Amigos do jazz + bossa

sexta-feira, 30 de abril de 2010

OS TEMPOS ADORMECIDOS



Imagens pictóricas me devassam as córneas

E o teleférico transparente desaba sobre a saudade

Os reflexos do meu inferno onírico

Dispersam-se por entre o sabor azul que impregna meus dentes

Sentimentos expostos por uma alma encarcerada.

Cercado pelos oceanos invisíveis, sem jangada ou ponte

Tento esganar o pássaro incômodo da verdade

Tento escapar de sua malfazeja atenção

Procuro a escada que me revelará os mistérios andinos

Contesto, em vão, o resultado do sufrágio no firmamento

Mas a culpa, idônea, torna ainda menos palpável a noite abstrata

Excessos ocultos por sinceros disfarces.

Entalhes de pedra fingida,

Calendários de lua sem data,

Conselhos de uma voz alheia à razão.

As camas desfeitas, as malas desfeitas, a cidade sem subterfúgios

Alguém que fica, alguém que espera, alguém covarde demais para fugir

A textura do vazio é um sacramento sem alarde,

Enquanto a minha indecisão obstrui o caminho.

Eu sou obra sem operário, templo sem fiéis

O adjetivo impreciso, o verbo sem tempo.

As minhas pétalas,

As minhas plumas,

As minhas folhas,

A minha pele,

A minha carne

Tombaram há muito aos chãos

Mas nem a metamorfose e nem o outono

Até a mim chegaram


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O incendiário Carmell Jones é nativo de Kansas City e seu estilo vigoroso, impregnado de blues e das concepções rítmicas do grande Count Basie, reflete a cidade onde nasceu. Clifford Brown é, indubitavelmente, a maior influência deste notável trompetista, nascido no dia 19 de julho de 1936, sobre quem a crítica especializada costumava dizer que era capaz de fazer qualquer coisa com seu trompete.

O primeiro contato com a música se deu na escola, além das audições de jazz pelo rádio da família. Contrariando o pai, baterista semi-profissional que gostaria que o filho fosse saxofonista, o jovem Carmell optou pelo trompete. Passou quatro anos na força aérea, onde também se integrou à orquestra da corporação. Ao término do serviço militar, o trompetista decidiu estudar teoria musical e composição.

Freqüentou o bacharelado de música da University of Kansas por dois anos, mas abandonou o curso, desencantado com os métodos antiquados de alguns professores. Mudou-se para Los Angeles em 1960, gravando ali seus primeiros discos como líder, pela Pacific Jazz. Paralelamente, construiu uma sólida reputação como músico de estúdio, realizando trabalhos regulares para o cinema e a televisão, o que lhe permitiu trabalhar com o astro Sammy Davis, Jr. e com o arranjador Nelson Riddle.

Integrou a orquestra de Gerald Wilson, entre 1961 e 1963, e acompanhou os alguns dos maiores nomes do West Coast Jazz, como Harold Land, Shelly Manne, Teddy Edwards, Howard Rumsey, Buddy Collette e Buddy Shank. Também trabalhou com os inclassificáveis Don Ellis, Charles McPherson e Booker Ervin, mas sua associação mais conhecida foi com o pianista Horace Silver, cujo quinteto integrou de 1964 a 1965, tendo participado das gravações do excepcional “Song For My Father”.

Após participar do Stuttgart Jazz Festival, em 1965, resolveu se estabelecer na Alemanha, já que o panorama musical norte-americano era pouco receptivo a músicos de jazz. Ali, integrou a orquestra da Rádio SFB, em Berlin, onde tocou com grandes nomes do jazz europeu, como Heinz von Hermann e Ake Persson, e com jazzistas americanos residentes ou de passagem pela Alemanha, como Herb Geller, Leo Wright, Slide Hampton e Joe Harris .

No Velho Continente, trabalhou com as orquestras de Quincy Jones, Stan Kenton e Oliver Nelson, quando em turnê pela Europa. Em 1980, decidiu retornr à Kansas City natal, onde morreu no dia 02 de junho de 1990, aos 57 anos, em decorrência de complicações causadas pelo diabetes.

Um dos seus mais representativos trabalhos de Jones é “Jay Hawk Talk”, gravado para a Prestige no dia 08 de maio de 1965. A seu lado, um time de peso, que inclui o pianista Barry Harris, o saxofonista Jimmy Heath, o baixista George Tucker e o baterista Roger Humphries – um quinteto bastante coeso e que atua com enorme volúpia.

A ligação de Jones com o hard bop é evidente, mas ele não esconde a afinidade com outros estilos, como o bebop, o soul-jazz e o West Coast. Versões musculosas de “What Is This Thing Called Love” e “Just In Time” são uma amostra dessa versatilidade. O sofisticado Harris contribui para tornar a versão de “Willow Weep For Me”, um nostálgico blues de Ann Ronell, uma das mais elegantes de todos os tempos. Três composições do líder completam o set, com destaque para “Dance Of The Night Child” e “Beepdurple”, nas quais Jimmy Heath mostra porque mereceu o apelido de Little Bird e o líder apresenta solos magistralmente bem construídos.

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Ninguém acertou o desafio do 1º ano do Jazz + Bossa. Assim, o desafio continua de pé. Boa sorte aos amigos navegantes!

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domingo, 25 de abril de 2010

DESCENDO A RUA DA LADEIRA


Todo mundo conhece o maestro, pianista, compositor e arranjador Antonio Adolfo, embora às vezes nem se dê conta disso. De fato, olhando-se uma foto do músico de ar circunspecto e temperamento aparentemente arredio, ninguém diria que ele é um fabuloso “hit maker” e que suas músicas foram – e ainda são – cantadas de norte a sul do país. Aos olhos do observador comum, por exemplo, ele parece mais um compenetrado professor de conservatório, opinião que, de certa forma, não está de todo errada. Mas basta ouvir os primeiros acordes de “Sá Marina”, o mais estrondoso sucesso de sua vitoriosa carreira, para que essa idéia se dissipe: Antonio Adolfo é puro ritmo, alegria, diversão e musicalidade!

E “Sá Marina” é apenas uma das centenas de composições que brotaram do seu piano iluminado. Esse talentoso carioca, nascido no bairro de Santa Teresa no dia 10 de fevereiro de 1947, desde muito cedo apaixonou-se pela música e por ela foi correspondido. Sua mãe, Yolanda Maurity, era violinista da Orquestra do Teatro Municipal do Rio de Janeiro e professora de música. Seu irmão mais novo, o cantor e compositor Ruy Maurity, fez um enorme sucesso durante a década de 70.

Aos sete anos, iniciou seus estudos com a professora Paulina D’Ambrozzio e o seu primeiro instrumento foi o violino. Em seguida, vieram as aulas de teoria musical no Conservatório de Música Lorenzo Fernandes. Aos 15 resolveu aprender piano, tendo sido aluno dos respeitados pianistas Amyrton Vallim e Heitor Alimonda. Aos 16 anos já fazia parte do seleto grupo de músicos que encantava as noites cariocas com as concorridas jams no Beco das Garrafas, em Copacabana – a Rua 52 tupiniquim e berço esplêndido do samba jazz.

Nessa época, integrou um grupo semi-profissional chamado “Samba a Cinco”, juntamente com alguns colegas do Colégio São Francisco, e consta que para entrar nas boates, sempre contava com a boa vontade dos porteiros, pois somente maiores de 21 anos podiam freqüentar aqueles ambientes. Além da música erudita, o pianista passava horas ouvindo jazz e marchinhas de carnaval, e esse ecletismo sem preconceito acabou por apontar-lhe os caminhos que, futuramente, traçaria dentro da música.

Mestre na mistura de samba, bossa nova e jazz, o jovem pianista era figurinha carimbada nas boates Little Club e Bottle’s, freqüentadas por bambambãs da estirpe de Baden Powell, Hector Costita, Sérgio Mendes, Paulo Moura, Edson Machado, J. T. Meirelles, Raul de Souza, Edson Maciel, Milton Banana, Sérgio Barrozo, Durval Ferreira, Rubens Bassini, Luís Carlos Vinhas, Tião Neto, Bebeto Castilho, Dom Um Romão, Airto Moreira, Wilson das Neves e outros.

Sua estréia profissional não poderia ser mais auspiciosa: em 1964, convidado por Carlos Lyra e Vinícius de Moraes, atuou no musical “Pobre Menina Rica”, onde conheceu o baixista argentino “Cacho” Pomar e o baterista Nélson Serra, seus futuros companheiros no Trio 3-D (o nome do trio homenageia a primeira composição do pianista, chamada “Tema 3-D”).

Já sob a denominação de Trio 3-D, Adolfo, Cacho e Nélson acompanharam a cantora Leny Andrade e o trombonista Raul de Souza no show “Estamos aí”, em cartaz no Beco das Garrafas. O primeiro disco do trio, denominado “Tema 3-D”, foi gravado em gravado pela RCA, em 1964, e impressiona o fato de que Adolfo tivesse apenas 17 anos à época (o baterista Nélson era um pouco mais velho: tinha 18 anos).

Além de tocar piano, o abusado garoto ainda se responsabilizou pelos arranjos das 12 faixas, sendo que em cinco delas Nélson foi substituído pelo legendário Dom Um Romão. Outras participações especiais são do violonista Arísio Rubim (que atua em todo o disco) e, em três faixas, um certo trompetista chamado Claudinho, sobre quem não há maiores informações nas notas do disco, mas que não é outro senão o grande Cláudio Roditi, que, aos 17 anos (mesma idade de Adolfo), debutava nos estúdios.

Uma versão vigorosa de “Consolação”, de Baden Powell e Vinícius, abre o disco de maneira bastante efusiva, na qual o fabuloso trabalho de Dom Um Romão é o grande destaque. Impressionante também é o completo domínio que o jovem Adolfo possui do seu instrumento, elaborando improvisações de alta complexidade.

“Clouds”, de Durval Ferreira e Maurício Einhorn, traz uma amostra do talento do trompetista Claudinho, cujo sopro delicado se casa à perfeição com o belo arranjo elaborado por Adolfo. “Céu e mar” é uma das jóias mais raras da ourivesaria de Johnny Alf e faz com maestria a convergência entre o samba e o jazz, misturando a malemolência do primeiro com o swing do segundo. Adolfo se mostra um pianista maduro, para quem a pouca idade não é obstáculo à excelência técnica e à inventividade.

Um dos grandes instrumentistas brasileiros, Oscar Castro Neves contribui com a sestrosa “Samba do som”, tema que agrega elementos do samba tradicional, do jazz e da bossa nova, com uma levada insinuante. Dois outros cânones da bossa nova são revistos de maneira irreverente e despretensiosa: “Garota de Ipanema”, de Tom e Vinícius, e “Samba de uma nota só”, de Tom e Newton Mendonça. Em ambos, a mistura de vitalidade e frescor dá a tônica, sendo que na primeira o trabalho de Pomar é esplendoroso.

Composição que dá nome ao disco e inspirou o nome do trio, “Tema 3-D” é uma balada com levada de bossa nova, tranqüila e relaxada. Essa mesma atmosfera continua em “Manhã sem você”, composta pelo violonista Arísio Rubim, na qual Claudinho demonstra que já era, aos 17 anos, um músico de muita sensibilidade. O repertório da bossa nova é mais uma vez revisitado, com uma elegante versão de “A morte de um deus de sal”, da dupla Ronaldo Bôscoli e Roberto Menescal.

Cacho tem uma voz afinada, bastante agradável e envolvente, mostrando que Dick Farney fez escola ao sul do Trópico de Capricórnio. Canta a deliciosa “Fly Me To The Moon” em um inglês impecável e a bela “O amor em paz” em um português nem tanto. Nesta última, seu solo ao baixo é belíssimo e o trompete de Claudinho, discreto, ajuda a criar um clima de “Beco das Garrafas, Hora Cero”.

Fecha o disco mais uma pérola da dupla Baden e Vinícius, “Berimbau”. Mais uma vez o talento superlativo de Romão empolga o ouvinte, brindado com uma execução vibrante e transbordante de swing. Fantásticas as atuações do líder e do argentino Pomar, com direito a solos criativos, exuberância técnica e energia em doses cavalares. Um dos grandes momentos da música instrumental brasileira e retrato dos mais bens acabados da efervescência musical vivida pelo país no início dos anos 60.

Em 1965, seria lançado o seminal “Trio 3-D convida”, com participações especialíssimas de Raul de Souza, Eumir Deodato, Paulo Moura e Edson Maciel. Mais tarde, o trio se transformaria em Conjunto 3-D, com substituição de Cacho por Manoel Gusmão e a adição do guitarrista Hélio Delmiro e dos cantores Eduardo Conde e Beth Carvalho. Após quatro álbuns gravados, o grupo foi desfeito em 1968 e cada um dos seus ex-integrantes foi cuidar da própria carreira.

Em 1967 Adolfo conheceu o letrista Tibério Gaspar, de quem se tornou amigo e com quem manteve uma prolífica parceria, inaugurando a chamada “toada moderna”, juntamente com outros jovens renovadores da música brasileira, como Danilo e Dori Caymmi, Paulo Tapajós, Marcos e Paulo Sérgio Valle e outros. A dupla Antonio Adolfo/Tibério Gaspar foi responsável por grandes sucessos dos anos 60 e 70, como Sá Marina, Manequim, Tema Triste, Caminhada (que chegou à final do II Festival Internacional da Canção), Teletema, Juliana (2ª colocada na fase nacional do IV Festival Internacional da Canção) e do BR-3 (a grande vencedora do V Festival Internacional da Canção, com a interpretação memorável de Tony Tornado).

No final dos anos 60, o pianista fundou o grupo Brazuca, que, entre outras inovações, foi pioneiro na incorporação de elementos de música eletrônica à música brasileira. Sua formação original incluía o guitarrista Luiz Cláudio Ramos, o baixista Luizão Maia e o baterista Vítor Manga (substituído por Paulinho Braga), além de um trio de vocalistas.

Em 1971 lançou o seu primeiro álbum solo, chamado simplesmente “Antonio Adolfo” e entre 1971 e 1972, contratado pela Editora Larry Music, morou nos Estados Unidos, aproveitando a oportunidade para estudar com David Baker, na Indiana University. No início dos anos 70, Antonio Adolfo acompanhou Elis Regina em duas excursões à Europa. Em uma delas, decidiu ficar na França, a fim de estudar com a renomada compositora francesa Nadia Boulanger.

Além disso, manteve-se em feérica atividade, como acompanhante e arranjador, executando trabalhos para Elis Regina, Edu Lobo, Leci Brandão, Maria Bethânia, Ângela Rô Rô, Erasmo Carlos, Elizeth Cardoso, Emílio Santiago, Raul Seixas, Fátima Guedes, Quarteto em Cy, Marcos Valle, Fagner, Nara Leão, Ruy Maurity, Caetano Veloso, Nara Leão, Sueli Costa, Rita Lee, Vinícius Cantuária, Chico Buarque e Zezé Motta. Em 1975, chegou a acompanhar o astro Mick Jagger, na gravação da canção “Scarlet”, feita no Rio de Janeiro e que contou com a participação, entre outros, do baixista Dadi, do baterista Paulinho Braga e do guitarrista Luiz Cláudio Ramos.

Em meados dos anos 70, Adolfo vinha encontrando enorme dificuldade para gravar seus próprios discos, apesar de ser um músico renomado e um compositor de sucesso. Por isso, em 1977 decidiu fundar o selo Artezanal, responsável pelo primeiro disco totalmente independente lançado no país, apropriadamente chamado de “Feito em Casa”, sucedido por “Encontro Musical” (1978), “Viralata” (1979) e “Continuidade...” (1980), que obtiveram enorme repercussão junto à crítica especializada e vendas bastante satisfatórias.

Compôs trilhas sonoras para diversos filmes, como “Sonho sem fim”, de Lauro Escorel, “Memórias de um gigolô”, de Jece Valadão, “Balada dos infiéis”, de Geraldo Santos Pereira e “Ascensão e queda de um paquera” de Vitor de Mello. Também criou trilhas para o teatro, como as dos musicais infantis “Passa passa passará”, de 1984, e “Astrofolias” de 1985, ambas em parceria com Xico Chaves e Paulinho Tapajós.

Em 1985, ministrou uma oficina de música na Fundação Calouste Gulbenkian, em Portugal, ao lado de Pascoal Meirelles, Hélio Delmiro e outros. A experiência foi tão marcante que, no mesmo ano, o pianista criou o Centro Musical Antonio Adolfo, para se dedicar a uma de suas grandes paixões: a educação musical. O resgate da memória musical brasileira também é uma preocupação constante na vida do pianista, que já gravou álbuns dedicados à obra de Ernesto Nazareth, João Pernambuco e Chiquinha Gonzaga (o disco “Chiquinha com jazz”, lançado em 1997 pela gravadora Kuarup, foi vencedor do Prêmio Sharp de 1998).

Durante vários anos foi o representante da International Association For Jazz Education - IAJE para a América Latina. Também escreveu diversos livros sobre técnica pianística, teoria musical, arranjo e composição, além de ministrar, regularmente, cursos e oficinas nos Estados Unidos (onde fundou a Antonio Adolfo School Of Music, em Miami) e em diversos países da Europa. Pai da cantora Carol Saboya, o pianista lançou recentemente os álbuns “Antonio Adolfo & Carol Saboya ao vivo/Live” (2006) e “Lá e cá – Here And There” (2101).

Autor de uma belíssima matéria sobre o maestro, que termina com uma deliciosa entrevista, o blogueiro e jornalista Paul “Brasil” Constandinides escreveu o seguinte:

“Tranqüilidade e amabilidade são qualidades que podem ser conferidas ao pianista e compositor carioca Antonio Adolfo. Aos 61 anos de idade, seu talento e sua música única traduzem o esplendor da musicalidade brasileira num sentido direto e com uma capacidade ampla de revelar as nuances e as texturas que esta música adquiriu nas últimas décadas. Bossa Nova? Brazilian Jazz? Toada Moderna? MPB? Choro? Slow Samba? Para definir a música de Antonio Adolfo é preciso entender as variantes rítmicas rompidas e as incorporações musicais realizadas entre os anos 50 e 70 nos centros urbanos do sul do Brasil. O piano de Antonio Adolfo faz parte de uma história, é historia e faz história.”

Depois disso, não é preciso dizer mais nada, a não ser: muito obrigado por tudo, maestro!

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Hoje, dia 25 de abril de 2010, o Jazz + Bossa comemora o seu primeiro aninho. Nesses 365 dias, muitas alegrias me foram proporcionadas, especialmente por conta das amizades criadas, de gente dos mais variados locais do Brasil e do mundo. O blog teve 25.000 acessos, chegou à casa de 132 seguidores e, ao longo de 108 postagens, recebeu mais de 2.000 comentários (contando com os meus, é claro). E por se tratar de uma data especial, o Jazz + Bossa presta a sua homenagem a um músico tmbém muito especial: o nosso querido maestro Antonio Adolfo.

Portanto, só tenho a agradecer o apoio, o carinho e as presenças de todos os amigos que fazem, junto comigo, o Jazz + Bossa e que dão sentido à existência do blog. Também gostaria de agradecer aos diversos blogs co-irmãos, guerrilheiros virtuais na luta pela música de qualidade, sendo que não ousarei nominá-los, pois corro o enorme risco cometer alguma injustiça, esquecendo de citar algum deles.

Por fim, para comemorar esse primeiro aninho, o Jazz + Bossa propõe um blindfold test: o primeiro amigo que acertar os nomes de três dos oito músicos que atuam na faixa postada na radiolinha abaixo receberá, gratuitamente, “sem qualquer custo de armazenagem, frete, seguro ou capatazia”, um exemplar novinho em folha – lacrado – do cd “Drums Around The Wolrd”, do mago das baquetas Philly Joe Jones, que conta com as participações estelares de Lee Morgan, Cannonball Adderley, Benny Golson, Wynton Kelly e muitos outros. Boa sorte a todos!

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terça-feira, 20 de abril de 2010

LEVANDO A VIDA NA FLAUTA


Apesar do talento exponencial, Jerome Richardson não é dos músicos mais conhecidos na história do jazz. Seu nome dificilmente constará dos compêndios e enciclopédias com grande destaque, merecendo apenas algumas breves linhas em todos eles. A discrição que pautou sua vida e sua música faz com que, ao se falar dos maiores flautistas do jazz, lembremos sempre de nomes como Herbie Mann, Yusef Lateef, Frank Wess, Hubert Laws, James Spaulding ou James Moody, o que é uma grande injustiça. E olha que a flauta era apenas um dos instrumentos que ele dominava com rara habilidade!

De fato, esse multiinstrumentista é uma daquelas jóias raras que, por capricho dos deuses do jazz, acabou por não receber o devido reconhecimento do grande público, embora seja pouco provável que alguém nunca tenha ouvido uma de suas milhares – isso mesmo, milhares! – de gravações como sideman, em álbuns de jazz, blues, pop, rock, e até mesmo de música brasileira. É bom que se diga, no entanto, que poucos músicos mereceram de seus pares tamanho respeito e admiração, como se vai ver a seguir.

Ele nasceu em Sealy, Texas, mas seus registros indicam que nasceu em Oakland, Califórnia (para onde seus pais haviam se mudado logo após o nascimento), no dia 15 de novembro de 1920. Seu aprendizado musical começou aos oito anos, quando começou a tocar sax alto. Na adolescência, estudou no San Francisco State College, ao tempo em que, com apenas 14 anos, já fazia apresentações profissionais, na região de Bay Area, em San Francisco.

Johnny Hodges e Ben Webster eram os seus heróis e o jazz a coisa mais importante em sua vida. Em 1940 descobriu a flauta, que passou a receber as suas maiores atenções a partir de então. Tocou por algum tempo com a orquestra de Jimmy Lunceford e de 1942 a 1945 esteve na marinha e integrou a banda da corporação, liderada por Marshall Royal, o grande saxofonista da orquestra de Count Basie.

Ao sair da marinha, Richardson tocou com Lionel Hampton, de 1949 a 1951, e com Earl Hines, de 1952 a 1953. Na época, começou a tocar também o sax tenor e o sax barítono. Montou o seu primeiro combo naquele período, no qual pontuava o baixista George Morrow, que posteriormente ganharia certa notoriedade ao integrar os grupos de Max Roach.

Em 1954 desembarcou em Nova Iorque, onde se firmaria como um requisitado músico de apoio, trabalhando com Lucky Millinder, Cootie Williams, Oscar Pettiford, Ella Fitzgerald, Cal Tjader, Frank Sinatra, Kenny Clarke, Michel Legrand, Nat Adderley, Peggy Lee, Chico Hamilton, Nancy Wilson, Miles Davis, Billy Eckstine, Horace Silver, Lena Horne, Gerry Mulligan, Milt Jackson, Gerald Wilson, Maxine Sullivan, Ray Brown, Sarah Vaughan, Oliver Nelson, Billie Holiday, Gil Evans, Dizzy Gillespie, Zoot Sims, Ray Charles, Wes Montgomery, Billy Taylor e Eddie Lockjaw Davis, entre incontáveis outros.

Montou um quarteto que se tornou atração fixa do célebre Minton’s Playhouse, em 1955 e que incluía o pianista Hank Jones, o baixista Wendell Marshall e o baterista Shadow Wilson. Costumava substituir Buddy Collette nas temporadas do quinteto de Chico Hamilton no Basin Street, quando o saxofonista, por algum motivo, não podia viajar até Nova Iorque.

Em 1959 excursionou pela Europa com a orquestra de Quincy Jones, que apresentava então o musical “Free And Easy”, de Harold Arlen. Além das atividades como músico de estúdio, Richardson trabalhava como integrante fixo das orquestras do Teatro Roxy e do programa televisivo “The Hit Parade”. Na Broadway, participou das montagens de diversos musicais, incluindo “Ain't Misbehavin’”, “Black & Blue”, “Jelly's Last Jam” e outros. Uma de suas associações mais importantes no período foi com Charles Mingus, que o chamou para tocar sax barítono em seu álbum “Mingus Dinasty”, de 1959.

Uma das raras oportunidades de ouvirmos Richardson como líder é o ótimo “Midnight Oil”, gravado no dia 10 de outubro de 1958 e lançado pela Prestige. Ao seu lado estão o trombonista Jimmy Cleveland, o pianista Hank Jones, o guitarrista Kenny Burrell, o baixista Joe Benjamin e o baterista Charlie Persip. A produção ficou a cargo de Esmond Edwards e a engenharia de som coube ao mago Rudy Van Gelder.

Abrindo o disco em altíssima temperatura, “Minorally” é um bebop musculoso, de autoria do próprio líder, que aqui usa o sax tenor (nas outras faixas, ele toca apenas a flauta). O sexteto atua com enorme competência e os solos de Richardson são um primor de fluência e bom gosto. Burrell é, certamente, um dos mais técnicos e inventivos guitarristas da história do jazz e seu solo, impregnado de blues, é uma aula de vitalidade. Grandes momentos de Cleveland e Jones, merecendo destaque a bateria furiosa de Persip.

O irresistível swing de “Way In Blues” ecoa na cabeça do ouvinte por horas. O líder – e compositor – esgrime a flauta com enorme destreza e consegue imprimir ao tema bastante groove, no que é ajudado, sobremaneira, pela guitarra energizada de Burrell. A inusitada mistura de flauta e trombone resulta em uma sonoridade alegre, realçada pela maestria da inspirada sessão rítmica, especialmente Jones.

“Delerious Trimmings” é mais uma composição de Richardson, que começa lentamente para, aos poucos, ir acelerando. Belíssimo trabalho do baixista Benjamin e do endiabrado Persip, que aqui alivia a mão e usa as escovas com enorme talento. Como de costume, Burrell e Cleveland tocam um absurdo e o fleumático Jones perpetra talvez o solo mais elegante do álbum.

A clássica “Caravan”, de Duke Ellington, Irving Mills e Juan Tizol, ganha uma versão magistral. Impressionante como a flauta soa misteriosa e dá outro sentido harmônico a uma das composições mais conhecidas e gravadas de todos os tempos. A introdução, a cargo de Benjamin, Jones e Persip, é demolidora. Richadson parece um encantador de serpentes e o som que extrai do seu instrumento é verdadeiramente hipnótico, enquanto Burrell e Cleveland providenciam doses extras de histamina.

Pagando tributo aos heróicos tempos do swing, o grupo resgata “Liric”, do clarinetista Artie Shaw. Maravilhoso o diálogo entre Jones e Richardson e o solo de Burrell é simplesmente primoroso. É a única faixa sem a presença de Cleveland e encerra o disco de maneira mais que gratificante, com sua atmosfera dançável e alegre. Pena que além deste, Richardson somente tenha lançado, em seu próprio nome, mais três álbuns: "Roamin' With Richardson", de 1959, pela Prestige, "Going To The Movies", de 1962, pela United Artists e "Groove Merchant", de 1967, pela Verve.

Richardson também foi um dos fundadores e principais integrantes da Thad Jones-Mel Lewis Orchestra, entre 1965 e 1970, onde tocava flauta, sax alto, tenor e soprano. Sua amizade e lealdade para com Jones se estenderia para além da morte deste, em 1986. No final dos anos 80, ele organizou diversos concertos e tributos dedicados à música de Thad, até mesmo para arrecadar fundos para a família do falecido músico, que na época passava por dificuldades financeiras.

Em 1971 voltou para a Califórnia, trabalhando com o velho amigo Quincy Jones em projetos para o cinema e a televisão. A música brasileira não era estranha a Richardson, que participou de sessões com o maestro Tom Jobim, com o pianista Sérgio Mendes e com a cantora Astrud Gilberto, além de ter gravado com o maestro Moacir Santos e com Hermeto Paschoal, em seu álbum “Yogurt”, de 1972. Também participou de álbuns de grandes nomes da música pop, como Steely Dan, The Four Tops, Bee Gees, Mama Cass Elliot, Neil Diamond, Earth, Wind And Fire, Harry Belafonte e outros.

Em meados dos anos 80, retornou a Nova Iorque, onde tocou regularmente com Art Farmer, Clifford Jordan e Slide Hampton, além de ter liderado seus próprios conjuntos. Estima-se que tenha participado de inacreditáveis 4.000 gravações ao longo da carreira, tornando-se, certamente, um dos músicos mais prolíficos de todos os tempos. Além disso, Richardson também era compositor e arranjador e, nos últimos anos, também passou a cantar.

Faleceu no dia 23 de junho de 2000, em Englewood, Nova Jérsei, em decorrência de um ataque cardíaco. Sua grandeza e seu espírito solidário não se extinguiram nem mesmo com a morte. Atendendo a um pedido seu, a família requereu que quaisquer donativos feitos à sua memória fossem encaminhados à Dizzy Gillespie Foundation, dedicada a descobrir e apoiar jovens talentos musicais.

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sexta-feira, 16 de abril de 2010

UM MESTRE NA PERIFERIA DO CAPITALISMO




Único músico brasileiro a dominar completamente o idioma jazzístico moderno, indo do bebop parkeriano ao mais ousado free com a mesma naturalidade e competência, o carioca Victor Assis Brasil nasceu no dia 28 de agosto de 1945. No mesmo dia e local, com uma diferença de apenas cinco minutos, nascia o seu irmão gêmeo, o pianista João Carlos Assis Brasil.

Sempre incentivado pela família, Victor, desde muito cedo, revelou um talento musical fora do comum e seu primeiro instrumento foi a gaita. Embora fosse autodidata, a seriedade com que se dedicava à música fazia com que o garoto copiasse os solos de saxofonistas e trompetistas de jazz, que ouvia com devoção, para reproduzi-los na gaita. Aos 12 anos, recebeu de presente uma bateria e passou a se dedicar com o mesmo empenho ao novo instrumento.

Quando fez 17 anos, ganhou de uma tia um saxofone alto e, com isso, começou a se aventurar com enorme paixão e intensidade pelas veredas abertas pelos ídolos Charlie Parker, Cannonball Adderley, Phil Woods e John Coltrane. Deslumbrado com as possibilidades do novo brinquedo, que casava à perfeição com a sua fabulosa musicalidade, o jovem saxofonista passava horas praticando, incansavelmente, e, a partir daí, teve a inabalável certeza de que a música seria um elemento determinante em sua vida e nela haveria de se enraizar profundamente.

Victor começou a tocar, basicamente, em reuniões familiares e em shows nas escolas da Zona Sul carioca, como os tradicionalíssimos colégios Andrews, onde estudava, e Benett. Em pouco tempo, já era capaz de encarar as concorridas jam sessions do lendário Beco das Garrafas, especialmente nas boates Little Club e Bottles, onde atuava a nata da música instrumental brasileira, além de cantores como Leny Andrade, Claudete Soares, Elis Regina, Pery Ribeiro e Wilson Simonal.

A reputação de exímio improvisador só aumentava e um dos primeiros músicos a reconhecer o talento do jovem saxofonista foi Paulo Moura, que tomou-o sob sua proteção e foi seu primeiro professor de teoria musical, ajudando-o a refinar a sua fabulosa técnica. Ao mesmo tempo, preocupado com as incertezas da vida musical, foi aprovado no vestibular para o curso de Direito, na Universidade Cândido Mendes, mas nunca chegou a concluí-lo.

Em 1965, quando alguns jornalistas, críticos musicais, radialistas e músicos cariocas criaram o Clube de Jazz e Bossa, coube a Victor a honra de protagonizar o show que marcou a inauguração do clube, realizado na boate Gaslight. O clube, na época, era presidido pelo jazzófilo Jorge Guinle e dentre os seus associados constavam nomes como José Domingos Raffaelli, Ricardo Cravo Albin, Luiz Orlando Carneiro, Ary Vasconcelos, Everardo Magalhães Castro e Silvio Túlio Cardoso. Suas reuniões eram realizadas, inicialmente, no Golden Room do Hotel Copacabana Palace, aos sábados, e, posteriormente, na boate Little Club, aos domingos.

Naquele mesmo ano, durante uma de suas apresentações no CJB, Victor foi ouvido pelo pianista e maestro austríaco Friederich Gulda, ele próprio um grande admirador e intérprete de jazz. Impressionado com o talento do saxofonista, o maestro incentivou-o a participar do Concurso Internacional de Viena, em 1966, onde Victor recebeu um honroso terceiro lugar, na categoria de saxofone.

O júri, integrado pelo próprio Gulda e por feras do calibre de J. J. Johnson, Cannonball Adderley e Joe Zawinul, deu a vitória a Eddie Daniels, bem mais experiente e então um destacado integrante da Thad Jones-Mel Lewis Orchestra. Posteriormente, Daniels tocaria com uma plêiade de grandes jazzistas, como Yuse Lateef e George Benson, e se consagraria como clarinetista, chegando a ser comparado a Benny Goodman e Buddy DeFranco, pelo apuro técnico e pela inventividade. Mas aquele terceiro lugar, obtido pelo jovem instrumentista brasileiro, que mal havia completado 21 anos, foi crucial na manutenção de sua auto-estima e de suas convicções musicais.

Aproveitando a oportunidade na Europa, onde ficou por quase um ano, Victor dedicou-se ao estudo de teoria musical e composição. Na mesma viagem, e de forma ainda mais surpreendente, o brasileiro foi eleito o melhor solista do Festival de Jazz de Berlim, que lhe renderia como prêmio uma bolsa de estudos na prestigiosa Berklee School of Music, nos Estados Unidos.

Victor gravou seu primeiro disco, chamado “Desenhos”, em 1966, para o pequeno selo Forma, secundado pelo pianista Tenório Júnior, pelo baixista Edison Lobo e pelo extraordinário Chico Batera. Trata-se de um verdadeiro marco na história da música instrumental brasileira saudado pela crítica especializada como “o primeiro grande disco de jazz gravado no Brasil” e que, infelizmente, se encontra fora de catálogo há vários anos.

O segundo LP, “Trajeto”, seria lançado em 1968, antes de sua partida para os Estados Unidos, e obteve ótima repercussão de crítica e público, especialmente do chamado circuito universitário. Naquele ano, Victor liderou um sexteto onde despontavam jovens instrumentistas como o pianista Haroldo Mauro, de apenas 18 anos e o tenorista Ion Muniz, então com 19 anos, fizeram a turnê “Calmalmas”. O grupo realizou concorridos shows em teatros e universidades país afora, apresentando o jazz a pessoas que, habitualmente, tinham muito pouco contato com esse tipo de música.

Marco na trajetória do saxofonista, foi a apresentação do seu sexteto, juntamente com o Quinteto Villa-Lobos e a companhia de dança de Sandra Diekens, na Sala Cecília Meireles, no Rio de Janeiro, ainda em 1968. Sobre a importância de levar sua música às pessoas e formar um público interessado em jazz, Victor chegou a afirmar: “Ninguém avalia a minha felicidade diante de um garotão de cabelo parafinado, quieto, ouvindo minha música sem amplificadores”.

Em 1969, mais uma façanha internacional: foi considerado o melhor saxofonista do festival de Festival de Montreux, liderando um quinteto que contava com os fabulosos Dom Salvador (piano), Hélio Delmiro (guitarra), Edison Lobo (baixo) e Edison Machado (bateria). Em seguida, Victor partiu para os Estados Unidos, a fim de estudar em Berklee, onde ficou por cinco anos, aprimorando sua técnica e estudando, sobretudo, harmonia, arranjo e composição.

Na terra de Tio Sam, o saxofonista conseguiu um razoável destaque no concorrido cenário jazzístico – reza a lenda que, após ouvi-lo, um dos seus professores em Berklee, abismado com o seu nível técnico, teria lhe perguntado: “Você veio aos Estados Unidos para aprender ou para ensinar saxofone?”. Para ajudar a se manter, o saxofonista dava aulas de improvisação na J. D. School of Music, em Boston.

Ao longo da sua carreira, Victor tocou com nomes importantes como Dizzy Gillespie, Jeremy Steig, Red Mitchell, Albert Mangelsdorff, Slide Hampton, Richie Cole, Clark Terry, Chick Correa, Ron Carter, Jeff Gardner e Bob Mover, entre outros. Durante o período nos Estados Unidos, formou uma banda com músicos norte-americanos e brasileiros, onde se destacava o trompetista Cláudio Roditi.

Em 1970, durante suas férias, passou três meses no Brasil e aproveitou para gravar dois álbuns: “Victor Assis Brasil toca Antonio Carlos Jobim” (para o selo Forma), onde, pela primeira vez em disco, usa o sax soprano, e “Esperanto” (para o selo Tapecar), que somente foi lançado em 1974.

Produzido por Robert Quartin, o álbum “Victor Assis Brasil toca Antonio Carlos Jobim” (lançado em cd pela Atração Fonográfica) pode ser descrito como o encontro épico de dois titãs da música brasileira. Em comum, ambos possuíam uma incontida paixão pelo jazz e a aspiração de fazer uma música universal, sem perder de vista as peculiaridades harmônico-melódicas do samba e da bossa nova. Liderando um quinteto que contava com os mesmos músicos que o acompanharam em Montreux, no ano anterior, o saxofonista estava particularmente iluminado nesta sessão, gravada nos dias .

Solto de qualquer amarra estética e disposto a expandir as fronteiras do jazz e da música popular brasileira, Victor encontrou no repertório jobiniano o veículo mais que adequado para destilar a sua técnica invejável e a sua capacidade improvisacional aparentemente ilimitada. Perfeccionista ao extremo, jamais se contentava com um acorde que não fosse, no mínimo, irretocável.

Em “Wave”, tema que abre o disco, o arranjo torna o tema, por vezes, irreconhecível, sem jamais ofuscar-lhe a beleza. O fraseado do líder é prenhe de lirismo e criatividade, alternando os registros agudos e graves com o máximo de expressividade. O piano de Dom Salvador, outro improvisador nato, e a guitarra de Hélio Delmiro, preenchem todos os espaços da melodia e Edison Machado, soberano, mostra porque é um dos maiores bateristas brasileiros de todos os tempos.

“Só tinha de ser com você” rememora os gloriosos tempos do Beco das Garrafas, com um arranjo que reverencia todos os cânones do samba jazz. Bateria pulsante, com excepcional trabalho de pratos, baixo robusto, diálogos que beiram o impossível, discurso incisivo do saxofone e um piano ensandecido, dão a sensação de que o ouvinte se encontra em plena jam session dominical, na histórica boate Little Club.

Em “Bonita”, uma das jóias menos badaladas do repertório do maestro soberano, Victor se mostra senhor absoluto do vocabulário jazzístico, improvisando com extrema autoridade e com uma excepcional capacidade de concatenar o enorme fluxo de idéias de maneira lógica e coerente. Por outro lado, seu saxofone jamais soa mecânico ou cerebrino: sua música é feita com alma e emoção, apesar da elevada complexidade harmônica. Os parceiros que o acompanham compreendem essa intensa necessidade de expressão e jamais impões qualquer obstáculo ao vigoroso solista. Além do líder, outro destaque é Salvador, que aqui maneja, com competência ímpar, o órgão Hammond.

“Dindi” talvez seja a faixa mais arrojada do álbum, do ponto de vista estilístico, com uma introdução arrebatadora, a cargo de Salvador, novamente pilotando o Hammond. Os instrumentos vão se agregando aos poucos, primeiramente a bateria de Edison Machado, depois o etéreo sax soprano do líder, que após quase um minuto de improvisação livre começa a articular a melodia. Poucas vezes essa composição tão bela foi interpretada com tamanha ousadia, valendo destacar a guitarra à Wes Montgomery de Delmiro.

A delicada “Quartiniana”, feita em homenagem ao produtor Robert Quartin, encerra o álbum de maneira bastante tranqüila, com seu clima oriental minimalista. A reedição em cd, pelo selo Atração Fonográfica, traz, além da apresentação escrita pelo próprio Tom Jobim e que constava do LP, um emocionado e emocionante depoimento de Quartin, no qual revela a sua admiração pelo fabuloso músico e ser humano Victor Assis Brasil.

Mesmo sem concluir sua graduação em Berklee, Vitor retorna, definitivamente, ao Brasil em 1974 e decide retomar sua carreira profissional, já que era mais reconhecido no exterior do que em seu próprio país – fato que o magoava bastante. Vieram então novas turnês e apresentações pelo país, o álbum “Victor Assis Brasil Ao Vivo no Teatro da Galeria” (CID) e uma marcante participação na trilha sonora da novela O Grito, da Rede Globo, com a inclusão de quatro composições suas no disco.

Em 1976, sob a regência do maestro Marlos Nobre, apresenta a sua “Suíte para Sax Soprano e Cordas”, executada pela Orquestra Sinfônica Nacional, no templo da música erudita brasileira, a Sala Cecília Meireles. Em 1977, apresentou-se com o pianista Luiz Eça no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em um show histórico, que posteriormente seria lançado em disco.

No mesmo ano, fez shows ao lado do flautista norte-americano Jeremy Steig e, para coroar a sua obstinada luta pela causa do jazz, foi convidado por Art Blakey para ser o diretor musical do mítico Jazz Messengers – associação que, infelizmente, não se materializou, ante a ausência de tempo hábil para solucionar as intrincadas exigências legais e contratuais necessárias.

Em 1978, foi um dos destaques do I Festival de Jazz de São Paulo, deixando boquiabertos músicos como Chick Corea e Joe Farrell e merecendo rasgados elogios do crítico Leonard Feather, que, extasiado com sua performance, escreveu: “Victor Assis Brasil, um esplêndido saxofonista, não deixou que sua longa estada nos Estados Unidos confundisse seus valores, apresentando uma música firmemente plantada nos solos dos dois países. Seu ‘Love For Sale’ recebeu um tratamento altivo, contagiante, jamais incerto em seu senso de direção”.

No ano seguinte, apresentou-se no Festival de Jazz de Monterey e gravou seus dois últimos álbuns: “Victor Assis Brasil Quinteto” e “Pedrinho”, ambos pela EMI-Odeon. Victor foi um dos pioneiros na realização de workshops para jovens músicos e a sua influência pode ser sentida no trabalho de gente como Mauro Senise, Roberto Sion, Carlos Malta, Mané Silveira, Nivaldo Ornelas, Ivo Perelman, Zé Nogueira, Ion Muniz, Nailor Proveta e muitos outros.

Quando estava no ápice criativo e começava a desfrutar do merecido reconhecimento no Brasil, Victor Assis Brasil faleceu, vitimado por uma doença circulatória bastante rara, chamada periartrite nodosa, no dia 14 de abril de 1981, no Rio de Janeiro. Tinha apenas 35 anos. Seu legado, consistente em oito álbuns gravados no país e em mais de 500 composições, representa um dos momentos mais sublimes da música instrumental brasileira, capaz de ombrear-se à obra dos grandes mestres do jazz.

Após a sua morte, sua mãe conservou intactas, no apartamento da família, duas malas que havia encontrado no quarto do filho. Quando seu irmão, o pianista João Carlos Assis Brasil, decidiu abri-las, em 1988, deparou-se com centenas de partituras, que continham cerca de quatrocentas composições inéditas, compreendendo peças para piano solo, orquestra e quarteto de cordas, indo do jazz ao erudito, com uma nítida influência de compositores modernos como Satie, Debussy e Stravinsky.

O resultado dessa viagem afetivo-musical está contido no cd “Self Portrait”, lançado originalmente em 1990 pela Kuarup e relançado pela Biscoito Fino, no qual João Carlos se faz acompanhar por Paulo Sérgio Santos (clarinete e saxofone), Zeca Assumpção (contrabaixo) e Jurim Moreira (bateria). Dentre as 13 músicas escolhidas pelo pianista para compor o disco, destacam-se um tributo a Bill Evans, chamado “One for Bill”, e “Blues for Oliver”, composta em homenagem ao saxofonista e arranjador Oliver Nelson.

Em 2001, o guitarrista Alexandre Carvalho, o pianista Fernando Martins, o saxofonista Idriss Boudrioua, o contrabaixista Paulo Russo e o baterista Xande Figueiredo criaram o Quinteto Assis Brasil, dedicado à preservação da sua obra. Em 2005, ano em que Victor completaria 60 anos, o quinteto se apresentou, juntamente com o pianista João Carlos, na Sala Baden Powell, em um concerto em homenagem ao saxofonista.

Cioso de sua arte, Victor jamais se rendeu à ditadura do mercado ou aceitou submeter-se a contextos comerciais, apesar das eventuais dificuldades financeiras. Obcecado pela preservação da música de qualidade, costumava dizer que o jazz, no Brasil, só era pouco conhecido por causa da sua precária divulgação. Ele tocava apenas aquilo que lhe parecia relevante e sua honestidade, integridade artística e dedicação à música permanecem vivos, quase trinta anos depois de sua morte. Sobre ele, o querido José Domingos Raffaelli escreveu:

“Victor foi um dos maiores músicos brasileiros de todos os tempos. Tinha ainda muito a realizar, muito a oferecer, muitos projetos idealizados. Resta-nos o consolo da sua obra gravada. Uma obra inspirada, criativa e, acima de tudo, musicalmente honesta. Victor Assis Brasil deixou um grande vazio que não foi e dificilmente será preenchido, além de uma imensa saudade que não foi e não será amenizada no coração de todos os que tiveram a felicidade de conhecê-lo.”


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