Amigos do jazz + bossa

segunda-feira, 28 de junho de 2010

PRELÚDIO


Condenados de quaisquer matizes,

Vinde e celebrai comigo.

Ateus de todas as crenças,

Entoai meu cântico resignado.

Partilhemos os nossos malogros

Enxuguemos as nossas lágrimas de sangue e pó

Brindemos à derrocada do amor!

Sim, o amor...

A herança de Medusa

O rochedo de Psinoe

Acreditem quando lhes digo que passei incólume pelo amor

Nenhuma cicatriz

Nenhum arrependimento

Nenhuma saudade

Nenhuma vontade de viver tudo outra vez

Sequer me lembro que existiu o amor

O olhar desatento me basta

O sorriso carbônico me sacia

Adeus, suave aragem noturna

Adeus, paisagem pintada com hidromel

Adeus, rubro músculo despudorado,

Esqueci o amor e seus versos

Atirei-o fora

Sem remorsos ou mágoas,

Sem o choro insolente que desafia a razão

Sim, livrei-me do amor

Escarneço do amor


Despi-me do amor

Tornei-me intacto novamente

Imune ao amor

A seiva que irriga minhas veias não tem cor

Nenhuma fratura a consertar

Antes, houve o amor

Então, despia-me dos bens mais caros

Abandonava a certeza, exata e métrica

Era um tempo de passos incertos

Era um tempo de dúvidas sedutoras

Era um tempo de falso aprendizado

Sim, livrei-me do amor

Sim, livrei-me do passo trôpego da dúvida

Sim, livrei-me da expectativa de véspera

Cartesianamente intacto

Racionalmente íntegro

Escarneço do amor

Mesmo nas noites de chuva fina...

Escarneço do amor,

Mesmo quando o vento breve me traz o cheiro do mar...

Escarneço do amor

Livrei-me do amor

Abandonei o amor à sua própria sorte

Ainda que surjam no céu todas as estrelas que um dia contei

Pouco me importa a face redonda da lua cheia

Escarneço do amor,

Atirei-o fora

Sem remorsos ou mágoas,

Sem lágrimas ou noites insones

Sem o drama vulgar ou consumição

Pouco se me dá o amor

Desprezo o amor

Vinde, velhos companheiros de infortúnio,

Celebremos e gritemos ao mundo

Que o amor não nos faz falta alguma!

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Nascido em Chicago, no dia 08 de setembro de 1923, Wilbur Ware foi um dos baixistas mais técnicos e ousados do bebop e do hardbop, com incursões muito bem sucedidas por outros gêneros e estilos, como o blues, o swing e até mesmo pelo free jazz. Autodidata, seus primeiros instrumentos foram o banjo, a bateria e o violino, até se fixar no contrabaixo.

Sua influência mais perceptível, pelo estilo percussivo e altamente rítmico, é Jimmy Blanton, embora também o próprio Ware reconheça a importância de Milt Hinton, outro ilustre baixista de Chicago, em seu toque. Serviu ao exército durante a II Guerra Mundial e começou a se apresentar profissionalmente em 1946, ainda em Chicago, ao lado de Roy Eldridge, Junior Mance, Sonny Stitt e Johnny Griffin. Entre 1954 e 1955, atuou na banda do saxofonista Eddie “Cleanhead” Vinson e participou de uma das primeiras formações da Arkestra, de Sun Ra.

Mudou-se para Nova Iorque, em 1956, para se juntar aos Jazz Messengers de Art Blakey. Na Big Apple, tornou-se um disputado músico de apoio, tocando com Thelonious Monk, Sonny Rollins, Wynton Kelly, Toots Thielemans, Mundell Lowe, Ira Sullivan, Kenny Dorham, John Coltrane, Grant Green, Tina Brooks, Zoot Sims, Cozy Cole, Hank Mobley, Herbie Mann, Matthew Gee, Blue Mitchell, Buddy DeFranco, Gerry Mulligan, Clifford Jordan, Lee Morgan, Thelonious Monk, Coleman Hawkins e Sonny Clark entre outros. Outra associação digna de registro foi com o pianista Kenny Drew, cujo trio integrou entre 1957 e 1958.

Apesar da quilométrica discografia como sideman, Ware fez apenas uma gravação como líder: “The Chicago Sound”, para a Riverside, onde o baixista está acompanhado por John Jenkins (sax alto), Johnny Griffin (sax tenor), Junior Mance (piano), Wilbur Campbell e Frank Dunlop (bateria). Como o próprio título sugere, este álbum reúne apenas músicos surgidos na cena de Chicago, que além da proximidade física, também comungavam das mesmas concepções musicais.

Acostumada a dividir os palcos de clubes como o Brass Rail e o Flame Lounge, a banda se mostra extremamente entrosada. Uma excelente amostra do desenvolvimento do hard bop em meados da década de 50, o álbum apresenta todos os cânones do estilo, sem lançar mão de clichês. Ware é um anfitrião discreto, reservando aos convidados Jenkins (autor das ótimas “Latin Quarters” e “Be-ware”) Griffin e Mance o maior espaço para os solos.

O líder, entretanto, sabe se impor como executante e ainda contribui com duas composições próprias: a exuberante “Mama-Daddy”, um petardo sonoro ao estilo dos Messengers, e o blues “31St And State”. Belíssimas versões dos standards “Body And Soul” e “The Man I Love”, nas quais o contrabaixo de Ware constrói alguns dos solos mais bem elaborados do disco, invariavelmente mantendo os registros mais baixos do instrumento com a sua técnica soberba. As gravações foram feitas nos dias 16 de outubro e 18 de novembro de 1957, com produção de Orrin Keepnews.

Entre 1963 e 1968 Ware esteve da cena musical, por conta de problemas com drogas, mas a partir de 1969 retomou a carreira, gravando com Elvin Jones, Archie Shepp, Don Cherry, Cecil Payne e Walt Dickerson. Falecido a 09 de setembro de 1979, o legado de Ware é visível em músicos como Charlie Haden e Henry Grimes.

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quinta-feira, 24 de junho de 2010

CONVERSANDO COM AS BALEIAS


17 de março de 1930. O mundo vivia as agruras da Grande Depressão quando Paul Horn nasceu, em Nova Iorque. Pouco depois, sua família se mudou para Washington, D. C., a capital dos Estados Unidos, em busca de melhores condições de vida. Com apenas 4 anos, o pequeno Horn começou os estudos de piano clássico, por influência da mãe, a cantora e pianista Francis Sper, que abandonou a carreira profissional por causa do casamento. Francis chegou a ter alguma notoriedade na década de 20, apresentando seus próprios programas de rádio e chegou a trabalhar com o compositor Irving Berlin.

Com a música em seu DNA, aos 12 anos Paul descobriu a clarineta e o sax alto, instrumentos que o acompanhariam pelo resto da vida, assim como a flauta. Ele deixou o piano de lado e, pouco tempo depois, já se apresentava em gigs no circuito de clubes de Washington. Tendo como primeiros ídolos os astros do swing Benny Goodman e Artie Shaw, estes logo foram substituídos, em sua preferência, pelos revolucionários Charlie Parker e Dizzy Gillespie, pais do bebop.

Embora o jazz o atraísse de forma bastante intensa e sua família apoiasse incondicionalmente a sua carreira musical, Horn preferiu investir, primeiramente, na carreira acadêmica. Graduou-se em flauta, no famoso Oberlin Conservatory of Music, em Ohio, onde entrou em 1952. Após a graduação, Horn obteria o título de Mestre na prestigiosa Manhattan School of Music.

Em 1956, após uma breve passagem pelo exército, onde tocou flauta na orquestra da corporação, Horn se mudou para Los Angeles, agregando-se à Sauter–Finegan Big Band, naquele que seria o seu primeiro vínculo profissional. Pouco tempo depois, seria chamado pelo baterista Chico Hamilton para integrar o seu quinteto, um dos mais prestigiosos do período, substituindo ninguém menos que o grande Buddy Collette. Paul permaneceu ali de 1956 até 1958, tocando sax alto, tenor, clarineta e flauta.

Foi nesse período que conheceu o arranjador Fred Katz, a primeira pessoa a lhe falar sobre os mistérios da filosofia oriental e sobre o budismo, temas que, pouco mais de uma década depois seriam de fundamental importância em sua vida. Depois de tocar com Hamilton, o saxofonista co-liderou um grupo com o vibrafonista Cal Tjader, além de se firmar como um renomado músico de estúdio, fazendo trabalhos para o cinema e a televisão. Estabelecido em Hollywood, Horn montou seus próprios grupos e rapidamente se tornou uma estrela em ascensão no mundo do jazz. Foi várias vezes indicados para prêmios em revistas especializadas, como a Downbeat e a Metronome, além de ter sido objeto do documentário “The Story of a Jazz Musician”, dirigido por David Wolper.

Como músico, acompanhou June Christy, Frank Sinatra, Mongo Santamaría, Stan Getz, Nat King Cole, Tony Bennett, Ray Brown, Mel Tormé, George Shearing, Nancy Wilson, Shorty Rogers, Henry Mancini, Manny Albam, Peggy Lee, Miles Davis, Shelly Manne, Modern Jazz Quartet, Buddy Rich, Pete Rugolo, entre muitos outros. Também integrou a orquestra da rede de TV NBC e fez pontas em filmes como o suspense “The Sweet Smell of Success”, de 1957, estrelado por Burt Lancaster e Tony Curtis, e a comédia “The Rat Race”, também estrelado por Tony Curtis.

A estampa de galã, as roupas sempre muito alinhadas, o charme, a inteligência e a desenvoltura faziam de Horn uma figura querida em Hollywood. Sempre ao lado de celebridades da música, como Miles Davis e Tony Bennett, do cinema, como Tony Curtis, ou dos dois, como Frank Sinatra, Horn era também um dos mais disputados galãs do pedaço.

Em 1960, Horn realizou o sonho de gravar com Duke Ellington, no album “Three Suites”, onde a orquestra do maestro interpreta composições eruditas de Tchaikovsky e Grieg. Alguns anos mais tarde, em 1964, ele seria o vencedor do Grammy pelo álbum “Jazz Suite On The Mass Texts”, outro crossover entre o jazz e a música clássica, no qual interpreta composições do pianista argentino Lalo Schifrin, responsável pelos arranjos e pela condução da orquestra que acompanha o saxofonista, composta por grandes nomes do jazz, como Conte Candoli, Al Porcino, Larry Bunker, Red Callender, Frank Rosolino e outros. Como líder, gravou para selos como Epic, Prestige, Fantasy, Impulse!, World Pacific, Hi-Fi Jazz, Columbia e RCA.

Voltando a 1960, Horn lança, pela pequena Hi-Fi Jazz, aquele que é tido como o seu mais importante trabalho eminentemente jazzístico: “Something Blue”. Profundamente inspirado pelo trabalho do amigo Miles Davis, especialmente por “Kind Of Blue”, lançado no ano anterior, Horn apresenta um dos trabalhos mais instigantes e desafiadores da década. Sem fazer concessões ao experimentalismo free, o álbum flerta com as experiências estético-musicais mais ousadas da época – e nem por isso é um trabalho árido ou de difícil audição, embora requeira do ouvinte uma certa dose de cumplicidade.

As gravações ocorreram nos estúdios da Fantasy, com produção de Dave Axelrod. Ao lado de Horn, que toca sax alto, flauta e clarinete, estão o pianista Paul Moer, o baixista Jimmy Bond, o vibrafonista Emil Richards e o então jovem baterista Billy Higgins, que apesar de ter apenas 24 anos já despontava como um dos mais promissores daquele período, com trabalhos ao lado de Lucky Tompson, Red Mitchell, Stan Getz, Paul Blay, Ornette Coleman e John Coltrane. No repertório, quatro composições do líder, uma de Moer e uma de Richards.

O disco abre com “Dunn-Dunnee”, de Horn, um bebop estilizado e rápido. Usando a flauta, o líder mostra o quanto a música erudita influenciou e orientou a sua abordagem no jazz. Há ecos do Modern Jazz Quartet, sobretudo por conta do vibrafone de Richards, um vigoroso discípulo de Milt Jackson. Higgins funciona como um verdadeiro dínamo, catalisando a energia criativa do grupo, absorvendo as contribuições harmônicas de cada um deles e devolvendo esse estímulo sob a forma de uma atuação criativamente explosiva.

Em seguida, “Tall Polynesian” é um bebop impressionista, que mostra que outros pontos de convergência entre o trabalho de Horn e o do MJQ, sobretudo quando o quinteto adota uma postura mais reflexiva. Manuseando a flauta com extrema desenvoltura e precisão, o líder se mostra um improvisador vigoroso, capaz de ombrear-se aos grandes flautistas do jazz, como Jerome Richerdson, Bobby Jaspar ou Herbie Mann. Bond e Higgins formam uma sessão rítmica inspirada, o que permite que os solos de Horn e Richards soem especialmente fluentes.

A sinuosa “Mr. Bond” prenuncia a futura devoção de Horn por ritmos considerados exóticos. Com seu andamento quebradiço e sua repetição de riffs, a referência mais próxima é o trabalho de Gil Evans, especialmente em “Out Of The Cool”, curiosamente um álbum gravado naquele mesmo ano. A bordo do sax alto, Horn demonstra enorme versatilidade e perícia e seus solos não negam a enorme influência de Charlie Parker. O piano Moer elabora um sofisticado colorido harmônico, que em alguns momentos chega a ser verdadeiramente perturbador, no sentido de desafiar a sensibilidade do ouvinte e de exigir-lhe atenção.

Mais uma vez utilizando o sax alto, o líder é o grande destaque de “Fremptz”, um petardo sonoro repleto de variações. A composição de Richards traz alguns sutis elementos da música japonesa e aqui é o Brubeck de “Jazz Impressions From Japan” quem primeiro vem à mente. Essa referência à música japonesa não é mera coincidência, pois o autor do tema serviu à marinha em uma base no Japão e tocou com a pianista Toshiko Akiyoshi em meados dos anos 50.

Construído sobre uma estrutura de blues, “Something Blue” aos poucos vai subvertendo essa estrutura harmônica, impregnando-a de elementos contemporâneos. Nessa que é uma das faixas mais sofisticadas do álbum, Horn apresenta-se ao clarinete e também nesse instrumento revela ser um músico diferenciado. O peso do blues pode ser sentido na pulsação do baixo de Bond e na robusta atuação de Higgins, mas há aqui uma nítida intenção de retirar uma certa aspereza e de dar uma roupagem moderna ao velho estilo nascido às margens do Mississipi. Sem soar arrogante ou pretensioso, o quinteto consegue lograr seu intento de maneira magistral.

“Half And Half” pode ser descrita como um bebop progressivo e divagante, uma conjugação de audácia e vitalidade. A estrutura complexa e as variações harmônicas são um exercício de imprevisibilidade e os instrumentos se articula, primeiramente, como uma algaravia de vozes falando simultaneamente. Aos poucos, aquelas vozes começam a fazer sentido e a coesão do arranjo se mostra por inteiro. Ao final dos seus quase oito minutos de inquietude e ousadia, o ouvinte sai com uma única certeza: a música é uma das mais especiais formas de manifestação da inteligência humana. Destaque absoluto para Moer, originalíssimo e sempre muito instigante em sua abordagem. Uma gema rara e preciosa, para ser descoberta e admirada como a obra-prima que é.

Além da elogiada carreira jazzística, Horn era bastante requisitado por grupos e cantores do pop e do rock. Ele esteve nas gravações do aclamado “Pet Sounds”, dos Beach Boys, de 1966, album que é considerado um dos mais importantes de todos os tempos e capaz de rivalizar com obras-primas dos Beatles, como “Sgt. Pepers” ou “Abbey Road”. Também gravou com o citarista Ravi Shankar, que lhe abriu os olhos para a riqueza da cultura indiana, em 1964.

No entanto, nem todo o glamour da vida em Hollywood ou o sucesso profissional eram capazes de acalmar a inqietude natural de Paul. Com o primeiro casamento indo a pique e insatisfeito com os rumos de sua vida, Horn, tomou uma decisão radical. Influenciado pelo espírito da contracultura e pelas referências às religiões orientais, o saxofonista embarcou para a Índia em dezembro de 1966, em uma viagem que mudaria completamente o rumo de sua vida e carreira, inscreveu-se em um curso de meditação com o guru da moda, Maharishi Mahesh Yogi, famoso por sua proximidade com os Beatles.

Sobre as dificuldades da vida de músico, Paul declarou certa vez: “Ser músico de jazz não é fácil. Psicologicamente, aquilo pode te destruir. Se você toca em clubes seis noites por semana, deixa muita coisa sua ali – e quaisquer que sejam os seus sentimentos, eles se refletem na música que você faz. Depois de algum tempo, você fica tão exausto, que já não tem mais nada a oferecer ao público. Aí você começa a soar falso”. A Índia foi o catalisador dessa busca por um outro sentido à sua existência.

Durante quatro meses, Horn permaneceu em absoluto isolamento, apenas aprendendo os fundamentos da ioga e da meditação transcendental. Ainda que os céticos possam torcer o nariz, o certo é que a experiência foi transformadora para o músico e ele mergulhou de cabeça naquele universo místico. Tornou-se professor de meditação, gravou um álbum solo de flauta no Taj Mahal (“Inside Taj Mahal”, de 1968), que vendeu horrores, e criou um novo estilo musical, que passaria à história, para o bem ou para o mal, como “New Age”.

A aproximação com Maharishi permitiu a Paul fazer amizade com os Beatles, que em 1968 fizeram uma viagem espiritual semelhante à Índia, com uma trupe que incluía a atriz Shirley McLaine e o cantor Donovan, com quem Horn excursionou no início da década de 70. O dinheiro ganho nesse período, sobretudo por conta das vendas de “Inside Taj Mahal”, permitiu a Paul comprar uma casa em Victoria, na Columbia Britânica, para onde se mudou, em 1970, com a segunda esposa, a designar alemã Tryntje Horn, e os dois filhos do primeiro casamento.

No Canadá, Horn afastou-se do mainstream musical, mas não abandonou a carreira. Continuou a gravar seus álbuns e a fazer shows pelo mundo – na então União Soviética e na China, por exemplo – mas em ritmo mais lento. Também compôs trilhas sonoras para a NFB - National Film Board, uma das mais conceituadas produtoras canadenses de filmes de animação e documentários.

Uma de suas experiências mais extraordinárias foi ao lado de biólogos e pesquisadores do Sealand of The Pacific, o aquário público de Victoria, estudando as formas de comunicação entre as orcas. Consta que uma delas, chamada Haida, entristecida pela perda de uma companheira do grupo, recusava-se a comer e Horn, com a sua flauta, conseguiu recuperar o ânimo da baleia e faze-la voltar a se alimentar.

Vieram outros discos gravados em construções históricas, como “Inside the Great Pyramid”, gravado dentro da Pirâmide de Quéops, em 1976, e “Inside The Cathedral”, este gravado na Cathedral de Kazamierus, na Lituânia, em 1983. Para além das experiências místicas, Horn também demonstrou um excelente tino para os negócios. Em 1982, fundou a sua própria gravadora, a Golden Flute Records, responsável pela produção de seus próprios álbuns, desde então. Sua associação com o também flautista R. Carlos Nakai rendeu albums bastante elogiados pela crítica especializada, como “Inside Canyon de Chelly” (1997) e “Inside Monument Valley” (1999).

Seu álbum “Traveler”, de 1986, foi indicado ao prêmio Grammy de melhor album de New Age de 1987. Cidadão do mundo, seja no Tibet, no Brasil, na Escócia, na Rússia, no Egito, na China ou na África, Horn continua a sua infinita jornada musical, movida a enormes doses de espiritualidade e contemplação. Em 1990, lançou “Inside Paul Horn: The Spiritual Odyssey of a Universal Traveler”, autobiografia escrita a quarto mãos com o jornalista Lee Underwood. Continua a gravar discos, ministrar oficinas, realizar concertos e a morar em Victoria, agora ao lado da terceira esposa, a cantora Ann Mortifee. Não se sabe se ainda costuma a conversar com as orcas, mas é bem provável que sim.

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sexta-feira, 18 de junho de 2010

DIÁRIO DE UM MAGO


O saxofonista e compositor Wayne Shorter nasceu no dia 25 de agosto de 1933, em Newark, estado de Nova Jérsei. Apaixonado por música desde a mais tenra infância, sempre recebeu da família o apoio e o estímulo para seguir a carreira musical. Seu irmão mais velho, Alan Shorter, tornou-se trompetista (seu trabalho pode ser ouvido nos álbuns “Four For Trane”, de Archie Shepp, e “The All Seeing Eye”, sob a liderança do irmão mais famoso) e Wayne, por influência do pai, dedicou-se ao clarinete, que mais tarde seria trocado pelo saxofone tenor.

Wayne recebeu as primeiras lições de clarinete na Newark Arts High School, sendo que a opção definitiva pelo sax tenor veio aos 15 anos, após assistir a uma apresentação de Lester Young, durante uma turnê do projeto Jazz at the Philharmonic, no Adams Theater, em Newark. O programa incluía, ainda, as orquestras de Stan Kenton e Dizzy Gillespie, além de Charlie Parker e Ilinois Jacquet. Os concertos marcariam a vida do adolescente e definiriam o seu futuro como músico.

Durante a adolescência, Wayne montou, na cidade natal, uma banda chamada “The Jazz Informers” e também tocou algumas vezes na orquestra de Jackie Bland, um músico de relativa projeção local. Nas gigs que aconteciam nos clubes de Newark, certa noite o jovem Shorter tocou com ninguém menos que Sonny Stitt, já então considerado um dos maiores saxofonistas de todos os tempos.

Em 1953, Shorter mudou-se para Nova Iorque, onde graduou-se em artes pela New York University, em 1956. Costumava participar de jams em clubes como o Birdland e o Cafe Bohemia e chegou a trabalhar, de forma semiprofissional, com as orquestras de Nat Phipps e de Johnny Eaton. Nesta última, ganhou o apelido de “The Newark Flash”, por conta de sua velocidade ao saxofone. Contudo, a carreira sofreria um hiato em 1956, eis que foi convocado para servir as forças armadas, tendo passado dois anos no exército.

Pouco antes de começar o serviço militar, Shorter viveu uma experiência inesquecível: participou de uma jam session no Café Bohemia, ao lado de um verdadeiro Dream Team do jazz, que incluía os bateristas Max Roach – que o reconheceu e o convidou para tocar – Art Blakey e Art Taylor, o baixista Oscar Pettiford e o organista Jimmy Smith. Shorter lembra que, naquela noite, Miles Davis esteve no clube, à procura de um sujeito chamado Cannonball – simplesmente Cannonball Adderley, que entraria para a história como um dos mais versáteis e talentosos altoístas da história do jazz. Cinco dias depois dessa noite de sonho, Shorter estaria confinado em Fort Dix.

Após a dispensa, Wayne integrou um grupo que era atração fixa do Minton’s Playhouse. Em seguida, tocou brevemente com Horace Silver e, logo após, juntou-se à big band do trompetista canadense Maynard Ferguson, onde conheceu o pianista austríaco Joe Zawinul, que seria de extrema importância em sua vida profissional, a partir do início dos anos 70.

Em agosto de 1959 veio a oportunidade profissional mais extraordinária e desafiadora até então: Shorter foi convidado por Art Blakey para se juntar aos seus Jazz Messengers, uma verdadeira universidade do jazz e ponto de partida na carreira de dezenas de músicos de primeira linha. Ao lado dos Messsengers, Wayne, que chegou a ser diretor musical do grupo, aperfeiçoou seu estilo de tocar e, ao mesmo tempo, tornou-se uma dos mais respeitados compositores de toda a história do jazz.

Seu estilo inconfundível mescla a tradição do blues, a complexidade harmônica do bebop, o vigor do swing, a espontaneidade do hard bop e a ousadia iconoclasta do jazz de vanguarda. A principal característica de suas composições é a completa ausência de linearidade. Há sempre algo surpreendente em seus temas, construídos à base de uma inteligência musical superior, que nutre pela obviedade o mesmo desprezo que Platão nutria pela ignorância. Além disso, Shorter é, indiscutivelmente, um dos mais inquietos e audaciosos improvisadores de todos os tempos, discípulo confesso de John Coltrane. Sua obra, personalíssima, só encontra paralelo na de outro gênio: Thelonious Monk.

Wayne passou cerca de cinco anos com os Messengers. Durante esse período, o grupo gravou alguns dos seus melhores álbuns, como “A Night in Tunisia”, “Like Someone In Love”, “Indestructible”, “Ugetsu”, “Meet You At The Jazz Corner Of The World” e “Free For All”, para selos como Riverside e, sobretudo, Blue Note. Nessa época, além de Shorter e Blakey, atuavam nos Messengers Freddie Hubbard ou Lee Morgan (trompete), Cedar Walton ou Bobby Timmons (piano), Jy,,ie Merritt ou Reggie Workman (contrabaixo) e Curtis Fuller (trombone).

O saxofonista logo caiu nas graças da crítica especializada, sendo laureado com o prêmio de New Star da revista Down Beat, em 1960. Além disso, participou de álbuns de grandes nomes do jazz, como Wynton Kelly, Lee Morgan, Donald Byrd, Lou Donaldson, Hank Mobley, Freddie Hubbard, Gil Evans, Benny Golson, Grant Green, Bobby Timmons e muitos mais.

A visibilidade que o seu trabalho com os Jazz Messengers obteve rendeu a Shorter um convite para gravar o seu primeiro álbum como líder, denominado “Introducing Wayne Shorter”, para a gravadora Vee Jay Records. Sobre o selo, o jornalista Roberto Scardua informa que “havia sido a maior gravadora criada e administrada por negros até o surgimento da Motown. O nome é fruto das iniciais do casal Vivian Carter e James Bracken, que a fundaram em 1953, em Gary, Indiana. Vivian era disc jokey da WGRY e James era proprietário de uma bem sucedida loja de discos. Ambos sentiam a ausência de uma série de artistas talentosos no mercado fonográfico e decidiram alterar essa situação: com US$500.00 obtidos numa loja de penhores, iniciaram aquela que seria uma das maiores gravadoras negras dos EUA”.

As gravações foram realizadas no dia 10 de novembro de 1959, no Bell Sound Studio, em Nova Iorque. A seu lado, o trompetista Lee Morgan, então companheiro nos Messengers, além da sessão rítmica de Miles Davis: Wynton Kelly (piano), Paul Chambers (baixo) e Jimmy Cobb (bateria). No repertório, cinco temas de Shorter e o standard “Mack The Kinife”, de Kurt Weill e Bertold Brecht.

Antecipando o papel de renovador do hard bop que assumiria na década seguinte, Wayne mostra logo na faixa de abertura, “Blues A La Carte”, o quão sofisticadas são as suas harmonias. Embora o tema seja contagiante – explosivo mesmo, em algumas passagens – ele é sempre assimétrico, caudaloso como um rio. Além do fabuloso trabalho do líder, merece destaque o solo de chambers, um primor de velocidade e inteligência.

“Harry’s Last Stand” é um blues cadenciado, onde o trompete mágico de Morgan parece pairar por sobre a melodia. Seus ataques são rápidos como uma blitzkrieg – e tão devastadores quanto. Jimmy Cobb é um monstro na condução do ritmo e seu diálogo com o líder, no estilo chamada e resposta, é simplesmente fantástico.

“Down In The Depths” é hard bop ortodoxo, com refrão bastante assimilável e sopros tocando em uníssono. Os improvises, todavia, transportam o tema para outras galáxias. Shorter não nega a influência coltraneana em sua execução, conjugando vigor físico e virtuosismo técnico ímpares. Mesmo nos solos mais complexos, o líder passa ao ouvinte a idéia de que tocar sax tenor é a coisa mais simples do mundo. Grandes atuações de Kelly e do futuro astro Morgan.

“Pug Nose” é, talvez, a faixa que mais se aproxima daquilo que Shorter faria em sua passage pela Blue Note, a partir de 1964. Seu clima etéreo, embora pulsante, suas harmonias sinuosas, seu ritmo levemente calcado no blues, tudo isso faz do tema um dos pontos altos do album. Ademais, o líder e o fiel escudeiro Morgam dialogam de maneira bastante intense, em um desafio mútuo no qual o grande vencedor é o ouvinte. Destaque também para os solos de Kelly e Chambers, ambos soberbos.

“Black Diamond” é outro petardo, firmemente assentado nos melhores cânones do hard bop. Solos avassaladores, improvisos que desafiam os limites da física, músicos em estado de graça. A interação do quinteto é absoluta, mas a performance vibrante de Morgan merece ser ouvida com bastante atenção. A abordagem de Kelly, percussiva e assombrosamente rápida, remete a um dos pais do hard bop, o grande Horace Silver.

Para encerrar, a saborosa versão de “Mack The Kinife”, que dá um novo colorido a um dos mais conhecidos clássicos do jazz. Imortalizada por Louis Armstrong, a canção de Brecht e Weill recebe um arranjo moderno, que embora não descaracterize a melodia, a torna extremamente contemporânea. Mais uma vez, Morgan abusa de sua técnica primorosa, enquanto Kelly emula a leveza dos pianistas do swing e da fase pré-bebop, como Teddy Wilson e Art Tatum. Um álbum verdadeiramente imperdível e que ainda traz takes alternativos de “Blues A La Carte”, “Harry’s Last Stand”, “Down In The Depths” e “Black Diamond” como bônus.

Shorter deixou os Jazz Messengers em 1964. Finalmente, resolveu aceitar o convite de Miles Davis, para integrar o seu reformulado quinteto. Desde a saída de Coltrane, Davis buscava um substituto à altura e entre os músicos que passaram por seu conjunto estavam Sonny Stitt, Hank Mobley, George Coleman e Sam Rivers. Nenhum deles, apesar do talento superlativo, conseguiu satisfazer completamente o rigoroso Miles, até a chegada de Wayne, que provocou uma verdadeira revolução no grupo.

A parceria foi duradoura e frutífera. No quinteto, ao lado de Davis, Herbie Hancock, Ron Carter e Tony Williams, Shorter criou verdadeiras obras-primas, como “Prince of Darkness”, “E.S.P.”, “Pinocchio”, “Footprints”, “Sanctuary”, “Fall”, “Nefertiti” e muitos outros temas. Os álbuns desta fase estão entre os mais elogiados de Miles, destacando-se “E.S.P.”, “Nefertiti”, “Miles Smiles e “Files de Kilimanjaro”.

Paralelamente ao trabalho com Davis, Shorter deu seguimento à sua belíssima carreira solo, tendo gravado diversos álbuns para a Blue Note entre 1964 e 1969, vários deles alinhados entre os melhores feitos na década de 60. O repertório, basicamente, era composto por temas de sua autoria e dentre os muitos músicos que o acompanharam nesse período estão feras do quilate de Lee Morgan, McCoy Tyner, Reggie Workman, James Spaulding e Elvin Jones. Dentre seus álbuns mais representativos, destacam-se “Night Dreamer”, “The All Seeing Eye”, “The Soothseyer”, “Adam’s Apple”, “Juju” e “Speak No Evil”.

Em 1969, Shorter passou a usar também o sax soprano, no álbum “In a Silent Way”, de Miles Davis. Também usou o instrumento no seu álbum solo “Super Nova”, onde atua ao lado de dois companheiros do grupo de Miles Davis, o pianista Chick Corea e o guitarrista John McLaughlin. Em 1970, Shorter deixou Miles para se juntar ao pianista Joe Zawinul, com quem formaria o Weather Report. Ao lado deles, estavam o baixista Miroslav Vitous (substituído em 1973 por Jaco Pastorius), o percussionista brasileiro Airto Moreira e o baterista Alphonse Mouzon.

O Weather Report atingiu um enorme sucesso comercial, tornando-se, juntamente com o próprio Miles Davis e com o Return To Forever, de Chick Corea, um dos maiores expoentes do movimento fusion, a vertente eletrificada que dominou o cenário jazzístico dos anos 70. Seus álbuns vendiam milhões, seus concertos atraíam milhares de jovens e seus membros eram tratados como pop stars.

Aliás, associação de Shorter com astros do pop era bastante freqüente, tendo participado de álbuns de artistas como Carlos Santana, Joni Mitchell, Don Henley e Steely Dan. Contudo, muitos fãs mais ortodoxos torceram o nariz para as novas experiências de Shorter que, após a morte de John Coltrane em 1966 era, então, o mais reverenciado saxofonista em atividade.

Em 1974, Shorter gravou o antológico “Native Dancer”, onde interpreta canções de Milton Nascimento, com a participação mais que especial do próprio cantor, além de Airto Moreira e Herbie Hancock. O disco foi extremamente bem recebido pela crítica e, até hoje, é considerado um dos pontos altos da discografia do saxofonista. Além disso, abriu as portas do mercado mundial para o nosso Bituca, que se tornou conhecido nos quatro cantos do planeta.

Outro momento memorável na carreira de Shorter foi a participação no grupo V. S. O. P, culminando com uma apresentação ao vivo em Los Angeles que se tornou um álbum homônimo, ao lado dos ex-companheiros no quinteto de Miles Davis, Herbie Hancock, Ron Carter e Tony Williams, além do trompetista Freddie Hubbard.

Os anos 80 marcam o fim do Weather Report, mas Shorter continuou a produzir álbuns voltados para o fusion, como os eletrificados “Atlantis” (1985), “Phantom Navigator” (1987) e “Joy Ride” (1988), todos pela Columbia. Shorter era figurinha fácil em discos de expoentes do fusion, como Larry Coryell, Marcus Miller, Stanley Clark e Victor Bailey, por exemplo.

Um breve retorno ao jazz acústico se deu por ocasião da trilha sonora do filme “Round Midnight”, a cargo de Herbie Hancock. Shorter toca sax tenor e soprano e o disco, que contava com a participação de gente como Ron Carter, Bobby McFerrin, Chet Baker e Dexter Gordon, rendeu ao pianista o Oscar de melhor trilha sonora. Outro ponto alto foi a participação no álbum “Power Of Three”, ao lado do pianista Michel Petrucciani e do guitarrista Jim Hall, gravado ao vivo no Festival de Montreux de 1986.

Em relação à sua vida pessoal, a década de 90 foi bastante difícil para o budista Shorter. Em 1996 perdeu a esposa Anna Maria Shorter em um acidente aéreo – ela estava entre os 230 passageiras do vôo 800 da TWA, que caiu em Long Island. No aspecto profissional, o saxofonista viveu alguns grandes momentos. Em 1995 assinou com a Verve e voltou, aos poucos, ao formato acústico. O álbum “High Life” foi indicado ao Grammy de melhor álbum de jazz contemporâneo de 1997. No mesmo ano, tocou com os Rolling Stones, durante a turnê do álbum “Bridges to Babylon”.

Ainda em 1997, lançou o album “1 + 1”, em duo com o velho amigo Herbie Hancock. A composição “Aung San Suu Kyi”, feita em homenagem à líder política birmanesa, rendeu ao saxofonista o Grammy de melhor composição instrumental. Shorter também participou de outro projeto bastante elogiado ao lado de Hancock, o álbum “Gershwin's World”, de 1998.

Em 2000, Shorter voltou de vez ao formato acústico, montando um dos combos mais badalados do nascente século XXI, onde pontuam o pianista Danilo Perez, o baixista John Patitucci e o baterista Brian Blade. Gravou, desde então, os albums “Footprints” (2002) e “Beyond The Sound Barrier” (2005), ambos ao vivo e o incensado “Alegria”, de 2003, que é o primeiro album de studio do saxofonista em 10 anos. O disco foi agraciado com o Grammy de melhor album de jazz instrumental de 2004. Wayne repetiu a façanha em 2006, desta feita por conta de “Beyond the Sound Barrier”.

Em sua longa e vitoriosa carreira, Wayne Shorter contribuiu, intensamente, para a expansão das fronteiras do jazz, ao incorporar elementos da música erudita e do rock ao estilo e ao renovar, de maneira ousada e inquietante, as linguagens do bebop e do hard bop. Muitas de suas composições, cheias de encantamento e magia, tornaram-se verdadeiros standards do jazz moderno. Também é um dos mais influentes saxofonistas de qualquer era, a quem músicos consagrados como Brandford Marsalis, Dave Murray, Courtney Pine, Chris Potter, Dave Douglas, e muitos outros, não se cansam de tecer loas e prestar reverência.

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domingo, 13 de junho de 2010

O PIANISTA ABSOLUTO


Quero beber! Cantar asneiras

No esto brutal das bebedeiras

Que tudo emborca e faz em caco...

Evoé Baco!

Lá se me parte a alma levada

No torvelim da mascarada,

A gargalhar em douro assomo...

Evoé Momo!

Lacem-na toda, multicores,

As serpentinas dos amores,

Cobras de lívidos venenos...

Evoé Vênus!

Se perguntarem: Que mais queres,

além de versos e mulheres?

- Vinhos!... o vinho que é o meu fraco!...

Evoé Baco!

O alfange rútilo da lua,

Por degolar a nuca nua

Que me alucina e que não domo!...

Evoé Momo!

A Lira etérea, a grande Lira!...

Por que eu extático desfira

Em seu louvor versos obscenos,

Evoé Vênus!

Qual o personagem do poema “Bacanal”, de Manuel Bandeira, Malcolm Earl Waldron nasceu sob o signo de Baco (tomou todas), Momo (divertiu-se à larga) e Vênus (passou por dois casamentos e teve sete filhos). Por sorte, sobretudo nossa, também às Musas haveria de pagar tributo, e sua existência parece haver sido pautada por um único mandamento: “há também um cântaro e quem manda é a deusa Música, pedindo prá deixar”!

Um dos mais importantes pianistas surgidos nos anos 50, ele veio ao mundo no dia 16 de agosto de 1925, em Nova Iorque. Embora a influência de Thelonious Monk tenha sido decisiva em sua formação, Mal Waldron foi também uma das vozes mais originais do bebop, do hard bop e do jazz de vanguarda, tendo inscrito seu nome entre os monstros sagrados do jazz. Seu estilo repleto de dissonâncias era, muitas vezes, chamado de telegráfico, por conta da forma absolutamente singular que percutia as teclas do piano, de maneira que lembrava as transmissões em código Morse.

Suas primeiras lições de piano vieram aos oito anos e na adolescência chegou a tentar o sax alto, mas logo desistiu. Fã de Bud Powell, além de discípulo confesso de Monk, o jovem Waldron costumava freqüentar os clubes da Rua 52 durante o início da década de 40 e integrava a fabulosa geração young lions que tomaria de assalto a cena musical da década seguinte, como Sonny Rollins, Jack McLean, Walter Bishop Jr., Randy Weston, Art Taylor, Kenny Drew, Cecil Payne e outros. O bebop de Charlie Parker e Dizzy Gillespie era a mais importante e moderna vertente do jazz e Nova Iorque era o epicentro dessa verdadeira revolução. Para um garoto apaixonado por jazz como Waldron, isso era o mesmo que estar no paraíso.

Em meados dos anos 40, foi convocado pelo exército e serviu em um regimento da cavalaria baseado em Nova Iorque. Desse modo, o pianista não se afastou da cena musical local e, sempre que podia, assistia a concertos e participava de gigs em clubes da cidade, o que lhe permitiu desenvolver uma intimidade muito grande com a sintaxe bop. Findo o serviço militar, Waldron estudou no Queens College, onde bacharelou-se em artes em 1949. Na mesma época, estudou teoria musical e composição com o músico erudito Karol Rathaus.

Com o canudo debaixo do braço, o pianista foi à luta e começou a atuar profissionalmente em 1950. Seu primeiro emprego foi na banda de Big Nick Nicholas, cujo foco era o rhythm’n blues. Pouco depois, juntou-se ao grupo do saxofonista Ike Quebec, com quem faria a sua primeira gravação e ao lado de quem permaneceria até 1953.

Mal participou ativamente do projeto Jazz Composer’s Workshop, criado por Charles Mingus, e integrou os grupos do genial contrabaixista entre 1954 e 1956, atuando em álbuns importantes, como “Mingus at the Bohemia” (1955), “The Charles Mingus Quintet + Max Roach” (1955) e “Pithecanthropus Erectus” (1956), além de ter acompanhado Mingus em suas memoráveis apresentações no Newport Jazz Festival, em 1955 e em 1956. Outra associação relevante foi com o Jazz Lab de Gigi Gryce e Donald Byrd, com quem tocou por um breve período.

A partir de 1957, Waldron foi o acompanhante regular de Billie Holiday, tendo acompanhado a cantora em shows na Europa e em festivais de jazz, como o tradicional Festival de Monterrey, em 1958. É Waldron quem pilota os teclados na célebre gravação de “Fine and Mellow,” feita para a rede de televisão CBS, na qual Lady Day se faz acompanhar por ninguém menos que Lester Young, Coleman Hawkins e Ben Webster. A parceria findou-se em 1959, em virtude da morte da cantora, mas o aprendizado foi valioso. Graças a Billie, o pianista passou a dar especial atenção às letras das canções, especialmente das baladas, mesmo que estivesse interpretando uma versão instrumental.

No final dos anos 50, foi contratado para ser o diretor musical da gravadora Prestige, tendo participado de inúmeras gravações, seja como intérprete, seja como arranjador. Também foi um dos mais destacados integrantes da “Prestige All-Stars”, por onde passaram estrelas da magnitude de Teo Macero, Donald Byrd, Thad Jones, Hank Mobley, Teddy Charles, Al Cohn, Kenny Burrell e Bobby Jaspar, entre outros. Compositor inventivo e refinado, Waldron é o autor de verdadeiros standards do jazz, como “Soul Eyes”, “D’s Dilemna”, “Bud Study” e “Fire Waltz”.

Além de liderar seus próprios conjuntos, o pianista eram um dos mais disputados músicos de apoio do período, tendo participado de gravações ao lado de John Coltrane, Clifford Jordan, Pepper Adams, Cecil Payne, Elvin Jones, Steve Lacy, Jackie McLean, Booker Ervin, Art Farmer, Gene Ammons, Max Roach, Abbey Lincoln e outros. Por seus grupos, passariam grandes nomes do jazz, como Ron Carter, Charlie Persip, George Mraz, Al Foster, Cecil McBee, Dannie Richmond, Joe Henderson, Billy Higgins, Reggie Workman, entre outros.

Gravado no dia 26 de setembro de 1958, nos estúdios Van Gelder, sob a supervisão Desmond Edwards, “Mal/4” é um álbum de suma relevância na carreira do pianista. Era, como o título indica, a sua quarta sessão como líder na Prestige, mas a primeira no formato de trio. O repertório contempla quatro standards e três temas autorais e, ao lado do pianista, os competentes, mas pouco lembrados, Addison Farmer (contrabaixista e irmão gêmeo de Art Farmer) e Kenny Dennis (baterista oriundo da orquestra de Earl Bostic, mas com um portfólio que incluía trabalhos com Sonny Stitt, Thelonious Monk, Erroll Garner e Billy Taylor, entre outros).

A faixa de abertura é o blues “Splidium-Dow”, de autoria de Waldron, que remete ao universo monkiano. Harmonias intrincadas, repetição de acordes, toque percussivo, uso freqüente dos silêncios, enfim, diversos elementos caros a Monk, são aqui muito bem empregados, em um tema extremamente bem construído. O solo de Farmer é antológico e Dennis exibe o rigor típico de um ótimo discípulo de Philly Joe Jones.

As dissonâncias tipicamente monkianas e as notas espaçadas também são facilmente observáveis na balada “Like Someone In Love”, de Johnny Burke e Jimmy Van Heusen. Um dos mais belos standards do cancioneiro norte-americano, gravada por gente como Stan Getz (em “The Steamer”), John Coltrane (em “Lush Life”) e Art Farmer (em “Modern Art”), o tema recebe por parte do trio uma roupagem diferente e pouco linear. Waldron consegue imprimir muita personalidade à execução, sem abrir mão do lirismo.

Outro standard, “Get Happy”, de Harold Arlen e Ted Koehler, é a faixa mais bopper do álbum. O trio ataca com muita avidez e espontaneidade, com o líder emulando Bud Powell, outro dos seus maiores ídolos. Destaque para a bateria vivaz de Dennis e para a fluência do toque de Waldron, que em alguns momentos parece um possesso.

“J. M.’s Dream Doll” é uma homenagem do pianista à esposa do amigo Jackie McLean. Como em toda composição de Waldron, a obviedade mantém-se distante. O tema é bastante delicado, mas reserva ao ouvinte alguns momentos sombrios, especialmente quando o piano e o contrabaixo interagem mais intensamente.

“Too Close For Comfort”, é um tema de Jerrold Bock, Lawrence Holofcener and George Weiss, composto em 1956 e que faria sucesso na voz de Sammy Davis Jr. O pianista Carl Perkins apresentou a canção a Waldron em 1957, e este imprimiu à sua versão um andamento mais lento, adicionando-lhe um toque de blues. A destreza e a capacidade do líder em criar atmosferas harmônicas inquietantes, sobretudo quando faz uso da repetição de notas, impressionam – tanto quanto o soberbo solo de Farmer.

O trio extrai de “By Myself”, da dupla Arthur Schwartz e Howard Dietz, uma discreta sensualidade. Sua estrutura contagiante, permite uma atuação bastante coesa do trio, com espaço para ótimos solos, especialmente por parte de Dennis. Mais uma composição de Waldron, a reflexiva “Love Span” encerra o disco de maneira bastante sóbria. Certamente um dos momentos mais belos do álbum, o tema, que em algumas passagens lembra a nossa “Canção da manhã feliz”, de Haroldo Barbosa e Luiz Reis, celebra a grandeza do Waldron compositor, um dos mais inventivos e talentosos da história do jazz.

Waldron co-liderou, ao lado do virtuose Eric Dolphy, um dos combos de maior prestígio do início dos anos 60, que incluía os jovens e talentosos Booker Little, Richard Davis e Ed Blackwell. Também compôs trilhas sonoras para filmes como “The Cool World” (1964) e “Three Bedrooms in Manhattan” (1965), este último dirigido pelo cineasta francês Marcel Carné.

Em 1963, sofreu um colapso nervoso, causado por uma terrivelmente poderosa combinação de uso intenso de drogas, ansiedade, depressão profunda e exaustão física. O pianista não conseguia sequer lembrar o próprio nome e, como conseqüência, ficou internado em instituições psiquiátricas por cerca de um ano. Na época, os tratamentos eram brutais e feitos à base eletrochoques. Waldron foi uma vítima dessa brutalidade e, ao deixar o hospital no ano seguinte, era um homem psicologicamente devastado. Além disso, havia perdido completamente a sua capacidade de tocar piano.

Como muitos músicos daquele período, Waldron também havia sucumbido ao terrível efeito das drogas. Seu depoimento é, a um só tempo, contundente e emocionado: “Naquela época, a pressão era realmente insuportável. A cada dia tínhamos que travar uma luta brutal pela sobrevivência e as drogas pesadas dominavam a cena. Muitos proprietários de clubes contratavam viciados porque estes dificilmente exigiam os seus direitos, pois ficavam satisfeitos em receber o pagamento sob a forma de drogas”.

Contudo, apesar dos revezes, Waldron não se deixou abater. Como em um conto de fadas, aos poucos conseguiu recuperar a saúde física e psicológica e, novamente, dedicou-se a dominar as 88 teclas. Para tanto praticava exaustivamente e ouvia intensamente as suas antigas gravações. O resultado foi a volta aos palcos e estúdios, mas dessa viagem interior, emergiu um pianista diferente. Seu estilo estava mais reflexivo, minimalista. Além disso, havia incorporado ao bebop elementos harmônicos do jazz de vanguarda e sua sonoridade se tornaria metálica, abrasiva, sombria, fantasmagórica até.

Em 1965, resolveu se mudar para a Europa, fixando-se, inicialmente, em Paris e depois em Munique, na Alemanha. Em seu exílio europeu, consolidou uma profícua parceria com Steve Lacy, um dos mais ardorosos devotos de Monk. A mudança para o continente europeu foi estimulante e devolveu ao pianista a confiança e a auto-estima. Disse ele: “Quando eu vim para a Europa, a pressão de repente passou e eu não precisava mais usar drogas. Além disso, na América eu era duplamente penalizado: por ser negro e por ser músico de jazz”.

Em 1969, seu disco “Free At Last” foi o primeiro a ser lançado pelo então nascente selo ECM. A partir dos anos 70, fez várias viagens ao Japão, onde era extremamente popular, além de haver se apresentado, virtualmente, nos mais importantes festivais de jazz ao redor do planeta. Waldron manteve uma curiosa parceria com o grupo alemão de rock experimental Embryo, que rendeu o álbum “Rocksession”, lançado pela gravadora Brain Metronome, em 1973.

Waldron gravou incessantemente para selos como Enja, Soul Note, Timeless, New Jazz, Bethlehem, Impulse, Freedom, Black Lion e outros. Entre seus colaboradores regulares, dos anos 70 em diante, podem ser citados músicos do calibre de Chico Freeman, Marion Brown, David Friesen, Archie Shepp, Don Cherry, Barre Phillips, Philly Joe Jones, Gary Peacock e muitos mais.

Os anos 80 e 90 continuaram a ser de atividade febril. Alguns dos pontos altos de sua discografia foram os elogiados “A Case of Plus 4’s” e “Snake-Out”, ambos de 1981 e gravados ao lado do velho parceiro Steve Lacy. No mesmo ano, a dupla reuniu-se ao trompetista italiano Enrico Rava, na gravação de “Let’s Call This”. Em 1986, o pianista fez uma vitoriosa temporada no Village Vanguard, em Nova Iorque, que rendeu dois álbuns ao vivo: “Git Go: Live at the Village Vanguard” e “The Seagulls of Kristiansund”. Em ambos, Waldron lidera um quinteto da pesada, formado por Woody Shaw, Charlie Rouse, Reggie Workman e Ed Blackwell.

Nos anos 90, merecem destaque as suas gravações com o saxofonista George Haslam: “Waldron/Haslam” (1994) e “Two New” (1995). Em 2001, foi a vez do multiinstrumentista David Murray, com quem gravou o álbum “Silence”. Um dos momentos mais sublimes do pianist foi um emocionante tribute a Billie Holiday, “Left Alone Revisited”, em dueto com Archie Shepp. No início de 2002, Waldron fez a sua última gravação, ao lado de Steve Lacy e do baixista Jean-Jacques Avenel, no disco intitulado “One More Time”.

Fumante inveterado, Mal lutava há anos contra um câncer de pulmão, tendo, finalmente, perdido a guerra contra a doença no dia 02 de dezembro de 2002, em Bruxelas, na Bélgica, onde vivia desde 1992. Tinha 76 anos. Sua vida é um exemplo de superação das adversidades e seu legado musical é, certamente, um dos mais belos e originais da história do jazz. Sobre a sua relação com a música, suas palavras são sabedoria pura: “Eu não faço música em um nível consciente, eu toco com o coração. Este é, sem dúvida, um dos elementos que distinguem um bom músico de um grande músico”. Evoé, Waldron!

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