Amigos do jazz + bossa

quinta-feira, 7 de maio de 2009

QUEM MATOU JAKI BYARD?


Tragédias pessoais e jazz sempre andaram de mãos dadas, desde as remotas origens do estilo, nas violentas ruas da New Orleans do início do século XX. Pense em qualquer tipo de drama pessoal e os músicos de jazz serão incansáveis protagonistas.
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Suicídio? Frank Rosolino acabou com a própria vida, pouco depois de haver atirado em seus dois filhos pequenos. Prostituição? A divina Lady Day assegurou o sustento, durante certo tempo de sua vida, valendo-se da mais antiga das profissões. Drogas? A farmacopéia do jazz é vasta e inclui desde o lírico Bill Evans ao malucaço de carteirinha Roy Eldridge, passando por Art Blakey, Charlie Parker, Dinah Washington, Miles Davis, Paul Chambers, Joe Pass, Anita O’Day, entre incontáveis outros e outras.

Prisões? Gene Ammons, Frank Morgan e Art Pepper passaram boa parte de suas vidas vendo o sol nascer quadrado. Doenças? O câncer arrebatou Coltrane no espelendor dos seus 40 anos, problemas renais levaram Kenny Dorham antes dos 50 anos e a tuberculose retirou do convívio terreno os prodigiosos Jimmy Blanton e Fats Navarro. Acidente automobilístico? Clifford Brown e Richie Powell morreram no mesmo acidente, em 1956, e, em 1961, foi a vez do maravilhoso Scott La Faro perder a vida.

A lista de tragédias continua. Alcoolismo? Hectolitros de bebida se encarregaram de abreviar as vidas e as carreiras de Sonny Clark, Hampton Hawes e Oscar Pettiford. Distúrbios mentais? Bud Powell e Phineas Newborn eram assíduos freqüentadores de hospitais psiquiátricos e Henry Grimes permaneceu na indigência entre 1968 e 2002, após haver sofrido um violento colapso que o fez abandonar a carreira e a família. Homicídio? Lee Morgan foi morto a tiros na saída da boate em que se apresentava, por uma ex-namorada, e também às portas de uma boate o baixista Jaco Pastorius foi espancado até a morte. Há o caso extremo de Chet Baker, que passou por quase todo tipo de tragédia – foi preso inúmeras vezes, usou e abusou de todo tipo de droga, perdeu quase todos os dentes após ser agredido brutalmente por traficantes – até a morte, que permanece um mistério: até hoje não se sabe se ele cometeu suicídio, se foi assassinado ou se caiu acidentalmente da janela de um modesto hotel de Amsterdã.

No quesito mortes misteriosas, temos Albert Ayler, cujo corpo foi encontrado boiando no Rio Hudson em 1970, e Wardell Gray – seu cadáver foi encontrado no deserto de Las Vegas em 1955 com o pescoço quebrado. Há fortes indícios (jamais confirmados) de que ambos teriam sido assassinados. Entretanto, o assassinato mais terrível talvez tenha sido o de Jaki Byard. Ele foi morto dentro de sua própria casa, com um tiro na cabeça, no dia 11 de fevereiro de 1999, na cidade de Nova York. Ayler e Gray eram usuários pesados de diversos tipos de entorpecentes e é provável que as drogas tenham sido motivo determinante para ambas as mortes. Byard, ao contrário, era um afável professor, um homem que acreditava no poder redentor da educação, sobretudo por meio da música. Tinha 76 anos.

Músico estupendo e de rara versatilidade, John Arthur Byard Jr. firmou sua reputação como pianista, mas dominava com extrema perícia o trombone, o saxofone tenor, o vibrafone e a bateria. Nascido em 1922, com apenas 18 anos já dividia os palcos e estúdios com feras como Ray Nance, Sam Rivers e Earl Bostic. Nos anos 50, associou-se mais regularmente a Herb Pomeroy e Maynard Ferguson, obtendo alguma notoriedade no circuito jazzístico de Boston e despontando como um compositor extremamente promissor.

A partir de 1960, já em Nova York, Jaki desenvolve um prolífico trabalho ao lado do fenomenal Charles Mingus, obtendo excelente repercussão junto ao público e à crítica – é dele o piano que se ouve em obras essenciais como “Mingus Mingus Mingus Mingus Mingus” e “The Black Saint And The Sinner Lady”. Sem prejuízo de sua carreira solo, toca habitualmente com Roland Kirk, Eric Dolphy e Booker Ervin e desenvolve uma respeitada carreira acadêmica, chegando a dar aulas na prestigiosa Harvard University.

Em um dos discos mais extraordinários desse grande educador, instrumentista, compositor, arranjador e band leader (formou, na década de 70, uma big band denominada The Apollo Stompers), chamado simplesmente “Here’s Jaki” e lançado pela Prestige, podemos ter uma amostra de sua criatividade e do seu talento. O disco foi gravado em um único dia (14 de março de 1961), no célebre estúdio Englewood Cliffs, sob o comando do incensado Rudy Van Gelder. Compunham o trio outros músicos da mais fina estirpe: Roy Haynes na bateria e Ron Carter no baixo.

Quase todas as músicas são da lavra do próprio pianista e revelam, além do seu total domínio das mais diversas escolas do jazz, que as suas influências extrapolavam as fronteiras do Tio Sam. Com efeito, a primeira música, “Cinco Y Quatro” demonstra a intimidade de Jaki com ritmos latinos, em uma balada com forte tintura cubana, onde o destaque é o baixo infalível de Carter – outro músico bastante antenado com o som produzido ao sul do Equador. Na angulosa “Mellow Septet”, a influência das estruturas modais lançadas por Miles Davis em “Kind of Blue” é facilmente perceptível – há ecos de “So What” pontuando toda a canção.

Na mais convencional “Garnerin’ a Bit”, um blues estilizado, o trio dá um show de ritmo e harmonia, com Haynes exibindo um magistral domínio do seu instrumento e Byard emulando Fats Waller. Uma improvável e quase irreconhecível versão de “Giant Steps”, de Coltrane, sinaliza os caminhos do delicado bebop urdido pelas mãos ágeis de Byard – que mostra que também sabia tocar na velocidade da luz. Outro destaque é a swingante “D. D. L. J”, na qual o pianista esbanja técnica ao criar uma estrutura de harmonias sobrepostas, com um discretíssimo tempero free. Um álbum irretocável, pois.

Decorridos dez anos, o assassinato desse grande músico permanece cercado de mistério. A identidade do assassino e os seus motivos nunca foram descobertos. A obra de Byard – esta sim imortal – remanesce como o legado de um homem que dedicou toda a sua vida e o seu talento ao jazz.

14 comentários:

Salsa disse...

Durante algum tempo, lá no meu quintal, eu escrevi algumas viagens (curtíssimas) sobre a morte de alguns jazzistas. Todas dão pano para manga.
A seleção do Jaki está ótima. Valeu.

Érico Cordeiro disse...

Obrigado, mestre das tessituras sonoras. Achei que você fosse gostar da resenha e da seleção musical, por isso "postei-o-os".
Acho que os anjos da guarda de muitos desses caras ficavam prestando atenção demais no som que eles faziam e se esqueciam de fazer o seu serviço direito, né?
Grande abraço.

John Lester disse...

Parabéns Érico. Texto certo, no lugar certo, na hora certa.

Grande abraço, JL.

João Bouères disse...

Houve um hiato na minha amizade com Érico, contribuindo para eu não acompanhar o seu desenvolvimento musical, apesar de todas as vezes que nos encontrávamos, o assunto vinha à baila. Lendo este blog, percebo a sua evolução e, com segurança, afirmo numa linguagem jazziztica: Érico tornou-se uma "legenda" no assunto.
Grande abraço.

Érico Cordeiro disse...

Caro João,
Obrigado pelas palavras gentis. Lembro que esse hiato se deveu muito mais às circunstâncias da minha vida cigana, mas apesar da distância física você é e sempre será um dileto amigo, com direito a camarote VIP nesse meu coração vagabundo.
Abraços

Érico Cordeiro disse...

Mr. Lester,
Sua presença é sempre bem-vinda. Valeu mesmo e, como disse em um comentário, espero que, quando crescer, o JAZ + BOSSA fique igualzinho ao nosso glorioso Jazzseen.
Abraço grande!

figbatera disse...

Muito bons o texto, a resenha do disco e as faixas apresentadas.
Eu não conhecia este músico.

Érico, com o seu conhecimento, a sua escrita fácil e sua sensibilidade, já podemos considerar o seu Jazz+Bossa um irmão gêmeo do ótimo Jazzseen.
A propósito, já o inclui na minha lista de blogs de música (o que, reconheço, pouco significa) além de já ter lido a opinião de vários "mestres" blogueiros e outros comentadores que não pouparam encômios a este seu recente trabalho. Parabéns!

Érico Cordeiro disse...

Prezado Figbatera,
Agradeço as generosas palavras. Criar e manter esse blog tem sido uma das atividades mais lúdicas e praazerosas a que me dediquei nos últimos tempos. A recompensa é poder compartilhar o amor pela música com pessoas bacanas como você e a turma do jazzigo/jazzseen.
Obrigado mesmo - e aquela foto no início do teu blog ficou muito bacana.
Forte abraço.

Celijon Ramos disse...

Dedos rápidos combinam com vida curta? Não importa. Fico pensando no tamanho e no significado da obra de cada desses incríveis músicos que citarte... tudo lindo, e tem-se a impressão que, mesmo a vida sendo curta, o talento desses fabulosos homens do jazz permitiu fixar paginas definitivas na música e na alma para seus ouvintes. Assim dito, às vezes, vale a pena viver a vida curta.

Érico Cordeiro disse...

Celi,
Não sei se o preço que esses caras pagaram valeu a pena, mas no intervalo de poucos anos sujeitos como Clifford Brown, Sonny Clarke, Wynton Kelly e outros deixaram um rastro de beleza tão intenso que é difícil não se emocionar com suas obras.
Fizeram ARTE, com todas as letras maiúsculas, enfim.
Abração!

José Domingos Raffaelli disse...

Caros correligionários,

Desculpem minha insistências, mas não posso furtar-me em relatar um encontro com Jaki Byard, em julho de 1982. Foi no lendário Village Vanguard, quando tocava a New York Band, do compositor e arranjador George Russell, o verdadeiro introdutor do jazz modal no jazz, e não Miles Davis, como pensa a grande maioria devido à repercussão e qualidade do CD "Kind of Blue", recentemente celebrado com as apresentações da So What Band, em São Paulo. Como admirador de Russell desde suas composições para a big band de Dizzy Gillespie nos anos 40, sempre fui fascinado por sua originalidade como criador da teoria "Conceito da Organização Tonal do Grau Modal Lydian", que ele introduziu no jazz. A orquestra, que conhecia de discos, ao vivo deixou-me uma impressão ainda mais marcante. Sua música já apontava para o Século 21, era sumamente original e criativa. Fiquei deslumbrado e no intervalo consegui o autógrafo do Russell, com quem conversei rapidamente, pois ele era muito asseadiado. Na banda só havia "cobras" e na platéia estavam, entre muitos outros, Bob Brookmeyer, Barry Galbraith, Art Farmer, Milt Hinton e Hal McKusick (que tocaram e gravaram com Russell nos anos 50).
Numa mesa próxima à minha estavam Jaki Byard, sua esposa Louise Romano e alguns amigos. Fui até sua mesa e o casal recebeu-me com muita simpatia; ao mencionar que sou descendente de italianos, Louise (filha de italianos) engrenou um papo no idioma dos nossos ancestrais, para surpresa e muitas gargalhadas de Jaki e os amigos deles. A certa altura, Jaki avistou um jovem amigo e chamou-o. Este, bastante simpático e sorridente, cumprimentou a todos. Jaki então me disse: "Vou apresentá-lo ao maior flautista do mundo. É Kent Eanes" Confesso que nunca ouvira falar dele. Kent aproximou-se e quase caí para trás quando ele, bastante sorridente, deu-me um aperto de mão e disse em português fluente: "Como vai meu chapa, eu sou de Jacarepaguá". Fiquei sem ação apenas rindo incrédulo do que ouvira. Para espanto absoluto de Jaki, Louise, Brookmeyer e os demais, Kent contou em português que viveu no Rio dos 8 anos 18 anos, onde fez os cursos primário secundário e científico, e aprendeu flauta com o imortal Copinha. Completamente atônito, eu apenas conseguia balbuciar algumas palavras. Ficamos juntos na mesa do Byard e Louise, e Kent me presenteou com seu LP (lançado em selo independente). Chegando no Rio, após ouvir várias vezes o LP, concordei com Jaki Byard que Kent Eanes era o maior flautista do mundo. Mas nunca entendi como ele não era conhecido. Voltando ao Rio, mantivemos correspondência, mas depois de uns dois ou três anos ele não me escreveu mais. Nunca soube o que aconteceu com ele e jamais li o nome dele em qualquer revista de jazz. Nem na internet obtive sucesso. Lamento que ele não tenho obtido sucesso na música, pois o que ele tocava era realmente extraordinário, ou, como dizem os músicos de jazz, "out of this world".
Esse episódio no Village Vanguard aconteceu dia 29 de julho de 1982. Para completar aquela noite, ao falar com Max Gordon, fundador e proprietário do Village Vanguard, peguei seu autógrafo e perguntei pelo livro dele sobre a história do famoso clube (livro editado no Brasil há alguns anos). Imediatamente ele chamou um dos garçãos e ordenou que apanhasse um exemplar na sua escrivaninha. Menos de um minuto depois Max Gordon, após perguntar meu nome, escreceu uma dedicatória no livro: "To my friend José, from Brazil, who seems to enjoy the club and the music, so I like him".
Desculpem novamente minha verborragia, mas não resisti em relatar aquela noite memorável.
Keep swinging,
Raffaelli

Érico Cordeiro disse...

Caro Mestre Raffaelli,
Sua presença abrilhanta esta casa e é o sinal mais evidente de que estou no caminho certo.
Quanto ao Byard, foi uma morte estúpida e uma grande perda para o jazz - lamentável sob qualquer ponto de vista.
Procurei pelo nome Kent Eanes na internet e só encontrei breves referências a ele em sites japoneses (um deles fala de um álbum de 1982, chamado Fresh Air).
Quanto ao livro do Max Gordon, Ao vivo no Village Vanguard, eu o tenho e freqüentemente recorro a ele - desnecessário dizer que o meu exemplar não é autografado (rs, rs, rs).
Que bom abrir o blog e constatar um valioso comentário da sua lavra ou ler sobre alguma história pitoresca testemunhada por você. Eu e todos os habitantes do JAZZ + BOSSA agradecemos a deferência.
Esteja sempre aqui conosco, dividindo o seu tempo, a sua paciência e a sua sabedoria!
Grande abraço.

José Domingos Raffaelli disse...

Érico,

Jaki Byard conhecia como poucos a história do piano-jazz. Em alguns solos passava do stride arcaico ao free jazz de um compasso para outro com a maior facilidade.

Passados esses dias em que você focalizou-o com tanta propriedade, lembrei do disco "Strings", no qual sua engenhosidade criativa foi evidenciada em sua plenitude no arranjo que concebeu para "Cats Cradle Conference Rag", título com alta dose de humor, possivelmente influenciado pelo humor sardônico de Charles Mingus, com quem tocou bastante tempo.

Duas explicações: 1) o título do disco "Strings" não se refere a seção de cordas com violinos, cellos, etc, mas por reunir músicos que tocam instrumentos de cordas: George Benson (guitarra), Ray Nance (violino), Ron Carter (cello) e Richard Davis (baixo).

2) A engenhosidade criativa de Byard em "Cats Cradle Conference Rag" reside no fato de que esse tema é exposto simultaneamente por todos os músicos do conjunto, cada qual tocando uma composição diferente dos demais.
Byard escolheu os seguintes temas para cada um dos seus companheiros:

Ray Nance toca "Jersey Bounce".
George Benson toca "Darktown Strutter's Ball".
Richard Davis toca "Intermission Riff".
Ron Carter toca "Desafinado".
Alan Dawson (acho que no vibrafone) toca "Ring Dem Bells".
Byard toca "Take the A Train misturado com "On the Alamo".

O motivo dele embaralhar essas composições manjadas deveu-se ao fato de TODAS TEREM A MESMA ESTRUTURA HARMÔNICA.

É ou não é engenhosidade criativa ?

Deve-se observar que Mingus fizera algo semelhante no seu álbum com big band, mas mesclando somente duas composições na mesma interpretação.

Desejando que essas explicações tenham sido claras,

Keep swinging,
Raffaelli

Érico Cordeiro disse...

Caro Mestre,
Só agora vi o seu comentário. Desculpe o atraso.
Não apenas foi claríssimo como me deixou com água na boca por esse disco, o qual não conheço. É de uma inventividade assustadora esse Byard!!!!
Consegui achar, seguindo as suas preciosas dicas, o álbum Live in Japan do Duke Jordan, em um sebo de Brasília. Pena que só achei o vol.1 - mas é maravilhoso.
Um afetuoso abraço!

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