Amigos do jazz + bossa

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

POEMAS DE JAZZ (1)


ITINERÁRIO DO FOGO

Nada sou, exceto aquilo que repudio,

Em instantes de irresoluta substância,

Nada tenho, contra ou com quem lutar,

Contra mim, contra ti, amar

Um velho amor, despido sob as estrelas inconsúteis

Um amor em frangalhos, breve, disperso

Um amor que não há

Mas sou só

E sozinho atravesso as horas arredias

Do meu observatório de espelhos

Pompas fúnebres me acobertam

Horas a fio, vésperas sem par

O ser, o nada, o tempo, o ter

Há em mim uma surdez de sensações

Mas ouço os derradeiros acordes

Do tango célere que me açoda os passos

E que ceifa os meus dias

Passados, presentes, futuros

Há bem menos de mim agora

Sob o preguiçoso luar desse novembro sem chão

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Inaugurando uma nova sessão no JAZZ + BOSSA e inspirado pelo compadre Celijon, resolvi tirar a poeira dos meus velhos alfarrábios e compartilhar com os viajantes do blog algumas mal-traçadas linhas que se pretendem poéticas. Chamei esse espaço de POEMAS DE JAZZ e espero que gostem.

No podcast, algumas músicas do cd “Move!”, do guitarrista Hank Garland, originalmente um músico mais ligado ao country mas que produziu alguns excelentes álbuns de jazz, merecendo elogios de ninguém menos que Tal Farlow e Les Paul. Na banda, além do líder, um jovem Gary Burton (vib), Joe Morello (bt) e Joe Benjamin (b). Esse disco duplo condensa três álbuns de Garland para a Columbia (“Jazz Winds From A New Direction”, “Velvet Guitar” e “The Unforgetabel Guitar Of Hank Garland”), gravados entre março de 1959 e agosto de 1960. Boa audição. E boa leitura também.

sábado, 26 de setembro de 2009

UM PETARDO SONORO CHAMADO CURTIS FULLER


Curtis DuBois Fuller é considerado pela crítica especializada o trombonista mais importante do hard bop, com relevância comparável à que teve J. J. Johnson (uma de suas mais significativas influências, ao lado de Jimmy Cleveland e Urbie Green) para o bebop. Nasceu em Detroit, no dia 15 de dezembro de 1934, e a música entrou em sua vida ainda no colegial. Curiosamente, seu primeiro instrumento foi o sax barítono, trocado pouco tempo depois pelo trombone.

O ambiente musical da cidade, altamente estimulante, permitiu o convívio com futuros astros do jazz, como Donald Byrd, Paul Chambers, Pepper Adams, Kenny Burrell e Elvin Jones, com quem Fuller mantinha, além da amizade pessoal, uma intensa troca de informações musicais e um estreito convívio nos clubes e casas noturnas da Capital do Automóvel, onde todos eles começaram suas respectivas carreiras profissionais.

Para se ter uma idéia de como era bem representativa a cena musical da Detroit dos anos 50, basta dizer que ali pontuavam estrelas como Thad Jones, Louis Hayes, Barry Harris, Hank Jones, Yusef Lateef, Roland Hanna, Doug Watkins e Tommy Flanagan. Em 1953 Fuller esteve no exército, onde conheceu Cannonball Adderley, então sargento da companhia em que ambos serviam. De volta à vida civil, gravou o primeiro álbum como líder, “Introducing Curtis Fuller”, para o selo Transition (1956) e integrou-se ao quinteto de Yusef Lateef, ao lado de quem desembarcou em Nova Iorque em 1957, para gravar alguns álbuns para a Savoy e a Verve.

Nesse período, o seu fraseado potente e encorpado chamou a atenção de gente como John Coltrane, Jimmy Smith, Bud Powell, Benny Golson, Miles Davis, Sonny Clark, Phil Woods, Hank Mobley, Horace Silver, Sonny Rollins, Paul Quinichette, Clifford Jordan, Lester Young, Kenny Dorham, Blue Mitchell, Lee Morgan e outros, tendo sido um dos mais requisitados músicos de apoio do final dos anos 50. Compositor inspirado, Fuller é o autor de verdadeiros clássicos do hard bop, como “Vonce # 5”, “Transportation Blues” e “Cashmere”, tendo gravado com regularidade para selos como Savoy, Prestige, Blue Note, Atlantic e Impulse, entre as décadas de 50 e 60.

Em 1959, lançou o seminal “Blues-ette”, pela Savoy, ao lado de Benny Golson, Tommy Flanagan, Jimmy Garrison e Al Harewood. Sobre a importância deste disco, basta dizer que 34 anos depois, em 1993, o quinteto se reuniu novamente para “Blues-ette – Pt. 2”, novamente para a Savoy, mas com Ray Drummond substituindo o falecido Jimmy Garrison. Ainda em 1959, foi convidado por Golson para integrar o Jazztet, combo fundado por ele e pelo trompetista Art Farmer.

Em 1957, Fuller viveu um ano admirável. Além dos discos para a Prestige, lançou o magistral “The Opener”, sua primeira gravação como líder para a Blue Note, onde chegou com status de estrela em ascensão. Hank Mobley (ts), Bobby Timmons (p), Paul Chambers (b) e Art Taylor (bt) foram os companheiros convocados para a empreitada, cujo resultado é um álbum impecável, não apenas porque todos os músicos são verdadeiros mestres em seus respectivos instrumentos, mas também por conta de um repertório muito bem escolhido, que permite a todos, sem exceção, exibir competência técnica, inventividade e elevada capacidade de improvisação.

Em “A Lovely Way To Spend An Evening”, que abre o disco, o trombone de Fuller é doce e envolvente, criando um clima altamente sedutor. A primorosa remasterização de Rudy Van Gelder permite que se ouçam todos os instrumentos e que se perceba toda a delicadeza dessa faixa encantadora – o elegantérrimo solo de Timmons merece ser ouvido mil vezes. “Hugore”, com sua levada funky e seu leve sabor de blues é o veículo mais que apropriado para as intervenções altamente criativas de Mobley. A sacolejante “Oscalypso”, de Oscar Pettiford, com a sua levada ondulante e cálida, evoca um mergulho nas águas cristalinas do Caribe, com um diálogo extraordinário entre Fuller e Mobley.

Outro grande destaque é a emocionante versão de “Soon”, dos irmãos Gershwin, na qual Timmons, novamente, mostra porque é considerado um dos pianistas mais habilidosos das décadas de 50 e 60 e o brilhante Taylor dá uma aula de versatilidade e ritmo. Em “Lizzy's Bounce”, um bebop matador do próprio Fuller, o destaque é Chambers, soberbo tanto na parte rítmica quanto nos solos. “Here's to My Lady”, de Johnny Mercer, completa este set verdadeiramente indispensável, com Fuller desintegrando tudo ao redor, com o seu aparentemente inesgotável vigor físico e sua proverbial criatividade. Um álbum para se ouvir muitas e muitas vezes!

O trombonista também participaria de uma das formações mais arrojadas e criativas dos Jazz Messengers de Art Blakey, entre 1961 e 1965, e que incluía o pianista Cedar Walton, o saxofonista Wayne Shorter e o trompetista Freddie Hubbard. Nesse período, os Messengers lançaram alguns dos seus álbuns mais primorosos, como “Mosaic”, “Ugetsu” e “Free For All”. Ainda nos anos 60, excursionou com Dizzy Gillespie e se manteve bastante ativo, conservando-se como um dos músicos mais requisitados de Nova Iorque e acompanhando tanto veteranos como Philly Joe Jones, quanto estrelas em ascensão, como Booker Little, Houston Person, Joe Henderson e Wayne Shorter. Nos anos 70, tocou ao lado de Stanley Clarke e integrou a orquestra de Count Basie.

De lá para cá, lançou alguns poucos discos, ao lado de figuras como Cedar Walton, Kai Winding, Javon Jackson, Paul Jeffrey, Larry Willis e dos velhos companheiros Pepper Adams, Louis Hayes, Tommy Flanagan, Art Blakey e Benny Golson. Após a morte de Blakey, uniu-se a Terence Blanchard, Benny Golson, Geoff Keezer e Lewis Nash para lançar o tributo “The Legacy Of Art Blakey”, pela Telarc, em 1997. Permanece em atividade até hoje, gravando regularmente e tocando em festivais de jazz pelo planeta afora. Sorte nossa!

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

MY NAME IS REECE, DIZZY REECE: UM TROMPETISTA A SERVIÇO DE SUA MAJESTADE


Alguns acham que é o saxofonista Tubby Hayes. Outros, o trompetista Humphrey Littelton. O pianista Victor Feldman também tem boas chances. Dave Holland, assim como John McLaughlin, é outro forte candidato. Boa parte aponta George Shearing, enquanto alguns poucos sufragam o nome de Ronnie Scott. As novas gerações não titubeiam em afirmar que é Evan Parker, embora John Surman tenha lá os seus defensores. Todos grandes músicos, decerto. Mas se fosse instado a escolher o mais importante nome do jazz britânico, eu não hesitaria em afirmar: Dizzy Reece é o maior!

Exagero, muitos dirão. Vejamos o que disse o crítico inglês Kenneth Tynan quando Reece trocou o fog londrino pela efervescência de Nova Iorque, no final dos anos 50: “Demorou muito tempo para que Londres tivesse um músico capaz de mudar os rumos do trompete. Em Dizzy Reece nós encontramos esse alguém e, agora que descobrimos que o temos entre nós, ele nos deixa. Nós sentiremos a sua falta, mas a nossa perda representa um enorme ganho para a América”.

Esse artista surpreendente, súdito de Sua Majestade, a Rainha Elizabeth, nasceu no dia 05 de janeiro de 1931, em Kingston, Jamaica. Seu pai era um pianista do cinema mudo e a música entrou muito cedo na vida do jovem Alphonso Son Reece. Ainda na infância, passava horas ouvindo os ídolos King Oliver, Louis Armstrong e Buck Clayton. O temperamento elétrico e irrequieto – nos dias de hoje, seria politicamente correto chamá-lo de hiperativo – garantiu-lhe o apelido Dizzy.

Também por conta de sua inquietude, os pais o matricularam na severa Alpha School For Boys, instituição para jovens músicos conhecida não apenas pela excelência do ensino, mas também pela disciplina rigorosa que impunha aos seus alunos. Ali permaneceu de 1942 a 1945, iniciando os estudos no saxofone barítono e, em seguida, passando para o trompete. Aos 16 anos, fez as primeiras apresentações profissionais, acompanhando a orquestra de Jack Brown, bastante conhecida na região de Kingston.

Decidido a ampliar seus horizontes musicais e buscando melhores oportunidades profissionais, mudou-se para Liverpool em 1948. No ano seguinte, já atento à revolução do bebop, assistiu em Paris a uma apresentação de Charlie Parker, fato que definiu sua convicção em prol da honorável causa do jazz. Impressionou-se, sobretudo, com a classe e a economia do fraseado do trompetista que acompanhava Bird naquela turnê: Miles Davis.

Tocando em orquestras inglesas e fazendo turnês pela Europa, Dizzy aportou em Londres em 1954. Não tardou a se destacar na cena musical londrina, fazendo apresentações e gravando com Tubby Hayes, Martial Solal, Victor Feldman, Frank Foster, Kenny Clarke, Don Byas, Thad Jones e Ronnie Scott. Suas gravações feitas para selos como Savoy e Tempo chegaram aos Estados Unidos e despertaram o interesse de Alfred Lion, que em 1958 foi a Londres gravar o primeiro disco de Reece para a sua prestigiosa Blue Note.

Músicos americanos, como Art Taylor e Donald Byrd, e britânicos, como Tubby Hayes e Terry Shanon, acompanharam Reece em seu debut e o disco “Blues In Trinity” teve uma boa repercussão por parte do público e da crítica. Convidado por Lion para integrar o cast da Blue Note, Reece mudou-se para os Estados Unidos em outubro do ano seguinte, fixando-se em Nova Iorque.

Participou como sideman de álbuns de Duke Jordan, Art Blakey, Hank Mobley, Andrew Hill e Clifford Jordan, e lançou mais alguns ótimos discos pela Blue Note. Gravando para este selo, no final da década de 50 e início da década de 60, liderou sessões ao lado de grandes feras do jazz, como Walter Bishop Jr., Paul Chambers, Doug Watkins, Stanley Turrentine, Bobby Timmons, Jymie Merritt, Sam Jones e Wynton Kelly, mas não chegou a fazer o sucesso esperado.

Embora os quatro álbuns que lançou pela Blue Note possam ser considerados verdadeiros clássicos do hard bop e tenham sido bastante aclamados pela crítica, merece destaque uma pequena obra-prima que produziu para a Prestige e que, lamentavelmente, ainda permanece na obscuridade. Trata-se do maravilhoso “Asia Minor”, gravado em 13 de março de 1962, nos estúdios de Rudy Van Gelder.

A seleção de craques escolhidos para acompanhar Reece impressiona: Cecil Payne (sax barítono), Joe Farrell (sax tenor e flauta), Hank Jones (piano), Ron Carter (baixo) e Charlie Persip (bateria), todos em excelente forma e com um apetite aparentemente insaciável. O azeitadíssimo sexteto executa seis temas belíssimos, alternando a necessária doçura nos temas mais amenos com uma elevadíssima voltagem nos temas mais acelerados.

O compositor Reece dá o ar de sua graça em três belos temas: “The Shadow Of Khan”, na qual Farrell e Payne desmontam e reconstroem o arcabouço harmônico inúmeras vezes, sempre com alta dose de adrenalina e paixão, “Yamask” e “Ackmet”, ambas pinceladas com um discreto acento oriental, em grande parte graças à belíssima flauta de Farrel, destacando-se a atuação devastadora do líder. Nas três, a atuação da sessão rítmica é impecável, merecendo especial atenção os belíssimos solos engendrados pelo elegantérrimo Jones.

Uma interpretação memorável da canção mexicana “The Story Of Love”, de Carlos Almarán (que ganhou título e letra em inglês de George Thorn), dá a medida da versatilidade e da desenvoltura de Reece. Ele incorpora um verdadeiro mariachi e perpetra um solo caliente, emocional como se a história de amor cantada na composição fosse sua. As intervenções do sax de Payne são fabulosas e bateria em ebulição de Persip acrescenta uma boa dose de swing ao tema.

Há uma certa austeridade na forma como Reece interpreta a indefectível “Summertime”, que ganha um contorno quase marcial – reflexo, talvez, de sua condição de súdito da Rainha da Inglaterra. O blues está presente em toda a sua intensidade, especialmente por conta da extraordinária atuação de Carter e Persip. Mais uma vez, Payne executa um solo inebriante, incisivo, e o lânguido saxofone de Farrell parece descrever, com riqueza de detalhes, a vida nos campos do sul dos Estados Unidos, onde “fish are jumpin’ and the cotton is high”.

Uma emocionada homenagem a Bird advém da lindíssima “Spiritus Parkus”, composição de Payne, um hard bop enviesado, cheio de alternativas harmônicas, com Reece, Payne e Farrell desafiando-se mutuamente, com direito a solos extremamente arrojados, quase transgressores, do trio. Jones, com seu solo impressionista, reveste de uma comedida elegância a faixa, que está à altura da genialidade do homenageado.

Após “Asia Minor”, Reece só voltaria a gravar como líder em 1970, no álbum “From In To Out”, lançado pelo selo Futura. Durante esse hiato, dedicou-se à literatura (é autor de alguns romances e livros infantis) e mergulhou de cabeça no estudo da música oriental e da cultura indiana. Nos anos 70 e 80, residindo novamente na Europa, tocou com Dexter Gordon, Roy Haynes, Clifford Jordan, Albert Dailey, Ted Curson, Victor Feldman, Duke Jordan, John Gilmore e Philly Joe Jones.

Também integrou a Paris Reunion Band, orquestra criada pelo saxofonista Nathan Davis para homenagear o falecido Kenny Clarke e que teve em suas fileiras músicos como Johnny Griffin, Slide Hampton, Kenny Drew, Woody Shaw e Idris Muhammed. Nos anos 90 a sua associação mais regular foi com a big band de Clifford Jordan, com quem chegou a gravar alguns álbuns. Ele permanece em atividade, alternando incursões pela música e pela literatura e os seus álbuns gravados para a Blue Note foram compilados pela Mosaic, que em 2004 lançou o obrigatório “Mosaic Select”. Atualmente, o culto e articulado Dizzy Reece reside em Nova Iorque, na companhia do seu gato Gino.

domingo, 20 de setembro de 2009

O VERMELHO É A COR DO JAZZ?


Se o jazz tem uma cor, possivelmente é vermelha. Afinal, são tantos os “Reds” que têm contribuído para construir e dignificar o edifício jazzístico... Red Garland, Red Rodney, Red Callender, Red Norvo, Red Allen, Red Kelly, Red Mitchell – se formos procurar com afinco, a lista será enorme. Mas, por ora, fiquemos com apenas um deles!

Keith Moore “Red” Mitchell é habitualmente considerado o mais talentoso e criativo baixista associado ao jazz da Costa Oeste (ele que, curiosamente, nasceu em Nova Iorque, no dia 20 de setembro de 1927 e foi criado em Nova Jérsei). O adjetivo genial também é bastante associado à sua pessoa, bastando uma audição de suas inúmeras gravações para ter certeza de que tamanho prestígio é mais que merecido.

O insuspeito Ray Brown declarou de viva voz ao jornalista e então aluno Zuza Homem de Melo, quando este estudava contrabaixo na prestigiosa School Of Jazz, no final da década de 50: “Só conheço dois gênios no contrabaixo: Red Mitchell e Oscar Pettiford”. A opinião de Brown era compartilhada pela revista Down Beat, que em artigo publicado em 1956, tecia rasgados elogios a Mitchell, e pelo crítico Leonard Feather, que o considerava o melhor solista do contrabaixo jazzístico de todos os tempos.

O apelido desse pianista por formação que se tornou um baixista por opção se deve aos cabelos ruivos. Inquieto por natureza, Mitchell sempre foi muito pouco fiel às situações estabelecidas e mudanças radicais eram uma constante em sua vida. A primeira delas foi abandonar o curso de engenharia na Universidade de Cornell, trocando-o pelas aventuras proporcionadas pela carreira militar.

Servindo ao exército entre 1947 e 1948, aproveitou para trocar o piano, que tocava desde a tenra infância, pelo contrabaixo. A forma como se aproximou do novo instrumento é hilariante: trocou (mais uma vez o verbo trocar parece traçar os destinos do moço) 15 caixas de cigarro por um contrabaixo usado.

Após algumas semanas de exclusiva dedicação ao novo companheiro, agregou-se à banda do exército, já como contrabaixista, e nunca mais deixou de usar o volumoso instrumento (embora, vez por outra, fizesse incursões ao piano e ainda cantasse e tocasse sax alto e clarineta). Suas maiores influências foram Ray Brown, Milt Hinton, Al McKibbon e Charles Mingus.

Dispensado do exército em 1948, Red fez o habitual périplo pelos clubes da Big Apple, tocando com o cantor Jackie Paris, integrando orquestras como as de Charlie Ventura e Woody Herman e acompanhando grandes músicos como Mundell Lowe, Charlie Parker, Red Norvo e Gerry Mulligan. Foi por intermédio de Mulligan, com quem tocava à época, que Mitchell trocou a enfumaçada Nova Iorque pelas ensolaradas praias da Califórnia (mais uma troca), em 1954.

Estabelecido em Los Angeles, ele não demorou para se tornar referência na cena local, tocando com virtualmente todos os nomes do Wes Coast, de Hampton Hawes a Jim Hall, passando por André Previn, Chet Baker, Stan Getz, Jimmy Raney, Harold Land, Zoot Sims, Jimmy Rowles, Bobby Brookmeyer, Al Cohn, Warne Marsh, Russ Freeman, Conte Candoli e Jimmy Giufree.
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Também acompanhou ou foi acompanhado por luminares como Dizzy Gillespie, Phil Woods, Lester Young, Milt Jackson, Sonny Rollins, Booker Ervin, Miles Davis, Benny Carter, Sonny Clark, Joe Pass, Billie Holiday, Duke Jordan e Ornette Coleman e tocou durante um bom tempo na orquestra dos estúdios MGM.

Sua discografia como líder é esparsa, mas de alta qualidade, espalhada por selos como Bethlehem, Contemporary, Storyville, Pacific, Mercury e SteepleChase. Um dos pontos altos é o álbum “Presenting Red Mitchell”, gravado para a Contemporary em 26 de março de 1957. No acompanhamento, o jovem Billy Higgins, que então dava os primeiros passos de sua vitoriosa carreira como um dos mais completos bateristas do jazz e dois músicos talentosos, embora imerecidamente obscuros: James Clay e Lorraine Geller.

O primeiro era um saxofonista/flautista texano, que granjeou certa notoriedade por seu trabalho com Booker Ervin, Bill Perkins, Lawrence Marable e Wes Montgomery. Seu disco "The Sound of the Wide Open Spaces", ao lado do também saxofonista David "Fathead" Newman, é um pequeno clássico do jazz.
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A segunda, era uma pianista de grandes recursos técnicos e profunda conhecedora do idioma bop, esposa do saxofonista Herb Gelller e que viria a falecer, prematuramente, em outubro do ano seguinte, em decorrência de um ataque cardíaco. Além do marido, Lorraine acompanhou Shorty Rogers, Conte Candoli, Zoot Sims, Maynard Ferguson, Miles Davis, Stan Getz e Charlie Parker. Tinha apenas 29 anos por ocasião da sua morte.

Esse quarteto de qualidade superlativa gravou sete temas, onde predomina uma abordagem bopper, sem esquecer, é claro, da descontração e do relaxamento que caracterizam qualquer sessão gravada na Costa Oeste. Não por acaso, “Scrapple From The Apple”, de Charlie Parker, abre o disco de maneira vigorosa, com o líder exibindo a sua célebre inventividade nos solos e Clay emulando Sonny Rollins, construindo solos nada óbvios.

A climática “Rainy Night” é uma composição de Mitchel, cuja singeleza é realçada pela delicada flauta de Clay e pelo piano etéreo de Geller. A outra composição do líder incluída no álbum é a balada “I Thought Of You”, prenhe de lirismo, onde Geller, mais uma vez, merece o maior destaque, por conta da atmosfera quase lúdica que extrai das teclas. As intervenções de Clay, aqui novamente fazendo uso da flauta, também são dignas de nota.

Higgins, jovem e abusado, está soberbo em “Out Of The Blue”, de Miles Davis e sua integração com Mitchell é nada menos que telepática. Uma curiosa versão de “Paul’s Pal”, de Sonny Rollins, reserva ao ouvinte surpresas bastante agradáveis, sobretudo porque o tradicional sax tenor que estamos acostumados a ouvir foi trocado pela swingante doçura da flauta. Solos hipnóticos de Mitchell e os arabescos sonoros de Geller – inspiradíssima – fazem dessa releitura outro ótimo momento do álbum.

“Sandu”, de Clifford Brown, com sua estrutura calcada no blues, recebe uma reverente leitura, com o lamentoso sax de Clay se derramando por sobre a melodia, num misto de resignação e dramaticidade. Geller ataca o piano com volúpia e sagacidade (é, tem gente que ainda questiona a competência das mulheres no jazz) e Higgins, com o despudor típico da juventude, comete um solo furioso, capaz de deixar boquiabertos os bateristas mais experientes.

Fechando o álbum, uma deliciosa versão de “Cheek To Cheek”, cujo destaque absoluto fica por conta do irrepreensível Clay. Há algo de Sonny Rollins na forma aparentemente incansável com que ele ataca as palhetas do seu saxofone, indo dos registros mais graves aos mais agudos em frações de segundo, sem jamais perder o senso melódico. Bebop de primeira, com grandes intervenções de Geller – seu solo é primoroso – e a dobradinha Mitchell-Higgins funcionando como se tocasse junta há décadas. Se você é um apaixonado por jazz, esse disco não pode faltar em sua estante. Se ainda não é, esse disco serve como uma excelente flecha do Cupido, capaz de arrebatar, de vez e para sempre, o seu coração para a excelente causa do jazz.

Em 1968, Mitchell se mudou para a Europa, fixando residência em Estocolmo. Atuou em orquestras locais e fez incontáveis turnês pelo velho continente, embora sempre encontrasse tempo para as temporadas anuais no seu querido Bradley’s, em Nova Iorque. Também era poeta, compositor e educador musical, tendo sido professor de ninguém menos que Charlie Haden.

Nos anos 70 e 80 tocou com Clark Terry, Tommy Flanagan, Lee Konitz, Herb Ellis, Kenny Barron, Hank Jones, Horace Parlan e Roger Kellaway, com quem desenvolveu uma parceria das mais interessantes. Em 1992, retornou aos Estados Unidos, estabelecendo-se em Salem, Oregon. Poucos meses depois, exatamente no dia 08 de novembro, ele sofreria um infarto fulminante. Para honrar a memória desse grande e generoso músico, a viúva Diane criou o Red Mitchell Memorial Fund Scholarship, fundo destinado a subsidiar os estudos de jovens contrabaixistas.

Se estivesse vivo, Red Mitchell completaria 82 anos exatamente hoje, daí porque esta postagem também é, à sua modesta maneira, uma pequena forma de homenagear esse fantástico instrumentista, um dos mais requisitados da história do jazz (sua discografia como sideman é quilométrica) e que influenciou diretamente grandes músicos, como Scott LaFaro e Niels-Henning Ørsted Pedersen. Red rules!

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

UM GÊNIO À SOMBRA DE POWELL E MONK

Ira Gitler, nas notas do álbum “Trio And Quintet” (Blue Note 11498), faz um relato dramático e emocionante sobre o funeral do pianista e compositor Elmo Hope. Enquanto os alto-falantes da casa funerária rendiam-lhe homenagens, tocando sua composição “Monique”, seu pai, avançado em anos, soluçava abraçado ao caixão e, em desespero, gritava:

- Meu filho! Meu filho!

Essa cena permaneceu viva na memória do renomado crítico por mais de 20 anos. Elmo contava com quarenta e três anos no dia de sua morte, 19 de maio de 1967, e a sua importância para o desenvolvimento do jazz ainda não foi devidamente aquilatada. Muito embora seja um dos compositores mais originais do bebop, com uma obra que em muitos aspectos lembra a de Thelonious Monk, e capaz de executar ao piano temas de elevada complexidade harmônica, dignas de Bud Powell, a sombra desses gigantes sempre eclipsou a produção de Elmo.

Por uma série de fatores, Hope tampouco pôde dar vazão ao seu vulcânico potencial criativo, tendo gravado relativamente poucos álbuns como líder. Sobre essa circunstância, que certamente contribuiu para manter seu nome na obscuridade, merecem atenção as palavras de outro crítico bastante respeitado, David H. Rosenthal:

“No momento em que Monk e Powell haviam perdido o seu fogo criativo, Elmo Hope parecia destinado a assumir um lugar entre os melhores pianistas de jazz da história. Entretanto, ele teve pouca chance de realizar todas as suas potencialidades. Ao invés disso, ele deixou apenas alguns vislumbres daquilo que nós podemos intuir como uma carreira segura e completa”.

O garoto nascido em 27 de junho de 1923, no Bronx, Nova Iorque, iniciou os estudos de piano aos sete anos. Elmo teve como vizinho e amigo de infância ninguém menos que Bud Powell. Os dois costumavam passar horas ouvindo jazz e Bach. Aos catorze anos o jovem Hope era um pianista respeitado, mas as oportunidades para um pianista negro nos anos 40 eram remotas no âmbito da música erudita. Por isso voltou-se para o jazz e sua primeira oportunidade profissional foram os clubes, casas noturnas e dancings. Também tocou em bandas de R&B, merecendo destaque o período em que esteve na orquestra de Joe Morris (entre 1948 e 1951), onde também pontuavam Johnny Griffin, Philly Joe Jones e Percy Heath.

Em meados dos anos 50, tocou com músicos da estatura de Clifford Brown, Sonny Rollins, Lou Donaldson, Frank Foster, Kenny Dorham, Art Blakey, John Coltrane, Donald Byrd, Hank Mobley e Jackie McLean. Nessa época, já bastante envolvido com as drogas, Hope chegou a faltar a diversas sessões de gravação, o que valeria a pecha de músico pouco confiável. Certa feita, teve que ser substituído às pressas por Duke Jordan porque simplesmente não apareceu em uma gravação que faria sob a liderança de Gene Ammons. Também perdeu a sua licença para tocar em clubes e casas noturnas, em virtude do uso de drogas.

Por conta desses fatos e de uma progressiva desilusão com a cena musical de Nova Iorque, em 1957 resolveu mudar-se para Los Angeles. Embora tenha tido um relativo sucesso na cena local, tocando com Chet Baker, Lionel Hampton, Curtis Counce e Harold Land (no ótimo “The Fox”), Hope jamais se adaptou completamente à Cidade dos Anjos e volta e meia expressava o desejo voltar à Big Apple. O saxofonista Harold Land, impressionado com a habilidade de Elmo e sua assombrosa capacidade para compor, chegou a comentar que ele criava melodias com a mesma facilidade que uma pessoa normal escrevia uma carta.

Na Califórnia, casou-se com a também pianista Bertha Hope, em 1960. Descontente com a escassez de trabalho na Costa Oeste, Hope retornou a Nova Iorque em 1961, gravando na cidade natal o maravilhoso “Homecoming”, ao lado de Blue Mitchell, Frank Foster, Jimmy Heath, Percy Heath e Philly Joe Jones. Mas esse disco não teve o reconhecimento esperado, sobretudo por parte do público e Hope teve pouquíssimas oportunidades de gravar como líder depois disso. Chegou a ser preso no mesmo ano, 1961, fato que certamente influenciou o título do seu próximo álbum, gravado em 1963 e chamado “Jazz From Riker’s Island”, nome de uma célebre prisão americana.

Se a temporada californiana não rendeu a Elmo o almejado reconhecimento, pelo menos deu-lhe a oportunidade de gravar um disco verdadeiramente notável, em 1959, para a Contemporary. Trata-se de “Elmo Hope Trio”, gravado no dia 08 de fevereiro de 1959. Acompanham Hope o baixista Jimmy Bond (tocou com Chet Baker, Gene Ammons, Charlie Parker, Ella Fitzgerald, Dizzy Gillespie, George Shearing e Paul Horn) e o baterista Frank Butler (acompanhou Harold Land, Dave Brubeck, Miles Davis, John Coltrane, Curtis Counce e Duke Ellington).

O trio interpreta sete composições do líder e um standard, “Like Someone In Love”. A atmosfera romântica da canção de Jimmy Van Heusen e Johnny Burke adquire contornos de incontida melancolia, graças à delicadeza do toque de Hope. Suas qualidades como compositor são evidentes e sua habilidade como executante é inacreditável. Para ilustrar, nada melhor que “B’s A-Plenty”. Trata-se de um bebop pouco convencional, assentado no blues e com uma estrutura fragmentária e nervosa.

Como sucede com a obra de Monk, pode-se vislumbrar uma ligação bastante estreita, quase orgânica, entre o compositor e o executante. Essa característica foi muito bem observada por Hampton Hawes, outro soberbo pianista, que conviveu de forma bastante próxima com Hope, em seu período californiano. Para Hawes, Elmo era essencialmente um compositor-pianista que, “como Duke Ellington, ele tocava em um estilo próprio, que derivava do que ele compunha e o que ele compunha era muito bom”.

A balada “Barfly”, altamente lírica, traz citações a “I Remember Clifford” e um magistral trabalho de Bond. Em outra balada de grande complexidade, a intrigante “Eejah”, observa-se com mais nitidez a influência de Monk. Na acelerada “Boa”, chama a atenção o diálogo entre Hope e Butler, que se revela um baterista excepcionalmente criativo. Em “Something for Kenny”, com suas tinturas latinas e improvisações desconcertantes, mais uma vez o destaque é Butler, que executa solos belíssimos.

A vibrante “Minor Bertha”, uma homenagem à futura esposa, e a reflexiva “Tranquility” encerram o set. Findos os 43min53s do disco, o silêncio que se segue convida o ouvinte a fazer a seguinte indagação: como é possível que um músico tão original e criativo, possa ser tão pouco conhecido? Alguns dos grandes pianistas que integraram a primeira geração do bebop, como George Wallington, Walter Bishop Jr., Herbie Nichols, Al Haig e Dodo Marmarosa, também padecem do mesmo esquecimento. Contudo, nenhum deles, exceto Nichols, possui uma obra, do ponto de vista composicional, tão desafiadora, intrincada e pessoal quanto a de Hope.

Em 1967, a saúde frágil e a vida errática renderam a Elmo uma grave pneumonia, que o manteve por semanas a fio hospitalizado. Quando já estava em processo de recuperação, sofreu um infarto fulminante. Apesar de não estar presente nas célebres sessões do Minton’s que engendraram a transição do swing para o bebop, eis que na época atuava como músico em clubes do Greenwich Village e Coney Island, ele teve uma contribuição bastante relevante para o desenvolvimento do estilo ao piano.
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Todavia, jamais mereceu uma fração do reconhecimento que seus contemporâneos Bud Powell e Thelonious Monk tiveram. Nas palavras do trombonista Roswell Rudd, Elmo era um pianista fabuloso e “permanece sendo um dos segredos mais bem guardados da América”. Espera-se que não por muito tempo.

domingo, 13 de setembro de 2009

DEX & DIZZY? NÃO: TEDDY & MAGGIE


Theodore Marcus Edwards nasceu no dia 26 de abril de 1924, na cidade de Jackson, Mississipi. O apelido Teddy veio na infância, assim como o aprendizado musical. Seu primeiro instrumento foi o sax alto, passando em seguida para a clarineta, até finalmente se fixar no sax-tenor. Aos catorze anos, já elaborava as primeiras composições. Profissionalizou-se no início dos anos 40 e chegou a tentar a sorte em Detroit, cuja cena musical era bem mais efeverscente que a da sua cidade natal, mas foi obrigado a retornar por conta de problemas familiares.

Novamente no Mississipi, integrou-se à orquestra de Ernie Fields e com ela excursionou pelo país, até chegar a Los Angeles, em 1944. Adotou a Cidade dos Anjos como lar e, em pouquíssimo tempo, iria se consagrar como um dos mais inovadores e habilidosos saxofonistas do West Coast e do bebop, chegando a influenciar ninguém menos que Jimmy Heath e John Coltrane, que costumavam passar horas estudando seus solos.

Antes disso, todavia, o garoto de apenas 20 anos gostava de assistir, embevecido, às apresentações das grandes orquestras de R&B, especialmente a Roy Milton And His Solid Senders e a Louis Jordan And His Timpany. Roy Milton, aliás, foi o seu primeiro empregador na Costa Oeste e sobre o afável patrão, disse Edwards: “Roy era um sujeito muito jovial. Com ele, a vida era um grande dia feliz. Eu me diverti muito naquela orquestra”. Mas tocar R&B, por mais divertido que fosse, não satisfazia as aspirações artísticas de Edwards, que em 1945 foi convidado para substituir ninguém menos que Coleman Hawkins na banda de Howard McGhee.

Nascido em Tulsa, Oklahoma, no dia 06 de março de 1918 e criado em Detroit, Mcghee era um músico experiente, que já havia tocado com Lionel Hampton, Slim Gaillard, Andy Kirk, Count Basie, George Auld, Charlie Barnet e Thelonious Monk. Integrou, juntamente com Dizzy Gillespie e Fats Navarro, a primeira geração de trompetistas do bebop e era conhecido por causa do vigor e da velocidade que imprimia a seu sopro, sem jamais perder o elevado sentido melódico. Suas gravações para a Blue Note, ao lado de Navarro, no final dos anos 40, são consideradas das mais relevantes para a história do bebop e o grande Clifford Brown foi um de seus confessos herdeiros musicais.

A parceria entre McGhee e Edwards perdurou por cerca de dois anos e incluiu concertos e gravações com grandes nomes do jazz, como Sonny Criss, Hampton Hawes, Roy Porter e Charlie Parker, com quem Edwards costumava a disputar longas partidas de xadrez. Nessa época, Edwards começa a ganhar notoriedade graças às célebres batalhas travadas com os excepcionais Dexter Gordon e Wardell Gray nos clubes da área de Los Angeles.

Outro fato curioso envolvendo Parker e Edwards: em 1946, Bird deveria se apresentar em um concerto do Jazz At The Philharmonic. Auditório lotado, público impaciente e nem sinal de Parker. Algumas pessoas já começavam a pedir seu dinheiro de volta quando Edwards, que também integrava a trupe, disse ao produtor Norman Granz que sabia onde Bird estava. Foi buscá-lo às pressas e o concerto transcorreu normalmente. O agradecido Granz jamais esqueceu o favor e em 1998, mais de 50 anos depois, mandou a Edwards uma carta de agradecimento. Dentro, um cheque de 10 mil dólares.

Em 1947, foi McGhee quem se engajou na caravana Jazz At The Philarmonic e partiu para outras paragens geográficas e musicais. O ex-parceiro permaneceu em Los Angeles, tocando com músicos locais, como Vince Guaraldi, Leroy Vinnegar, Ray Brown e Joe Castro. Também tocou com Max Roach e Clifford Brown, Gerald Wilson, Benny Carter, Dizzy Gillespie, Benny Goodman, Milt Jackson, Earl Hines e Jimmy Smith, mas jamais obteve o mesmo reconhecimento que o contemporâneo Dexter Gordon. Diga-se, ainda, que o fim da parceria não significou o fim da amizade, tanto é que Edwards compôs “Maggie’s Back In Town”, em homenagem ao trompetista.

McGhee sentia com bastante intensidade a força do racismo na Costa Oeste, sobretudo por ser casado com uma mulher branca, fato que contribuiu decisivamente para aceitar o convite de Norman Granz. Nos anos 50, problemas com drogas praticamente paralisaram a sua carreira e o obrigaram à inatividade forçada, embora tenha feito gravações esporádicas com J. J. Johnson, Pepper Adams, Duke Jordan, Tommy Flanagan, Sahib Shihab, Ron Carter, Percy Heath e Kenny Drew.

Nos anos 60, já recuperado, Maggie, como era conhecido entre os amigos, voltou aos palcos e estúdios com o apetite de um leão. Lançou, em 1960, uma elogiada versão do score da peça “The Connection”, pela Felsted Records, ao lado do pianista Freddie Redd (autor da trilha sonora e que, por motivos contratuais, usou o pseudônimo de I Ching nas gravações), Tina Brooks, Milt Hinton e Ossie Johnson. Gravou regularmente para selos como Argo, Fantasy, Contemporary, Bethlehem e Storyville.

Formou interessantes parcerias com Charlie Rouse e James Moody, tocou com Duke Ellington, Johnny Hodges e Barry Harris e liderou algumas big bands em Nova Iorque, durante os anos 60. Além disso, dedicou-se intensamente ao ensino de música em diversas escolas da cidade. Um dos pontos altos da discografia de McGhee – e de Edwards também – foi o disco que celebrou o retorno da parceria, catorze anos depois de haver sido desfeita.

O álbum se intitula, apropriadamente, “Together Again!!!!” e os quatro pontos de exclamações grafados após o título são plenamente justificados. As gravações transcorreram nos dias 15 e 17 de maio de 1961, nos estúdios da Contemporary em Los Angeles, sob a produção do big boss Lester Koenig. Acompanhando os líderes, os espetaculares Phineas Newborn Jr. ao piano, Ray Brown no baixo e Ed Thigpen, cujo pai havia sido companheiro de McGhee na orquestra de Andy Kirk nos anos 40, na bateria.

A faixa que abre e dá nome ao disco é uma composição de Edwards, escrita especialmente para o reencontro. Trata-se de um blues anabolizado, altamente influenciado pelo hard-bop, com direito a um trabalho soberbo de Brown. O diálogo dos líderes é sempre muito estimulante e os solos de McGhee transitam entre a dolência do blues e a incandescência do bebop.

O standard “You Stepped Out Of A Dream” vem inebriado de odores latinos – cortesia da percussão malemolente de Thigpen. McGhee usa a surdina com muita altivez e imprime ao seu fraseado um pequeno acento oriental, dando um sabor ainda mais exótico a esse cardápio delicioso. Edwards executa alguns dos mais belos e complexos solos do álbum e Brown, como sempre, funciona como uma pista de pouso segura e bem iluminada. Por mais altos que sejam os vôos de seus companheiros, eles sabem que não haverá problemas na aterrissagem.

Pequena gema concebida por Brow, “Up There” é um bebop nervoso, que funciona como o veículo perfeito para as maravilhosas pirotecnias de Edwards. “Perhaps” é uma composição de Charlie Parker não muito conhecida e ganha uma versão à altura da genialidade do seu criador. Além dos fantásticos solos Edwards e McGhee, o destaque fica por conta das improváveis harmonias inventadas por Newborn, que mostra porque merece figurar entre os maiores pianistas de todos os tempos – e um dos poucos dos anos 50 e 60 que não provém diretamente de Bud Powell.

A eterna Misty, de Erroll Garner, recebe tratamento cinco estrelas. Lindíssima versão, desde a fabulosa introdução, a cargo de Edwards, até o derradeiro acorde. Encerrando o set, uma composição do trompetista, o fulgurante bebop “Sandy”. São quase dez minutos de virtuosismo, criatividade e total domínio técnico por parte de todos os integrantes do combo, que têm amplo espaço para exibir as suas habilidades, embora os solos de McGhee, por sua plasticidade, sejam dignos de atenção redobrada por parte do ouvinte. Um disco espetacular, merecedor de quatro estrelas por parte do rigoroso Penguin Guide.

McGhee e Edwards cultivaram a sólida amizade ainda por muitos anos. O primeiro manteve-se em atividade regular até o final dos anos 70, embora tenha lançado poucos álbuns como líder nesse período – seu último álbum foi “Wise In Time”, de 1979, pelo selo Storyville. A década de 80 foi pouco produtiva para o trompetista. Ele morreu no dia 17 de julho de 1987, em Nova Iorque, aos 69 anos.

O segundo atravessou as décadas de 60 a 90 trabalhando como músico de estúdio e lançando seus discos por selos como Pacific, Contemporary, Prestige, Xanadu, Muse e SteepleChase. Tocou com os tenoristas Houston Person e Dick Morrissey, com os pianistas Ronnie Mathews e Richard Wyands e acompanhou o cantor Tom Wayts. Viajou pelo mundo inteiro, fazendo shows em países como Inglaterra, Holanda, Suíça e Alemanha. Em 2000 e 2001 lançou os elogiados “Ladies Man” e “Smooth Sailing”, ambos pelo selo High Note. Faleceu no dia 20 de abril de 2003, às vésperas de completar 79 anos.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

O ENCANTADOR DE SAXOFONES


O jazz deve muito a Billy Eckstine. Nos anos quarenta, passaram por sua orquestra alguns dos maiores músicos de todos tempos, muitos deles envolvidos com a criação e o desenvolvimento de um estilo que mudaria para sempre a cara do jazz e sepultaria, do ponto de vista estético, a inocente era do swing, que se encerrou, de fato, no dia 6 de agosto de 1945, quando a anti-rosa atômica dizimou 250 mil pessoas em Hiroshima. O mundo estava mais cínico e mais sombrio. O bebop era a tradução desse cinismo e a trilha sonora mais adequada para esse novo mundo – escuro, cruel e violento – que emergia após a Segunda Guerra Mundial.

Na orquestra de Mr. B atuaram, entre incontáveis outros, Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Lucky Thompson, Leo Parker, Art Blakey, Fats Navarro, Tadd Dameron, Kenny Dorham, Tommy Potter, Budd Johnson, Miles Davis, Gene Ammons, Hank Jones, Dexter Gordon, Wardeil Gray e John Malachi. Havia também por ali um saxofonista franzino, extremamente compenetrado para qualquer coisa que se relacionasse ao jazz, e que seria uma das principais referências do sax alto: Edward Sonny Stitt.

Nascido em 02 de fevereiro de 1924, em Boston, e quatro anos mais novo que Bird, Stitt lutou por muitos anos contra o epíteto de que seria um imitador de Charlie Parker. Sempre que tinha a oportunidade, afirmava categoricamente que o seu estilo já estava desenvolvido quando ouviu pela primeira vez a música de Parker. Aliás, quando Bird se achava impedido de atender a algum compromisso, geralmente indicava Stitt como a melhor opção para substituí-lo, o que pode ter contribuído para entranhar no pensamento geral a idéia de que o segundo imitava o primeiro.

Ouvindo-se as gravações de ambos, percebem-se as diferenças de estilo e, sobretudo de concepções harmônicas, o que permite concluir que Stitt, de fato, sempre buscou uma voz própria dentro do jazz, embora haja muitas semelhanças entre o seu fraseado e o de Bird. A melhor forma de constatar essa distinção é escutando o fabuloso tributo “Stitt Plays Bird”, de 1963, onde Sonny encara com muita competência e personalidade o repertório de Parker. A abalizada voz de Hank Jones confirma essa distinção. Para o longevo pianista, amigo e companheiro de Stitt em incontáveis gravações e concertos:

“Eu não creio que Sonny tivesse tentado copiar alguém. Sonny Stitt tentava apenas ser Sonny Stitt. Muitas pessoas o comparam a Charlie Parker, e é verdade que Sonny possuía a mesma destreza técnica que Parker, mas não acredito que ele tentasse imitá-lo. Quando eu fecho os olhos e lembro como era tocar com ele, as palavras que me vêm à mente são: absoluta sinceridade”.

Stitt começo seu aprendizado na música com o piano. Passou para o clarinete e se firmou como saxofonista alto, embora também tocasse sax barítono e tenor, instrumento que passou a usar com regularidade a partir do final dos anos 50. Sua primeira experiência profissional, em 1942, foi na orquestra de Tiny Bradshaw, de onde saiu para integrar a orquestra de Eckstine. Depois disso, Stitt tocou algum tempo com Dizzy Gillespie (1946) e fez suas primeiras gravações como líder nessa época, para a Savoy. Passou algum tempo na prisão de Lexington, entre 1948 e 1949, por conta do seu envolvimento com heroína.

Uma vez livre, gravou com Kenny Clarke e Serge Chaloff e formou um duo com o saxofonista tenor Gene Ammons, velho companheiro da orquestra de Billy Eckstine. Como líder, gravou com regularidade para selos como Prestige, Argo, Roullette e Verve. Nos anos 50 tocou com James Moody, Ella Fitzgerald, Clifford Brown, Bud Powell, J. J. Johnson e Eddie “Lockjaw” Davis, além de ter integrado o Jazz At The Philarmonic. Numa das viagens internacionais da famosa caravana criada por Norman Granz, Stitt presenteou o mundo com um álbum belíssimo.

Talvez fossem os ares de Paris, onde o disco foi gravado, no dia 18 de maio de 1959, com produção de Granz. Talvez tivesse sido a companhia estimulante e desafiadora de Oscar Peterson, um músico que está para o virtuosismo ao piano no mesmo plano que Sonny está para o sax alto. Talvez fosse o repertório de extremo bom gosto, inclusive com composições de Parker. O certo é que o disco “Sonny Stitt Sits In With The Oscar Peterson Trio” se inscreve, sem dúvida alguma, entre os três melhores álbuns da quilométrica discografia de Stitt (mais de 150 discos como líder e centenas de outras gravações como sideman).

Ray Brown e Ed Tighpen completam o combo e propiciam a Stitt e Peterson, dois dos mais brilhantes improvisadores do jazz, a segurança necessária para diálogos memoráveis e solos devastadores. Já dizendo a que veio, Stitt faz gato e sapato de “I Can Give You Anything But Love”, de Doroty Fields e Jimmy McHugh. Peterson brinca com as teclas em seu solo, mas na maior parte do tempo contenta-se apenas em acompanhar o desenvolto Stitt. A destacar, o sensacional trabalho de Tighpen e a introdução genial, a cargo de Brown.

Uma prova de fogo para qualquer saxofonista, “Au Privave” é executada com absoluta naturalidade por Stitt. Aqui se tanto se percebe que as comparações com Parker são pertinentes, do ponto de vista da fenomenal capacidade técnica de ambos, como se constata o quão injustas são as acusações de que Stitt era um imitador de Bird. A música flui, transborda, exala do sax de Stitt com bastante personalidade. É um grande músico tocando à sua própria maneira uma composição de um outro grande músico. E isso não é pouco. A luxuosa sessão rítmica se mantém discreta, certamente para permitir uma audição mais atenta ao trabalho de Stitt.

Em “The Gypsy”, outra das características mais peculiares de Stitt se evidencia: a do baladeiro passional, desbragadamente romântico, como se cantasse as suas próprias dores e desilusões amorosas. Há muitas semelhanças entre “I’ll Remember April”, de 1942, e “Copacabana”, de 1946, o que ensejou, inclusive, algumas acusações de plágio a Braguinha e Alberto Ribeiro. A versão da célebre composição de Gene de Paul acentua as semelhanças, graças à percussão de Tighpen, que imprime um certo sabor latino ao tema.

Stitt em estado de graça e Peterson possesso fazem de “Scrapple From The Apple” uma das faixas mais extraordinárias do disco. Não é improvável que os líderes desconhecessem a música de Luís Gonzaga, que nas décadas de 40 e 50 teve diversas composições suas vertidas para o inglês e, além disso, ambos tocaram inúmeras vezes no Brasil e gravaram diversas músicas de compositores brasileiros. A própria “Baião” foi transformada por Ray Gilbert, sem autorização do autor, no sucesso “Caroom pa pa”, gravada por Carmem Miranda em 1949. A versão demolidora engendrada por Peterson e Stitt tem algo de baião em sua estrutura, sobretudo durante o solo do pianista e os atalhos da música, mais uma vez, mostram que o sol inclemente da caatinga pode sim aquecer as enfumaçadas noites da Rua 52.

“Moten Swing” ganhou uma versão bluesy, musculosa, mas sem qualquer prejuízo ao seu contagiante swing. Em “Blues for Pres, Sweets, Ben & all The Other Funky Ones” Stitt homenageia alguns ilustres predecessores, fazendo uso do sax tenor. A atmosfera de blues é reforçada pela sessão rítmica, em especial por Brown. O solo de Peterson é magistral, com evocações a outro “funky one” de primeira, o imortal Duke Ellington, e a parte final, com um expressivo diálogo entre o piano e o sax tenor, é fascinante. Outro blues – “Easy Does It”, de Trummy Young e Sy Oliver – e novamente com Stitt no tenor, encerra o set, de maneira irretocável.

Existem edições em cd nas quais foram acrescidas três faixas (“Sweet And Lovely”, “I Remember You” e “I Know That You Know”), gravadas em Los Angeles, em outubro de 1957, com Stan Levey na bateria e Herb Ellis na guitarra. Infelizmente, a versão que possuo contempla apenas o set original de oito faixas. Não obstante, é um disco soberbo, apto a desfilar por horas a fio na vitrola de qualquer aficionado por jazz.

Sobre Stitt, diga-se ainda que em 1957 lançou o excelente “Sonny Side Up”, pela Verve, ao lado dos lendários Sonny Rollins e Dizzy Gillespie. Nos anos 60 e 70, manteve o ritmo frenético de concertos e gravações. Atuou por um breve período na banda de Miles Davis, acompanhou Art Blakey, Barry Harris, Art Pepper, Harry Edison, Paul Gonsalves e Booker Ervin. Também gravou um ótimo disco ao lado Zimbo Trio. Faleceu no dia 22 de julho de 1982, em decorrência de um infarto fulminante.

Quando se ouve o sopro de Stitt, a impressão que se tem é a de que ele pertence à raríssima estirpe dos encantadores de saxofone. Basta fechar os olhos e percebe-se “o instrumento ganhando vida própria, levitando num palco pouco iluminado, sob um comando mental distante, a tocar sozinho! Isso porque simplesmente não foi possível visualizar o músico na mecânica natural, na outra ponta do instrumento. E aí a imagem entra no foco nos reflexos cintilantes no corpo de um sax como um objeto alado”. E essa é a imagem que me vem aos olhos nesse exato instante, enquanto ouço novamente a lânguida “The Gypsy”.

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Post dedicado ao amigo Sérgio Sônico, que me chamou a atenção para essa espécie raríssima de saxofonistas, capazes de encantar o instrumento e fazê-lo tocar sozinho. A ela também pertence o grande Eli Lucky Thompson e uns pouquíssimos outros.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

UM MÁRTIR INVOLUNTÁRIO DA INSENSATEZ LATINOAMERICANA


Qualquer ditadura, seja de direita, seja de esquerda, é uma conjugação de estupidez e brutalidade. Infelizmente nós, brasileiros, fomos obrigados a conviver com ditaduras em, pelo menos, dois períodos da nossa história: durante o Estado Novo de Getúlio Vargas (1937 a 1945) e durante o tenebroso regime militar, que afundou o país no obscurantismo entre de 1964 e 1986.

A segunda ditadura brasileira seguiu um movimento histórico no qual o embate entre as superpotências (EUA e União Soviética) fazia dos países periféricos mero joguete de sua geopolítica. Na América Latina dos anos 60 e 70, os Estados Unidos financiaram ou apoiaram ostensivamente uma série de Golpes de Estado, que apearam do poder governos eleitos democraticamente e culminaram na implantação de ditaduras em países como El Salvador, Nicarágua, Bolívia, Peru, Brasil, Chile e Argentina. Os ridículos tiranos e seus asseclas davam as cartas.

A ditadura argentina foi, de longe, a mais perversa e brutal. Ali, cerca de 30 mil pessoas pereceram sob as mãos do regime militar. Tortura, seqüestro, assassinato, tudo cometido em nome de um Estado sanguinário e cruel. Ninguém estava a salvo. Nem mesmo um músico consagrado como o pianista carioca Francisco Tenório Cerqueira Júnior. Para os amigos, simplesmente Tenorinho.

Tenório Júnior acompanhava Vinícius de Moraes e Toquinho em uma excursão a Buenos Aires quando, na madrugada de 18 de março de 1976, foi detido após deixar o Hotel Normandie, onde o grupo estava hospedado. Havia saído para comprar remédios e cigarro quando foi seqüestrado por agentes da repressão oficial e desapareceu sem deixar pistas.

Os motivos da sua prisão, até hoje, são obscuros. Era um músico brasileiro, que acompanhava um cantor/compositor extremamente querido e conhecido na Argentina. Não tinha nenhuma vinculação com a luta armada ou com os movimentos de esquerda, então na clandestinidade. A hipótese mais provável é a de que tenha sido confundido com algum militante de esquerda e, descoberto o erro, tenha sido morto como “queima de arquivo”. Os cabelos e a barba compridos que usava na época podem ter contribuído para o sinistro equívoco.

Vinícius, Toquinho e o poeta Ferreira Gullar, então exilado em Buenos Aires, empreenderam uma busca desesperada e inútil. Vagaram por hospitais e delegacias. Recorreram à embaixada brasileira. Ninguém sabia de nada. O governo brasileiro, também comandado por militares, não empreendeu qualquer esforço para localizar o músico desaparecido.

Apenas em 1986, um ex-integrante do Serviço de Informação Naval da Argentina, chamado Claudio Vallejos, apresentou na imprensa brasileira diversos documentos que davam conta do destino de alguns brasileiros presos pela repressão portenha. Dentre eles, Tenório Jr. Nos documentos apresentados por Vallejos, cujo conteúdo está reproduzido no site do movimento Tortura Nunca Mais, pode-se ler:

“Do dia 20 de março de 1976 – quando o Capitão Acosta solicita ao Contra-Almirante Chamorro autorização ‘para estabelecer contato com o agente de ligação, código de guerra 003, letra C, do SNI do Brasil’, para que informasse a central do SNI no Brasil que o grupo de tarefa chefiado por Acosta estava ‘interessado na colaboração para a identificação e informações sobre a pessoa do detido brasileiro Francisco Tenório Jr.’”

Em outro documento oficial, desta feita dirigido ao embaixador brasileiro na Argentina, ainda no mês de março de 1976, as informações veiculadas são estarrecedoras e revelam o absoluto descaso com que a prisão de Tenório foi tratada pelas autoridades brasileiras:

“Lamentamos informar a essa representação diplomática o falecimento do cidadão brasileiro Francisco Tenório Júnior, Passaporte n° 197803, de 35 anos, músico de profissão, residente na cidade do Rio de Janeiro. O mesmo encontrava-se detido à disposição do Poder Executivo Nacional, o que foi oportunamente informado a esta Embaixada. O cadáver encontra-se à disposição da embaixada na morgue judicial da cidade de Buenos Aires, onde foi remetido para a devida autópsia.”

Tenório foi torturado e, em seguida, morto com um tiro na cabeça, no dia 27 de março, segundo os informes de Vallejos, ele próprio um ex-torturador. O que causa mais revolta é que, mesmo ciente do assassinato de Tenório Jr., o governo brasileiro não teve a decência de comunicar o fato à família, muito menos de se empenhar para a recuperação do seu corpo. O Brasil perdia um dos seus músicos mais talentosos e criativos, de uma forma estúpida e brutal. Como qualquer ditadura.

Qual uma Antígona moderna, a brava Elis Regina promoveu, no final dos anos 70, uma frenética busca pelos restos mortais do amigo. Viajou até a Argentina, deu entrevistas, ouviu pessoas, mas os resultados foram nulos. Em outubro de 2006, a justiça brasileira reconheceu a omissão estatal e condenou a União ao pagamento de indenização por danos morais e materiais. Na sentença proferida pelo juiz federal Alfredo França Neto, lê-se:

“Demonstrada que está a omissão das Autoridades Brasileiras na defesa do cidadão brasileiro Francisco Tenório Cerqueira Júnior, ou, quando menos, na busca mais eficaz por informações sobre o seu paradeiro ou o seu destino, exsurge o dever da compensação pela angústia e pelo sofrimento que a passividade dos representantes diplomáticos e militares da Ré, diante da situação, causa à sua mulher e aos seus filhos, não somente a título dos danos morais, inquestionáveis, como também em razão das agruras materiais, que a falta injustificada e prematura do provedor, por certo, causa aos Autores.”

Tenório destilou sua arte ainda durante a fase inicial da bossa nova e do samba-jazz, nas incontáveis noites do Beco das Garrafas, no início dos anos 60. Dono de um estilo vibrante e de muito swing, com uma percussividade que lembra Horace Silver, ele era também um alentado compositor e apaixonado pelo jazz – chegou a tocar com Bud Shank, em 1963, curiosamente na mesma Argentina em que perderia a vida dez anos depois. Tenorinho chegou a cursar Medicina, mas trancou a faculdade por causa da música.

Acompanhante requisitado, cujo talento já havia sido registrado em álbuns históricos como “Vagamente”, de Wanda Sá, ele deixou um único registro como líder, o excepcional “Embalo”, gravado entre fevereiro e março de 1964, pela RGE, no qual aparece ao lado de velhos companheiros do Beco das Garrafas, como os saxofonistas Hector Costita, Paulo Moura e J. T. Meirelles. Completavam o time de craques os trombonistas Raul de Souza e Edson Maciel, os trompetistas Pedro Paulo e Maurílio, os bateristas Ronnie Mesquita e Milton Banana, os baixistas Sérgio Barrozo e Zezinho Alves, os violonistas Celso Brando e Neco e Rubens Bassini, que na ocasião pilotava o atabaque.

Tenório e seus pares navegam pelas águas da bossa-nova, do samba de gafieira e do jazz, com muita maestria e inventividade. A faixa título, que abre o disco, é de autoria do pianista e revela seu estilo alegre e jovial de compor, além de sua rematada paixão pelo jazz. A releitura de “Inútil Paisagem”, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira, e uma música pouco conhecida de Johnny Alf (“Fim de semana em Eldorado”) são dois outros grandes momentos do álbum.

Outra composição de Tenório, “Nebulosa”, talvez seja o ponto alto do disco, com sua atmosfera intimista mas sem abrir mão do swing – seu andamento lembra um pouco os experimentalismos harmônicos de Dave Brubeck. O parceiro Zezinho Alves, que divide o contrabaixo com o lendário Sérgio Barrozo, contribui com a belíssima “Carnaval sem assunto”. Há ainda grandes versões de “Clouds” (Durval Ferreira e Maurício Einhorn), “Consolação” (Baden Powell e Vinícius) e “Sambinha” (Bud Shank), além de outras faixas compostas por Tenório: “Samadhi”, “Néctar” e “Estou nessa agora”.

Juan Trasmonte, blogueiro e agitador cultural argentino, postou em seu blog um depoimento emocionado sobre o eloqüente silêncio que o Brasil tem feito desde aquela fatídica noite de 16 de março, ajudando a manter no ostracismo do tempo a vida e a obra de Tenorinho. Leia-se:

“Bem antes de ter o desejo que motorizou o Samba no pé, meu primeiro projeto de documentário relacionado com o Brasil e sua música, foi a trágica história de Francisco Tenório Cerqueira Junior, o Tenório Jr, o grande pianista seqüestrado e desaparecido na conturbada Buenos Aires de 1976.
Quando tive as primeiras notícias sobre o desaparecimento de Tenório e as suas circunstâncias, o que primeiro chamou minha atenção foi como eu, que na época já tinha interesse na cultura do Brasil, não havia conhecido esse fato através de alguma fonte brasileira. Afinal, Tenorinho não só era um cidadão brasileiro desaparecido na Argentina mas um músico que tinha viajado acompanhando ninguém menos que Vinicius de Moraes. Mas os brasileiros que eu consultei nem sabiam da tragédia ou meramente tinham “ouvido falar”. Tenório Jr. desapareceu duas vezes, a primeira nas mãos dos seus algozes e a segunda no silêncio do Brasil.”

Esperamos que esse silêncio deixe de ensurdecer os ouvidos do Brasil, para que o nosso país possa, a partir de agora, se deleitar com a música extraordinária do inesquecível Tenorinho e se indignar com toda a infâmia que cerca a sua morte. Ele merece e a nação que pretendemos ser um dia também!

sábado, 5 de setembro de 2009

VITA BREVIS: CAMINHANDO SOBRE O FIO DA NAVALHA


Sobre Conrad Yeatis “Sonny” Clark pode-se dizer que era um homem franzino e de olhar tristonho, que quando se sentava ao piano transmudava-se em um verdadeiro gigante. Não há como duvidar dessa afirmação. Basta olhar as fotos do pianista nas capas e encartes dos diversos discos lançados pela Blue Note para perceber-se a tristeza em seu olhar. Basta pôr um destes discos para rodar na vitrola para constatarmos a presença do gigante.

A pequena estatura física era inversamente proporcional ao talento desse fenomenal pianista, compositor e arranjador, nascido em Herminie, Pensilvânia, cidadezinha a pouco mais de vinte quilômetros de Pittsburgh, no dia 21 de julho de 1931. Aos 12 anos, mudou-se com a família para Pittsburgh, cidade pródiga em grandes pianistas, como Ahamad Jamal e Erroll Garner, e com uma cena musical bastante fértil.

O aprendizado do piano veio ainda na infância, sobretudo graças à influência do irmão mais velho, também pianista. Aos seis anos o pequeno Sonny já impressionava os ouvintes, tocando boogie woogie em rádios da cidade natal e arredores. No início dos anos 50, levado pelo irmão, mudou-se para San Francisco, tornando-se em pouco tempo uma dos mais destacados pianistas do chamado West Coast Jazz.

Tocou com Vido Musso, Oscar Pettiford e Wardell Gray, até que uma nova mudança, em 1953, levou-o para a Meca do West Coast, Los Angeles. Na Cidade dos Anjos, sua reputação só fez aumentar e ali acompanhou músicos do calibre de Art Pepper, Serge Chaloff, Sonny Criss, Dexter Gordon, Shorty Rogers, Art Farmer, Zoot Sims, Barney Kessel, Shelly Manne, Frank Rosolino e Anita O’Day.

Em 1954 integrou o quarteto de Buddy DeFranco, com quem tocou por cerca de dois anos, excursionando com regularidade pelo país e pela Europa. Outra associação importante foi com os Lighthouse All Stars de Howard Rumsey, em 1956. Em 1957, acompanhou a cantora Dinah Washington em uma turnê nacional, fato que pavimentou seu retorno à Costa Leste no mesmo ano, fixando-se, desta feita, em Nova Iorque.

Embora jamais lhe tivesse faltado trabalho na Costa Oeste, o som que ali se produzia não era exatamente aquele que Clark ansiava fazer. Discípulo de Bud Powell e de Thelonious Monk, o pianista se sentia pouco à vontade entre as ensolaradas harmonias west coasters. Preferia o ambiente enfumaçado e sombrio da Costa Leste, a seu ver muito mais identificado com a tradição jazzística e com a própria linha evolutiva do jazz. Ao se mudar para Nova Iorque, declarou:

“Jazz é jazz em qualquer lugar. O problema é a sua concepção acerca da forma de tocar e a minha forma de tocar é diferente da maioria dos caras da Costa Oeste. Quero tocar na Costa Leste porque aqui os caras se mantém mais próximos da tradição. Na Costa Oeste os músicos estão se afastando da tradição, misturando jazz e música erudita, fazendo um jazz de câmara. O que eles tocam é, de fato, muito bom. Acontece que não é a música que eu quero fazer – por isso voltei prá Costa Leste”.

Uma vez estabelecido na Grande Maçã, Clark passou a ser presença constante na cena jazzística local, tocando com John Coltrane, Max Roach, Donald Byrd, Stan Getz, Jackie McLean, Hank Mobley, Art Taylor, Paul Chambers, Wilbur Ware, Philly Joe Jones, Charles Mingus, Sonny Rollins, Billie Holiday, Grant Green, Stanley Turrentine, Lee Morgan, Milt Jackson e Kenny Burrell, entre muitos outros. Ainda em 1957, depois de acompanhar Hank Mobley nas gravações do álbum “Hank Mobley”, lançado pela Blue Note, Clark fez sua estréia, como líder, na gravadora de Alfred Lion (“Dial ‘S’ For Sonny”).

O singularíssimo pianista que até então tinha, de carta forma, limado a sua criatividade e podado as suas avançadas concepções harmônicas, para se adequar ao som que se fazia na Costa Oeste, começou a mostrar a que veio. Com uma forma de tocar profundamente arraigada no blues, Clark não teve nenhuma dificuldade em se integrar à corrente que então dava as cartas no jazz da Costa Leste: o hard bop. Não por acaso, entre 1957 e 1963 participou de centenas de gravações para a Blue Note, sendo uma espécie de homem de confiança de Lion.

E no mesmo annus mirabilis de 1957, outro petardo: “Sonny’s Crib”, um dos mais emblemáticos álbuns do hard-bop e espécie de ensaio de luxo para a obra-prima “Cool Struttin’”, que seria lançado no ano seguinte. Em “Sonny’s Crib” percebe-se um músico no auge da forma técnica, um compositor que amadurece visivelmente e um arranjador de idéias bastante arrojadas.

Podem-se usar diversos adjetivos para qualificar esse álbum gravado no dia primeiro de setembro de 1967. Mas a relação dos músicos que acompanham Clark deve bastar: Donald Byrd (t), Curtis Fuller (tb), John Coltrane (st), Paul Chambers (b) e Art Taylor (bt). A excelência técnica do sexteto torna a audição desse álbum uma experiência única. Seja pela latinidad que o combo imprime à germânica “Speak Low”, seja pela incandescência da faixa-título, uma tour de force hard-bopper irretocável, de autoria de Clark, há aqui predicados e superlativos em profusão.

A versão de “With A Song In My Heart” é irrepreensível e Donald Byrd e Trane se destacam pelos solos excepcionalmente bem articulados e de elevada complexidade. A performance de Taylor também é digna de menção, por conta das viradas surpreendentes e do vigor que imprime ao seu instrumento, sem jamais soar caricato. Sem qualquer demérito aos grandes músicos da Costa Oeste, o ressoar das teclas do piano de Clark parece dizer: “este é o lugar a que pertenço e esta é a minha música”.

“Come Rain Or Come Shine” começa lânguida, com o trombone de Fuller se insinuando por entre as frestas da melodia, iluminando a composição de Harold Arlen como se fossem os primeiros raios de sol da manhã, tecendo um delicadíssimo tapete de harmonias que vai desaguar no maravilhoso solo do líder. Chambers percute as cordas do seu contrabaixo como se tocasse uma canção de ninar e um introspectivo Byrd comete um dos solos mais pungentes do disco.

A influência do blues está presente em “News For Lulu”, outra composição de Clark. Nesta faixa, a técnica superlativa de Clark se sobrepõe com maior intensidade. Os sopros se articulam de maneira bastante engenhosa, com Fuller roubando a cena com um solo devastador. Taylor e Chambers, impecáveis, amoldam a estrutura do blues para receber as contribuições impregnadas de swing de Byrd, com seu solo musculoso e vibrante. No cd, lançado em 1998 pela fabulosa série “Connoisseur”, há takes alternativos de “Sonny’s Crib”, “With A Song In My Heart” e “Speak Low”.

Infelizmente, Clark não escapou ileso do pesadelo das drogas, especialmente da heroína. Uma década de excessos minou-lhe a saúde. O declínio físico do pianista foi presenciado de muito perto pelo amigo Hampton Hawes, outro músico que passou sérios apuros por conta do envolvimento com entorpecentes. Nas loucas noites da Costa Oeste, os dois amigos eram conhecidos como “The Golden Dust Twins”. Hawes conseguiu sobreviver ao vício. Sonny aplicou a última dose no dia 13 de janeiro de 1963 – uma dose muito maior que o seu alquebrado corpo poderia suportar.

A morte prematura de um dos mais talentosos músicos da época, por overdose de heroína, causou comoção e perplexidade no mundo do jazz. Mas não propriamente surpresa. Quem o conheceu de perto sabia que Sonny, à semelhança de Clifford Brown ou Fats Navarro, pertencia àquela estirpe de gênios destinados a brilhar por muito pouco tempo, embora de forma intensa, nesse plano da existência. Outro pianista e amigo, Bill Evans, dedicou-lhe a composição “NYC’s No Lark” (anagrma de Sonny Clark, incluída no álbum “Conversation With Myself”). Uma homenagem que, ao lado dos seus excelentes discos, ajuda a eternizá-lo como uma estrela das mais reluzentes da grande constelação do jazz.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

O PASSADO, O PRESENTE E O FUTURO DO TROMPETE JAZZÍSTICO


O início da carreira do jovem Frederick Dewayne Hubbard, nascido em 07 de abril de 1938, não poderia ser mais auspicioso. Tocando em clubes e casas noturnas de sua Indianapolis natal, no final dos anos 50, ao lado dos Montgomery Brothers (um deles – Wes – viria a ser o mais influente guitarrista do jazz dos anos 60), ele construiu uma reputação que, em pouquíssimo tempo, lhe renderia convites para trabalhar na Meca do Jazz, Nova Iorque, onde chegou em 1958, para tocar com músicos da estatura de Sonny Rollins, Slide Hampton, Charles Persip, Philly Joe Jones, J. J. Johnson e Quincy Jones.


Naquela época, era tido como um dos mais fortes candidatos ao título de “Novo Clifford Brown” – duvidosa homenagem, em razão da cobrança desumana a que eram submetidos todos os jovens trompetistas que surgiam na cena jazzística de então – que incluía outros prováveis herdeiros, como Kenny Dorham, Art Farmer e Lee Morgan. Mas apesar da pouca idade, Hubbard já era um músico maduro, com uma sonoridade bastante pessoal e inovadora, apesar da forte influência exercida por Dizzy Gillespie e pelo próprio Brown.


Improvisador nato, ele era capaz de construir solos altamente complexos, mesclando agressividade e introspecção com igual competência e criatividade. Também foi um compositor prolífico, autor de verdadeiros clássicos do hard bop, como “Hub’s Nub”, “Arietis”, “Breaking Point” e “Blue Frenzi”. No início dos anos 60 chegou a ser comparado a Miles Davis, pelo lirismo que conseguia extrair do trompete, e mereceu do autor de “So What” rasgados elogios. Curiosamente, Hubbard foi o nome escolhido para acompanhar Herbie Hancock na turnê que renderia o célebre álbum “V. S. O. P”, de 1977, em um combo que incluía os estelares Ron Carter, Wayne Shorter e Tony Williams, o célebre quarteto modal de Miles dos anos 60.


Outra demonstração inequívoca do seu talento foi o convite feito por Art Blakey, para que integrasse o célebre Jazz Messengers, onde marcou presença de 1961 a 1964. Com uma formação que gravitava em torno de Hubbard, do saxofonista Wayne Shorter, do trombonista Curtis Fuller e do pianista Cedar Walton (o baixo era pilotado por Jymie Merritt ou Reggie Workman), os Messengers viveram uma de suas fases mais exuberantes, do ponto de vista criativo, lançando álbuns fabulosos como “Caravan”, “Ugetsu” e “Free For All”.


Aliás, a participação em álbuns relevantes sempre foi uma constante na vida e na carreira de Hubbard. Não é por acaso que ele esteve nos sets de gravação dos incensados “Maiden Voyage” (de Herbie Hancock), “Out To Lunch” (de Eric Dolphy), “Free Jazz” (Ornette Coleman), “The Blues And The Abstract Truth” (de Oliver Nelson), “Speak No Evil” (de Wayne Shorter) e “Ascension” (de John Coltrane). Nos anos 60 também acompanhou Curtis Fuller, Max Roach, Hank Mobley, Bill Evans, Kenny Drew, Lou Donaldson, Tina Brooks, Dexter Gordon, Booker Ervin e Bobby Hutcherson, entre outros.


A fecunda associação com a Blue Note, que perdurou de 1960 a 1966, rendeu alguns dos álbuns mais instigantes e elogiados de sua vasta discografia, como “Hub Cap”, “Open Sesame” e “Breaking Point”. Depois disso vieram álbuns pela Atlantic, CTI e Columbia, sendo que nessas duas últimas gravadoras, Hubbard, optando por uma sonoridade fusion, tornou-se um artista extremamente bem sucedido comercialmente. Entre 62 e 63 Hubbard passou um breve período na Impulse, onde gravou “The Body And The Soul”, ao lado de uma big band, e o extraordinário “The Arstistry Of Freddie Hubbard”, de 1962.


Contando com o suporte de Tommy Flanagan no piano, John Gilmore no sax tenor, Curtis Fuller no trombone, Art Davis no baixo e Louis Hayes na bateria, Hubbard produziu um dos melhores – embora menos conhecidos – álbuns de sua vitoriosa carreira. São cinco temas, sendo que três são de autoria do trompetista e todos foram gravados no dia 02 de julho de 1962, no estúdio de Rudy Van Gelder.


Uma magnífica interpretação de “Caravan”, de Duke Ellington e Juan Tizol, funciona como verdadeiro cartão de visitas do sexteto, impecável desde a introdução, a cargo de Davis e Hayes, à qual vão se agregando os demais instrumentos, até o apoteótico final. Solos fantásticos de Gilmore e Fuller fazem dessa energética versão uma das melhores já registradas em disco. Sem deixar a temperatura diminuir, a incandescente “Bob’s Place”, de Hubbard, permite a Gilmore exibir o seu estupendo talento, com solos vertiginosos – o mesmo sucedendo com o líder. As impecáveis atuações de Fuller e de Davis, usando o arco, também são dignas de registro.


A contagiante “Happy Times”, de Hubbard, faz jus ao nome. É uma peça alegre e despretensiosa, com ecos dos Messengers, e um solo extraordinário de Fuller. A interação entre os músicos é bastante fluida e a sessão rítmica Flanagan, Davis e Hayes atua com a segurança habitual. Na versão de “Summertime”, um dos standards mais gravados de todos os tempos, o sexteto explora novas possibilidades harmônicas da antiga canção dos irmãos Gershwin, com o trompete de Hubbard soando lírico e dolente. Flanagan mereceria um capítulo à parte, por sua execução precisa e instigante. A presença magnética de Miles Davis paira no ar, graças à atmosfera nebulosa e quase surreal de algumas passagens, que em vários momentos remete ao clássico “Kind Of Blue”. E Gilmore ainda emula Coltrane em seu solo antológico.


Aliás, Coltrane, que na época gravava alguns dos seus mais importantes álbuns para a mesma Impulse, também está presente na climática “The 7Th Day”, com seus mais de dez minutos de harmonias dissonantes e complexas. A obviedade passou ao largo dessa elaborada composição de Hubbard, com extasiantes citações à música flamenca e oriental. Flanagan sobrevoa por entre acordes maravilhosamente dispersos. Sobre sua habilidade, um poeta escreveu certa vez, após ouvi-lo: “a sensação que tive é como se não fosse preciso mais respirar. Parece que tudo pára e paira. É um ar sem tempo pelo qual se poderia flanar por toda vida”.


A ausência de fôlego trazida pelo majestoso toque do pianista se estende à execução do líder, cujo solo se inscreve entre aquilo que de melhor foi feito no trompete jazzístico de qualquer época. Ouvem-se ali evocações à tradição de Nova Orleans e também à modernidade representada pela AACM (o coletivo criado pelo pianista de vanguarda Richard Muhal Abrams). Mas sem qualquer resquício de saudosismo ou hermetismo.


Não há palavras capazes de definir as sensações provocadas por essa constelação – há apenas que calar e ouvir. Hubbard, com seu fraseado moderno e cheio de personalidade, mostrava ali, aos vinte e quatro anos, que não apenas possuía antenas apontadas para o futuro do jazz como também possuía sólidas raízes, assentadas na riquíssima herança de predecessores ilustres como Armstrong, Eldridge, Navarro e Gillespie.


Embora tenha sido um dos grandes vendedores de discos dos anos 70, tendo abocanhado prêmios importantes como o Grammy, os anos 80 e 90 não foram tão prodigiosos para o trompetista. Nessas últimas décadas ensaiou uma reaproximação com o jazz acústico, tocando com Oscar Peterson, Ronnie Mathews, Kenny Barron e Joe Henderson, e gravando para selos como Prestige e Enja. Uma séria lesão nos lábios afastou-o durante algum tempo dos palcos e estúdios e comprometeu seriamente seu estilo vigoroso de tocar. No final de 2008 sofreu um grave infarto, que o deixou hospitalizado por várias semanas e acabou por ceifar-lhe a vida, no dia 29 de dezembro.

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