Procure o verbete Paul Desmond em qualquer compêndio de jazz. Ali você observará que a palavra mais associada a esse músico extraordinário é “lírico”. E é a mais pura verdade. Esse californiano, nascido em 1924 na bela San Francisco, é o dono do fraseado mais lírico e refinado do jazz, e que mereceu elogios públicos do próprio Charlie Parker. Seu toque delicado tem uma infinita capacidade de fazer sonhar – é límpido e tépido como as águas cristalinas de uma deserta praia do Mediterrâneo. Também é um dos raros músicos que, aos primeiros acordes, o ouvinte não tem a menor dificuldade em identificar. Graças a “Take Five”, inscreveu seu nome entre os grandes compositores do jazz, embora essa fosse apenas uma de suas inúmeras composições. Os direitos autorais daquela canção, diga-se de passagem, asseguraram-lhe o champanhe e o caviar pelo resto de sua existência.
Dono de hábitos refinados, Paul Desmond era um homem extremamente elegante também em sua vida pessoal – diria quase fleumático. Apreciador de um bom vinho, fazia sucesso entre o público feminino e era um emérito conquistador, apesar do temperamento reservado. Embora tenha passado boa parte de sua vida como membro do quarteto de Dave Brubeck – com quem permaneceu de 1951 a 1967 – Desmond construiu, paralelamente, uma carreira solo das mais consistentes. Dono de um estilo melodioso, quase impressionista, nunca soava óbvio ou burocrático, como se pode comprovar nos excelentes “Two Of A Mind” e “Blues In Time”, gravados ao lado do amigo Gerry Mulligan. Certa feita, ao falar sobre a sua maneira de tocar, disse o seguinte: “Acho que, no fundo, eu queria soar como um Martini seco”. Mas seu fraseado, além do indiscutível gosto de Martini seco, também remetia o ouvinte à suave aragem de um dia de primavera – há um frescor em seu toque que mesmo em contextos mais “quentes” jamais deixa de acariciar a alma de quem ouve.
Gravou com regularidade para o selo Bluebird/RCA Victor nos anos 60 e, dessa época, destaca-se o maravilhoso “Glad To Be Unhappy”. O álbum foi gravado entre junho de 1963 e setembro de 1964, nos estúdios da RCA Victor, em Nova York. Fazendo o acompanhamento, estão Jim Hall (guitarra), Connie Key (bateria) e seu velho companheiro do Dave Brubeck Quartet, Gene Wright (baixo). Gene Cherico toca baixo em uma das faixas. Percebe-se nessa formação, de imediato, a ausência do piano. Isso porque Desmond tinha um acordo de cavalheiros com seu chefe Brubeck: não usaria piano em discos solo. O versátil Jim Hall, vindo de uma parceria extremamente bem sucedida com Sonny Rollins, era o músico mais habitualmente convocado para a tarefa de substituir o piano e o fazia com extrema maestria.
Hall – cujas concepções musicais e fraseado se assemelhavam aos de Desmond – jamais se contenta em ser apenas um mero integrante da seção rítmica. Ele ajuda a criar climas harmônicos e dialoga com o anfitrião em altíssimo nível em todas as faixas, além de incluir uma composição sua – a ótima “All Across The City” – no repertório do disco. Canções obscuras, como “By The River Saint Marie”, ou bastante vulgarizadas, como “Hi-Lili, Hi-Lo”, ganham uma roupagem de pura elegância, em grande parte graças à sinuosidade harmônica que Hall extrai de sua guitarra, com destaque também para o solo em “Angel Eyes” – simplesmente antológico. O baixo e a bateria mantêm-se discretos e eficientes – contudo, em nenhum momento soam mecânicos – e pavimentam o caminho para que saxofone e guitarra possam brilhar à vontade.
A primeira faixa, “Glad To Be Unhappy”, é uma balada encantadora, na qual Desmond conjuga lirismo e criatividade, com seu sax etéreo e envolvente. “Poor Butterfly” ganha uma versão quase melancólica, com andamento mais lento que o usual, onde a bateria de Connie Key é o grande destaque. Quebrando um pouco a atmosfera introspectiva do álbum, a swingante “Any Other Time” dá uma amostra do talento composicional do saxofonista e mostra que apesar de haver se consagrado tocando baladas, Desmond também era um bopper de primeiríssima linha. Essa certeza é realçada pela audição de “All Through The Night” – canção pouco conhecida de Cole Porter e que encerra o álbum com chave de ouro – na qual um inspirado Hall adiciona uma levada bebop ao arranjo, enquanto Desmond se encarrega de imprimir aos solos uma velocidade incomum.
Para quem se acostumou a ouvir Paul Desmond ao lado do piano metálico e cerebral de Dave Brubeck, esse magistral disco será uma ótima surpresa. Quem já está familiarizado com o lado mais “warm” do saxofonista vai se deliciar com as pequenas maravilhas engendradas na carpintaria sonora dos mestres Desmond e Hall. Para o deleite de incontáveis ouvintes, a infelicidade mencionada no título do álbum é mera figura de retórica: o que sobressai dele é beleza e encantamento.
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OS.: Post dedicado ao amigo Salsa, grande comandante da nave jazzbackyard e um confesso apreciador da delicada tapeçaria sonora engendrada por Desmond.
11 comentários:
Quando tocou no Rio, em 1978, Dave Brubeck contou-me como conheceu casualmente Paul Desmond.
Ambos estavam na fila de um elevador num prédio de San Francisco e, entre eles, havia uma senhora idosa. Enquanto esperavam, ouviu-se a sirene de um carro de bombeiros em altíssimos decibéis. Assustada, a vetusta senhora entre eles gritou: "What's That". A resposta foi dada por Dave e Paul em uníssono tão perfeito que ambos cairam em demorada gargalhada: "B Flat"! Riram tanto que sairam dali juntos, iniciando a longa amizade que os uniu até a morte de Desmond.
Abraços,
Raffaelli
Érico, meu caro:
É um privilégio para qualquer alma imortal quinemqui as nossas, começar a tabalhar ouvindo Paul Desmond.
Devo dizer que o amigo criou mais um problema para a minha vida: além do jazzseen e do jazz back'yard, acrescentar seu ótimo Jazz + Bossa entre os meus blos de jazz de cabeceira.
Preciso trabalhar menos pra curtir mais. Desmond vive!
Abraço do Oleari, que estará sentre seus seguidores certamente.
maravilha de história do nosso Mestre Raffaelli
e Desmond é, acima de tudo, um sopro de originalidade, uma assinatura própria
abs,
Quando eu ganhei um sax alto (presente do meu velho finado pai), havia dois saxofonistas na minha vida. O primeiro, que eu preferia não ouvir, era Charlie Parker - o seu som me assustava e me levava a pensar, corretamente, "nunca vou tocar desse jeito". O segundo, com o seu som aveludado, era Paul Desmond. Esse, sim, fez-me não temer o instrumento e deu-me alguma esperança de vir a tocá-lo. O seu modo de tocar sutil apresentou-me a complexidade transmutada em simplicidade. Lobo em pele de cordeiro.
Beleza´pura.
Pô, só agora eu vi a dedicatória. Valeu, meu caro,
agradeço.
Depois desses comentaristas "de peso" passarem por aqui, só me resta dizer:
tb sou fã do Desmond e adorei as músicas.
Quando Charlie Parker morreu vários saxofonistas foram convocados pela revista Down Beat na época para fazer testemunhal com pequenas declarações.Paul Desmond disse na ocasião q Parker era tão extraordinário q o maior desafio q impôs em sua vida era não receber nenhuma influência dessa enorme sombra artística.Teve sucesso e glória,optando pelo mais difícil dos caminhos q um saxofonista alto poderia escolher.
Não conhecia esta gravação de Desmond. Ouvi, gostei, e faço tenção de a acrescentar a uma outra que tenho na prateleira e que acho igualmente recomendável.
Data de Setembro de 1959, no selo Atlantic, e a única diferença na formação é que Percy Heath está a cargo do contrabaixo.
Grato pela sugestão.
Caríssimos amigos Raffaelli, Oleari, Guzz, Salsa, Figbatera, Edú e Pescador,
Em primeiro lugar peço desculpas por somente agora poder responder aos seus gentis comentários. Compromissos profissionais me obrigaram a viajar a Brasília, onde permaneci até há pouco (viagem cansativa e muito corrida).
Não tive sequer tempo de fazer a minha atividade favorita naquela cidade: garimpar CD's na Livraria Cultura e na FNAC. Fui apenas à Saraiva e havia muito pouca coisa interessante (comprei apenas um cd da Diana Krall, antigo e que não conhecia, chamado Stepping Out, que ouço enquanto redijo este comentário - o repertório é ótimo e ela está muito bem acompanhada pelos ótimos John Clayton e Jeff Hamilton).
O grande achado foi o livro The Jazz Image, com fotografias maravilhosas de craques como William Claxton e Francis Wolff - é emocionante.
Mestre Raffaelli, como sempre, nos brindando com histórias deliciosas - o destino tinha que fazer do primeiro encontro entre Brubeck e Desmond algo especial mesmo.
Pescador, não conheço essa gravação - agradeceria se me informasse o nome do cd!
Don Oleari, seja mais que bem-vindo. Faço absoluta questão de vê-lo sempre por aqui. Adoro seus textos e seu bom-humor - é mais um ótimo amigo virtual que faço.
Mestre Salsa, que bom que você gostou da resenha - você merece e sintaa-se responsável direto pela existência do JAZZ + BOSSA, meu filho mais novo (pelo menos até a chegada do Lucas, que por ora cresce muito bem agasalhado no ventre da mamãe) e que só me dá alegrias e orgulho.
Figbatera, não esqueci de você (por favor, garanto que hoje encaminho o restante do disco)!
Guzz e Edú já são da casa e fazem parte do patrimônio histórico, artístico, estético e cultural da casa - é sempre ótimo vê-los aqui.
Um fraterno abraço a todos e até breve.
Trata-se do CD "First place again".
Que inclui uma faixa (Susie) que não figura no meu LP.
Aqui fica um link:
http://www.amazon.com/First-Place-Again-Desmond-Quartet/dp/B000AN024G
Saudações.
Grande Pescador, muito obrigado pela deferência. Vou tentar encontrar esse cd, que deve ser maravilhoso.
Não obstante, em breve postarei uma resenha em homenagem aos novos amigos d'além mar, você, a Cigarrajazz e o Miguel Ângelo.
Forte abraço e, mais uma vez, muito obrigado!
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