Amigos do jazz + bossa

sexta-feira, 29 de maio de 2009

O SOLITÁRIO CONCERTO QUE VALEU POR UMA VIDA


Um jovem caminha a passos trôpegos por uma deserta e quase fantasmagórica Paris. A Cidade Luz é agora mera figura de linguagem – não há viv’alma naquelas ruas escuras e os passos do rapaz ecoam pela madrugada. Embriagado de vinho barato, sofrendo em silêncio, ele é o retrato vivo do abandono e do desespero. Não é o primeiro e nem será o último coração vitimado por intensas dores de amores, mas está decidido a pôr fim à própria vida. E se o suicídio é a última opção que lhe resta, que pelo menos seja em grande estilo – haverá de perecer sob as águas geladas do Rio Sena.


Ao se aproximar do local de onde saltará para a eternidade, algo o desperta de seu torpor. Uma suave melodia invade a noite parisiense e, lentamente, se insinua pela vastidão daquelas ruas escuras. O jovem apura os ouvidos e reconhece os maravilhosos acordes de Round Midnight, tocada por um solitário saxofone. O som tépido da imortal canção de Monk vai aquecendo o coração do rapaz e o suicídio, que até então era a sua única certeza, vai pouco a pouco sendo adiado – muitas outras paixões e muitos outros desenlaces imperfeitos ainda haveriam de atormentar aquele irrequieto coração.


Ele gira sobre os calcanhares, aperta o passo e caminha, agora a passos largos, em direção às luzes do Boulevard Saint-Germain, onde alguns desgarrados boêmios aguardam, com a sempiterna taça de vinho nas mãos, o nascer de mais um dia, para que possam retornar às suas casas. Sob as estrelas do céu parisiense, o jazz acaba de, literalmente, salvar a vida daquele outrora resoluto candidato ao suicídio.

Essa história é verdadeira e foi contada pelo jornalista e crítico musical Roberto Muggiati em uma entrevista para o site Clube de Jazz – era ele o determinado jovem que, atormentado por uma paixão não correspondida, decidiu pôr fim à vida sob as águas do Sena – e o responsável por mantê-lo neste plano existencial foi o também jovem saxofonista Barney Wilen, que na época despontava como uma das maiores revelações do jazz europeu.

Bernard Jean Wilen nasceu em Nice, no dia, 4 de março de 1937, filho de mãe francesa e pai americano. Ainda adolescente, apaixonou-se pelo jazz e começou a aprender saxofone, sofrendo forte influência de Sonny Rollins e Harold Land. Incentivado pela mãe, mudou-se para Paris em meados dos anos 50 e logo se tornou um dos mais respeitados músicos locais. Chegou a dividir os palcos com ninguém menos que Bud Powell e, dentre outros gigantes, acompanhou Miles Davis e John Lewis em discos antológicos. Em 1959, depois de uma apresentação consagradora no Festival de Newport, Wilen foi convidado a integrar os Jazz Messengers, após a saída de Benny Golson. É exatamente desse período o disco “Las Liaisons Dangereuses”, trilha sonora do filme homônimo, dirigido pelo francês Roger Vadin.

O diretor havia inicialmente convidado Thelonious Monk para executar a trilha do seu filme, composta pelo pianista Duke Jordan, mas problemas de agenda impediram que o monge completasse o trabalho e diversas músicas do score não foram gravadas. Art Blakey foi a opção escolhida para concluir a trilha e o disco foi gravado entre os dias 28 e 29 de julho de 1959, no estúdio Nola, em Nova York. Com uma formação que incluía, além do francês Wilen (sax tenor e soprano), Lee Morgan no trompete, Bobby Timmons no piano e Jimmy Merritt no baixo, Blakey ainda pôde contar, em uma das faixas, com o próprio Jordan. Além disso, o líder dos Jazz Messengers adicionou John Rodriguez (bongô), Tommy Lopez e Willie Rodriguez (congas), a fim de dar uma maior densidade percussiva às faixas.


O nível das composições é extraordinário e essa formação pouco usual dos Messengers perpetrou um álbum de muita personalidade, pois ao mesmo tempo em que se manteve bastante fiel às pretensões do diretor, é uma obra com vida própria. Por se tratar de uma trilha sonora, algumas músicas são mostradas em duas versões diferentes, mas esse procedimento em nada diminui a qualidade artística do álbum ou a excelência técnica das execuções. O destaque absoluto do disco é o jovem Wilen, com seu fraseado redondo e envolvente, tanto no sax tenor quanto no sax soprano.

Calcado num hard bop de primeira linha, o disco abre com a pululante “No Problem”, digna dos melhores momentos dos Messengers. Uma ótima linha de baixo conduz a melodia, permitindo que Wilen e Morgan se esmerem nos solos, não menos que magistrais. Blakey está à vontade para detonar a pobre bateria e o faz sem dó nem piedade, com direito a um solo incandescente – além de ser, seguramente, o maior arregimentador de talentos da história do jazz, o sujeito ainda tocava muito!

Em “No Hay Problema” os três percussionistas injetam uma tonalidade caribenha à melodia, com um ótimo trabalho do piano de Timmons. Na suave “Prelude In Blue (à L’Esquinade)”, Wilen usa o sax soprano, produzindo uma atmosfera impressionista de rara beleza. Aqui é o próprio autor da música, Duke Jordan, quem pilota o teclado e transborda todo o lirismo, fazendo o contraponto mais que perfeito para a delicada textura sonora alinhavada pelo saxofonista. Na sacolejante “Valmontana”, outro diálogo bastante energético entre Morgan e Wilen, que interagem telepaticamente o tempo inteiro, enquanto um incansável Blakey costura o acompanhamento rítmico, com a costumeira energia.

Hard bop de ótima cepa também se ouve nas aceleradas “Miguel’s Party” e “Prelude In Blue (Chez Miguel)” – num arranjo em tempo mais rápido, bastante diferente da primeira versão – onde os sopros de Morgan e Wilen são realçados pelo ótimo trabalho dos percussionistas, que despejam ali um caliente molho latino. Um grande disco, realizado por uma banda afiada e muito entrosada – como curiosidade, em uma cena do filme assiste-se a um show de uma banda “baseada” nos Jazz Messengers, mas aqui a formação era: Kenny Dorham (trompete), Barney Willen (sax tenor), Duke Jordan (piano) Paul Rovere (baixo) e Kenny Clarke (bateria).

O saxofonista francês permaneceu pouco tempo com os Jazz Messengers, pois no ano seguinte seria substituído por Wayne Shorter. No final dos anos 60, influenciado pelo rock e pela onda psicodélica, gravou o álbum “Dear Prof. Leary”, em homenagem ao amalucado guru da contracultura, Timothy Leary. Na década seguinte, o flerte com o rock tomou contornos mais explícitos, tendo integrado a banda Moko. Nos anos 80 e 90 retornou ao jazz, tendo gravado com regularidade ao lado do pianista Laurent de Wilde. Barney Wilen morreu no dia 25 de maio de 1996, na mesma Paris que o havia acolhido em meados dos anos 50. É provável que jamais tivesse sabido que sua música certa vez salvou a vida de um jovem brasileiro, perdido nas noites frias de Paris, mas aquele obscuro concerto, produzido em uma solitária madrugada parisiense, certamente está inscrito na galeria de performances mais memoráveis do jazz.


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P. S.: Este post é dedicado ao Mestre José Domingos Raffaelli, exemplo de integridade jornalística e que tem nos brindado com a sua comovente generosidade e seu monumental conhecimento jazzístico aqui no JAZZ + BOSSA.

terça-feira, 26 de maio de 2009

REFINAMENTO, TEU NOME É PAUL DESMOND


Procure o verbete Paul Desmond em qualquer compêndio de jazz. Ali você observará que a palavra mais associada a esse músico extraordinário é “lírico”. E é a mais pura verdade. Esse californiano, nascido em 1924 na bela San Francisco, é o dono do fraseado mais lírico e refinado do jazz, e que mereceu elogios públicos do próprio Charlie Parker. Seu toque delicado tem uma infinita capacidade de fazer sonhar – é límpido e tépido como as águas cristalinas de uma deserta praia do Mediterrâneo. Também é um dos raros músicos que, aos primeiros acordes, o ouvinte não tem a menor dificuldade em identificar. Graças a “Take Five”, inscreveu seu nome entre os grandes compositores do jazz, embora essa fosse apenas uma de suas inúmeras composições. Os direitos autorais daquela canção, diga-se de passagem, asseguraram-lhe o champanhe e o caviar pelo resto de sua existência.

Dono de hábitos refinados, Paul Desmond era um homem extremamente elegante também em sua vida pessoal – diria quase fleumático. Apreciador de um bom vinho, fazia sucesso entre o público feminino e era um emérito conquistador, apesar do temperamento reservado. Embora tenha passado boa parte de sua vida como membro do quarteto de Dave Brubeck – com quem permaneceu de 1951 a 1967 – Desmond construiu, paralelamente, uma carreira solo das mais consistentes. Dono de um estilo melodioso, quase impressionista, nunca soava óbvio ou burocrático, como se pode comprovar nos excelentes “Two Of A Mind” e “Blues In Time”, gravados ao lado do amigo Gerry Mulligan. Certa feita, ao falar sobre a sua maneira de tocar, disse o seguinte: “Acho que, no fundo, eu queria soar como um Martini seco”. Mas seu fraseado, além do indiscutível gosto de Martini seco, também remetia o ouvinte à suave aragem de um dia de primavera – há um frescor em seu toque que mesmo em contextos mais “quentes” jamais deixa de acariciar a alma de quem ouve.

Gravou com regularidade para o selo Bluebird/RCA Victor nos anos 60 e, dessa época, destaca-se o maravilhoso “Glad To Be Unhappy”. O álbum foi gravado entre junho de 1963 e setembro de 1964, nos estúdios da RCA Victor, em Nova York. Fazendo o acompanhamento, estão Jim Hall (guitarra), Connie Key (bateria) e seu velho companheiro do Dave Brubeck Quartet, Gene Wright (baixo). Gene Cherico toca baixo em uma das faixas. Percebe-se nessa formação, de imediato, a ausência do piano. Isso porque Desmond tinha um acordo de cavalheiros com seu chefe Brubeck: não usaria piano em discos solo. O versátil Jim Hall, vindo de uma parceria extremamente bem sucedida com Sonny Rollins, era o músico mais habitualmente convocado para a tarefa de substituir o piano e o fazia com extrema maestria.

Hall – cujas concepções musicais e fraseado se assemelhavam aos de Desmond – jamais se contenta em ser apenas um mero integrante da seção rítmica. Ele ajuda a criar climas harmônicos e dialoga com o anfitrião em altíssimo nível em todas as faixas, além de incluir uma composição sua – a ótima “All Across The City” – no repertório do disco. Canções obscuras, como “By The River Saint Marie”, ou bastante vulgarizadas, como “Hi-Lili, Hi-Lo”, ganham uma roupagem de pura elegância, em grande parte graças à sinuosidade harmônica que Hall extrai de sua guitarra, com destaque também para o solo em “Angel Eyes” – simplesmente antológico. O baixo e a bateria mantêm-se discretos e eficientes – contudo, em nenhum momento soam mecânicos – e pavimentam o caminho para que saxofone e guitarra possam brilhar à vontade.

A primeira faixa, “Glad To Be Unhappy”, é uma balada encantadora, na qual Desmond conjuga lirismo e criatividade, com seu sax etéreo e envolvente. “Poor Butterfly” ganha uma versão quase melancólica, com andamento mais lento que o usual, onde a bateria de Connie Key é o grande destaque. Quebrando um pouco a atmosfera introspectiva do álbum, a swingante “Any Other Time” dá uma amostra do talento composicional do saxofonista e mostra que apesar de haver se consagrado tocando baladas, Desmond também era um bopper de primeiríssima linha. Essa certeza é realçada pela audição de “All Through The Night” – canção pouco conhecida de Cole Porter e que encerra o álbum com chave de ouro – na qual um inspirado Hall adiciona uma levada bebop ao arranjo, enquanto Desmond se encarrega de imprimir aos solos uma velocidade incomum.

Para quem se acostumou a ouvir Paul Desmond ao lado do piano metálico e cerebral de Dave Brubeck, esse magistral disco será uma ótima surpresa. Quem já está familiarizado com o lado mais “warm” do saxofonista vai se deliciar com as pequenas maravilhas engendradas na carpintaria sonora dos mestres Desmond e Hall. Para o deleite de incontáveis ouvintes, a infelicidade mencionada no título do álbum é mera figura de retórica: o que sobressai dele é beleza e encantamento.


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OS.: Post dedicado ao amigo Salsa, grande comandante da nave jazzbackyard e um confesso apreciador da delicada tapeçaria sonora engendrada por Desmond.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

TAXI DRIVER: UM CONTO DE FADAS NOVA-IORQUINO


Os últimos fiapos de sol morriam por entre as frestas da janela. Ele, ainda trôpego de sono e cansaço, maneou a cabeça e olhou para o relógio. Um leve esgar percorreu-lhe a face sonolenta e, com ele, a certeza de que mais uma noite de trabalho havia chegado. O tempo inclemente não parou enquanto ele dormia. Desde que estacionara o velho táxi, um Checker fabricado num longínquo 1953, tomara uma xícara de café frio e deitara sem prestar atenção ao burburinho que vinha da calçada, já haviam transcorrido quase dez horas. O submundo onde recolhia seus passageiros também começava a despertar.

O longilíneo ponteiro dos segundos continuava sua marcha inexorável. Já estava completamente escuro quando ele tomou coragem para levantar da cama. O banho frio despertou-lhe os sentidos e deu-lhe a coragem necessária para encarar a faina que se afigurava longa. Mais uma noite solitária, trafegando por entre bêbados, drogados, prostitutas e cafetões. Ele era apenas mais uma alma desgarrada vagando pelas ruas indistintas, tão perdido quanto qualquer um dos seus clientes habituais.

Tateou pela velha geladeira e encontrou um pacote de biscoitos, que comeu sem nenhum entusiasmo. Bebeu um pouco de leite gelado, pôs o pesado casaco, deu uma última olhada no espelho e saiu pela porta da cozinha. O pequeno apartamento parecia menor ainda, por conta do gigantesco piano que dominava praticamente toda a extensão da sala e o obrigava a se esgueirar rente às paredes.

Além do táxi, com o qual vinha ganhando a vida nos últimos anos, o piano era o único bem que ele possuía. Já fazia meses que ele sequer abria o imponente Bosendorfer Imperial e sentia que suas mãos destreinadas estavam perdendo a velha destreza. Lembrou dos dias de glória, dos gritos histéricos da pequena multidão que se acotovelava, noite após noite, nos diversos clubes da Rua 52 para vê-lo tocar. Bem, na verdade eles vinham para ver o seu chefe, o seu amigo, o seu camarada – mas ele não se importava. Bird estava morto havia anos e os convites para tocar foram escasseando até parar de vez. Ele, que havia dividido palcos e estúdios com os maiores, que havia sido aplaudido de pé nas casas mais afamadas da Europa, devia agora se conformar e esquecer. Seu tempo havia passado e não voltaria mais.

Ligou o carro e sintonizou uma obscura estação de jazz. As últimas palavras do disc-jóquei foram “...mas ele desapareceu da cena jazzística há algum tempo e ninguém sabe do seu paradeiro atual”. Em seguida, ele ouve os primeiros acordes de “Flight To Jordan” e sente cálidas lágrimas a escorrerem de suas faces. “Não, cara, não existe Cinderela. Você tá acabado, já passou dos cinqüenta... ”. Enxugou as lágrimas e acelerou – não havia tempo para tais sentimentalidades. Concentrou-se no trabalho e esforçou-se para ouvir a música apenas com os ouvidos. Ao parar em um sinal, um bêbado mal encarado lançou-lhe um olhar furioso através do pára-brisa e rosnou: “Tá falando comigo?”. Logo em seguida, deu sorte. Um casal de aparência distinta fez sinal. Eles jantariam no Carlyle e pediram ao motorista que os esperasse até o fim da noitada.

Já eram quase duas da manhã quando ele voltou de Nova Jérsei. Coincidência ou não, o simpático casal morava em Englewood Cliffs – próximo de um endereço que ele conhecia tão bem. No rádio, o velho amigo Parker descortinava sua alma atormentada através de uma portentosa versão de “Out Of Nowhere”. Gravação da Dial. 1946. Ele estava lá. Max, Tommy e Davis também. Pensou em Miles e sua reluzente Ferrari – havia passado por ele algumas vezes. Sentiu um travo amargo na boca. Em seguida, é a delicada “Star Brite” que ecoa pelos alto-falantes do carro e ele recordou dos amigos Dizzy, Stan, Reggie e Artie.

Dizzy, com seu olhar penetrante e inquieto, não precisava falar. Seu sopro – misto de virilidade e ternura – dizia todas as frases necessárias. Stan, outro mestre da delicadeza, custava a crer que alguém pudesse tocar um trompete de forma tão lírica. O querido Artie, sempre de óculos escuros. Reggie e suas mão rápidas como um cometa... De repente, ele está de volta ao dia 4 de agosto de 1960. Sua memória não o trai – é Dizzy quem está sentado na solene escada de madeira que leva ao segundo andar. Trompete na mão esquerda, semblante tranqüilo, apenas sacode a cabeça e sobe em direção ao estúdio. Francis também estava lá, com sua inseparável Rolleiflex.

Lembrou-se, nitidamente, de um compenetrado Van Gelder apertando incontáveis botões, em busca da equalização perfeita. Instrumentos fora dos estojos. O afinado piano é posicionado a alguns metros da imponente bateria. “OK, pessoal. Gravando!”, diz Rudy. Os mesmos acordes que ele ouvira no rádio algumas horas antes, agora reverberam em sua cabeça. A eletricidade de “Flight To Jordan”, com Dizzy arrebentando no trompete... A doce “Star Brite”, na qual Stan arranca do seu saxofone todo o encantamento que é possível a alguém extrair de um instrumento musical... A dardejante “Split Quick”, com os caras se matando prá ver quem toca mais rápido... A irresistível “Si-Joya”, que ficou melhor que na versão do grande Blakey... “Deacon Joe”, com sua tintura de blues, baseada em um antigo spiritual...

Duas e meia. A gorjeta dada pelo casal vale pelo trabalho de três dias. Mais que o corpo, ele tem a alma cansada. Pela primeira vez em muitos anos ele pensa, realmente, se fez a opção correta. Lembra com mais intensidade da época em que compunha trilhas sonoras para o cinema, em que viajava pelo mundo fazendo aquilo que mais amava: tocar! Resolve voltar para casa. Entra sem fazer barulho e se arrasta até o piano. Lentamente, retira a capa que protege o instrumento e fica alguns minutos apenas olhando. Abre sofregamente a tampa, senta na banqueta e começa a brincar com as teclas. Os dedos, inicialmente sem ritmo, vão se amoldando aos poucos. As notas, antes dispersas, começam a se agregar de maneira harmônica e vão formando o contorno sonoro de “I Should Care”. “Outra música que os caras tocaram naquele dia”, pensa ele.

Em seguida, “My Old Flame”, que ele tanto tocava com Bird. Depois, uma versão minimalista de “Jordu”, tocada em um andamento vagaroso. Ele não perdeu a velha forma – apenas recolheu o seu enorme talento em alguma gaveta da alma. Dirigir táxi é para pragmáticos e um pianista certamente não o é. Quatro e meia da manhã. O score solitário chaga ao fim. Não há aplausos – tocara tão baixinho que nem mesmo o senhorio poderia tê-lo ouvido. Cobre novamente o piano e vai dormir – o sono vem fácil, como há muito não experimentava. Sonha com a algaravia da platéia e com o silêncio monástico do estúdio, mas não acalenta mais qualquer ilusão. É 1973 e ainda há muitos passageiros a transportar...


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Irving Sidney “Duke” Jordan passou mais da metade dos anos 60 e parte dos anos 70 como taxista em sua querida Nova York. O melodioso pianista que acompanhara Charlie Parker nos anos 40 e que chegou aos anos 50 como um dos mais badalados compositores do jazz, chegando a ser convidado pelo francês Roger Vadim para compor a trilha do seu filme “Les Liaisons Dangereuses”, viu-se, por longos 11 anos, obrigado a abandonar a carreira e sobreviver, modestamente, das corridas que fazia a bordo de um táxi. Em 1973, a fada-madrinha apareceu-lhe sob a forma do produtor dinamarquês Nils Winther, que lhe convidou para gravar por sua gravadora, a respeitada Steeplechase.


A partir daí, Duke Jordan pôde retomar a carreira. Mudou-se para a Dinamarca, onde permaneceu até a sua morte, em 2006. Nesses mais de trinta anos, gravou e excursionou intensamente, pelo mundo todo, gozando de uma popularidade inédita até então, especialmente no Japão. Embora tenha se reconciliado com o sucesso e protagonizado um dos mais emocionantes contos de fada da era moderna, o grande disco de sua carreira foi, sem dúvida, o espetacular “Flight To Jordan”. Nesse álbum, Duke, coadjuvado por Dizzy Reece, Stanley Turrentine, Art Taylor e Reggie Workman erigiu uma obra-prima, uma verdadeira declaração de amor ao jazz. Mesmo afastado da ribalta, não cultivou rancores. Suportou estoicamente o destino que as Musas lhe haviam traçado e, no momento certo, soube aproveitar a chance para fazer renascer uma carreira que muitos davam como encerrada. Fez-se, então, uma rediviva Fênix – a Fênix do “yellow cab”.
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PS.: Este post é dedicado aos amigos João Bouéres e Edú, verdadeiras reservas morais do bom gosto musical e ao meu querido primo Hélio Cordeiro, que nesse exato instante divide uma ótima garrafa de malbec comigo.

terça-feira, 19 de maio de 2009

O HOMEM QUE MUDOU OS RUMOS DA BATERIA JAZZÍSTICA


Discos tributos a Charlie Parker não são coisa rara no universo do jazz. Inúmeros músicos já o fizeram, com resultados que variam do sublime (“Stitt Plays Bird” e “Bud Plays Bird”, por exemplo) ao razoável (caso do modesto “To Bird With Love”, perpetrado por um pouco inspirado Dizzy Gillespie). Cerrando fileiras com os álbuns da primeira categoria, o impecável “Max Roach 4 Plays Charlie Parker” se destaca até mesmo entre os seus pares – é grande entre os grandes e, a cada audição, fica ainda maior.

Sobre o articulado Maxwell Lemuel Roach, tudo já foi dito e tudo mais que se venha a dizer pode resvalar, perigosamente, em surrados clichês. Mas fatos são fatos e não se pode negá-los. Sim, ele é, ao lado do também genial Kenny Clarke, um dos pais da bateria no bebop, tendo protagonizado grandes momentos no mítico Clube Minton’s, onde o estilo foi gestado. Sim, ele revolucionou a forma de se tocar bateria, colocando o instrumento na linha de frente jazzística, tirando-o da obscuridade rítmica a que se achava relegado. Sim, ele foi um compositor de primeiríssima linha, tendo legado aos amantes do jazz pérolas como Mr. X (homenagem a Malcolm X), Blues Waltz e Mildama. Sim, também foi um aguerrido militante da causa negra e dos direitos civis, tendo dedicado um álbum antológico ao tema, o engajado “We Insist! - Freedom Now”. Sim, ele tocou com toda a elite jazzística – do clássico Duke Ellington, seu parceiro no magistral “Money Jungle”, ao vanguardista Anthony Braxton.

Quando o maior combo jazzístico jamais reunido fez o célebre concerto no Massey Hall, em 1953, quem foi o baterista escolhido? Ele mesmo, o incansável Max, nem um pouco intimidado com as presenças sobrenaturais de Dizzy Gillespie, Charlie Parker, Bud Powell e Charles Mingus. Inspirado por tantos gênios, no ano seguinte resolveu montar uma banda à altura: convocou o mago Clifford Brown, com quem dividiu o nome do quinteto, e os excelentes Harold Land (sax tenor, substituído posteriormente por ninguém menos que Sonny Rollins), Richie Powell (piano) e George Morrow (baixo). A banda permaneceu por dois anos como uma das melhores em atividade, somente sendo desfeita quando o inesperado fez uma tenebrosa surpresa: Clifford e Richie foram vitimados em um terrível acidente, que também custou a vida da esposa do pianista.

O baque foi enorme. A muito custo, Max se recuperou da perda dos amigos e voltou a tocar. Formou uma nova banda, mantendo o velho amigo Morrow e incorporando os jovens e talentosos Ray Bryant (piano), Kenny Dorham (que teve a enorme responsabilidade de substituir o fabuloso Brown) e Hank Mobley. Com essa formação gravou os ótimos Max Roach + 4” e “Jazz in ¾ Time” – Sonny Rollins substitui Mobley no segundo disco e Billy Wallace substitui Bryant em algumas faixas do primeiro. Também com uma formação semelhante, Roach liderou um afiadíssimo quarteto “pianoless”, encarregada de dar novo tratamento a composições e standards imortalizados por Bird, no magistral “Max Roach 4 Plays Charlie Parker”.

Sem a presença das teclas de Bryant, coube a Roach e Morrow (substituído em algumas faixas por Nelson Boyd), literalmente, “carregar o piano”. Embora se dividindo entre a manutenção da arquitetura rítmica e o alinhavo da textura sonora da banda, o baterista reina soberano em todas as faixas, ora adotando uma postura lírica digna de um Connie Kay, ora arrebentando as baquetas, pratos e adjacências, qual um ensandecido Elvin Jones. Ele é o líder incontestável da gravação – e não faz a menor questão de esconder isso, impondo à vulgar expressão “dar no couro” uma literalidade ímpar.

No repertório, pérolas da joalheria birdiana, como as indefectíveis “Ko Ko” e “Confirmation” recebem um tratamento harmônico da maior qualidade. Nos metais, um encapetado Dorham e um alucinado Mobley (e há quem diga que ele não sabia solar!!!!) cometem as maiores diabruras em nome do sacrossanto jazz. O ótimo George Coleman substitui Hank Mobley em três faixas, mas isso não altera a qualidade do disco, gravado para a Mercury entre dezembro de 1957 e abril de 1958. Músicas consagradas por Parker, como a quase balada “This Time The Dream Is On Me” (biscoito finíssimo da dupla Arlen/Mercer) são reelaboradas com personalidade e reverência, destacando-se nesta o sublime trompete de Dorham.

O dínamo Roach desencadeia um tsunami sonoro nas eletrizantes “Yardbird Suite” e “Au Privave”, tocadas em ritmo alucinante. Em ambas, o baixo pululante de Morrow segura a onda e permite aos demais companheiros que se esbaldem em seus solos – não há menção do fato nas notas do disco, mas é muito provável que a pobre bateria tenha ido para o beleléu após as sessões de gravação. O álbum tem espírito de bebop e corpo de hard bop, sem demérito a nenhuma das duas escolas. E Roach ainda teve tempo de brindar a audição com uma excelente composição sua, a serpenteante “Raoul”, que evoca discretos sabores orientais. Ao ouvinte, cumpre se deliciar com este banquete dionisíaco. Empanturremo-nos, pois!

O grande mestre da percussividade, o mago que deu uma nova cara à bateria e redefiniu o uso dos pratos e timbales, o dedicado educador que formou gerações de novos jazzistas à frente da Lenox School of Jazz e da University of Massachusetts, partiu para o outro plano da existência em 14 de agosto de 2007. Legou uma obra de personalidade, manteve intacta sua integridade artística e mostrou ser possível praticar um engajamento político completamente apartado de qualquer vaidade pessoal, sem jamais resvalar no panfletarismo histérico. Certamente teria gostado muito de ver o negro Barack Obama a comandar os destinos políticos de seu país.


OS.: Este post é dedicado aos novos amigos FIGBATERA e ANDRÉ TANDETA, bateristas de primeira, com quem tenho compartilhado ótimas discussões no âmbito da blogsfera.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

A BALADA DO MAR SALGADO


O cálido sopro da brisa marinha acaricia as narinas e o murmúrio das ondas, chocando-se contra o resoluto quebra-mar, hipnotiza os ouvidos daqueles cinco homens que atravessam, com passos firmes, o pequeno cais. Promessas de mil aventuras e perigos espreitam os tripulantes daquela elegante escuna que ora se prepara para zarpar. Quatro indômitos lobos do mar ouvem, atentos, as últimas palavras do seu capitão, antes de içar as velas e partir rumo ao desconhecido. Um agridoce sabor, misto de reverência e esperança, perpassa a boca de cada um deles. O jovem capitão, decidido a singrar por mares nunca dantes navegados e a encontrar indizíveis tesouros, fita o horizonte ao longe e tenta, inutilmente, perscrutar os insondáveis propósitos de Netuno. Lentamente, a pesada âncora é içada. Nada mais há a ser feito. A sorte está lançada. Sem titubeios, a nau começa a cumprir o seu glorioso destino.

O deus dos mares foi generoso com aquele jovem e destemido capitão. Quando gravou este “Maiden Voyage”, poucos dias antes de completar 25 anos, Herbert Jeffrey Hancock tinha o mundo a seus pés – fama, prestígio e dinheiro – boa parte deste por conta dos direitos autorais do seu grande sucesso “Watermelon Man”. Apesar de novo, já acumulava uma experiência que muitos jazzistas mais velhos jamais ousariam conceber. No currículo, além dos elogiados álbuns com o então empregador Miles Davis, importantes participações em vários discos como acompanhante (Donald Byrd, Jackie McLean e Phill Woods tiveram a honra de tê-lo como sideman), além de alguns outros como líder. Destes, pelo menos uma obra-prima irretocável: o extraordinário “Empyrean Isles”, de 1964.

Além disso, é o autor de inúmeros standards jazzísticos, como “Cantaloupe Island”, “Riot”, “Goodbye to Childhood”, “The Sorcerer” e “Speak like Child”. Também compôs trilhas sonoras para o cinema, onde se destacam a do enigmático “Blow Up” e a do comovente “Round Midnight” (laureada com o Oscar). Músico versátil, criativo e de espírito inquieto, Herbie sempre foi um incansável pesquisador (mergulhou de cabeça nos ritmos africanos, tendo chegado ao ponto de mudar seu nome para Mwandishi, nos anos 70), mas, ao mesmo tempo em que construiu uma sólida carreira, cometeu algumas heresias em sua trajetória. Sua bem sucedida (comercialmente falando) incursão pelo fusion e pelo pop até hoje provoca urticárias entre os puristas mais renhidos, embora, a bem da verdade, jamais tenha abandonado totalmente o jazz.

Nascido a 12 de abril de 1940, Hancock logo demonstrou ser um prodígio ao piano, tendo começado seus estudos aos sete anos e, aos onze, tornando-se um destacado solista da Orquestra Sinfônica de Chicago. Foi fisgado pelo jazz ainda no colegial e sua influência mais perceptível é o lírico Bill Evans. Formou-se em música e engenharia elétrica pela Faculdade de Grinnell, nunca tendo escondido sua admiração pelas inovações tecnológicas – foi um dos primeiros jazzistas a aderir ao piano elétrico e aos sintetizadores. Convidado por Miles Davis para integrar sua banda, permaneceu com o trompetista de 1963 a 1968 sendo, juntamente com Wayne Shorter, o principal responsável pela sonoridade quase cubista daquele mítico quinteto. Durante esse período, também gravava em seu próprio nome, com certa regularidade, alguns excelentes discos para a Blue Note – esgotamento criativo, portanto, era algo que passava ao largo do nosso bravo capitão.

Retomando a viagem da nossa valorosa escuna, os companheiros de Hancock nessa viagem são o também jovem e igualmente prodigioso Freddie Hubbard (trompete) e dois companheiros da banda de Miles Davis – o baixista Ron Carter e o baterista Tony Williams (este, com inacreditáveis 20 anos, já acumulava uma milhagem náutica considerável), além do saxofonista George Coleman, recentemente substituído por Wayne Shorter na banda de Miles. Coleman, com seu fraseado obliquo e seus solos pouco convencionais, era um mestre da complexidade rítmica mas, por alguma razão, não teve muito destaque em sua breve passagem pelo combo liderado por Davis. Em “Maiden Voyage” ele está extremamente à vontade para desfiar a sua técnica soberba, a serviço de um repertório impecável – talvez por isso mereça o posto de imediato.

As sofisticadas texturas harmônicas propostas por Hancock, que assina todas as faixas, revelam que as águas inicialmente singradas por seu patrão no notável “Kind Of Blue” ainda não haviam sido totalmente exploradas – e o pianista e sua tripulação se encarregam de fazê-lo com maestria e competência técnica ímpares. Abrindo o álbum, um clássico do jazz moderno: a climática “Maiden Voyage”, na qual o sax tenor de Coleman e o trompete de Hubbard exalam uma contida sensualidade, fazendo um belíssimo contraponto ao piano delicado e ultracool do líder. A destacar o maravilhoso trabalho de Williams com os pratos e o magistral solo de Coleman – a escuna do capitão Hancock navega por águas límpidas e tranqüilas.

Uma tempestade se aproxima. Em “The Eye Of The Hurricane” pode-se sentir a violência da borrasca a chacoalhar a nossa querida nau. Sua experiente tripulação não se intimida e manda ver um hard bop nada ortodoxo, onde o capitão exibe toda a sua exuberante técnica – o dedilhado feérico conduz a tripulação através da tormenta, com o apoio mais que preciso do imediato Coleman. Em seguida, mar calmo novamente: é a bela “Little One”, uma balada pra lá de cool, na qual recai sobre o baixo de Carter a responsabilidade de sustentar a melodia, com outro excepcional solo de Coleman. Ecos de Wayne Shorter povoam a quase swingante “Survival Of The Fittest”, com seu andamento surpreendente, cheio de modulações e variações climáticas – é a vez do grande Freddie Hubbard mostrar toda a sua competência técnica.

O gran finale ficou a cargo da delicada “Dolphin Dance”, mais um clássico da inesgotável oficina de idéias do Capitão Hancock. Sua levada hipnótica faz do ouvinte um clandestino de luxo a bordo da preciosa escuna. Podem-se perceber os contornos das belas praias que aguardam os nossos sedentos marujos, onde sensuais dançarinas, vestidas com diáfanos sarongues, os esperam para um inesquecível banquete tropical. Coleman e Hubbard, outra vez, estão soberbos. Carter e Williams executam com a habitual maestria a tarefa de manter o prumo da nau. O capitão dispensa comentários – mantém uma postura discretíssima, destilando econômicos porém certeiros acordes – mas jamais deixa dúvidas sobre quem está no comando da embarcação. A viagem chegara ao fim!

O tombadilho agora está vazio. A escuna, atracada no porto, retornou incólume à segurança inquietante do cais. Ao longe, o tremeluzente farol cumpre a sua nobre sina de alertar os navios para os incontáveis perigos que se escondem sob as águas. Nos bares próximos à zona portuária, alguns velhos marinheiros, homens de pele curtida de sal e de sol, tartamudeiam à meia luz e especulam sobre um valioso tesouro que, diz-se à boca pequena, teria sido encontrado por um certo Capitão Hancock e sua pequena tripulação. De repente, faz-se um silêncio solene naquele bar enfumaçado e lúgubre. Então, aos primeiros acordes de “Dolphin Dance”, os ouvidos embevecidos daqueles rudes lobos do mar são presenteados com um som mais belo que o mais belo canto da sereia. Não é preciso dizer mais nada. Todos ali souberam, no mesmo instante, que o bravo Capitão Hancock havia, finalmente, aberto o seu baú do tesouro.

P. S.: Post dedicado aos queridos amigos Celijon Ramos e James Magno Farias, com um afetuoso abraço.

terça-feira, 12 de maio de 2009

NO TEMPO DAS DILIGÊNCIAS


Há um certo consenso entre a crítica, de que os mais influentes saxofonistas do jazz foram, em uma ordem cronológica razoavelmente precisa, Coleman Hawkins, Lester Young, Charlie Parker, John Coltrane e Sonny Rollins. Hawkins deu ao saxofone, até então relegado a mero acompanhante nas bandas e orquestras, o status de instrumento da linha de frente do jazz. Young adicionou doçura e lirismo ao sax jazzístico e, com seu fraseado sensível, sugeriu os caminhos que, mais tarde, seriam desbravados pelos músicos da escola cool. Parker, talvez o maior de todos, promoveu a revolução do bebop, criando uma linguagem harmônico-melódica toda peculiar e inovadora. Coltrane sintetizou a influência de todos os seus antecessores e apontou os caminhos para o futuro do saxofone jazzístico, levando as possibilidades harmônicas do instrumento até as fronteiras da Via Láctea. E Rollins?

Theodore Walter “Sonny” Rollins foi, é e será sempre uma força da natureza, o músico que simboliza o total abandono às coisas materiais para se dedicar – única e exclusivamente – ao aperfeiçoamento de sua arte. Não é à toa que tenha passado quase dois anos sem gravar ou se apresentar em público, apenas praticando e desenvolvendo seu toque, sob os olhares incrédulos dos que passavam pela ponte do Brooklyn, onde costumava se recolher para ensaiar. Sua relação com o saxofone se constrói em um plano espiritual, onde homem e instrumento se integram de forma tão estreita que acabam por se tornar uma coisa só. Seu fraseado incisivo é de uma virilidade incomum e seus solos conjugam força física, inteligência, habilidade técnica, inventividade, bom humor e velocidade.

Além da competência como músico, o talento superlativo de Sonny como compositor legou ao jazz canções imortais como “St. Thomas”, “Airegin”, “Doxi” e “Oleo”. O homem é um monstro e até hoje mantém-se ativo, com uma concorrida agenda de shows, apresentando-se em palcos do mundo inteiro. Seu disco “Saxophone Colossus”, de 1956, é uma obra-prima, presente em qualquer lista dos 10 álbuns mais importantes da história do jazz. Consagrou-se como músico ligado às escolas bebop e hard-bop, mas também flertou com o pop, o free jazz e a música oriental – sempre mantendo intacta a sua integridade artística.

Em março de 1957 gravou para a Contemporary um de seus discos mais interessantes – ainda que não tão conhecido quanto os incensados “Saxophone Colossus” e “The Bridge” – chamado “Way Out West”. A capa é um exemplo do humor sardônico do saxofonista: um Sonny Rollins vestido a caráter, em uma paisagem típica do oeste americano, se prepara para enfrentar sabe-se lá que perigos com o seu impávido saxofone. A foto é de autoria de William Claxton, célebre por fotografar grandes nomes do jazz. O repertório inclui canções com uma temática, digamos, “rural”: “I'm an Old Cowhand” (Mercer), “Wagon Wheels” (DeRose/Hill) e a própria “Way Out West”, composta por Rollins especialmente para a ocasião.

Gravado na Califórnia, Sonny dispensou o piano e convocou dois dos maiores expoentes do West Coast para acompanhá-lo: o baixista Ray Brown e o baterista Shelly Manne. A fim de compatibilizar as agendas dos músicos, as gravações foram realizadas às três da manhã, o que não causou qualquer problema, pois nesse horário o excêntrico saxofonista estava mais “quente” que nunca. E olha que calor foi o que não faltou àquelas sessões. Um dos (muitos) pontos altos do disco é “Come, Gone”, bebop de autoria de Rollins, na qual este exibe seu fraseado energético e dá um show de irreverência, versatilidade e improvisação, fazendo citações a outras músicas, como “Perdido”, sem perder o prumo.

Apesar do pouco tempo disponível para ensaiar, o trio toca com uma coesão e um swing impressionantes e boa parte do sucesso do disco se deve à excelência da sessão rítmica. Em “I'm an Old Cowhand” e em “Wagon Wheels”, por exemplo, percebe-se em algumas passagens uma discreta pincelada de reggae (isso bem antes do estilo ser inventado), com destaque para a soberba linha de baixo. A balada “There Is No Greater Love” ganha uma roupagem moderna, sem perder a emotividade, e a icônica “Solitude” merece uma versão à altura daquela imortalizada por Lady Day, com Sonny mostrando que também pode soar lírico e pungente, tanto quanto um Lester Young.

A despeito da eletricidade que percorre todas as faixas, a atmosfera do disco é bastante relaxada e despretensiosa. Nada de experimentalismos, nada de invencionices, nada de dilemas estéticos. São apenas três caras tocando e se divertindo – dividindo com o ouvinte a alegria e o prazer de fazer grande música. A nova edição em CD, remasterizada por Phil De Lancie, traz como brinde três faixas bônus: os takes alternativos de “I'm an Old Cowhand”, “Come, Gone” e “Way Out West”. Sem dúvida, um álbum precioso, fadado a ocupar um lugar de destaque em qualquer discoteca de jazz.

sábado, 9 de maio de 2009

SOB AS BÊNÇÃOS DE BILAC: UM COMETA MUSICAL CHAMADO LOUIS SMITH


Imagine um cometa cruzando o vazio celestial a uma velocidade de milhares de quilômetros por segundo, deixando à sua passagem um breve e luminoso rastro de poeira de estrelas. Podem se passar anos até que esse solitário viajante das galáxias retorne à sua morada de origem, mas um dia ele assim o fará, para que a harmonia possa, finalmente, reinar na impalpável cartografia do cosmos. Enquanto isso não ocorre, haverá de enriquecer a mitologia dos lugares por onde passa, servindo de inspiração, quiçá, para toda a sorte de poetas, seresteiros, namorados...


Na geografia cósmica do jazz, muitos foram os cometas que por aqui passaram e que retornaram, tão fugazmente, às suas moradas celestiais – onde as jam sessions, assim como o bourbon, nunca terminam e os neons nunca se apagam. Foi assim com Charlie Christian, Fats Navarro, Clifford Brown, Scott La Faro, Booker Little, e incontáveis outros. Todavia, existe uma categoria muito especial de cometas jazzísticos, que permanecem em um intrincado limbo de retraimento e obscuridade – alguns por opção, outros tantos por força das circunstâncias. Assim aconteceu com a fenomenal Alberta Hunter, que depois de anos de dedicação exclusiva ao trabalho como enfermeira, retornou aos palcos e estúdios para retomar uma carreira vitoriosa – após um hiato de mais de 25 anos. O mesmo se pode dizer do grande Frank Morgan, que durante 30 anos lutou contra o pesadelo das drogas (entre 1955 e 1985 sofreu incontáveis condenações por porte e consumo de heroína e passou muitos anos na cadeia), até finalmente retomar as rédeas de sua vida e de sua carreira, num dos mais emocionantes comebacks do jazz.


Da mesma natureza astral, o cometa Louis Smith protagoniza um retorno aos holofotes dos mais surpreendentes – embora, infelizmente, não possa mais tocar, pois desde 2005 luta contra as seqüelas de um grave derrame que lhe reduziu a capacidade motora e lhe ceifou a fala. Redescoberto após o lançamento do magistral disco “Live At Newport ‘58”, de Horace Silver (que permaneceu inédito por inacreditáveis 50 anos), Louis Smith aos poucos sai das sombras a que havia se recolhido voluntariamente e vem, lenta mas progressivamente, ocupando o destacado lugar que é seu de direito no panteão dos maiores trompetistas do jazz. Tanto é verdade que o seu excepcional “Here Comes Louis Smith” voltou às prateleiras no ano passado.


Esse disco, um dos raríssimos liderados pelo trompetista, está entre as obras fundamentais do hard bop e traz em seus créditos uma verdadeira constelação: no piano, os legendários Tommy Flanagan e Duke Jordan (com 3 faixas para cada); no baixo, o ótimo Doug Watkins; na bateria, o sempre confiável Art Taylor; no sax alto, um certo Buckshot La Funke, que também atendia pelo singelo pseudônimo de Julian Cannonball Adderley (razões contratuais motivaram essa curiosa estratégia). Gravado para o selo Blue Note nos dias 4 e 9 de fevereiro de 1957 e relançado em 2008 com uma caprichada remasterização do mago Rudy Van Gelder, esse disco provoca no ouvinte a seguinte interrogação: teriam os deuses do jazz enlouquecido, ou por que outro motivo um sujeito com tamanho talento permaneceu tanto tempo no mais solene anonimato?


A razão, todavia, nada tem de misteriosa ou sobrenatural: foi o próprio temperamento de Smith – avesso às badalações e exigências do mainstream – que lhe impôs o ostracismo voluntário. O talentoso trompetista que já havia dividido o palco e os estúdios com Zoot Sims, Charlie Rouse, Kenny Burrell e Sonny Clarke, entre vários outros luminares, preferiu abdicar da ribalta para dedicar-se exclusivamente ao ofício de ensinar, tendo escolhido para si uma pacata vida de professor em diversas escolas da região de Michigan, inclusive chegando a lecionar na afamada universidade local. Nos últimos 40 anos gravou alguns pouquíssimos discos – concentrando toda a sua atenção e energia na formação de jovens músicos.


Voltando ao disco, nele se podem perceber claramente os predicados técnicos que fazem de Louis Smith um dos maiores expoentes do trompete. Exagero? Ouça “Tribute To Brownie” (composta por Duke Pearson), faixa de abertura desse extraordinário álbum e depois tire as suas próprias conclusões. Aqui não há espaço para intrincados labirintos harmônicos, apenas para o bom e (então) novo hard bop. A exuberância sonora do quinteto jorra aos borbotões, mas sempre com muita fluência, maestria e volatilidade. Fosse um corpo celeste e esse disco seria o incandescente Mercúrio, nunca o gélido Plutão.


O líder, cuja sonoridade redonda e encorpada lembra Clifford Brown, comparece com quatro composições suas, todas executadas em altíssima voltagem. “Brill’s Blues” é, por óbvio, um blues que parece extraído de algum obscuro recôndito do delta do Mississipi, com direito a um trabalho primoroso do baixista Watkins. Na estratosférica “Ande”, o velocíssimo dedilhado de Flannagan é acompanhado por um alucinado Smith, com direito, também, a um show todo particular de Taylor. “South Side” e “Val’s Blues” mantém a pegada, sendo que na primeira o solo de Smith é simplesmente antológico – o mesmo devendo ser dito do solo do feérico “Buckshot La Funke”. Na segunda, outra aula da dupla sax alto/trompete, que trava entre si, durante toda a música, um caudaloso diálogo – à seção rítmica incumbe manter os pés no chão e assegurar aos frenéticos cosmonautas uma aterrissagem tranqüila.


Bilac, que conhecia as estrelas e até conversava com elas, certamente haveria de surpreender-se com a altivez do nosso cometa, ao recusar os possíveis louros de uma carreira que se afigurava brilhante. Talvez até mesmo dissesse ao resoluto trompetista, ao falar sobre os insondáveis mistérios astrais, “Amai para entendê-las! / Pois só quem ama pode ter ouvido / Capaz de ouvir e de entender estrelas”. Portanto, que seja bem-vindo aos corações e prateleiras dos jazzófilos, venerável Louis Smith, e que possa receber em vida todas as flores de que é merecedor.


Ah sim!, quanto àquela história de poeira de estrelas deixada pelos cometas... Não é por coincidência que o cintilante rastro deixado por esse músico extraordinário se apresente sob a forma sonora de uma comovente interpretação da emblemática “Stardust”. É – parece que os deuses do jazz não estavam tão malucos assim.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

QUEM MATOU JAKI BYARD?


Tragédias pessoais e jazz sempre andaram de mãos dadas, desde as remotas origens do estilo, nas violentas ruas da New Orleans do início do século XX. Pense em qualquer tipo de drama pessoal e os músicos de jazz serão incansáveis protagonistas.
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Suicídio? Frank Rosolino acabou com a própria vida, pouco depois de haver atirado em seus dois filhos pequenos. Prostituição? A divina Lady Day assegurou o sustento, durante certo tempo de sua vida, valendo-se da mais antiga das profissões. Drogas? A farmacopéia do jazz é vasta e inclui desde o lírico Bill Evans ao malucaço de carteirinha Roy Eldridge, passando por Art Blakey, Charlie Parker, Dinah Washington, Miles Davis, Paul Chambers, Joe Pass, Anita O’Day, entre incontáveis outros e outras.

Prisões? Gene Ammons, Frank Morgan e Art Pepper passaram boa parte de suas vidas vendo o sol nascer quadrado. Doenças? O câncer arrebatou Coltrane no espelendor dos seus 40 anos, problemas renais levaram Kenny Dorham antes dos 50 anos e a tuberculose retirou do convívio terreno os prodigiosos Jimmy Blanton e Fats Navarro. Acidente automobilístico? Clifford Brown e Richie Powell morreram no mesmo acidente, em 1956, e, em 1961, foi a vez do maravilhoso Scott La Faro perder a vida.

A lista de tragédias continua. Alcoolismo? Hectolitros de bebida se encarregaram de abreviar as vidas e as carreiras de Sonny Clark, Hampton Hawes e Oscar Pettiford. Distúrbios mentais? Bud Powell e Phineas Newborn eram assíduos freqüentadores de hospitais psiquiátricos e Henry Grimes permaneceu na indigência entre 1968 e 2002, após haver sofrido um violento colapso que o fez abandonar a carreira e a família. Homicídio? Lee Morgan foi morto a tiros na saída da boate em que se apresentava, por uma ex-namorada, e também às portas de uma boate o baixista Jaco Pastorius foi espancado até a morte. Há o caso extremo de Chet Baker, que passou por quase todo tipo de tragédia – foi preso inúmeras vezes, usou e abusou de todo tipo de droga, perdeu quase todos os dentes após ser agredido brutalmente por traficantes – até a morte, que permanece um mistério: até hoje não se sabe se ele cometeu suicídio, se foi assassinado ou se caiu acidentalmente da janela de um modesto hotel de Amsterdã.

No quesito mortes misteriosas, temos Albert Ayler, cujo corpo foi encontrado boiando no Rio Hudson em 1970, e Wardell Gray – seu cadáver foi encontrado no deserto de Las Vegas em 1955 com o pescoço quebrado. Há fortes indícios (jamais confirmados) de que ambos teriam sido assassinados. Entretanto, o assassinato mais terrível talvez tenha sido o de Jaki Byard. Ele foi morto dentro de sua própria casa, com um tiro na cabeça, no dia 11 de fevereiro de 1999, na cidade de Nova York. Ayler e Gray eram usuários pesados de diversos tipos de entorpecentes e é provável que as drogas tenham sido motivo determinante para ambas as mortes. Byard, ao contrário, era um afável professor, um homem que acreditava no poder redentor da educação, sobretudo por meio da música. Tinha 76 anos.

Músico estupendo e de rara versatilidade, John Arthur Byard Jr. firmou sua reputação como pianista, mas dominava com extrema perícia o trombone, o saxofone tenor, o vibrafone e a bateria. Nascido em 1922, com apenas 18 anos já dividia os palcos e estúdios com feras como Ray Nance, Sam Rivers e Earl Bostic. Nos anos 50, associou-se mais regularmente a Herb Pomeroy e Maynard Ferguson, obtendo alguma notoriedade no circuito jazzístico de Boston e despontando como um compositor extremamente promissor.

A partir de 1960, já em Nova York, Jaki desenvolve um prolífico trabalho ao lado do fenomenal Charles Mingus, obtendo excelente repercussão junto ao público e à crítica – é dele o piano que se ouve em obras essenciais como “Mingus Mingus Mingus Mingus Mingus” e “The Black Saint And The Sinner Lady”. Sem prejuízo de sua carreira solo, toca habitualmente com Roland Kirk, Eric Dolphy e Booker Ervin e desenvolve uma respeitada carreira acadêmica, chegando a dar aulas na prestigiosa Harvard University.

Em um dos discos mais extraordinários desse grande educador, instrumentista, compositor, arranjador e band leader (formou, na década de 70, uma big band denominada The Apollo Stompers), chamado simplesmente “Here’s Jaki” e lançado pela Prestige, podemos ter uma amostra de sua criatividade e do seu talento. O disco foi gravado em um único dia (14 de março de 1961), no célebre estúdio Englewood Cliffs, sob o comando do incensado Rudy Van Gelder. Compunham o trio outros músicos da mais fina estirpe: Roy Haynes na bateria e Ron Carter no baixo.

Quase todas as músicas são da lavra do próprio pianista e revelam, além do seu total domínio das mais diversas escolas do jazz, que as suas influências extrapolavam as fronteiras do Tio Sam. Com efeito, a primeira música, “Cinco Y Quatro” demonstra a intimidade de Jaki com ritmos latinos, em uma balada com forte tintura cubana, onde o destaque é o baixo infalível de Carter – outro músico bastante antenado com o som produzido ao sul do Equador. Na angulosa “Mellow Septet”, a influência das estruturas modais lançadas por Miles Davis em “Kind of Blue” é facilmente perceptível – há ecos de “So What” pontuando toda a canção.

Na mais convencional “Garnerin’ a Bit”, um blues estilizado, o trio dá um show de ritmo e harmonia, com Haynes exibindo um magistral domínio do seu instrumento e Byard emulando Fats Waller. Uma improvável e quase irreconhecível versão de “Giant Steps”, de Coltrane, sinaliza os caminhos do delicado bebop urdido pelas mãos ágeis de Byard – que mostra que também sabia tocar na velocidade da luz. Outro destaque é a swingante “D. D. L. J”, na qual o pianista esbanja técnica ao criar uma estrutura de harmonias sobrepostas, com um discretíssimo tempero free. Um álbum irretocável, pois.

Decorridos dez anos, o assassinato desse grande músico permanece cercado de mistério. A identidade do assassino e os seus motivos nunca foram descobertos. A obra de Byard – esta sim imortal – remanesce como o legado de um homem que dedicou toda a sua vida e o seu talento ao jazz.

terça-feira, 5 de maio de 2009

KENNY DORHAM: O HOMEM CERTO, NO LUGAR CERTO, NA HORA ERRADA


“Falling in love with love
Is falling for make-believe
Falling in love with love
Is playing the fool…”

Os versos de Lorenz Hart ecoam em minha cabeça, enquanto os acordes de “Falling in Love with Love” vão se derramando pelo ambiente. A música, uma das melhores compostas pelo parceiro Richard Rogers, é uma sutileza só. A banda, um verdadeiro time dos sonhos: Sonny Rollins no sax alto, Hank Jones no piano, Oscar Pettiford no baixo e Max Roach na bateria fazem a corte para a estrela do espetáculo, o trompetista Kenny Dorham. Em algumas faixas a harpista clássica Betty Glamman transborda lirismo e dá um charme todo especial às gravações – não é por acaso que a capa exibe uma reluzente harpa, posicionada bem ao lado do trompetista. O nome do disco é deveras apropriado: Jazz Contrasts.

McKinley Howard “Kenny” Dorham é um enigma ainda por ser decifrado. Talento superlativo como músico, compositor e arranjador, jamais teve o reconhecimento merecido – o adjetivo mais comumente associado à sua pessoa é “underrated” (subestimado). Em parte por ter sempre sido o sujeito que vinha substituir alguém em algum combo. Sucedeu Miles Davis no quinteto de Charlie Parker e Clifford Brown, após a morte deste, no quinteto de Max Roach. Todavia, ajudou a fundar os “Jazz Messengers”, com Art Blakey e Horace Silver, mas isso tampouco serviu para tirá-lo do ostracismo. Permaneceu a vida inteira eclipsado por Dizzy Gillespie, Fats Navarro, Miles Davis e Clifford Brown e nem o fato de ser o autor, entre outras músicas, de “Blue Bossa””, “Lotus Flower”, “Uma Mas” e “La Villa” granjeou-lhe maior notoriedade.

Talvez porque fosse um músico adiante do seu tempo – em 1955 já estava antenado com os ritmos caribenhos, tendo gravado o ótimo “Afro-Cuban”, ao lado do percussionista Carlos Potato Valdes. Talvez porque escapasse ao estereótipo do músico iletrado e bronco que habita um certo imaginário popular – culto, articulado e fluente não apenas em seu instrumento, mas também com as palavras, escreveu inúmeros artigos para a revista Down Beat.

Participou de gravações antológicas, sobretudo durante os anos 60, acompanhando Hank Mobley, Barry Harris, Tadd Dameron, Andrew Hill, Jackie McLean e Horace Silver. Exímio melodista, encarou com tranqüilidade a transição do bebop dos anos 40/50 para o hard-bop dos anos 50/60, tendo se tornado, ao lado de Donald Byrd, Fred Hubbard e Lee Morgan um dos pilares do estilo. Em sua discografia há, pelo menos, uma incontestável obra prima: o álbum “Round About Midnight at the Cafe Bohemia”, gravado para o selo Blue Note em 1956.

Além de todos esses predicados, o nosso herói ainda tocava piano e até cantava – e o fazia muito bem! Prova disso é o disco “Kenny Dorham Sings and Plays: This Is The Moment!”, gravado em 1958 para o selo Riverside.

A música brasileira também não era estranha a esse grande artista: além da forte influência exercida pela bossa nova, compôs “Sao Paulo” em homenagem à cidade. Seu temperamento avesso a hermetismos ajudou a lançar diversos novos talentos, como Tony Williams, Joe Henderson e Herbie Hancock. Todavia, por uma dessas ironias do destino, Dorham teve uma vida breve. Sequer chegou aos 50 anos, tendo falecido no início dos anos 70, em conseqüência de problemas renais.

Voltando ao disco “Jazz Contrasts”, o que se ouve, da primeira à última faixa, é uma constelação de astros do jazz no melhor de suas respectivas formas. Desde a abertura, com a hipnótica “Falling in Love with Love” até o encerramento, com a climática “La Villa”, o que se ouve é um bebop de primeiríssima linha. A harpa de Betty Glamman faz as vezes de uma verdadeira seção de cordas em “Larue” (linda composição de Clifford Brown), em “My Old Flame” e em “But Beautiful”, sem qualquer prejuízo ao swing da banda. Em “I’ll Remember April” um endiabrado Max Roach esmurra sem dó nem piedade os couros e pratos de sua pobre bateria, com uma velocidade estonteante, mostrando porque é um dos três maiores bateristas do jazz (você pode escolher os outros dois). Na mesma faixa, a destacar o incandescente diálogo entre o anfitrião e o convidado Sonny Rollins, cujo solo é antológico, além do belíssimo piano de Hank Jones.
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Sem deixar a peteca cair, “My Old Flame” serve de vitrine para que Dorham exiba toda sua técnica e seu elevado senso melódico, reelaborando de forma enternecedora a antiga balada de Sam Coslow e Arthur Johnson, composta em 1934. Outro ponto alto é a versão de “La Villa”, que já havia sido gravada no álbum “Afro-Cuban”, na qual, mais uma vez, Max Roach rouba a cena.
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Trata-se de um álbum indispensável a qualquer coleção de jazz com pretensões mais sérias, sendo que o disco, gravado entre 21 e 27 de maio de 1957, foi relançado em 2007 pela Riverside, através da série “Keepnews Collection”, com uma primorosa remasterização.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

ALLONS ENFANTS DE LA PATRIE OU A FRANÇA TAMBÉM SABE SWINGAR





Os franceses têm um caso de amor com o jazz desde sempre. Apesar do seu reconhecido (diria até caricatural) nacionalismo, os franceses receberam de braços abertos aquela música alegre e sensual que vinha do outro lado do Atlântico, no início dos anos 30. Não por acaso, o mais importante combo jazzístico não americano, o Quintette du Hot Club de France, surgiu na terra de Asterix. Ali pontuavam dois dos maiores nomes do jazz de todos os tempos: o guitarrista belga Django Reinhardt e o violinista francês Stéphane Grapelli.


Durante a II Guerra Mundial, o jazz foi, ao lado da Marselhesa, a trilha sonora da resistência francesa. Nos bailes quase clandestinos, as canções das grandes orquestras norte-americanas aqueciam os corações das pessoas e ajudavam os franceses a manter um pouco de auto-estima, ante a violenta ocupação nazista. Além disso, antes e depois da grande guerra, inúmeros jazzistas encontraram na França um lugar para viver e professar sua arte, como ocorreu com Bill Coleman, Sidney Bechet, Bud Powell, Kenny Clarke e muitos outros.


Da união entre alguns eminentes músicos americanos e franceses, nasceu o álbum “Afternoon in Paris”, uma pequena obra-prima, cuja audição é um verdadeiro deleite para os sentidos. Capitaneando a nau, o pianista John Lewis, americano, e o guitarrista Sacha Distel, francês, estabelecem um diálogo musical de rara beleza, nesse álbum gravado entre 4 e 7 de dezembro de 1956. Coadjuvando os anfitriões, estão o saxofonista franco-americano Barney Wilen (que gravou com luminares como Miles Davis e Art Blakey e, na época, contava com apenas 19 anos), os baixistas Pierre Michelot e Percy Heath, que atuam em três faixas cada, o mesmo sucedendo com os bateristas Kenny Clarke e Connie Key.


John Aaron Lewis dispensa apresentações. Educador, compositor, diretor musical e cabeça pensante por trás do Modern Jazz Quartet, é um dos pilares do jazz moderno, tendo participado ativamente da criação do cool jazz, ao lado de Miles Davis, Gerry Mulligan e Lennie Tristano. Esteve presente nos momentos iniciais do bebop tendo tocado com Charlie Parker no final dos anos 40 e passado algum tempo na orquestra de Dizzy Gillespie. Sua reputação cresceu após emprestar seu talento como músico e arranjador para a gravação do célebre “Birth of Cool”, um dos álbuns fundamentais da história do jazz. Na ourivesaria sonora de Lewis eram trabalhados os mais variados estilos, desde o bebop ortodoxo da linha Parker até o flerte com a música erudita da chamada “third stream” (uma curiosa versão das bachianas brasileiras foi gravada no disco “The Sheriff”, do MJQ). Tudo feito com muita sobriedade e elegância, pois apesar de ser um mestre em seu instrumento, Lewis não era dado a rompantes virtuosísticos como, por exemplo, um Erroll Garner.


Sacha Distel pertence a outra geração de músicos e trazia consigo uma outra concepção musical, transitando com bastante fluência entre a chanson francesa, o jazz e a música pop. Bonitão, talentoso e extremamente simpático, fez grande sucesso nos anos 50/60, inclusive como cantor. É o autor de “The Good Life”, imortalizada na voz de Tony Bennet. Tocou com grandes nomes do jazz, como Louis Armstrong e Dizzy Gillespie, apresentou um programa bastante popular na televisão francesa e, mais que tudo, teve um ardente caso de amor com a belíssima Brigitte Bardott.


A união de músicos de temperamentos tão díspares funcionou à perfeição. Exatamente por mostrar um Lewis muito menos contido que nas gravações com o MJQ, este “Afternoon in Paris” surpreende e encanta tanto. A sofisticação do pianista em nenhum momento é posta de lado, mas, talvez inspirado pela espontaneidade do jovem parceiro, o severo Jonh Lewis toca com a alegria e o despojamento de um iniciante. O disco abre com uma delicada versão de “I Cover the Waterfront”, com destaque para a guitarra melodiosa de Distel, cujo estilo econômico e fluido se assemelha ao de Jim Hall ou Jimmy Raney.


Na calorosa “Django”, percebe-se com clareza a diferença entre as concepções harmônicas de Lewis no MJQ e em gravações “avulsas”. Aqui, o pianista está mais relaxado, criando uma atmosfera de puro swing, para que o guitarrista francês possa brilhar nos solos, sem deixar de lado a pegada de blues. Outro destaque é a canção que dá título ao álbum, composta por Lewis, na qual o pianista exercita todo o seu domínio do idioma cool, com espaço para uma linha de baixo quase hipnótica, a cargo do francês Pierre Michelot. O ponto alto do disco é, sem dúvida, a versão arrebatadora de “Dear Old Stockholm”, extraída do folclore escandinavo e incorporada ao repertório jazzístico graças às gravações de Stan Getz e Miles Davis.


Aqui todas as loas vão para o jovem saxofonista Wilen, que esbanja classe e vigor em solos estonteantes e ajuda a desenvolver o clima harmônico sugerido pelo piano de Lewis, com seu som caudaloso e sem arestas. O lirismo que impõe a seu fraseado, e que serve de guia aos demais membros da banda, revela um músico maduro e de alta personalidade, não deixando o ouvinte perceber que se trata de um garoto de apenas 19 anos. A seção rítmica alinhava uma expressiva tintura de blues – é a mágica geografia da música, capaz de fazer desaguar no Lago Mälaren as sinuosas águas do Mississipi.


Esses predicados fazem de “Afternoon in Paris” um disco especial, que merece ser ouvido muitas e muitas vezes, não apenas por ser uma verdadeira declaração de amor a Paris, mas também por se revelar um libelo contra a intolerância e a xenofobia. Ali, brancos e negros, de países e culturas distintas, interagem fraternalmente, tecendo um documento vivo da capacidade do jazz de falar aos ouvidos de todos os povos do mundo.

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