Discos tributos a Charlie Parker não são coisa rara no universo do jazz. Inúmeros músicos já o fizeram, com resultados que variam do sublime (“Stitt Plays Bird” e “Bud Plays Bird”, por exemplo) ao razoável (caso do modesto “To Bird With Love”, perpetrado por um pouco inspirado Dizzy Gillespie). Cerrando fileiras com os álbuns da primeira categoria, o impecável “Max Roach 4 Plays Charlie Parker” se destaca até mesmo entre os seus pares – é grande entre os grandes e, a cada audição, fica ainda maior.
Sobre o articulado Maxwell Lemuel Roach, tudo já foi dito e tudo mais que se venha a dizer pode resvalar, perigosamente, em surrados clichês. Mas fatos são fatos e não se pode negá-los. Sim, ele é, ao lado do também genial Kenny Clarke, um dos pais da bateria no bebop, tendo protagonizado grandes momentos no mítico Clube Minton’s, onde o estilo foi gestado. Sim, ele revolucionou a forma de se tocar bateria, colocando o instrumento na linha de frente jazzística, tirando-o da obscuridade rítmica a que se achava relegado. Sim, ele foi um compositor de primeiríssima linha, tendo legado aos amantes do jazz pérolas como Mr. X (homenagem a Malcolm X), Blues Waltz e Mildama. Sim, também foi um aguerrido militante da causa negra e dos direitos civis, tendo dedicado um álbum antológico ao tema, o engajado “We Insist! - Freedom Now”. Sim, ele tocou com toda a elite jazzística – do clássico Duke Ellington, seu parceiro no magistral “Money Jungle”, ao vanguardista Anthony Braxton.
Quando o maior combo jazzístico jamais reunido fez o célebre concerto no Massey Hall, em 1953, quem foi o baterista escolhido? Ele mesmo, o incansável Max, nem um pouco intimidado com as presenças sobrenaturais de Dizzy Gillespie, Charlie Parker, Bud Powell e Charles Mingus. Inspirado por tantos gênios, no ano seguinte resolveu montar uma banda à altura: convocou o mago Clifford Brown, com quem dividiu o nome do quinteto, e os excelentes Harold Land (sax tenor, substituído posteriormente por ninguém menos que Sonny Rollins), Richie Powell (piano) e George Morrow (baixo). A banda permaneceu por dois anos como uma das melhores em atividade, somente sendo desfeita quando o inesperado fez uma tenebrosa surpresa: Clifford e Richie foram vitimados em um terrível acidente, que também custou a vida da esposa do pianista.
O baque foi enorme. A muito custo, Max se recuperou da perda dos amigos e voltou a tocar. Formou uma nova banda, mantendo o velho amigo Morrow e incorporando os jovens e talentosos Ray Bryant (piano), Kenny Dorham (que teve a enorme responsabilidade de substituir o fabuloso Brown) e Hank Mobley. Com essa formação gravou os ótimos Max Roach + 4” e “Jazz in ¾ Time” – Sonny Rollins substitui Mobley no segundo disco e Billy Wallace substitui Bryant em algumas faixas do primeiro. Também com uma formação semelhante, Roach liderou um afiadíssimo quarteto “pianoless”, encarregada de dar novo tratamento a composições e standards imortalizados por Bird, no magistral “Max Roach 4 Plays Charlie Parker”.
Sem a presença das teclas de Bryant, coube a Roach e Morrow (substituído em algumas faixas por Nelson Boyd), literalmente, “carregar o piano”. Embora se dividindo entre a manutenção da arquitetura rítmica e o alinhavo da textura sonora da banda, o baterista reina soberano em todas as faixas, ora adotando uma postura lírica digna de um Connie Kay, ora arrebentando as baquetas, pratos e adjacências, qual um ensandecido Elvin Jones. Ele é o líder incontestável da gravação – e não faz a menor questão de esconder isso, impondo à vulgar expressão “dar no couro” uma literalidade ímpar.
No repertório, pérolas da joalheria birdiana, como as indefectíveis “Ko Ko” e “Confirmation” recebem um tratamento harmônico da maior qualidade. Nos metais, um encapetado Dorham e um alucinado Mobley (e há quem diga que ele não sabia solar!!!!) cometem as maiores diabruras em nome do sacrossanto jazz. O ótimo George Coleman substitui Hank Mobley em três faixas, mas isso não altera a qualidade do disco, gravado para a Mercury entre dezembro de 1957 e abril de 1958. Músicas consagradas por Parker, como a quase balada “This Time The Dream Is On Me” (biscoito finíssimo da dupla Arlen/Mercer) são reelaboradas com personalidade e reverência, destacando-se nesta o sublime trompete de Dorham.
O dínamo Roach desencadeia um tsunami sonoro nas eletrizantes “Yardbird Suite” e “Au Privave”, tocadas em ritmo alucinante. Em ambas, o baixo pululante de Morrow segura a onda e permite aos demais companheiros que se esbaldem em seus solos – não há menção do fato nas notas do disco, mas é muito provável que a pobre bateria tenha ido para o beleléu após as sessões de gravação. O álbum tem espírito de bebop e corpo de hard bop, sem demérito a nenhuma das duas escolas. E Roach ainda teve tempo de brindar a audição com uma excelente composição sua, a serpenteante “Raoul”, que evoca discretos sabores orientais. Ao ouvinte, cumpre se deliciar com este banquete dionisíaco. Empanturremo-nos, pois!
O grande mestre da percussividade, o mago que deu uma nova cara à bateria e redefiniu o uso dos pratos e timbales, o dedicado educador que formou gerações de novos jazzistas à frente da Lenox School of Jazz e da University of Massachusetts, partiu para o outro plano da existência em 14 de agosto de 2007. Legou uma obra de personalidade, manteve intacta sua integridade artística e mostrou ser possível praticar um engajamento político completamente apartado de qualquer vaidade pessoal, sem jamais resvalar no panfletarismo histérico. Certamente teria gostado muito de ver o negro Barack Obama a comandar os destinos políticos de seu país.
OS.: Este post é dedicado aos novos amigos FIGBATERA e ANDRÉ TANDETA, bateristas de primeira, com quem tenho compartilhado ótimas discussões no âmbito da blogsfera.
16 comentários:
Prezado Érico, já fico à espera e ansioso para saber quem será o próximo músico a ser enfocado. Para mim, que há muito já havia abandonado o jazz, a cada novo post, é mais um retorno a esta envolvente música e mais aprendizado.
Tenho ouvido muito o CD.
Grande abraço.
Dileto Marquês de Beckman,
É uma honra tê-lo em minha humilde morada virtual. Que bom que esse ouvinte seletíssimo está ouvindo jazz novamente - afinal, foi graças a você que pude conhecer maravilhas como Johny Hartman, Mel Tormé, Carmen McRae, entre tantos outros luminares que pontuam em suas intermináveis prateleiras (este sacrossanto altar do bom gosto e do refinamento - jamais falarei, nem sob tortura, que possuis "aquele" CD, cujos perpetradores não haverei de soletrar os nomes - mas estás perdoado por tão insignificante pecadilho - reze 300 Pais Nossos, 300 Ave-Marias e ouça o Coltrane Ballads 500 vezes!!!).
Grande abraço!
Legal, Érico!
Grato pela dedicatória nesta maravilhosa resenha sobre este belo disco. Sou mesmo fã (e quem não é?) do grande Max Roach!
Sensacional!
Mestre Figbatera,
Que bom que você gostou. Max Roach é um dos meus preferidos também (especialmente na fase com Clifford Brown, que é espetacular).
Grande abraço e volte sempre, afinal a casa é sua também.
Legal.A valorização da bateria ficou em excelente tamanho ao homenagear o Max Roach. Mas há um aspécto que foi citado no artigo que para mim sintetiza o sentido do jazz, ou como identificá-lo; e foste muito feliz ao fazê-lo. Me refiro quando disserte:
"Roach liderou um afiadíssimo quarteto “pianoless”, encarregada de dar novo tratamento a composições e standards imortalizados por Bird". É essa liberdade exercida pelo músico que pode fazer com eles realizem interpretações que mudam radicalmente a composição "originária", criando novas obras dentro das antigas. Charlie Parker fez isso brilhantemente em Body and Soul, quando se compara à canção gravada por Billie Holiday. Quantas nuances novas na música esse homem revelou. Aí está a graça da brincadeira do jazz. As obras são totalmente abertas. A boa execução de hoje amanhã poderá ser totalmente redefinida. Quem descobre o tema antes da dica que o músico solta?
Caro Celi,
Observação mais que pertinente. Os grandes músicos do jazz conseguem extrair um novo sentido e dar uma nova identidade mesmo ao standard mais batido. Sempre haverá uma outra perspectiva, um outro ângulo a ser abordado, um fraseado diferente, uma nuance inexplorada.
Esse é o grande barato do jazz: se reinterpretar sempre.
Beijo grande!
Grande batera. O que me incomoda são as faixas solo que estão em alguns de seus discos. Aí a coisa fica mais pro Olney e pro Tandeta.
Mr. Salsa, folgo em "vê-lo"!
Também não sou muito chegado em faixas solo - inclusive de bateria. Parece uma música incompleta, meio fora de lugar. Mas, nesse disco, o grande Roach preferiu dividir o estúdio de forma mais democrática - ainda bem!!!
Grande abraço.
Esse eu ainda não tenho. tentarei descolar um com os amigos.
Abraços,
Mestre Salsa,
Se você quiser, posso te mandar as faixas por e-mail. O meu é ericorenatoserra@gmail.com - me manda um e-mail (confesso que não sei onde pus o teu e-mail - minhas sinceras desculpas pela falha!!!).
Forte abraço.
Caro Erico,
obrigado pela dedicatoria.
Max Roach é um dos artistas mais importantes do Seculo XX,ao lado de Picaso,Orson Welles,Chaplin,Stravinsky,Duke Ellington,Charlie Parker e alguns(poucos) outros.
Poderia escrever infinitas linhas sobre esse genio.Alias no CJUB ha um post meu do ano passado sobre Roach com uma pequena analise de estilo. Não tenho a menor ideia de como seria possivel acessar esse post mas sei ser possivel.
Valeu,Erico!
Abraço
Caro Tandeta,
Que prazer têlo aqui no JAZZ + BOSSA. Seja mais que bem-vindo. Você é sócio da casa.
Vou dar uma procurada no post do CJUB de que falaste, afinal, além de um grande músico, Roach foi também um grande ser humano.
Forte abraço!
A postagem do Tandeta referente ao estilo técnico e importância do Max Roach pode ser acessada no calendário de postagens do blog do Cjub (www.cjub.blogspot.com) de título Eles – Segunda Parte na data de 01 de fevereiro de 2008.
Prezado Èrico,
se vc utiliza o programa Pando em sua rotina faço questão de enviar-lhe algo em breve.Tomo a liberdade de “capturar”seu e-mail” pra tanto.
Caro Edú,
Grato pela deferência. Eu jamais iria conseguir achar a resenha sobre o Max Roach sem a sua ajuda - e, de brinde, me aprofundei também na vida e na obra do grande Al Foster, outro baterista de primeira.
Não utilizo esse programa Pando (na verdade, meus conhecimentos na área de informática só superam os meus conhecimentos na área da física quântica, ou seja, saio do zero absoluto para um constrangedor 0,5), mas agradeceria se me explicasse para que serve e como funciona (sem querer abusar, diga também se é fácil de baixar, se usa pouca memória, etc).
Meu e-mail é ericoserra@uol.com.br
e está à sua inteira disposição.
Novamente sem querer ser chato, pergunto: você escreve regularmente em algum outro veículo de comunicação (internet, jornais, revistas, etc?). Desnecessário ressaltar as qualidades do seu texto mas vi sua resenha sobre o Luiz Alves disponibilizada no ejazz (ou no clubedejazz) e gostaria de poder ter um maior acesso aos seus escritos.
Forte abraço e obrigado!
Caro Érico,
sou um servidor público de carreira q persegue bons personagens e histórias em relação ao jazz - gênero q "curto" há 24 anos dos meus 37 anos de vida.Escrevo de forma regular no Jazzseen há um ano e meio.Comecei de forma despretensiosa : opinando, palpitando, dividindo o q sei e – sobretudo – aprendendo com Lester e os visitantes.Participava,de minha parte, com frequencia da coluna de comentários do blog.Diante dessa regular e perturbadora insistência,mais tarde, recebi um convite irrecusável para participar dessa fascinante experiência em auxiliar um blog de jazz.Basta consultar o histórico do blog q vc - de um ano e meio até hj - encontrara algo meu e - mais importante – um excelente material do Lester e associados q de forma desplanejada acabou se tornando o maior acervo de conteúdo original e bem escrito da internet doméstica em relação ao tema.Informe-se com seus consultores em informática (detenho o mesmo conhecimento q o seu em relação a física quântica) a respeito do Pando.Foi uma dica do Tandeta q se mostrou mais eficiente – entre nós – no envio de arquivos.Cordialmente.
Mestre Edú,
Obrigado pela dica. Vou me inteirar sobre o Pando, pois tenho tido uma certa dificuldade em enviar arquivos de música (demora prá carregar, o e-mail não chega, etc.).
Parece, então, que temos trajetórias semelhantes na blogsfera (além do gosto musical que creio ser parecido) - e tudo graças ao jazzseen e ao jazzbackyard, minhas fontes primárias de inspiração.
De fato, conheci muita coisa legal nesses dois blogs, além de poder dialogar com pessoas muito bacanas, tanto é que hoje não consigo imaginar minha vida sem o JAZZ + BOSSA - é o meu contato mais direto com o lúdico e a minha terapia (os maldosos haveriam de dizer "cachaça") diária.
Grande abraço e seja sempre muito bem vindo.
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