O pianista, compositor, arranjador e diretor de orquestra norte-americano Ralph Burns não é um nome muito conhecido do grande público. Não obstante, é bastante provável que você já tenha ouvido alguma coisa feita por ele, seja em trilhas sonoras para o cinema, seja um arranjo criado para as diversas orquestras por onde passou, seja uma composição sua interpretada por algum ícone do jazz. A expressão “tesouro musical escondido” é perfeitamente aplicável a esse grande músico, cuja obra merece ser descoberta pelos amantes do jazz o mais rapidamente possível.
Ele nasceu na cidade de Newton, no estado do Massachusetts, cuja capital é a refinada Boston, no dia 29 de junho de 1922. Nascido em uma família de cinco irmãos, ele foi o único que conseguiu chegar à idade adulta. Aos sete anos iniciou seus estudos no piano, tomando aulas particulares. Dos 16 aos 17 anos seguiu sua formação no New England Conservatory, em Boston.
Nesse período, iniciou a carreira profissional, tocando com a banda de Bob Adams. Entre 1940 e 1941, Ralph atuou na banda de Nick Jerret, irmão da cantora Frances Wayne, uma das vocalistas da big band de Woody Herman. Burns chegou a morar na mesma casa que Jerret e com seu grupo tocou no Kelly’s Stable, onde foi ouvido por Charlie Barnet, que hesitou em contratá-lo.
Ralph se manteve na orquestra de Barnet por cerca de 01 ano e ali fez os seus primeiros arranjos, quase todos sobre temas de Duke Ellington, destacando-se “Caravan” e “Cottontail”. Ainda na banda de Barnet, o pianista teve a oportunidade de participar de sua primeira gravação, em 1943: “The Mooche”, também um tema de autoria de Ellington.
Após sua saída da big band de Barnet, Burns passou uma breve temporada (06 meses apenas) na banda do grande vibrafonista Red Norvo para, a partir do Natal de 1944 e com apenas 22 anos, passar a integrar, como pianista, a orquestra de Woody Herman, em uma formação que incluía Neal Hefti, Shorty Rogers, Terry Gibbs, Jimmy Giuffre, Bill Harris, Flip Phillips, Chubby Jackson e Dave Tough.
Em pouco tempo, ele acumulava também a função de arranjador e foi adquirindo cada vez mais importância como arranjador que não mais atuava como pianista, tanto é que foi substituído nessa função por Tony Aless. Seu primeiro arranjo foi para o tema “Goodmania”, baseado em “Sing, Sing, Sing” e “Don’t Be That Way”, mostrando as influências de Benny Goodman e de Bunny Berigan. Também arranjou um tema de Duke Ellington, “Happiness Is A Thing Called Joe” para a banda de Herman.
Entre os arranjos elaborados para a big band de Herman e que hoje são considerados clássicos, destacam-se “Caldonia” e “Biju” em 1945, “Lady McGowan’s Dream”, “Summer Sequence” e “Introspection” em 1946 e o espetacular “Early Autumn” em 1947. Como arranjador, ele receberia prêmios como os das revistas Esquire (New Star, em 1946), Down Beat (em 1952 e 1953) e Metronome (1953).
Após ouvir os arranjos de Ralph, o compositor erudito Igor Stravinsky, grande apreciador do jazz, compôs o seu “Ebony Concert” especialmente para a orquestra de Herman. Para o jovem pianista e arranjador, foi uma enorme honra, pois além de Duke Ellington e Charlie Parker, Stravinsky era sua maior referência musical. Burns teve a oportunidade de conhecer pessoalmente o ídolo, graças a um amigo comum, o compositor Alexis Haieff, aluno de Stravinsky, com quem estudava arranjo e composição.
Enquanto pianista ele lembra tinturas, com vias mais cromáticas de Count Basie, no tornado clássico por Herman, “Caldonia”. Como arranjador, inicialmente Burns foi influenciado pelos arranjos de Fletcher Henderson para a orquestra de Benny Goodman. Na banda de Woody Herman, impôs a seus arranjos um maior refinamento, que lembra os sons de Duke Ellington. Curioso é que na juventude Ralph não apreciava a música da orquestra de Elington, mas após assistir à banda de Ellington no “Ritz” de Boston, em 1939,
“Lady McGowan’s Dream” é o divisor de águas para Burns, em que ele consegue entrosar perfeitamente a melodia com o desenvolvimento harmônico para a orquestração. Ele soube captar perfeitamente as sonoridades típicas da música clássica de seu tempo, especialmente as de Stravinski por quem tinha predileção, unindo as diferentes seções da orquestra em partes sonoras muito bem articuladas, equilibradas, que mostram com clareza seu espírito altamente inventivo.
Ralph teve o mérito de captar os novos tipos de linguagem improvisada para renovar a estrutura da “big band” de jazz, sem resvalar um mínimo no desequilíbrio formal, mas destacando a agilidade e a perfeita utilização do todo orquestral, como em “Bijou” (de 1945), com fundo brilhante para a extensão total e o vibrato rouco de Bill Harris no trombone, “Summer Sequence” (de 1946), cujo desenvolvimento nas versões gravadas geraram “Early Autumn” (de 1947), cuja versão mais célebre foi apoiado nos famosos “Four Brothers Sound” (Zoot Sims, Stan Getz, Serge Chaloff e Al Cohn que havia substituído Herbie Stewart).
Em 1947, Ralph foi trabalhar como pianista para o grupo do grande tenorista Charlie Ventura e, em seguida, para o do trombonista Bill Harris, chegando a apresentar-se, no mês de abril, no famoso clube “Three Deuces”, em Nova Iorque Durante a década de 1950 a reputação de Burns, enquanto arranjador e compositor, firmou-se em definitivo, sendo que ao longo dessa década e dos muitos anos seguintes ele colaborou com Billy Strayhorn, Lee Konitz e Ben Webster.
Também escreveu composições para Tony Bennett, Johnny Mathis, Aretha Franklin e Nat King Cole, e foi o responsável pelos arranjos e introduções da seção de cordas nos sucessos de Ray Charles, "Come Rain Or Come Shine" e "Georgia On My Mind" (o hiper-clássico de Hoagy Carmichael), assim como escreveu arranjos para Mel Tormé e para as cantoras Mildred Bailey e Fran Warren, tendo sido diretor musical de ambas.
No ano de 1954, Ralph realizou uma temporada européia, juntamente com a banda de Woody Herman, ao final da qual permaneceu muitos meses em Roma, na Itália, onde trabalhou como atração fixa do clube Bricktop’s. O ano seguinte foi quase que exclusivamente dedicado à composição e ao arranjo para o rádio, a televisão e o cinema, assim como para trabalhos ligados à publicidade. Não obstante, o pianista encontrou tempo para gravar dois discos em seu próprio nome: “Spring Sequence”, espécie de álbum conceitual em que todas as músicas têm a ver com a primavera, e “Bijou”.
Ambos foram gravados ao longo de 1955, para o pequeno selo Period Records, ligado à gravadora Fantasy, e lançados em cd único pela OJC, sob a denominação de “Bijou”. A ordem das faixas obedece à seqüencia dos discos e a produção ficou a cargo do crítico Leonard Feather. Acompanham o pianista os ótimos Tal Farlow, na guitarra, Osie Johnson, na bateria, e Clyde Lombardi, no contrabaixo.
A abertura fica por conta da lânguida “Spring Sequence”, uma composição do próprio líder. Calma e reflexiva, a canção é uma balada com tinturas eruditas e que lembra a bela “Out of Nowhere”. Burns é um pianista sóbrio, econômico até, e a sua abordagem privilegia as sutilezas da melodia, mais que qualquer outra coisa. Um exemplo disso pode ser ouvido na delicada interpretação de “It Might as Well Be Spring”, com um andamento mais lento que o usual e uma utilização inteligente dos silêncios. Farlow, habitualmente um solista feroz, refreia sua impetuosidade e seu toque extravasa lirismo e refinamento.
Em “Spring Is Here”, clássico da dupla Richard Rodgers e Lorenz Hart, recebe um arranjo despojado, no qual se sobressai o diálogo entre Burns e Farlow, uma inebriante mistura de bom gosto e sensibilidade. Em “Sprang”, composição do líder, o quarteto imprime um andamento acelerado, no qual se destaca a percussão frenética de Johnson e as vibrantes intervenções de Farlow, de incontestável viés bop. Nesse quesito, a performance do pianista é um retrato bem acabado de sua versatilidade, pois mesmo formado na escola do swing, Burns consegue imprimir a seu toque a imprevisibilidade e o desassombro harmônico típicos do bebop.
Em seguida, é a vez da camerística “Echo of Spring”, uma curiosa incursão do lendário Willie “The Lion” Smith – em parceria com Clarence Williams – pela seara da valsa. Construída à base de uma delicada linha melódica e temperada com pitadas de blues, a canção tem uma atmosfera impressionista e sugere que Burns não escapou à influência de compositores como Debussy e Ravel.
“Spring in Naples”, executada sem acompanhamento, e “Gina” são resultantes da temporada que o pianista passou na Itália. Provavelmente inspirado pelas belas paisagens da região de Nápoles, Burns incorporou ao primeiro tema alguns elementos das canções napolitanas. A segunda é uma homenagem à atriz Gina Lollobrigida, que despontava na época como uma das grandes revelações do cinema italiano. Ao contrário da homenageada, sempre esfuziante em suas atuações, a canção é delicada e reflexiva, uma balada que traduz o bom gosto e a sofisticação do autor. Importante perceber que mesmo em um ambiente harmônico bastante sóbrio, Farlow consegue articular frases de maneira instigante e criativa.
Para sepultar qualquer dúvida acerca de sua destreza nos andamentos mais rápidos, Burns inicia uma seqüência de quatro temas rápidos, nos quais swinga com extrema perícia. Em “Autobahn Blues”, de sua autoria, ele trafega com autoridade pelo blues e utiliza com maestria a técnica do stride piano, acrescentando ao tema pitadas de bebop. Em seguida, vem a sacolejante “Lover, Come Back to Me”, standard de autoria de Oscar Hammerstein II e Sigmund Romberg, cuja versão acelerada tem um pé no swing e outro no bebop, especialmente por conta das empolgantes improvisações executadas pelo líder e pelo guitarrista.
Na estonteante “Perpetual Motion”, também composta pelo líder, a sintaxe bop se apresenta em toda a sua plenitude. Harmonias complexas, solos inspirados e uma atuação explosiva de Johnson são as características mais evidentes desta faixa. Por fim, encerrando o álbum em grande estilo, Burns emenda uma cativante versão de “Bijou”, uma de suas composições mais conhecidas. Johnson mantém a pegada robusta e o solo de Farlow é arrebatador, mas o que chama a atenção é a performance energética do líder, que esbanja vitalidade e remete a pianistas de grande vigor físico, como Oscar Peterson ou Erroll Garner. Um álbum que faz jus ao talento desse grande artista, cuja criatividade como arranjador acabou por encaminhá-lo para outros projetos, mas que jamais esqueceu a paixão pelo jazz.
Para o crítico Richard S. Ginell, “essas faixas, a maioria assentada em andamentos relaxados, revelam um homem modesto – de maneira alguma um velocista – e não muito ansioso para swingar (embora ele possa fazê-lo, se quiser), estando mais preocupado com o conteúdo harmônico e com as estruturas complexas, fato que, ocasionalmente, pode encaminhá-lo em direção à chamada lounge music”.
Entre 1958 e 1959 ele volta a realizar gravações como líder, para as gravadoras Decca e MGM, sendo que em algumas delas, se fez acompanhar por sessão de cordas. Em 1965 Burns volta a colaborar com Woody Herman, desta feita para escrever-lhe arranjos vocais. A carreira como compositor e arranjador praticamente obscurece a de pianista e a sua atenção se volta, essencialmente, para trabalhos ligados ao teatro, ao cinema e à televisão. O primeiro contato de Burns com o cinema foi em “Earl Carroll Vanites”, uma comédia musical norte-americana de 1945, dirigida por Joseph Stanley. Ali, fazendo uma participação discreta, ele aparece como pianista da orquestra de Woody Herman.
Ao longo da carreira, ele compôs, arranjou ou elaborou a direção musical para dezenas de peças, filmes, comerciais, documentários e assemelhados. Em 1968 compôs a trilha sonora de “Sweet Charity”, musical dirigido por Bob Fosse e estrelado por Shirley MacLaine, adaptação de uma comédia musical da Broadway homônima, que estreou em janeiro de 1966 e que alcançou 600 apresentações. “Bananas”, dirigido por de Woody Allen, em 1971, teve a sua trilha sonora orquestrada por Burns.
No ano seguinte, compôs o score e fez a supervisão musical do sucesso “Cabaret”, dirigido por Bob Fosse e estrelado por Liza Minelli, trabalho que lhe valeu o Oscar de Melhor Trilha Sonora. Em 1974 fez a direção musical de “Piaf”, longa metragem francês dirigido por Guy Casaril, e elaborou, juntamente com Billy Byers, a orquestração do filme “Mame”, com direção de Gene Sacks. Ainda naquele ano, voltou a trabalhar com Bob Fosse, no longa metragem “Lenny”, que retrata a vida do polêmico comediante Lenny Bruce, com Dustin Hoffman no papel principal. Nesse filme, Burns fez a supervisão da trilha sonora, na qual se destaca uma versão de , feita por Miles Davis.
Em “Lucky Lady”, produção de 1975 dirigida por Stanley Donen, Burns fez a supervisão musical e utilizou os clássicos “Empty Bed Blues” e “Ain’t Misbehavin’”, com, respectivamente, Bessie Smith e Fats Waller. Na comédia “High Anxiety”, em que Mel Brooks satiriza o suspense de Alfred Hitchcok (1977), Ralph fez a orquestração da trilha, composta por John Morris.
O segundo Oscar veio em outro trabalho ao lado de Bob Fosse: “All That Jazz”, de 1979. Além de haver composto os temas, Ralph arranjou e conduziu a trilha sonora. Em “First Family”, de 1980 (direção de Buck Henry), Burns adaptou e dirigiu a musica original do grande compositor norte-americano John Philip Souza. No mesmo ano, compôs a trilha de “Urban Cowboy”, dirigido por James Bridges e estrelado por John Travolta, então na crista da onda por conta do sucesso de “Os embalos de sábado à noite”.
“Annie”, de 1981, marca o encontro de Burns com o legendário diretor John Houston. O filme foi baseado em “Little Orphan Annie”, um grande sucesso da Broadway contabilizou 2.377 apresentações no “Alvin Theatre”, iniciadas em 21 de abril de 1977 e encerradas em 02 de janeiro de 1983, com música de Charles Strouse e letras de Martin Charnin. No longa metragem, Ralph elaborou os arranjos e conduziu a trilha sonora, o que lhe rendeu mais uma indicação ao Oscar.
Um dos seus derradeiros trabalhos na área do jazz ocorreu em 1977, com a supervisão musical e a orquestração no clássico “New York, New York”, de Martin Scorsese, estrelado por Robert De Niro e Liza Minnelli. O filme fez grande sucesso de crítica e público e o score foi composto por Burns, juntamente com Fred Ebb e John Kander. Vinte anos depois, ele retornaria brevemente ao jazz, no filme “Midnight In the Garden Of Good And Evil”, longa metragem norte-americano de 1997, com direção de Clint Eastwood e trilha sonora de Lennie Niehaus, para a qual escreveu o arranjo de "Early Autumn" .
Burns também foi o autor ou colaborador de temas e trilhas sonoras para a televisão, destacando-se “Make Me An Offer” (1980 para a televisão), “Golden Gate” (1981), “Pennies From Heaven” (1981), “Side Show” (1981), “Kiss Me Goodbye” (1982), “Lights, Camera, Annie!” (1982), “My Favorite Year” (1982), “The Phantom Of The Opera“ (1983 para a televisão), “Vacation”(1983), “Ernie Kovacs: Between the Laughter” (1984), “The Christmas Star” (1986), “Penalty Phase” (1986), “After the Promise” (1987) e “Sweet Bird of Youth” (1989). No cinema, destacam-se seus trabalhos nos filmes “Star 80” (1983) “The Muppets Take Manhattan” (1984), “Moving Violations” (1985), “Perfect” (1985), “In the Mood” (1987), “All Dogs Go to Heaven” (1989) e “Bert Rigby, You're a Fool” (1989).
Ao longo da carreira, Ralph recebeu inúmeros prêmios, sendo dos poucos artistas a receber o Oscar, o Emmy e o Tonny, concedidos, respectivamente, por seus trabalhos no cinema, TV e teatro. Todavia, a galeria de premiações poderia ter sido ainda maior, se não fosse o preconceito que teve que enfrentar por conta de sua homossexualidade. O próprio Burns, em uma entrevista para o crítico James Gavin (publicada no artigo “Homophobia In Jazz”, Jazz Times, 2001), afirmou que escondia sua orientação sexual por temer o preconceito que permeava o mundo do jazz.
Ralph faleceu no dia 21 de novembro de 2001, em Los Angeles, Califórnia, em decorrência de uma pneumonia. Para o jornalista britânico Steve Voce, “Burns se manteve bastante ocupado durante os últimos 60 anos. Para que se tenha uma idéia de seu apego ao trabalho, quando ele morreu foram encontrados os manuscritos para um musical em sua mesa. Suas habilidades eram dirigidas à composição de câmara, ao jazz e a manter viva a memória daqueles que realizaram o “Great American Songbook”. Ele foi incomparável, e a natureza atemporal de sua obra vai garantir-lhe a eternidade, juntamente com Ellington e Strayhorn, a quem ele tanto admirava”.
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