Amigos do jazz + bossa

terça-feira, 28 de julho de 2009

OS EMOCIONANTES ESCRITOS DO LIVRO DA LIBERDADE


Se existe um saxofonista absolutamente inclassificável dentro do universo jazzístico, ele atende pelo singularíssimo nome de Booker Telleferro Ervin II. Nascido em 31 de outubro de 1930, em Denison, Texas, onde deu os primeiros passos na música tocando trombone nas bandas dos colégios onde estudou. De 50 a 53 esteve na aeronáutica, onde trocou o trombone pelo sax tenor. Estudou no prestigioso Berklee College of Music e começou a carreira profissional em 1956, tocando rhythm and blues na banda de Ernie Fields. Associou-se durante algum tempo ao flautista e saxofonista James Clay e perambulou por cidades como Boston, Portland e Pittsburgh, estabelecendo-se, finalmente, em Nova York, no final da década de 50. Ali fez amizade com o pianista Horace Parlan (com quem gravaria o excelente “Up & Down”, em 1961), que o apresentou a Charles Mingus.


Tocou com regularidade na banda de Mingus, participando de alguns dos seus mais relevantes trabalhos, como o “Mingus In Wonderland”, “Blues And Roots”, “Mingus Ah-Um” e “Mingus Dinasty”. Também colaborou com certa assiduidade com o pianista Randy Weston, outro músico bastante heterodoxo em suas abordagens e extremamente influenciado pelas sonoridades africanas. Ao mesmo tempo em que atuava como um prolífico sideman, Booker também dava início a uma das mais originais e relevantes discografias dos anos 60, lançando discos primorosos, sobretudo para a Prestige, embora também tenha gravado para a Blue Note, Candid, Savoy e outros selos.


Apesar de se conservar dentro da tradição texana de saxofonistas viris e de muita força física, como Arnett Cobb, Dewey Redman e Illinois Jacquet, Ervin se difere de seus conterrâneos por suas arrojadas concepções harmônicas e por imprimir ao seu fraseado uma carga de emotividade bastante intensa. Entre 1963 e 1965, Ervin presenteou o mundo com a soberba “Tetralogia Book”, composta dos excepcionais “The Freedom Book”, “The Song Book”, “The Blues Book” e “Space Book”, todos gravados para a Prestige.


Assim como Mingus, Booker tem uma enorme reverência pela tradição da música negra norte-americana, mas faz releituras bastante ousadas do blues, dos spirituals e de outras formas antecedentes ao jazz. Por outro lado, embora seja reconhecido pela crítica como um grande inovador, jamais granjeou o mesmo prestígio que um John Coltrane ou um Eric Dolphy (antigo companheiro nos combos de Mingus).


Gravado em 3 de Dezembro de 1963, nos estúdios Van Gelder, “The Freedom Book” se destaca não só por ser o primeiro como, também, por conta da expressiva quantidade de informações musicais manipuladas por Ervin na construção de sua obra tão pessoal. Tradição e vanguarda interagem e se complementam nesse disco atemporal, de sonoridade áspera e rascante, mas ao mesmo tempo lírica e delicada, daí porque ser o título bastante apropriado ao conteúdo do álbum. Secundando o saxofonista, três músicos que também transitam com bastante intimidade entre as abordagens mais tradicionais e as mais contemporâneas do jazz: o pianista Jaki Byard, o baixista Richard Davis e o baterista Alan Dawson, que compõem uma verdadeira trinca de ases.


A faixa de abertura, “A Lunar Tune”, evoca nosso satélite natural, com seu relevo irregular, fraturado, cheio de saliências e cavidades. Uma composição nada linear do líder, a meio caminho entre o hard bop de um Hank Mobley e o avant-garde de um Ornette Coleman – outro representante nada ortodoxo da escola texana – mas com um pé muito bem assentado no blues. O piano de Byard e o saxofone de Ervin dialogam telepaticamente, criando uma atmosfera ao mesmo tempo opulenta e intimista – um blues do século XXI, composto e executado quase quarenta anos antes.


Perturbadoramente bela, “Cry Me Not” é uma não-balada, uma canção cuja aridez lembra a poesia de João Cabral de Melo Neto, emocionante mas completamente avessa ao sentimentalismo vulgar. A composição de Randy Weston, de um lirismo nada convencional, é dissecada pelo quarteto de modo vigoroso, explorando todas as suas possibilidades harmônicas, com destaque para o insinuante piano de Byard. “Grant’s Stand”, também de autoria de Ervin, possui um formato menos heterodoxo, mas ainda assim causa estranheza. O hipnótico baixo de Davis e a caudalosa bateria de Dawson, eficientíssimos, dão o suporte necessário para viabilizar alguns dos mais belos solos do disco, com o líder fazendo discretas citações às tradições musicais do oriente.


A textura oriental também pode ser percebida em “A Day To Mourn” e “Al’s In”, com suas variações climáticas e citações aos spirituals. São composições que, em muitos momentos, se alinham à corrente free, com os músicos fazendo suas incursões de forma aleatória, mas que jamais se afastam completamente das formas mais tradicionais. Em “Al’s In”, Dawson brilha ao perpetrar um solo genial e o saxofone de Ervin, por vezes, lembra o lamento de um muezim, chamando os fiéis para a mesquita. Essa interlocução aparentemente desarticulada entre os instrumentos, vai-se costurando aos poucos, até que, ao final de cada uma das músicas, percebe-se quão coesa é a banda e quão arrojadas são as suas execuções. Na canção mais ortodoxa do disco – e uma das melhores também – o standard “Stella By Starlight” ganha um brilho novo, inscrevendo-se entre as mais emocionantes versões do clássico de Victor Young e Ned Washington.


Ervin permaneceu entre nós por breves 39 anos. No dia 31 de julho de 1970 ele abandonou a existência física, em decorrência de problemas renais, e ascendeu para tomar seu lugar na grande orquestra celestial. Como testemunho de sua passagem, legou-nos alguns dos textos sonoros mais belos do jazz, escritos no magnânimo idioma da genialidade. Um grande artista, que jamais obteve o reconhecimento merecido, mas cuja obra – bela, consistente, seminal e invulgar – clama por ser descoberta pelos jazzófilos. “The Freedom Book” é, certamente, a melhor porta de entrada para uma prazerosa leitura. Atrevamo-nos!

21 comentários:

pituco disse...

érico,
serei o primeiro a aplaudir essa postagem...

cry me not...piramidal

valeô e abraçsons

Érico Cordeiro disse...

Valeu, Mestre Pituco-san.
Abração!!!

***

UMA NOTA TRISTE:
O pianista, band-leader, compositor e arranjador George Russell morreu na segunda-feira, 27 de julho, devido a complicações decorrentes do Mal de Alzheimer.
RIP!

Salsa disse...

Sopro e tanto, o do Booker. Indicação de primeira, Érico. Valeu!

Sergio disse...

O som de George Russel é bastante interessante. Ainda esse mês (ou o passado) tive o 1º contato com a música dele. Aqui um dos discos que pesquei de Russel.

GEORGE RUSSELL (NEW YORK BIG BAND) 1978
GEORGE RUSSELL (NEW YORK, NEW YORK) 1958
GEORGE RUSSELL ELECTRONIC SONATA FOR SOULS LOVED BY NATURE [1980]

http://jazzallthat.blogspot.com/2008/12/george-russell-new-york-big-band-1978.html

No endereço acima, encontra-se o NY Big Band de 78 pra baixar. Não tenho certeza se este ou é o de 58 que gostei mais. Mas vale a pena conferir pra se ter uma idéia do trabalho do falecido.
Abraços!

Érico Cordeiro disse...

Mestres Salsa e Sonic boy,
Sejam bem-vindos. Gosto muito do Ervin, mas é o típico músico que não consigo ouvir o dia inteiro - a sonoridade dele "cansa" um pouco, pois exige muita atenção do ouvinte.
Todos os discos da tetralogia book são ótimos.
Já o Russell eu só tenho, infelizmente, o Ezz-Thetics, que é muito bom.
Vou dar uma checada.
Abração!!!

Andre Tandeta disse...

Prezado Erico,
Alan Dawson é simplesmente um dos maiores de todos os tempos,ao lado de quem voce quiser colocar.Pedi la no Jazzseen um post sobre Dawson. Afinal Mr Lester e sua equipe se esmeram em nos trazer aos ouvidos musicos "desconhecidos" geniais. Esse adjetivo é perfeito para Alan Dawson.
Ha um disco de Dave Brubeck ao vivo com Paul Desmond e Gerry Muligan (We're All together Again For The First Time"),em que Dawson faz um solo em "Take Five" que eu considero historico . Voce pode por ,favor me mandar via Pando(ja uso ha 2 anos) esse do Booker Ervin ?
andre.tandeta@gmail.com
Quanto a tocar ai em São Luiz é claro que seria um prazer.
Abraço

Érico Cordeiro disse...

Mr. Tandeta, seu pedido é uma ordem.
E vamos trabalhar para que essa possibilidade se torne real.
Abração!!!

Cinéfilo disse...

Caramba!
Entro aqui e dou de cara com o Booker. Grande dos grandes!
Lembro-me bem de ter ficado impressionado com o disco "Setting the Pace", em que ele faz a festa com Dexter, Byard, Workman e um puta baterista subestimado chamado alan Dawson.
Tenho outros "books" dele, todos fabulosos.

Em Mingus-ah-Um ele está bem. Dizem que teve uns probleminhas com Danny Richmond, que provocaram o distanciamento dele em relação a Mingus. Já ouviu falar disso?

Abraço, camarada.
Bom vir aqui.

Paula Nadler disse...

Senhor Érico, peço licença para, em primeiro plano, congratular-me com seu excelente blog. Depois, preciso informar que Lester, aqule do Jazzseen, qubrou o nariz trocando uma lâmpada do ateliê de um amigo, o pintor Paulo Nardelli. Ele, por minha boca, solicitou visita em seu blog. O favor transformou-se em graça, tão deliciosos texto e música.

Beijos da sua já seguidora.

Érico Cordeiro disse...

Caros Grijó e Paula,
Sejam bem-vindos (uma saudação especial à Paula, que pela primeira vez nos brinda com a sua ensolarada presença).
A chamada "Tetralogoa Book" é maravilhosa - o sujeito estava, como Coltrane e Dolphy, permanentemente em busca de novos caminhos. Não conheço essa gravação (Setting The Pace), mas pela relação de músicos envolvidos deve ser sublime (Dexter é um dos meus xodós, qualquer hora posto alguma coisa dele).
Não sabia desse "entrevero" com o Richmond, mas é uma informação a ser conferida.
Um fraterno abraço aos dois e obrigado pelas palavras gentis.

José Domingos Raffaelli disse...

Prezado F. Grijó,

Você é o conhecido baterista Marco Antonio Grijó, de Vitória ? Ou é parente dele ?

Caso seja, nós nos conhecemos nos festivais de jazz organizados pelo Marien Calixte em 1990/91/92, aos quais compareci. Supondo que seja, como vão o Afonso Abreu,Chryso Rocha e outros jazzmen capixabas ?

Keep swinging,
Raffaelli

Sofia Urko disse...

Caríssimo Érico,
obrigada por mais uma excelente 'lição' de jazz. Tenho muito q investir em cds pois há tanta coisa boa para ouvir!!!
Abraço com a amizade de sempre
Sofia :)
ps_para quando o tal post sobre a Billie Holiday?:-)

Érico Cordeiro disse...

Cara Sofia, prazer em recebê-la.
Decerto estou em dívida, mas os motivos são poderosíssimos.
É que meu amigo Celijon postou um artigo (na verdade é quase um conto) no seu blog (chama-se soblônicas e o link está do lado direito da tela) e eu fiquei um pouco receoso.
O artigo foi escrito por um grande jornalista e amigo, chamado Augusto Pellegrini, um dos maiores conhecedores de jazz de nosso país, que apresenta há mais de vinte anos programas de jazz no rádio maranhense.
Assim , enquanto crio coragem para escrever sobre a adorada Lady Day, delicie-se com o texto superlativo do Augusto, ok? Como você poderá comprovar, fica difícil competir com alguém com tamanho conhecimento e com tal capacidade de nos emocionar com as palavras - daí porque esperarei um pouco mais.
Um afetuoso abraço do lado de cá do Atlântico.

Sergio disse...

Érico, o sônico, no sergio sônico, te solicita uma visita. Um dia contrato a iris lettieri pra mandar esses tipos de avisos, por enquanto, vai com os meus garranchos mesmo.

Érico Cordeiro disse...

Falou, Mr. Sonic-boy.
Já vou dar uma passada lá.
Abração!!!

Sergio disse...

Érico, meu bom cara... trocentos discos pra ouvir, tive o meu tempo seqüestrado por esse tal de trabalho remunerado, Só assim, me tiram do meu real negóci(ócio) da música. E a merda que a paga nem vale tanto a pena, Enfim, que discaralharalharaça é esse do pianista - tua dica: Dado Moroni? Ouvindo, "Out Of The Night". Esse é daqueles.

Valeu!

Érico Cordeiro disse...

O Moroni é muito bom. Tem um disco dele com o NHOP, chamado Bluesology, excelente.
Ainda não ouvi o Bex.
Abração!

Sergio disse...

Don't, apresse-se. Começo a , depois da 6ª 'da' lata ter certeza que vais gostar mais que a encomnda. Anfã, não se apresse.

Sofia Urko disse...

Caríssimo Érico, obrigada pela indicação do post anterior. Vou ler, com muito gosto, o artigo q me indicou, mas tenho a certeza que, quando se decidir, o seu será 'mega' interessante.Bem, que trompetista fantástico e quão grande perda!A droga faz se, quase sempre, pagar (de uma forma directa ou indirecta) cara de mais.
Abraço com amizade, Sofia:)

Sofia Urko disse...

Já fiz asneira!O post anterior é, óbviamente, relativo a Lee Morgan!!!Desculpe a loucura, abraço, Sofia:)

Érico Cordeiro disse...

Cara Sofia,
É sempre um prazer recebê-la.
Não se preocupe - entendi o comentário.
Obrigado pelas palavras gentis e espero não decepcionáa-la!
Um afetuoso abraço do lado de cá do Atlântico!

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