde era um dos principais solistas e se apresentava com regularidade no Café Society, em Nova Iorque. Barnet desfez a sua orquestra no final de 1949, e Ferguson pôde aceitar o convite de Stan Kenton, para se juntar à sua revolucionária big band, onde ingressou em janeiro do ano seguinte e onde permaneceria até 1953.

Ao lado do bandleader, Ferguson participou de dois importantes projetos, a ambiciosa Innovations Orchestra, composta por 40 músicos, inclusive com a participação de instrumentos de cordas, e a orquestra propriamente dita, nos moldes tradicionais e com cerca de 18 integrantes. Participou de álbuns históricos de Kenton, como “New Concepts Of Artistry In Rhythm”, de 1952, ao lado de Richie Kamuca, Conte Candoli, Bill Holman, Lee Konitz, Frank Rosolino, Sal Salvador, Bill Russo e outras feras.

Proprietário de um estilo único e vibrante, capaz de alongar as notas quase infinitamente e de transitar com ferocidade pelos registros mais agudos do trompete, o impacto de Maynard na cena jazzística foi tamanho que ele foi agraciado com o prêmio de melhor trompetista pela Down Beat nos anos de 1950, 1951 e 1952.

Após deixar a orquestra de Kenton, Ferguson foi arregimentado pela Paramount Pictures e participou da trilha sonora de dezenas de produções do estúdio, incluindo a do badalado filme “Os 10 mandamentos”, estrelado por Charlton Heston. Durante esse período, Maynard lançou seus primeiros álbuns como líder – a Paramount proibia o trompetista de fazer apresentações ao vivo, mas não impunha restrições a que atuasse em estúdio – para selos como EmArcy, Fresh Sound, RCA e Roulette.

Como acompanhante, participou de gravações sob a liderança de Shorty Rogers, Dinah Washington, Howard Rumsey, Frank Rosolino, Louis Bellson, June Christy, Ella Fitzgerald, Pete Rugolo e outros. Em agosto de 1954, dividiu os estúdios com dois dos mais espetaculares trompetistas de todos os tempos, Clark Terry e Clifford Brown, em uma sessão para a EmArcy, lançada com o título “Jam Session”. O trio conta com o luxuoso suporte de Herb Geller e Harold Land no sax tenor, Richie Powell e Junior Mance no piano, Keeter Betts e George Morrow no contrabaixo e Max Roach na bateria.

No ano seguinte e novamente pela EmArcy, Ferguson gravaria um álbum que é considerado dos mais brilhante de sua longeva carreira. Chama-se “Maynard Ferguson Octet” e foi gravado nos dias 25 e 27 de abril de 1955. Sete das oito faixas são de autoria de Bill Holman, antigo companheiro do líder na orquestra de Kenton.

A banda que acompanha Ferguson é um verdadeiro Estado-Maior do West Coast: Bob Gordon no sax barítono, Georgie Auld no sax tenor, Herb Geller no sax alto, Milt Bernhart no trombone, Conte Candoli no trompete, Ian Bernhard no piano, Red Callender no contrabaixo e Shelly Manne na bateria. O líder toca, além do habitual trompete, trompete baixo e trombone de válvula.

O disco abre com “Finger Snappin’”, uma contagiante homenagem aos anos dourados do swing. Destaques para os inflamados solos do líder e do sax barítono de Gordon, e para o incansável Manne. “My New Flame” é uma balada em tempo médio, relaxada e convidativa, com uma atmosfera que evoca Duke Ellington. Aqui é o habilidoso Geller, com inflexões à Johnny Hodges, quem merece os maiores elogios.

O arranjo de “Autumn Leaves”, de Joseph Kosma, Jacques Prévert e Johnny Mercer, foi feito para que o líder pudesse brilhar com intensidade – e ele não decepciona. Seu sopro é vigoroso e robusto, perfeito para impingir a esse verdadeiro clássico toda a dramaticidade que ele exige. A ensolarada “Inter-Space” é o típico tema west coast, e sua estrutura, tributária do blues, realça o ótimo entrosamento do conjunto. O maior destaque individual fica por conta de Auld, outro canadense de nascimento, cuja sonoridade se aproxima da escola texana de Illinois Jacquet e Arnett Cobb.

“20, Rue De Madrid” é uma homenagem ao casal Eddie e Nicole Barclay, célebres produtores franceses, fundadores do selo “Blue Star Record Company” e da revista “Jazz Magazine”. O título, aliás, faz referência ao endereço da gravadora, em Paris, e é a mais bopper das faixas do álbum, com fabulosas intervenções do líder e de Geller, que lembram os diálogos de Parker e Gillespie da década anterior.

A exuberante “Super-G” possui um arranjo dos mais complexos do disco, que exige uma excelente coordenação entre os músicos, mas que também privilegia o trabalho dos solistas. Pela ordem, Auld, Geller, Ferguson, Gordon e Bernhard (o pianista) brindam o ouvinte com solos impecavelmente ricos. “What Was Her Name”, onde brilha o trombonista Bernhart, e a estrepitosa “Yeah” completam o disco, mantendo elevadíssimos os níveis de histamina. Um disco altamente recomendável e bastante representativo da fase áurea do trompetista.

Embora o emprego na Paramount lhe assegurasse segurança e conforto material, o trompetista não estava contente com os rumos da carreira, e uma das principais razões era porque o contrato com a companhia cinematográfica o proibia, expressamente, de se apresentar em clubes de jazz. Por essa razão, deixou o estúdio em 1956 e aceitou um novo desafio em sua carreira.

Atendendo a um convite do empresário e produtor Morris Levy, Ferguson mudou-se para Nova Iorque, a fim de comandar a big band do clube Birdland, de propriedade de Levy. Apropriadamente chamada de Birdland Dream Band, a orquestra congregou os talentos de gente como Slide Hampton, Don Ellis, Joe Farrell, Budd Johnson, John Bunch, Joe Zawinul, Jaki Byard, Don Menza, Hank Jones, Herb Geller e contava com arranjadores do calibre de Bob Brookmeyer, Al Cohn, Jimmy Giuffre, Bill Holman, Ernie Wilkins, Don Sebesky e Marty Paich.

Ferguson permaneceu à frente do projeto até 1967, intercalando o trabalho como bandleader com o de músico freelancer, mas as dificuldades econômicas eram enormes e o músico foi obrigado a desfazer a sua orquestra. Entre 1968 e 1969, o trompetista morou na Índia, juntamente com a família, a fim de estudar as doutrinas espirituais de Krishna, na Rhishi Valley School, próxima a Madras.

Findos os estudos, Ferguson montou uma banda chamada “Top Brass”, com a qual excursionou pela Europa, estabelecendo-se em Londres. Na Inglaterra, ele foi contratado para confeccionar o design de trompetes e bocais para uma fábrica em Manchester. Além disso, participava regularmente de concertos e festivais por todo o Velho Continente e atuava como músico da rede de TV estatal BBC.

No final dos anos 60, foi contratado pela CBS inglesa e lançou álbuns nos quais interpreta canções de sucesso, em versões jazzificadas. Temas como “Livin’ For The City”, “MacArthur Park”, “Theme From Shaft”, “Hey Jude” e outros, fizeram dos álbuns de Ferguson verdadeiros campeões de venda. Em 1973 decidiu retornar aos Estados Unidos, fixando-se em Nova Iorque. Em 1976 teve a honra de participar do show de encerramento dos Jogos Olímpicos de Montreal.

O maior sucesso da carreira viria em 1977, com a inesquecível “Gonna Fly Now”, tema composto por Bill Conti para o filme “Rocky, um lutador”. Incluída no álbum “Conquistador”, fez com que o LP vendesse horrores e ficasse meses nas paradas de sucesso, rendendo a Ferguson uma indicação ao Grammy, no ano seguinte. A big band que o acompanha na empreitada traz, entre outros, os estelares George Benson, Joe Farrell, Bob James, Jon Faddis, Julian Priester, Harvey Mason, Randy Brecker e Peter Erskine.

No final dos anos 80, encarou com galhardia mais um desafio: criou a “Big Bop Nouveau Band”, dedicada a resgatar a magia das grandes orquestras do swing, mas com um tempero moderno e arejado, sem desprezar a influência de Parker e Gillespie – o Bop incluído no nome da orquestra não é mera figura de retórica.

Com vários uma formação que incluía quatro trompetes, dois trombones, quatro saxofones, piano, contrabaixo e bateria, a orquestra gravou diversos álbuns, lançados principalmente pela Concord, incluindo os elogiados “Brass Atitude” e “One More Trip To Birdland”. Também participou de gravações ao lado de vocalistas do quilate de Diane Schuur e Michael Feinstein.

Além do sucesso comercial, Ferguson recebeu ao longo da vida diversas homenagens. Em 1992, seu nome foi incluído no Down Beat Jazz Hall of Fame. Em 2000 a Universidade de Rowan concedeu-lhe o título de Doutor Honorário e criou o “Maynard Ferguson Institute of Jazz Studies”, sob o comando de Denis Diblasio e dedicado a apoiar jovens músicos em início de carreira.

Como lembra o jornalista Marc Myers, titular do ótimo site Jazz Wax, “durante um período de cerca de 15 anos, a partir de 1950, Maynard Ferguson foi um dos solistas mais espetaculares na cena jazzística. Liderou uma série de grandes bandas, com as quais gravou alguns dos discos de jazz mais consistentes e interessantes daquela época. Cada álbum superava o anterior e seus músicos eram sempre solistas de primeira linha”.

O trompetista faleceu em decorrência de uma infecção abdominal, que acarretou a parada das funções renais e hepáticas, no dia 23 de agosto 2006, no Community Memorial Hospital, em Ventura, na Califórnia. Havia acabado de gravar mais um álbum e vinha de uma vitoriosa temporada no Blue Note, em Nova Iorque. Seu legado, apesar de algumas restrições por parte da crítica, é o de alguém que, acima de tudo, encarava a música como uma arte avessa a qualquer preconceito.

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segunda-feira, 26 de julho de 2010

REPOUSO


Quanto ódio adormecido havia ali,

Destilado em séculos estanques,

Devoções anônimas, premências adormecidas,

Sentimentos descascados em volta da velha casa

Agora tudo era luto e ausência de fé

A indiferença se acomodava entre a elegância e a desfaçatez

Seu cheiro era inebriante e convidativo

E crescia no ventre dos dois o embrião pulsante do desamor

O papel de parede esmaecido era a alegoria da insanidade

O antigo jardim malcuidado e cheio de hera

O pórtico enferrujado e sem cor

Todos os fracassos íntimos

Guiavam-se pelos corredores sombrios

Nem a vasta retórica,

Nem a insigne temática,

Eram suficientes para remir tantas misérias

Trânsfuga resoluto da própria dor,

Náufrago da grande epopéia oceânica,

A confissão silenciosa era apenas outro nome para a hipocrisia

O encanto do desejo não deixa ninguém incólume

Mas tampouco se eterniza

Universo de fugacidade e estilhaços

Cólera e mansidão refletidas no mesmo espelho fragmentado,

Noites sobre a terra, faunos no quintal

Manchas violáceas sob os lençóis intocados

A inevitável solução do enigma

Não passa do silêncio estrepitoso de um diálogo mudo

Campos minados, chávenas e beirais

Alaridos sorrateiros, fábulas sem moral

Começo e fim sem ambivalências ou metáforas

Cerradas as cortinas do antigo palco

Enxugadas as lágrimas circenses

Apagados os holofotes da indiscrição

As pompas fúnebres sempre anunciam

O início certeiro da decomposição

É o corpo,

É sempre o corpo...

Que jaz agora no estuário

Onde primeiro morreu a alma

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Nascido em 05 de dezembro de 1949, em Roma, Enrico Pieranunzi é um pianista, compositor, arranjador e educador musical italiano de grandes recursos técnicos e altamente inventivo, considerado por público e crítica como um dos mais proeminentes herdeiros de Bill Evans, pelo lirismo de seu fraseado e pelo repertório delicado. Contudo, percebe-se em sua maneira de tocar que ele também bebeu na fonte de McCoy Tyner e Keith Jarrett, que formam com Evans a trinca de suas influências mais relevantes.

O aprendizado veio cedo, pois com apenas cinco anos já recebia as primeiras lições de piano clássico. O pai era guitarrista e transmitiu ao filho o amor pela música. Na adolescência, apaixonou-se pelo jazz, graças aos discos de Charlie Parker, que ouvia com devoção. Aos 19, integrou-se ao quarteto do trombonista Marcelo Rosa e, a partir de então, tem construído uma das mais fulgurantes e sólidas carreiras do jazz europeu.

Tocou com nomes importantes, como Art Farmer, Enrico Rava, Marc Johnson, Chet Baker, Philip Catherine, Johnny Griffin, Kenny Wheeler, Lee Konitz, Phil Woods, Gabriele Mirabassi, Paul Motian, Benny Bailey, Curtis Fuller, Peter Erskine, Sal Nistico, Billy Higgins, Tony Scott, Kai Winding e Jim Hall, entre dezenas de outros. Sua alentada discografia vem sendo construída em selos como Enja, Challenge Records, Timeless, Soul Note e CAM Jazz, e vem crescendo a uma média de um álbum por ano desde 1975, quando lançou o primeiro disco como líder.

“Special Encounter” é, sem sombra de dúvida, um dos discos mais fabulosos de sua carreira. Gravado para a CAM Jazz entre os dias 6, 7 e 8 de março de 2003, em Roma, ele reúne os talentos de Pieranunzi, Charlie Haden (baixo) e Paul Motion (bateria). Três músicos de concepções harmônicas semelhantes, unidos em torno de um repertório de standards e composições de Haden e de Pieranunzi. A atmosfera do disco é altamente introspectiva e elegante ao extremo, com uma atuação bastante sutil de Motion e Haden.

“My Old Flame”, que o pianista já havia gravado na companhia de Chet Baker e Lee Konitz, abre o disco de maneira absolutamente hipnotizante. Em “You’ve Changed”, imortalizada por Billie Holiday, o piano delicado e lírico de Pieranunzi se insinua pungentemente por entre as frestas da melodia, em uma apoteose lírica de rara beleza. O arranjo minimalista de “Why Did I Chose You” evoca as madrugadas insones em que as dores de amores atormentam a alma.

“Earlier Sea”, composta pelo líder, é uma balada levemente sombria, com uma discreta tintura latina. “Miradas”, também de Pieranunzi, é uma tentativa muito bem sucedida de recriar a atmosfera jobiniana, em seus momentos mais intimistas, na qual merece atenção a leveza da percussão de Motian.

As fabulosas “Waltz For Ruth” e “Hello My Lovely”, ambas de Haden, são outros destaques do álbum. Nesta última, a atuação do baixista beira perfeição, com direito a um dos solos mais sublimes do disco. Para quem não está familiarizado com o refinado universo musical de Pieranunzi, este álbum é uma excelente porta de entrada.

Por tantas qualidades, Pieranunzi é dos músicos mais requisitados da atualidade e atração constante em festivais de jazz do mundo inteiro. Versátil ao extremo, sente-se bastante à vontade nos mais diversos contextos, atuando com idêntica desenvoltura em solo, duos, trios ou quartetos. Transita entre o jazz e a música erudita com a mesma intimidade e é professor do conceituado Conservatorio di Musica Licinio Refice, em Frosinone, região central da Itália.

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sexta-feira, 23 de julho de 2010

APONTAMENTOS SOBRE O ABSURDO



Em um texto chamado “O absurdo e o suicídio”, publicado no livro “O mito de Sísifo” (6ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 17/23), Albert Camus discute, de forma bastante profunda, a questão do suicídio e de todas as suas implicações. Para Camus, “só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da Filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois”. Segundo ele, “matar-se, em certo sentido, e como no melodrama, é confessar”.

Definido pelo escritor franco-argelino como “o gesto definitivo” ou o “percurso sutil em que o espírito apostou na morte”, o suicídio é a mais completa e irrevogável forma de renúncia: o suicida, movido por seja lá qual motivo, renuncia à própria vida. Este ato extremo sempre despertou enorme preocupação no âmbito da literatura, da psicologia, da sociologia, da psiquiatria e da filosofia. O sociólogo francês Émile Durkheim buscou as motivações sociais que impelem alguém ao suicídio. O filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard encarava o suicídio como uma tentativa de escapar aos flagelos morais originados pelo desespero, a angústia causada pela sensação de finitude inerente ao homem.

Johann Wolfgang von Goethe provocou comoção entre a juventude européia, ao publicar, em 1774, “Os sofrimentos do jovem Werther”. O livro relata as desventuras amorosas do protagonista e sua paixão impossível pela bela Charlotte. O romance não correspondido consome a alma do atormentado Werther e este acaba por ceifar a própria vida. Além de projetar o nome do seu autor como um dos mais importantes da literatura alemã, consta que o livro desencadeou uma verdadeira onda de suicídios pela Europa e chegou a ser proibido na Dinamarca. Não era incomum encontrar em cartas de jovens suicidas, inspirados pelo taciturno Werther, transcrições de trechos do livro.

Para outro alemão, o filósofo Arthur Schopenhauer, o suicídio decorre de uma insatisfação profunda com a própria vida, de uma impossibilidade de consumar a vontade de viver em sua plenitude. No clássico “O mundo como vontade e como representação” (São Paulo: UNESP, 2005, p. 504), o filósofo do pessimismo revela o paradoxo crucial de quem põe fim à própria vida: “O suicida quer a vida; porém está insatisfeito com as condições sob as quais vive. Quando destrói o fenômeno individual ele, de maneira alguma, renuncia à Vontade de vida, mas tão-somente à vida. Ele ainda quer a vida, quer a existência e a afirmação sem obstáculos do corpo, porém, como a combinação das circunstâncias não o permite, o resultado é um grande sofrimento”.

Ninguém consegue ter uma explicação exata para o fenômeno, nem as religiões e nem a ciência. O suicídio continua a desafiar a curiosidade humana e a causar perplexidade, reverberando em nossa cabeça, todas as vezes que somos informados que alguém cometeu “o gesto definitivo”. No universo jazz, alguns músicos fizeram a opção pela morte, como os trombonistas J. J. Johnson e Frank Rosolino. Ambos construíram carreiras brilhantes e, ainda em vida, mereceram um reconhecimento à altura dos respectivos talentos. O mesmo não se deu com o engenhoso Sonny Criss, que permanece, até hoje, envolto em uma injustificável obscuridade.

O olhar lançado por William “Sonny” Criss na capa do álbum “This Is Criss” diz muito acerca da sua personalidade. Tímido e reservado, não era dado a muitas palavras e preferia se comunicar por meio da música. O temperamento arredio e introspectivo escondia um músico de enorme talento e versatilidade, e até hoje o seu suicídio, ocorrido em 1977, é lamentado pelos fãs do jazz. Embora não possa ser considerado um inovador, foi certamente um dos mais notáveis discípulos de Charlie Parker.

Em seus cinquenta anos de vida, construiu uma obra honesta e de muita personalidade, que lhe assegura um lugar de honra no panteão dos grandes músicos do jazz. O reconhecimento, todavia, é inversamente proporcional à grandeza de sua obra e à sua importância como intérprete, arranjador e compositor. Passados mais de trinta anos de sua morte, é imperioso conhecer um pouco mais da vida e da carreira desse grande altoísta e fazer justiça ao seu valioso legado musical.

Ele nasceu no dia 23 de outubro de 1927, em Memphis, Tennessee, e até os 15 ano, embora costumasse ouvir música e assistir a concertos em sua cidade natal, não havia demonstrado nenhuma aptidão musical especial. Em 1942 a família se mudou para Los Angeles, e foi ali que o jovem deu os primeiros passos no saxofone alto, ainda no colegial. Sua primeira grande influência foi Benny Carter, logo substituído em seus afetos pelo mago Parker, herói de dez entre dez jovens aspirantes a saxofonista dos anos 40. Suas primeiras experiências profissionais foram em bandas de R&B locais.

Aos 19 anos, Criss chamou a atenção do trompetista Howard McGhee e juntou-se à sua banda, onde teve a honra de conhecer pessoalmente – e tocar com – o ídolo Charlie Parker, dentre outros grandes nomes do bebop da Costa Oeste, como os tenoristas Teddy Edwards e Dexter Gordon e o baixista Charles Mingus. Em seguida, tocou com o vibrafonista Johnny Otis e com o trompetista Al Killian, integrou a orquestra do bandleader Gerald Wilson e entre 1950 e 1951 acompanhou o cantor Billy Eckstine.

No terço final da década de 40, participou de vários concertos promovidos pelo produtor Gene Norman, em um projeto chamado “Just Jazz”, acompanhando o patrão Howard McGhee, além de astros em ascensão como Stan Getz e Wardell Gray. Também tomou parte em vários concertos do projeto Jazz At The Philarmonics, organizados pelo empresário Norman Granz, o que lhe permitiu tocar com astros do quilate de Coleman Hawkins, Benny Green e Fats Navarro, além de ter lhe dado alguma visibilidade.

Esteve na orquestra de Stan Kenton em 1955 e, no ano seguinte, foi chamado a integrar o quarteto do baterista Buddy Rich. Sonny também acompanhou diversos músicos importantes, como Joe Newman, Eddie “Lockjaw” Davis, Chet Baker, Howard Rumsey, Dexter Gordon, Dodo Marmarosa, Hampton Hawes, Kenny Clarke, Memphis Slim, Plip Philips, Vince Guaraldi, Lawrence Marable, Lou Rawls e muitos outros.

Com sua reputação se firmando no meio jazzístico, o pequeno selo novaiorquino Imperial Records decidiu contratá-lo, em 1956. Álbuns como “Jazz in USA”, “Go Man” e “Sonny Criss Plays Cole Porter”, que contam com as participações de figuras como Sonny Clark, Kenny Drew, Barney Kessel e Leroy Vinnegar, são considerados pequenas obras-primas do bebop e dão uma inequívoca demonstração das habilidades do saxofonista. “West Coast Blues”, inccluída no album “Go Man” chegou a fazer algum sucesso nas rádios de R&B, mas a repercussão de seu trabalho foi bastante modesta. Esses discos foram reunidos em uma coletânea de 2 cds e relançados em 2000 pela Blue Note, com o título “The Complete Imperial Sessions”.

Entre 1962 e 1965, resolveu tentar a vida na Europa e fixou-se em Paris, onde foi muito bem recebido e tocou com grandes nomes do jazz francês, como o pianista Georges Arvanitas e o guitarrista René Thomas, tendo lançado alguns álbuns pela série Jazz In Paris, da gravadora Gitanes. Apresentou-se em diversos países do continente europeu, como Alemanha, Bélgica e Suíça, e tocou com vários músicos norte-americanos ali estabelecidos, como Kenny Drew, Johnny Griffin e Kenny Clarke, mas a saudade falou mais alto e ele decidiu retornar

De volta aos Estados Unidos, tocou com o bandleader Onzy Matthews, até ser contratado pela Prestige, em 1966, o que motivou sua mudança para Nova Iorque. Na gravadora fundada por Bob Weinstock, Criss lançou alguns dos melhores álbuns de sua carreira e teve a oportunidade de ser acompanhado por astros como Bob Cranshaw, Hampton Hawes, Monty Budwig, Shelly Manne, Cedar Walton, Tal Farlow, Conte Candoli, Ray Draper, Tommy Flanagan e Al McKibbon, entre outros.

Um desses discos é o excelente “This Is Criss!”, gravado no dia 21 de outubro de 1966, com produção de Don Schlitten, onde o saxofonista está acompanhado pelos superlativos Walter Davis Jr. (piano), Paul Chambers (contrabaixo) e Alan Dawson (bateria). “Black Coffee”, de Sonny Burke e Paul Francis Webster, abre o álbum com uma poderosa conjugação de sensibilidade e paixão, em uma interpretação magnética e encharcada de blues. Destaque para o piano sombrio de Davis e para as fabulosas harmonias costuradas pelo líder.

O sopro luminoso de Criss casa com perfeição com o clima alegre de “Days of Wine and Roses”, gema da ourivesaria de Henry Mancini, que aqui ganha uma roupagem colorida e mais acelerada que o habitual. O entrosamento da sessão rítmica é tamanho que Sonny não tem qualquer dificuldade em soltar a sua prodigiosa imaginação, em solos delirantemente belos.

“When Sunny Gets Blue” é outra imersão no blues, mas este se apresenta revestido de uma ternura sem par. A abordagem do quarteto é leve, mas não desprovida de emotividade. Criss e Davis dialogam no idioma da sensibilidade, enternecendo o ouvinte com delicadeza e frescor. Chambers, que até então vinha se mantendo bastante discreto, brilha em um solo veemente e de enorme precisão.

Davis mostra o seu conhecido talento como compositor com a trepidante “Greasy”, na melhor tradição do soul jazz feito por Cannonball Adderley. O trabalho de Dawson, verdadeiro dínamo rítmico, se sobressai tanto quanto a fluidez do líder, solista de enormes recursos e dono de uma criatividade aparentemente ilimitada. Groove de primeira, com Chambers atuando com a robustez de sempre.

A melancólica “Sunrise, Sunset”, extraída do musical “Fiddler on the Roof”, é uma valsa que exige total entrosamento do grupo. O tema vai sendo sobreposto pelos instrumentos, como uma delicada cortina de sons. Mais uma vez, piano e saxofone dialogam com intensidade, em um crescendo dramático que somente realça as qualidades da melodia.

“Steve's Blues”, de autoria do líder, é a faixa mais energética e intrigante do álbum. Bebop sorrateiro e de aparente simplicidade, vai ganhando corpo à medida em que os executantes vão abandonando o tema e mergulhando no improviso. Os solos de Dawson e do líder são nada menos que arrebatadores, mas o destaque é Davis. Lançando mão de uma sonoridade absolutamente contemporânea e arrojada, o pianista toma emprestados elementos do free jazz de Cecil Taylor, abusando das dissonâncias e acordes desconexos, mas suas idéias se concatenam de tal maneira que é impossível ficar indiferente a um discurso melódico de tamanha inquietude.

Uma das mais belas composições do pianista Hoagy Carmichael, “Skylark” está entre os standards mais gravados pelos músicos de jazz. A versão do quarteto não traz grandes novidades, mas se situa em um patamar bem acima do meramente correto. Criss, mais uma vez, brilha nos improvisos e imprime distinção e elegância ao tema.

Para encerrar, “Love For Sale”, de Cole Porter, ganha uma versão acelerada e bastante robusta. O piano de Davis carrega nas tintas do blues, fazendo o contraponto perfeito à vigorosa interpretação do líder, muito bem arrimada na tradição bop. O trepidante Dawson, com um trabalho de pratos soberbo, e Chambers, usando o arco em seu solo fenomenal, merecem ser ouvidos com atenção redobrada. Um disco primoroso e que representa, como poucos, uma preciosa síntese da obra de Criss.

Em 1968, graças à boa repercussão dos seus discos junto à crítica especializada, o saxofonista foi agraciado com um prêmio especial da revista Down Beat (Talent Deserving Of Wider Recognition) e brilhou na edição daquele ano do tradicionalíssimo Newport Jazz Festival. Mas as perspectivas de sucesso, que se afiguravam auspiciosas, não se confirmaram e ele retornou a Los Angeles, no inicio dos anos 70.

Sem contrato com nenhuma gravadora e com poucas oportunidades de trabalho, Criss sobrevivia, basicamente, de dar aulas em escolas da região de Los Angeles e de apresentações em clubes da cidade. Apesar das adversidades e demonstrando possuir um espírito solidário, manteve uma discreta militância social, auxiliando na recuperação de dependentes químicos e ministrando palestras em escolas, universidades e centros de reabilitação – ele próprio havia enfrentado e vencido o alcoolismo há alguns anos.

Continuou a liderar seus próprios grupos e a atuar como freelancer, gravando com Esther Philips e com o velho amigo Hampton Hawes. Em 1974, fez uma nova tentativa de se estabelecer na França. Desta feita, a receptividade a seu trabalho foi bem menor e ele retornou aos Estados Unidos no mesmo ano. Algumas de suas últimas performances foram uma apresentação no Festival de Monterey, acompanhando o espetacular Dizzy Gillespie, e a participação no Beale Street Music Festival, em Memphis, ao lado do Rei do Blues B. B. King, ambas em 1977.

Sua discografia é bastante rarefeita e mal chega a 20 álbuns. Além da Imperial e da Prestige, ele gravou basicamente para selos independentes, como Peacock Records, Liberty, Savoy, Muse, 32 Jazz e Xanadu. Todavia, seus últimos álbuns foram lançados por gravadoras importantes – “Warm & Sonny”, para a MCA e “The Joy Of Sax”, para a Impulse, ambos de 1976 – e demonstram uma maior preocupação comercial.

Neles, Sonny mesclava um repertório tipicamente jazzístico, como temas de Oliver Nelson, Sonny Clark ou Wes Montgomery, com sucessos da música pop, como “You’ve Lost That Lovin’ Feeling”, “You Are So Beautifil” ou “The Way We Were”. Bem produzidos e contando com a participação de músicos respeitáveis, como os saxofonistas Buddy Collette e Ernie Watts, o trompetista Blue Mitchell e o guitarrista Dennis Budimir, os discos tiveram uma recepção morna perante a crítica e os fãs de jazz, embora tenham ajudado trazer Criss de volta aos holofotes.

Contudo, o saxofonista não chegaria a desfrutar da popularidade que esses discos poderiam lhe granjear. No dia 19 de novembro de 1977, o músico, que sofria de câncer no estômago em estágio avançado, matou-se com um tiro. A família atribuiu o gesto extremo às dores insuportáveis que a doença lhe impunha e à completa impossibilidade de cura.

O mais triste é que em poucos dias ele deveria partir para uma excursão no Japão, que poderia mudar-lhe os rumos da carreira e levá-lo a um outro patamar de popularidade. Mas os seus álbuns, especialmente aqueles lançados pela Prestige – relançados em cd pela OJC – estão à disposição do ouvinte e servem de consolo a uma perda tão traumática e prematura.

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segunda-feira, 19 de julho de 2010

A COPA DAVIS


A Copa Davis é um dos mais importantes torneios do calendário internacional do tênis masculino. Disputado por equipes de diversos países, que jogam entre si em um sistema de mata-mata, seus jogos eletrizam platéias do mundo inteiro e envolvem alguns dos maiores jogadores em atividade. A primeira edição ocorreu em 1900, quando alguns alunos da Universidade de Harvard, liderados por Dwight Davis, desafiaram seus colegas ingleses – e venceram o desafio. Restrita a norte-americanos e britânicos, em 1906 a Copa Davis cresceu em número de participantes, ao admitir belgas e franceses no torneio.

Desde então, o número de países inscritos cresceu de tal forma que a organização do evento foi obrigada a dividir o planeta em regiões – atualmente são quatro Zonas das Américas, quatro Zonas da Europa, uma Zona da África e quatro Zonas da Ásia e Oceania. Os países se enfrentam nessas zonas qualificatórias e os dezesseis melhores disputam a chamada Zona Mundial. O aspecto patriótico dá à Copa Davis uma saudável familiaridade com outros esportes de massa: ao contrário do que ocorre nos fleumáticos torneios da ATP, onde a platéia é obrigada a permanecer silenciosa, na Davis é permitida uma certa bagunça e a vibração da torcida, muitas vezes, contagia os jogadores do seu país.

Os Estados Unidos são os campeões absolutos do torneio, com 32 títulos, seguidos pela Austrália, com 28. Em seguida, vem Reino Unido, França, Suécia e Espanha. O Brasil chegou às semi-finais em quatro ocasiões: 1966, 1971, 1992 e 2000 e ocupa um modesto 18º lugar no ranking da competição. Como consolo, os tenistas Thomas Koch e Edson Mandarino estão ranqueados como a 3ª melhor dupla de todos os tempos do torneio, com um cartel de vinte e três vitórias e nove derrotas.

A Espanha é o grande destaque dos últimos anos, sempre apresentando equipes muito fortes e coesas: não é à toa que a “Invencível Armada”, como é chamada, abocanhou os títulos de 2008 e 2009. Entre os craques que atualmente disputam essa centenária competição, estão o suíço Roger Federer, o russo Nikolay Davydenko, o sérvio Novak Djokovic, os espanhóis Rafael Nadal e Juan Carlos Ferrero, o francês Michael Llodra, os australianos Lleyton Hewitt e Mark Philippoussis, o tcheco Jan Hajek e o norte-americano Andy Roddick.

Bom, caso o leitor tenha chegado até aqui, por certo estará se perguntando: mas o que mesmo o tênis tem a ver com o jazz? Bom, certamente existem aqueles que são apaixonados por essas duas maravilhosas formas de expressão – uma artística e outra esportiva – do engenho humano. Cito o meu amigo e compadre Celijon Ramos (que ainda por cima bate uma bolinha) e o decano do tênis em terras tupiniquins Paulo Cleto (apaixonado por Chet Baker, como já confessou em seu ótimo blog, hospedado no IG). Mas a razão não é apenas essa. Há um disco, chamado “Davis Cup”, que é nada menos que obrigatório em qualquer discoteca e é sobre o seu autor que iremos falar um pouco.

O pianista e compositor Walter Davis Jr. nasceu no dia 02 de setembro de 1932, em Richmond, Virginia. Oriundo de uma família extremamente musical – o pai era pianista semiprofissional e a mãe cantava no coral de uma igreja batista, chamado Orange Majestic Singers, o garoto desde muito cedo revelou uma enorme aptidão para a música.

Com poucos dias de nascido, mudou-se com a família para East Orange, Nova Jérsei, onde foi criado e onde recebeu as primeiras lições de piano, ainda na infância, pelas mãos da Sra. Dolores Tillary, companheira da sua mãe no Orange Majestic Singers e esposa do seu diretor musical, Albert Tillary. Em seguida, estudou com a Sra. Zevia Reed e seu destino parecia ser um renomado pianista erudito.

Todavia, por um desses acasos da vida, o jazz, que até então não lhe havia despertado maior interesse, entrou em sua vida pela porta da frente. Após assistir a um concerto da orquestra de Billy Eckstine, onde pontuavam Charlie Parker e Dizzy Gillespie, o jovem Davis passou a ter olhos – ou melhor, ouvidos – apenas para o jazz. Ao sair do Adam Theatre, em Newark, Nova Jérsei, onde aconteceu o show, o destino de Davis estava selado.

A música erudita perdeu um talentoso concertista e o jazz ganhou um dos seus mais completos e talentosos pianistas e compositores. De fato, além da técnica superior, chama a atenção uma importante característica em seu trabalho como compositor: da mesma forma que Duke Ellington, Davis também escrevia suas composições pensando sempre nos músicos que as interpretariam. Enquanto ainda freqüentava os bancos da East Orange High School, Davis tocou algum tempo com o cantor Babs Gonzalez e seu grupo vocal chamado “Three Bips and a Bop” e a experiência foi fundamental para tornar ainda mais firmes as convicções do jovem pianista, quanto à futura carreira musical.

Ao mesmo tempo, a audição dos mestres do piano passou a ser compulsiva e Art Tatum foi a sua primeira influência. Em seguida, viriam Bud Powell e Thelonious Monk. No final dos anos 40, mudou-se para Nova Iorque e ficou hipnotizado pela cena jazzística e pelo bebop que tomava de assalto os clubes da cidade. Ali, o garoto que mal havia completado dezoito anos, podia assistir ao vivo e conversar com seus ídolos – e com muitos deles, como Charlie Parker, por exemplo, também chegou a tocar.

Bird foi o responsável direto para que a opção de Davis pelo jazz ganhasse ares profissionais e definitivos. Após uma gig no Apollo Bar, Parker convidou o pianista para acompanhá-lo em uma turnê. Como se não bastasse, o saxofonista foi pessoalmente até a casa da família Davis, pedir à mãe do pianista que permitisse que seu filho ingressasse em sua banda. Depois de muita discussão e de um concerto a que compareceram os pais do jovem pianista e o reitor da escola em que estudava, a família finalmente permitiu que Davis partisse em turnê.

A partir daí, Davis se integrou de maneira definitiva à cena jazzística de Nova Iorque e ficou sob a proteção dos antigos ídolos Thelonious Monk e Bud Powell, que também se encantaram com o seu talento e que se tornaram seus grandes amigos. Suas primeiras gravações foram realizadas com o baterista Max Roach, bem no início da década de 50. Em seguida, viriam trabalhos ao lado de Hank Mobley, Melba Liston, Art Taylor, Sonny Stitt, Slide Hampton, Teddy Edwards, Archie Shepp, Jack McLean, Charles Mingus, Kenny Dorham, Lucky Thompson, Betty Carter, Pierre Michelot, Philly Joe Jones, Charlie Rouse, Kenny Clarke, Miles Davis e muitos outros.

O pianista chamou a atenção de Dizzy Gillespie, que o contratou em 1956, para uma turnê mundial, que incluía concertos no Oriente Médio e na América do Sul. Em 1958, acompanhou o trompetista Donald Byrd em uma excursão à França, em um grupo que reunia, também, o saxofonista e flautista Bobby Jaspar, o baixista Doug Watkins e o baterista Art Taylor. O quinteto fez um enorme sucesso na capital francesa e gravou por lá dois excelentes álbuns: “Byrd In Paris” e “Parisian Thoroughfare”, ambos lançados pela série “Jazz In Paris”.

Paris provocava uma enorme atração no pianista – e em quem não provoca, não é mesmo? Tanto é que em 1959 ele voltou à Cidade Luz, durante a sua breve passagem pelos Jazz Messengers de Art Blakey, e ali gravou o álbum “Paris Jam Session”, também lançado pela série “Jazz In Paris”. Completavam o time: Lee Morgan, Wayne Shorter e Jymie Merritt. Davis também participaria do álbum “Roots And Herbs” (Blue Note, 1961), dividindo o piano com Bobby Timmons. Problemas com as drogas causaram o seu afastamento do grupo, mas não abalaram sua amizade com Blakey, com quem voltaria a trabalhar nos anos 70.

Com tamanho respaldo no meio musical, era de se esperar que Davis lançasse um disco em seu próprio nome e a oportunidade foi dada pela Blue Note, que lançou “Davis Cup”, seu primeiro álbum como líder. O álbum foi gravado em uma sessão única, no dia 02 de agosto de 1959, nos estúdios Van Gelder. Ao lado do pianista, dois arrojados solistas, Jackie McLean (sax alto) e Donald Byrd (trompete), e uma sessão rítmica das mais entrosadas, integrada pelos impecáveis Art Taylor (bateria) e Sam Jones (contrabaixo).

O talento composicional do pianista é o fato que primeiro salta aos olhos, já que os seis temas do álbum são de sua autoria. Nenhum deles é previsível ou formulaico e todos se destacam pela riqueza harmônica e pela construção elaborada. “’S Make It” abre o disco de forma incisiva e bastante energética, com destaque absoluto para as intervenções exuberantes de Byrd. O solo de McLean também é fabuloso e seu domínio do idioma bop casa à perfeição com as idéias do líder.

“Loodle-Lot” é um blues com alentadas tinturas de soul e tributária do estilo descomplicado de Horace Silver. Hábil e versátil, o líder é o pólo irradiador da energia e do groove que permeiam o tema. Muito à vontade em contextos assim, Byrd mais uma vez rouba a cena, explorando com competência ímpar todas as possibilidades rítmico harmônicas da composição. A vigorosa pegada de Taylor, um dos mais técnicos bateristas de todos os tempos, acrescenta um molho de swing todo especial à execução.

Davis é capaz de elaborar uma delicadíssima balada como “Sweetness”, com a mesma maestria com que transita pelos temas mais aceleradas. Lírica e reflexiva, a composição poderia muito bem figurar no repertório de Bill Evans. A execução do líder é contida, intimista e o trompete melancólico de Byrd ajuda a produzir uma atmosfera de puro abandono.

Na abrasadora hard-rumba, apropriadamente denominada “Rhumba Nhumba”, a desenvoltura do quinteto e a intimidade com os ritmos latinos se evidenciam de maneira intensa. Taylor percute como se tivesse nascido em Havana e a brisa amena do Caribe dá o mote para uma das mais contagiantes faixas do disco. Atuações soberbas de McLean e do líder mostram que talvez não haja tanta distância entre Charlie Parker e Pérez Prado – aliás, Dizzy Gillespie já havia demonstrado isso antes.

Na opulenta “Millie’s Delight”, os cânones do hard bop estão todos à disposição do ouvinte. Nada de academicismos ou rebuscamentos – apenas a música em sua essência. Swing e vibração incontida, improvisos empolgantes e uma sensacional atuação de Davis, senhor absoluto das 88 teclas. Byrd incendeia a sessão e McLean elabora um solo verdadeiramente antológico, criativo e tecnicamente impecável.

“Minor Mind” é, provavelmente, a melhor faixa do disco, e nela se percebe porque o jovem pianista despertou tamanho interesse em monstros sagrados como Monk e Powell. A integração entre Byrd e McLean é quase sobrenatural e o discreto Jones aqui tem a chance de brilhar com grande intensidade. Lamentavelmente, após ter brindado o mundo com essa gema, Davis ficaria quase vinte anos sem gravar como líder, o que só viria a acontecer novamente em 1977, com o álbum “Ilumination”, para a Denon.

No início dos anos 60, Davis trabalhou como alfaiate, a fim de complementar o orçamento, mas não abandonou a música. Voltou a morar em Nova Jérsei e fazia arranjos ou escrevia temas para grupos locais. O retorno definitivo à música veio por intermédio do saxofonista Sonny Criss, cujo grupo Davis integraria entre 1966 e 1967. Em 1969, passou uma temporada na Índia, onde estudou a música daquele país. Ao retornar aos Estados Unidos, no início da década seguinte, juntou-se ao grupo de Sonny Rollins, outro entusiasta da música oriental e que, naquela época, havia mergulhado intensamente na cultura indiana. O álbum “Horn Culture”, de 1973, é fruto dessa parceria.

Em 1975, Davis passou uma nova temporada ao lado do velho amigo Art Blakey, a quem acompanhou no álbum “Child's Dance: Art Blakey & the Jazz Messengers, Vol. 1”, gravado naquele mesmo ano para a Prestige. Interessante salientar que nesse disco Davis dividia o piano com George Cables, John Hicks e Cedar Walton. Walter permaneceria ligado a Blakey até 1977, quando participou do álbum “Gypsy Folk Tales”, gravado pela Roulette.

Ao mesmo tempo, Walter continuava a liderar seus próprios grupos e por seus trios, quartetos e quintetos passaram nomes consagrados como Art Taylor e Tony Williams e então novatos como Carter Jefferson, Kenny Washington e os irmãos Branford e Wynton Marsalis. Sua pequena discografia como líder registra trabalhos para selos como Mapleshade, Debut, Owl, Denon e Steeplechase.

Nos anos 80, teve uma importante participação na trilha sonora do filme Bird, homenagem cinematográfica ao amigo Charlie Parker dirigida por Clint Eastwood. Ali, sob a produção e supervisão de Lennie Niehaus, Davis – que divide o piano com Monty Alexander e Barry Harris – atua ao lado de grandes músicos como Ron Carter, Charles McPherson, John Faddis, Ray Brown e John Guerin. Por um desses milagres tecnológicos, o próprio Parker, falecido em 1955, toca sax alto em todas as faixas, num primoroso trabalho de edição e remasterização.

Em 1983, fez parte do grupo Dameronia, criado por Philly Joe Jones para homenagear a obra do pianista e compositor Tadd Dameron. Também excursionou com o magistral Barry Harris, realizando uma série de concertos em duo de pianos e se apresentando em casas de enorme prestígio, como o Town Hall e o Lincoln Center, em Nova Iorque, e o Kennedy Center, em Washington.

Em 1987, lançou pela Mapleshade o álbum solo “In Walked Thelonious”, onde presta tributo ao ídolo e mentor Thelonious Monk. Davis conta que o disco foi uma sugestão do próprio Monk, cujo espírito lhe fez uma visita certa noite e lhe sugeriu as 14 músicas que deveriam integrar o álbum. Se a história é verdadeira ou não, ninguém sabe. O certo é que, após ouvir a gravação, o pianista – e amigo tanto de Monk quanto de Davis – Dwike Mitchell assim escreveu: “O que está registrado nos tapes não é Walter. É Monk, tocando pelas mãos de Walter”.

Uma de suas últimas aparições públicas foi em outubro de 1989, no concerto comemorativo dos 70 anos de Art Blakey, que contou com a participação de diversos ex-integrantes dos Jazz Messengers: Freddie Hubbard, Terence Blanchard, Jackie McLean, Donald Harrison, Wayne Shorter, Benny Golson e Curtis Fuller. Na época, a formação “oficial” dos Messengers incluía o trompetista Brian Lynch, o saxofonista Javon Jackson, o trombonista Frank Lacy, o pianista Geoff Keezer e o baixista Buster Williams e o show foi registrado no álbum “The Art of Jazz: Live in Leverkusen”, lançado pelo selo In & Out. Davis morreu prematuramente, no dia 02 de junho de 1990, aos 57 anos, em decorrência de complicações causadas pelo diabetes.

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