Amigos do jazz + bossa

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

A QUARTA PESSOA DO SINGULAR



Oh! tecelão inepto de afazeres obscuros,

Vejo-te a aguar o jardim desertificado de tantas dores,

Observo-te a mourejar por sobre a hiléia amarfanhada,

Admiro a tua pertinácia improdutiva

As plantas moribundas desafiam a tua convicção

Zombam do teu empenho

Insistem em negar-te o viço que tanto anseias...

Passeando por entre as touceiras inertes,

Desafias a inclemência do sol,

A insensibilidade das chuvas,

A pachorra do vento...

Mas teu jardim é infecundo,

Nele brota apenas aquela concórdia intuitiva e resignada,

Desabrocham ali somente guirlandas de espinho,

Anti-flores soturnas e vãs

Me compadeço do teu labor insensato,

Mas não esmoreces e nem refreias o ímpeto,

Continuas a arrochar as cravelhas do alaúde,

Mesmo estando ele sem as cordas,

Continuas a polir os velhos coturnos,

Embora saibas que não há efemérides

Nem diplomas ou medalhas,

Nem apertos de mão,

Comove-me a tua hermenêutica singela,

Apraz-me a tua dignidade burlesca,

Seduz-me o teu discurso calado e sem verbo

Porque no fundo,

Sou como tu e vivo da mesmíssima maneira

Rego um jardim sem flores,

Afino um instrumento que não produz som algum,

Lubrifico as armas para o combate que jamais travarei,

Executo o mesmo ofício de desesperança

Percorro a mesma jornada fragmentária

E o teu caminhar por entre as vastidões inanimadas

Repercute nos passos que são meus

Oh! agricultor da fome,

Oh! menestrel do silêncio,

És a quietude impávida da tarde lustrosa

És o meu reflexo convulsivo,

Pátina esmaecida cujo tônus escorre ainda

Por entre os desvãos imaginários do espelho que me fita.


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Frank Anthony Peter Vincent Monterose Jr. ou, simplesmente, J. R. Monterose, nasceu em Detroit, no dia 19 de janeiro de 1927, mas foi criado em Utica, estado de Nova Iorque, onde tomou as primeira lições musicais aos treze anos. Saxofonista tenor que também utilizava regularmente o soprano, suas primeiras influências foram Coleman Hawkins, Chu Berry e Tex Beneke. Profissionalizou-se no final da década de 40, tocando em diversas orquestras de baile. Uma das vozes mais originais do hard bop, é pouco conhecido do grande público mas extremamente respeitado por seus pares, em virtude do seu sopro ao mesmo vigoroso e altamente melódico.

Juntou-se por algum tempo à orquestra de Buddy Rich entre 1951 e 1952. Posteriormente, integrou as orquestras de Claude Tornhill, Teddy Charles e Eddie Bert. Em 1956 juntou-se a Charles Mingus, com quem gravaria o celebrado “Pithecanthropus Erectus”, e, em seguida, tocou com os Jazz Prophets de Kenny Dorham, tendo participado do fabuloso “Round About Midnight At Cafe Bohemia”. Morou na Europa entre as décadas de 70 e 80 e permaneceu em atividade até a morte, em de 1993. Embora não tenha construído uma discografia vasta, seus álbuns primam pela alta qualidade e seu fraseado remete ao Sonny Rollins do início da década de 50, com quem sempre foi bastante comparado.

Lançou, em 1956, o fabuloso “J. R. Monterose”, pela Blue Note. Acompanham o saxofonista Ira Sullivan (t), Horace Silver (p), Wilbur Ware (b) e Philly Joe Jones (bt). Músico de elaboradas concepções harmônicas, Monterose gravou, em 1956, um dos melhores álbuns de hard bop de todos os tempos. Secundado por um dos pais do estilo, o pianista Horace Silver, e por um dos mais aplicados discípulos de Fats Navarro, Ira Sullivan, além de uma sessão rítmica exuberante, o saxofonista encontra um terreno bastante fértil para expor as suas idéias ousadas, como na fragmentária “Wee Jay”, de sua autoria. O incandescente diálogo entre o líder e Sullivan em “Bobbie Pin” é outro momento memorável. Em “The Third”, de Donald Byrd, Jones executa um extraordinário trabalho com os pratos, enquanto Silver comete um dos solos mais brilhantes do álbum. Indispensável.

domingo, 25 de outubro de 2009

PARABÉNS, LITTLE BIRD!


James Edward “Jimmy” Heath completa hoje (25/10) 83 anos de absoluta devoção à música. Esse saxofonista, compositor, band leader e arranjador, nascido em 1926, em Filadélfia, pertence a uma das linhagens mais nobres do jazz: é o irmão do contrabaixista Percy e do baterista Albert “Tootie” Heath.

No rádio de casa, em plena era do swing, dois músicos chamavam a atenção do pequeno Heath: Johnny Hodges e Benny Carter. Ainda na infância e em virtude das dificuldades decorrentes da Grande Depressão, Jimmy e o irmão mais velho, Percy, foram morar com a avó, na cidade de Wilmington, na Carolina do Norte. Ali, o futuro saxofonista tomou as suas primeiras lições musicais, inicialmente dedicando-se ao sax alto. De volta à Filadélfia, Jimmy não teve a menor dificuldade de se integrar à prodigiosa cena musical.

Durante a década de 40, a cidade natal de Heath era um celeiro de grandes músicos: John Coltrane, Benny Golson, Specs Wright, Cal Massey, Johnny Coles, Ray Bryant e Nelson Boyd eram figurinhas fáceis nos clubes e boates da cidade e tocavam sempre juntos. Em 1945, ouviu pela primeira vez o som revolucionário que Charlie Parker, Dizzy Gillespie,Bud Powell e outros gênios estavam produzindo em Nova Iorque e adotou o bebop como sua forma preferida de expressão musical.

Não demorou muito para que Heath começasse a tocar ao lado dos seus novos ídolos. Em 1948 ele foi convidado a integrar a Howard McGhee’s All-Stars, ao lado de quem faria a sua primeira viagem internacional, a fim de participar do First International Jazz Festival, em Paris. No ano seguinte, Heath se uniu à orquestra de Dizzy Gilllespie, com quem tocaria por cerca de dois anos. Por sua habilidade, Jimmy logo recebeu o apelido de “Little Bird”.

Em 1951, Heath resolveu trocar o sax alto pelo tenor e começou a desenvolver uma carreira das mais interessantes como compositor e arranjador. Além das gravações, acompanhando gente como J. J. Johnson, Kenny Dorham, Miles Davis, Gil Evans, Clifford Brown, Elmo Hope e Blue Mitchell, o saxofonista também fez alguns arranjos para o próprio Mitchell e também para Art Blakey e Chet Baker.

Em 1956, Chet Baker e Art Pepper eram astros de primeira grandeza no cenário jazzístico. Naquele ano, os dois uniram as forças para gravar, para a Pacific, um disco inteiramente dedicado às composições de Heath, denominado “The Playboys”. Nos anos 90 esse disco foi relançado em cd, recebendo o título de “Picture of Heath” e incluía talvez a composição mais conhecida de Heath: “CTA”.

Mas a vida não era apenas sucessos e flores para o talentoso Jimmy. As dores de amores – um relacionamento terminado deforma nada satisfatória – e uma profunda depressão abriram o caminho para as experiências com a insidiosa heroína. Em janeiro de 1955 Heath foi preso por porte de heroína. Condenado a cumprir pena no Presídio de Lewisburg, ele passou quatro longos anos na penitenciária.

Quando saiu em liberdade condicional, em 1959, Heath integrou a banda de Miles Davis, entrando no lugar que havia pertencido ao amigo John Coltrane, dispensado algum tempo antes, exatamente por causa de seus problemas com as drogas. Quando Heath se preparava para excursionar pela Califórnia com Davis, recebeu ordens do oficial justiça responsável por acompanhar o seu caso para permanecer dentro de um raio de 90 milhas de Filadélfia, sob pena de caracterizar quebra da condicional.

Heath e Davis tentaram de todas as formas conseguir uma autorização para a viagem, mas foi inútil. O saxofonista teve que deixar o grupo e Coltrane foi novamente convocado para o antigo posto. Pouco tempo depois, Miles entraria no estúdio para gravar, ao lado de Trane e de alguns dos músicos mais fabulosos da história do jazz, o extraordinário “Kind Of Blue”.

Os anos 60 foram extremamente produtivos. Muitos discos como líder e gravações ao lado de Nat Adderley, Blue Mitchell, Freddie Hubbard, Donald Byrd, Oliver Nelson, Sam Jones, Milt Jackson, Julian Priester, Art Farmer, Cal Tjader e outros. Uma associação bastante feliz com o selo Riverside, de Orrin Keepnews, permitiu a Heath que lançasse algumas obras-primas, boa parte delas de inegável vocação hard bopper.

Uma delas é o disco “The Quota”, gravado nos dias 14 e 20 de abril de 1961, no Plaza Sound Studio, em Nova Iorque, sob a supervisão do engenheiro Ray Fowler. Reunido aos irmãos Percy (baixo) e Albert (bateria), Jimmy ainda pôde contar com a volúpia de Freddie Hubbard (trompete), o refinamento de Julius Watkins (french horn) e a exuberância de Cedar Walton (piano).

Os arranjos do disco são todos de Jimmy, autor de quatro das sete faixas. O sexteto possui uma sonoridade robusta, atuando em alguns momentos como uma verdadeira big band, especialmente quando os metais soam em uníssono. A faixa de abertura, “The Quota”, demonstra bem essa capacidade do saxofonista/arranjador. Grandes momentos de Hubbard, Percy e Walton, em uma vigorosa composição, bastante calcada no hard bop.

“Lowland Lullaby” é outro tema do líder, que começa de maneira suave, como se fosse uma balada, e em seguida pega fogo. Watkins e Hubbard travam um excitante duelo ao longo da faixa, merecendo destaque os solos de Jimmy e de Albert, ambos soberbos. Em um momento mais relaxado, “Thinking Of You”, uma antiga balada da década de 20, soa como uma sessão West Coast – apenas a incendiária presença de Hubbard, com um solo devastador contrasta com a atmosfera cool que o sexteto imprime à gravação.

Milt Jackson, parceiro constante nos anos 60e 70, comparece com “Bells And Horns”. Jimmy está no auge da criatividade, com solos fluentes e altamente técnicos. Percy e Albert, com a cumplicidade natural de dois irmãos, conduzem o ritmo de forma impecável, sobrando bastante espaço para as improvisações marcantes de Hubbard e Walton. O trabalho orquestral em “When Sunny Gets Blue” é antológico. Os metais se sobrepõem e interagem, criando efeitos belíssimos, parecidos com os das mais azeitadas big bands, especialmente a do maestro soberano Duke Ellington. A atuação de Jimmy, aliás, lembra os melhores momentos do velho ídolo Johnny Hodges.

“Down Shift” e “Funny Time”, ambas de Jimmy, complementam o set – a primeira é um bebop de primeira e a segunda começa como um blues e depois acelera, se transformando em um hard bop efeverscente e altamente dinâmico. A potência sonora de Hubbard, espetacular, é o ponto mais alto em ambas. Não é à toa que os guias de jazz costumam atribuir tantas estrelas a esse álbum esplendoroso, considerado por alguns como o ponto alto da carreira discográfica de Jimmy Heath.

Dos anos 70 em diante, Heath tem se mantido em plena atividade. Adicionou a flauta e o sax soprano ao rol de instrumentos que domina, excursionou com grandes nomes como Sonny Stitt, Milt Jackson, J. J. Johnson, Pat Metheny, Dusko Goykovich, Slide Hampton e Clark Terry e continuou a fazer arranjos para diversos músicos, como Sonny Rollins e Antonio Hart. Em 1975, ao lado de Albert e Percy, criou o grupo “The Heath Brothers”, que permaneceu ativo até a morte do baixista, em 2005, gravando diversos – e elogiados – álbuns.

Os Heath Brothers lançaram um álbum recentemente, chamado “Endurance” (2009), com David Wong assumindo o baixo e com a participação especial do brasileiro Cláudio Roditi. Jimmy também construiu uma sólida carreira como educador musical (foi professor da Aaron Copland School of Music e de outras respeitadas instituições de Nova Iorque), sendo que muitos dos seus ex-alunos atualmente brilham no cenário jazzístico, como o saxofonista Antonio Hart e o trompetista Darren Barret.

A tradição musical da família Heath permanece, pois seu filho James Mtume é percussionista e compositor, mais ligado ao R&B. Jimmy também compôs peças sinfônicas e recebeu o título de Jazz Master em 2004, dado pela National Endowment For The Art. Uma vida longa e prolífica, que pode ser sintetizada em uma frase de Dizzy Gillespie: “Tudo o que posso dizer é: se você conhece Jimmy Heath, você conhece o bebop”. Parabéns, Mestre!


quinta-feira, 22 de outubro de 2009

O ENCANTADO: UMA HISTÓRIA DE SEXO, DROGAS E... JAZZ?


“Nature Boy” é a canção mais conhecida do enigmático Eden Ahbez, um compositor nascido no início do século XX, cujo comportamento naturalista e afeito à vida bucólica serviu de inspiração tanto à geração beatnik dos anos 40/50 quanto aos hippies que chacoalharam o american way of life nos anos 60. O sujeito era tão maluco que morava nas colinas de Los Angeles, bem embaixo da segunda letra L do gigantesco letreiro HOLLYWOOD fixado naquele local e se alimentava de frutos silvestres, raízes e nozes. Os cabelos e barba compridos ajudavam a compor a sua fascinante persona.

Gravada por Nat King Cole em 1947, a música tomou de assalto as paradas do mundo inteiro e converteu-se em um verdadeiro standard. Sua letra falava de um estranho rapaz, que acreditava que a melhor coisa da vida era amar e retribuir o amor. Inúmeros foram os artistas que a gravaram posteriormente, incluindo diversos músicos de jazz. Era, segundo consta, a canção de que Vinícius de Moraes mais gostava. Fiel à idéia original de Ahbez, Caetano fez uma lindíssima versão em português, que recebeu o nome de “O Encantado” e foi gravada de forma definitiva por Ney Matogrosso. Diz a letra:

“Era um rapaz

Estranho e encantador rapaz

Ouvi que andara a viajar, viajar

Toda a terra e o mar

Menino só e tímido

Mas sábio demais...”

Essa música sempre me fascinou, não apenas por causa da melodia inebriante, mas também por conta de sua letra, digamos, existencial. Quando comecei a me interessar mais seriamente pelo jazz, descobri um músico cujo estilo de vida se parece demasiado com o do personagem da canção de Ahbez: o charmoso Art Pepper. Talvez por ver em si mesmo algo do rapaz de que fala a canção, Pepper tenha gravado a sua própria versão de “Nature Boy”, no disco “Straight Life”, de 1979.

A diferença entre o “Nature Boy” original e Pepper é que o primeiro não parecia ter demônios em seu interior. Já o segundo parecia comportar dentro de si uma verdadeira legião, que o encaminhou para uma vida de autodestruição, tragédia, agonia e dor. O belo rapaz que estampa, com seu olhar circunspecto, as capas dos muitos álbuns gravados nos anos 50 foi uma das personalidades mais conturbadas e talentosas do jazz e, da mesma forma que o amigo Chet Baker – com quem gravaria o excelente “The Route”, de 1956 – Pepper teve sua vida tragada pelo redemoinho das drogas. Felizmente, e ao contrário de Baker, soube acordar do pesadelo e reconstruir sua vida e sua carreira.

Nascido no dia primeiro de setembro de 1925, em Gardena, Califórnia, Art se mudou com a família para Los Angeles, no início dos anos 30. Aos nove anos, devido à influência de um tio trompetista, desejou aprender o instrumento. Por conta de um acidente que lhe ceifou alguns dentes, o decepcionado Pepper começou a tomar as primeiras lições no clarinete. Aos 12 anos recebeu do pai um saxofone alto de presente e a dedicação ao novo instrumento foi total. Com apenas 15 anos já freqüentava os clubes de Los Angeles, assistindo ao vivo grandes músicos como Dexter Gordon, Charles Mingus e Zoot Sims.

Aos 17 anos, sua primeira experiência profissional: foi contratado para tocar na big band de Gus Arnheim. Deixou o emprego apenas dois meses depois, desencantado com a abordagem extremamente comercial daquela orquestra. Seguiram-se breves passagens pelas orquestras de Lee Young, Benny Carter e Stan Kenton.

Passou dois anos no serviço militar (de 1944 a 1946) e, quando retornou à vida civil, reuniu-se novamente à orquestra de Kenton, com quem permaneceria até 1952. Nesse mesmo ano, ficou em segundo lugar na votação de melhor saxofonista alto da revista Down Beat – perdeu para ninguém menos que Charlie Parker, a quem, diga-se de passagem, jamais foi acusado de tentar imitar.

A partir daí construiu uma carreira solo das mais interessantes, alternando momentos sublimes, sob o aspecto profissional, com verdadeiras descidas ao inferno, do ponto de vista pessoal. Ao mesmo tempo em que compartilhava palcos e estúdios com figuras do porte de Conte Candoli, Curtis Counce, Jack Sheldon, Gerry Mulligan, Pete Jolly, Shorty Rogers, Shelly Manne, Mel Lewis, Paul Chambers, Jimmy Cobb, Red Garland e outros, afundava, inexoravelmente, no pântano das drogas.

Embora fosse casado, Pepper fazia um enorme sucesso com as mulheres. O estilo “rebel without a cause” popularizado por James Dean e o estilo cool davam um charme especial à sua finíssima estampa e ele viveu todos os excessos possíveis e imagináveis – sexo, drogas e muito, muito jazz. Mas a vida dissoluta cobraria do músico um elevado preço. Esteve preso entre 1953 e 1956, em virtude do envolvimento com heroína, cumprindo pena na Prisão Federal de Lexington, no Kentucky.

De acordo com o Mestre José Domingos Raffaelli, a orquestra da prisão era um luxo só. Sob os auspícios do diretor do presídio, fã de jazz, Tadd Dameron, que também cumpria pena na mesma instituição, organizou a mencionada orquestra com outros detentos, e ali atuaram os trompetistas Dupree Bolton, Red Rodney, Idriss Sulieman, Bud Brisbois, Oliver Beener e Tony Fruscella, os trombonistas Frank Rehak e Benny Powell, os saxofonistas Art Pepper, Frank Morgan, Walter Benton e Cecil Payne, o pianista Arnold Ross, o baixista Henry Grimes e o baterista Dick Scott.

Após a libertação, gravou alguns dos seus melhores álbuns, como “Modern Jazz Classics”, “Gettin’ Together” e “Art Peppper Meets The Rhythm Section”, todos pela Contemporary. O último é um clássico, sob todos os aspectos. A começar porque a sessão rítmica mencionada no título era a mais badalada da época: Red Garland no piano, Paul Chambers no contrabaixo e Philly Joe Jones na bateria.

As gravações se iniciaram sob um clima tenso. Art não sabia que iria tocar com o mítico trio (que estava em Los Angeles acompanhando o então chefe Miles Davis) até a manhã da gravação – 19 de janeiro de 1957. Alguns dias antes, o produtor Lester Koenig havia conseguido uma brecha na apertada agenda dos músicos e imaginava que o disco seria um marco na carreira de Pepper. Acertou em cheio, mas esqueceu de combinar com o pasmado saxofonista.

Além disso, Art estava vivendo uma das piores fases na sua vida pessoal, por causa da heroína, e não tocava há algumas semanas. Nada disso foi um problema de fato. Ao empunhar o reluzente saxofone, que, reza a lenda, estava precisando de alguns reparos, o vacilante Art Pepper que havia chegado há pouco no estúdio da Contemporary se transformou no músico seguro, lúcido, criativo e tecnicamente perfeito que sempre foi.

Cole Porter tem a honra de ver a sua bela “You’d So Nice To Come Home To” receber uma versão sobranceira. Philly Joe arrasa e o saxofonista, mostrando que não se intimidaria com a responsabilidade, comete solos brilhantes. O venerável Red Garland, fazendo jus à proverbial elegância, compôs o ótimo “Red Pepper Blues”, em homenagem ao líder. A destacar, além do piano classudo de Mr. Garland, o fabuloso solo de Chambers, fazendo um excelente uso do arco.

Dois standards – “Imagination” e “Star Eyes” – funcionam como a vitrine ideal do fabuloso senso melódico e do acentuado lirismo de Pepper e, em ambas, a coesão e o entrosamento dos acompanhantes se evidenciam – especialmente na segunda, que recebe um andamento mais rápido que o usual. “Waltz Me Blues” é uma belíssima parceria entre Pepper e Chambers. Trata-se de uma valsa, decerto, mas temperada com doses anabolizadas de swing, com o saxofonista soando de forma bastante parecida com o também originalíssimo Paul Desmond.

O bebop “Straight Life” é, talvez, a mais conhecida composição de Pepper. Com seu andamento ultra-rápido e suas desconcertantes harmonias, ela permite ao endiabrado quarteto uma exibição de gala de suas respectivas habilidades. “Jazz Me Blues” é uma antiga composição de Tom Delaney, encharcada da atmosfera de New Orleans (havia sido gravada, entre outros, por Bix Beiderbecke). Pepper, que usa o sax alto como se fosse uma clarineta, e Garland reconstroem a clássica melodia, dando-lhe uma roupagem contemporânea, mas sem perder o charme do dixieland, ao tempo em que Philly e Chambers dialogam com extrema maestria o tempo inteiro.

“Tin Tin Deo”, clássico do latin jazz de autoria de Chano Pozo, ganha uma versão vibrante, colorida, em grande parte por causa do excepcional trabalho percussivo de Philly. Mas é necessário salientar que as intervenções do líder e do assombroso Chambers são nada menos que antológicas. Fecha o álbum uma arrebatadora interpretação de “Birks Works”, de Dizzy Gillespie, na qual Pepper consegue elaborar alguns solos inacreditáveis.

Um encontro primoroso de quatro dos maiores nomes do jazz em todos os tempos e que mostra que as fronteiras entre a Costa Oeste e a Costa Leste eram, de fato, bastante tênues. Com efeito, quando os grandes músicos dessas escolas atuavam juntos, os limites geográficos simplesmente deixavam de existir. Nenhuma boa discoteca de jazz está completa sem esse disco magistral.

Em 1961, outra prisão e pelo mesmo motivo. Desta vez, a pena foi cumprida no célebre presídio de San Quentin. Entre entradas e saídas da prisão, Pepper esteve encarcerado por mais da metade dessa verdadeira década perdida. Voltou à ativa em 1966, logo após o término da pena, atuando como free-lancer. Por influência de John Coltrane, a quem admirava intensamente, Pepper chegou a trocar o sax alto pelo tenor, mas em 1968, atendendo a um convite de Buddy Rich, voltou ao sax alto.

Em 1969, com a saúde em pandarecos após passar por duas cirurgias, devido a uma lesão no baço, Pepper resolveu pôr fim à sua longa associação com os entorpecentes. Internou-se voluntariamente no conhecido instituto de reabilitação Synanon em 1969 e só saiu dali em 1972. Estava curado do vício em heroína (ainda que fosse, até o fim da vida, um usuário habitual de cocaína) e mais do que disposto a recuperar o tempo perdido.

Voltou a gravar excelentes discos, especialmente para selos como Fantasy, Galaxy e Contemporary. Atuou com músicos do primeiríssimo time, como Hampton Hawes, Billy Higgins, Charlie Haden, George Mraz, Elvin Jones, Buddy Collette, Zoot Sims, Barney Kessel, Ray Brown e George Cables, que além de pianista mais freqüente a acompanhá-lo, tornou-se um grande amigo pessoal. Fez inúmeras turnês e apresentações pelo mundo e ganhou diversos prêmios.

A receptividade do mundo do jazz foi intensa, especialmente no Japão, e presença da terceira mulher, Laurie, foi fundamental para o retorno triunfante. Art e Laurie escreveram a quatro mãos a biografia do saxofonista, onde ele relata, sem qualquer tipo de autocomiseração, todas as suas desventuras no submundo das drogas e das prisões, incluindo relatos bastante chocantes de sua degradação física e psíquica.

Ele morreu no dia 15 de junho de 1982, em conseqüência de um derrame. Gozava então de um prestígio e de uma respeitabilidade à altura da lenda viva que era – não por acaso esse foi o título do primeiro disco gravado após a recuperação do vício, em 1975. Ultrapassadas todas as tormentas, o “Nature Boy” acabou por concretizar, ainda em vida, o ideal pregado na belíssima letra de Ahbez e nos deu, sob a forma de música, o amor de que fala a canção:

“Eis que uma vez,

Num dia mágico, o encontrei

E ao conversarmos lhe falei sobre os reis

Sobre as leis e a dor

E ele ensinou

Nada é maior

Que dar amor e receber de volta amor.”

domingo, 18 de outubro de 2009

O VIBRAFONISTA QUE PERDEU AS GRAÇAS DO JAZZ


O garotinho esperto e atento tinha apenas cinco anos quando foi assistir, juntamente com os pais, a uma apresentação de Lionel Hampton. Terminado o concerto, o vibrafonista, que à época comandava uma das mais festejadas orquestras do jazz, presenteou o pequeno com um par de mallets (“baqueta em cuja extremidade há uma forração em tecido, normalmente feltro, gerando um som assurdinado à percussão da bateria e também usado na percussão do vibrafone, xilofone e tímpano”, conforme ensina o mestre Mario Jorge Jacques – in: Glossário do Jazz. Ed. Biblioteca 24x7, São Paulo, p. 310).

O nome do garoto era Roy Ayers e alguns poucos anos depois ele próprio se tornaria um dos mais importantes vibrafonistas da Costa Oeste. Esse músico nascido em Los Angeles no dia 10 de setembro de 1940, tem uma história de vida curiosa: nasceu em uma família altamente musical (a mãe era professora de piano e o pai era trombonista) e embora o presente de Hampton tenha, de alguma forma, definido a sua trajetória musical, somente aos 17 anos Ayers começou o aprendizado do vibrafone.

Antes disso, aprendera piano com a mãe e continuara a educação formal na Thomas Jefferson High School (onde estudaram, entre outros, Dexter Gordon, Art Farmer e Ed Thigpen). Também tocava guitarra, flauta, trompete e bateria. Outra curiosidade é que a suas maiores influências musicais, no vibrafone, são o estiloso Milt Jackson e o versátil Bobby Hutcherson, de quem foi aluno nos anos 60.

Não demorou muito para que o talentoso garoto, criado na área de South Central, reduto da música negra de Los Angeles, se estabelecesse como um dos mais completos e talentosos vibrafonistas da costa oeste. Profundo conhecedor do idioma jazzístico e da música negra em geral, o jovem Ayers, durante a década de 60, tocou com Teddy Edwards, Curtis Amy, Chico Hamilton, Jack Wilson, Hampton Hawes, Phineas Newborn e Leroy Vinnegar.

Entre 1965 e 1966, Ayers integrou a orquestra de Gerald Wilson e entre 1966 e 1970, graças a uma indicação do baixista Reggie Workman, foi convidado a integrar o grupo do flautista Herbbie Mann. Com este, Roy gravou diversos discos e excursionou, virtualmente, pelo mundo inteiro. Além disso, o vibrafonista mudou-se para Nova Iorque, fato que teve grande impacto sobre a sua carreira e sobre a sua forma de encarar a música.

Três anos antes de se reunir a Mann, Ayers gravou talvez o seu melhor álbum de jazz, chamado simplesmente de “West Coast Vibes” (United Artists). Gravado durante o mês de julho de 1963 e produzido pelo crítico Leonard Feather, o álbum foi o primeiro de Ayers como líder e contou com as presenças de Jack Wilson (piano), Bill Plumber ou Vic Gaskin (baixo) e Tony Bazley ou Kenny Dennis (bateria), além da participação de Curtis Amy (sax tenor e soprano) em algumas faixas.

Trata-se de um disco soberbo, com um líder capaz de transitar com igual desenvoltura por todas as correntes do jazz (bebop, hard bop, West Coast, soul jazz e até avant-garde), sem esquecer a influência do blues, do R&B e de outras manifestações da música negra norte-americana. Esse intimidade transparece logo na faixa de abertura, “Sound And Sense”, uma composição do próprio Ayers, com um pé fincado no blues e o outro na soul music, com direito a solos estonteantes de Curtis Amy, que participa apenas de cinco faixas. Amy, diga-se de passagem, é um dos grandes responsáveis pela sonoridade incomum do álbum – seu sopro é viril e agressivo nas faixas mais funky e extremamente melodioso nos temas mais relaxados.

Esse saxofonista texano é uma espécie de unsung hero do jazz, diretor musical da banda de Ray Charles por muitos anos e capaz de tocar com jazzistas de escol como Onzy Matthews, Gerald Wilson, Frank Strazzeri, Bobby Hutcherson, Victor Feldman e Kenny Barron, ao tempo em que emprestava o seu talento e sua versatilidade para astros da música pop como The Doors, Marvin Gaye, Carole King e Art Garfunkel.

Grandes momentos também nas releituras tipicamente west coaster dos standards “Days Of Wine And Roses”, de Henry Mancini e Johnny Mercer, e “It Could Happen To You”, de Johnny Burke e Jimmy Van Heusen. Em ambas, destacam-se a fluidez do vibrafone de Ayers, pagando tributo ao mestre Milt Jackson, e o piano swingante e inventivo de Wilson, habitualmente um pianista reservado e econômico (daí porque é reconhecido como um dos mais completos acompanhantes da história do jazz).

Em “Reggie Of Chester”, de Benny Golson, e “Donna Lee”, de Charlie Parker, quem dá o tom é o bom e velho bebop. Na primeira, Amy imprime um colorido todo especial às harmonias dardejantes concebidas por Golson, produzindo um solo extraordinário. Na segunda, a presença iluminada de Bags e Powell conduz as atuações de Ayers e Wilson, cada um mais audacioso e cheio de idéias que o outro.

“Ricardo's Dilemma”, também composta por Ayers, é outro momento sublime – seu andamento é tipicamente uma valsa, mas com elementos de blues, lembrando os melhores momentos da third stream feita por craques como Modern Jazz Quartet e Dave Brubeck. O elegante sax soprano de Amy, aliado ao solo devastador de Bill Plumber, são dois pontos altos desse tema, mas é o solo etéreo e altamente complexo de Wilson quem merece as maiores loas.

O produtor Leonard Feather contribui com a balada “Romeo” e Wilson, exercitando seu lado composicional, presenteia Ayers com a funky “Out Of Sight”. A abordagem extremamente moderna desta última, sobretudo por conta das intervenções de Amy, lembra as intrincadas viagens sonoras que Coltrane e o seu quarteto estavam fazendo á época. Um tema arrojado e cheio de alternâncias harmônicas, no qual Ayers pode exibir toda a sua habilidade e capacidade de improvisação, com grandes momentos também do suporte rítmico proposto por Bazley e Plumber.

Mais um standard, “Young And Foolish”, onde sobressai o vibrafone delicado de Ayers, e uma releitura deliciosa de “Well You Needn't”, de Thelonious Monk encerram o set do disco original. Duas faixas bônus (“Now's The Time” e “Perhaps/Cool Blues”, ambas de Charlie Parker e extraídas do álbum “Vi Redd's Bird Call”, de 1962), complementam o cd. Em ambas, Roy Ayers (vibrafone), Vi Redd (sax alto e vocais), Carmell Jones (trompete), Russ Freeman (piano), Leroy Vinnegar (baixo) e Richie Goldberg (bateria) compõem o time.

Em 1970, já estabelecido em Nova Iorque, Ayers se lançou em uma bem sucedida carreira solo, abandonando o jazz tradicional em prol de uma linguagem calcada no fusion, na soul music, no funk e no R&B. Fundou a banda Ubiquity, por onde passaram nomes como Ron Carter, Sonny Fortune, Dee Dee Bridgewater, Billy Cobham, Omar Hakim e Alphonse Mouzon. Compôs hits que alcançaram o topo das paradas de R&B, como “You Send Me”, “Everybody Loves the Sunshine” e “Running Away”.

Ainda nos anos 70, Ayers compôs trilhas para o cinema, como a do filme “Coffy”, clássico da chamada blaxploitation, estrelado por Pam Grier. Em 1979, excursionou com o multiinstrumentista Nigeriano Fela Kuti (com quem gravaria o disco “Music Of Many Colors” no ano seguinte) e em 1981 lançou “Africa, Center Of The World”, álbum profundamente influenciado pelas experiências vividas no continente africano.

Chamado de “Padrinho do Acid Jazz”, suas composições foram sampleadas por diversos nomes dessa corrente, do R&B e até mesmo do rap, como Mary J. Blidge, A Tribe Called Quest, Dr. Dre, Madlib e Public Enemy. Em 1993 participou do projeto Jazzmatazz, ao lado do rapper Guru, além de ser presença constante em álbuns de artistas ligados ao rap, ao pop e ao R&B, como a banda Nuyorican Soul e as cantoras Vanessa Williams e Erycah Badu.

Seu envolvimento com outras vertentes da música negra implicou em um abandono quase que total ao jazz – Ayers participou de álbuns do ex-patrão Herbbie Mann e de James Moody e chegou a gravar alguns disco no clube Ronnie Scot’s, nos anos 90 – mas sua discografia e seus concertos são focados na música pop, com a habitual mistura de soul, funk e R&B. Se tal opção deu-lhe fama, dinheiro e, certamente, um público bastante numeroso, por outro lado “West Coast Vibes” demonstra que Roy é – e sempre foi – um músico talentoso e criativo. Infelizmente, tornou-se o vibrafonista que perdeu as graças do jazz – espera-se que não para sempre.


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