Amigos do jazz + bossa

terça-feira, 5 de maio de 2009

KENNY DORHAM: O HOMEM CERTO, NO LUGAR CERTO, NA HORA ERRADA


“Falling in love with love
Is falling for make-believe
Falling in love with love
Is playing the fool…”

Os versos de Lorenz Hart ecoam em minha cabeça, enquanto os acordes de “Falling in Love with Love” vão se derramando pelo ambiente. A música, uma das melhores compostas pelo parceiro Richard Rogers, é uma sutileza só. A banda, um verdadeiro time dos sonhos: Sonny Rollins no sax alto, Hank Jones no piano, Oscar Pettiford no baixo e Max Roach na bateria fazem a corte para a estrela do espetáculo, o trompetista Kenny Dorham. Em algumas faixas a harpista clássica Betty Glamman transborda lirismo e dá um charme todo especial às gravações – não é por acaso que a capa exibe uma reluzente harpa, posicionada bem ao lado do trompetista. O nome do disco é deveras apropriado: Jazz Contrasts.

McKinley Howard “Kenny” Dorham é um enigma ainda por ser decifrado. Talento superlativo como músico, compositor e arranjador, jamais teve o reconhecimento merecido – o adjetivo mais comumente associado à sua pessoa é “underrated” (subestimado). Em parte por ter sempre sido o sujeito que vinha substituir alguém em algum combo. Sucedeu Miles Davis no quinteto de Charlie Parker e Clifford Brown, após a morte deste, no quinteto de Max Roach. Todavia, ajudou a fundar os “Jazz Messengers”, com Art Blakey e Horace Silver, mas isso tampouco serviu para tirá-lo do ostracismo. Permaneceu a vida inteira eclipsado por Dizzy Gillespie, Fats Navarro, Miles Davis e Clifford Brown e nem o fato de ser o autor, entre outras músicas, de “Blue Bossa””, “Lotus Flower”, “Uma Mas” e “La Villa” granjeou-lhe maior notoriedade.

Talvez porque fosse um músico adiante do seu tempo – em 1955 já estava antenado com os ritmos caribenhos, tendo gravado o ótimo “Afro-Cuban”, ao lado do percussionista Carlos Potato Valdes. Talvez porque escapasse ao estereótipo do músico iletrado e bronco que habita um certo imaginário popular – culto, articulado e fluente não apenas em seu instrumento, mas também com as palavras, escreveu inúmeros artigos para a revista Down Beat.

Participou de gravações antológicas, sobretudo durante os anos 60, acompanhando Hank Mobley, Barry Harris, Tadd Dameron, Andrew Hill, Jackie McLean e Horace Silver. Exímio melodista, encarou com tranqüilidade a transição do bebop dos anos 40/50 para o hard-bop dos anos 50/60, tendo se tornado, ao lado de Donald Byrd, Fred Hubbard e Lee Morgan um dos pilares do estilo. Em sua discografia há, pelo menos, uma incontestável obra prima: o álbum “Round About Midnight at the Cafe Bohemia”, gravado para o selo Blue Note em 1956.

Além de todos esses predicados, o nosso herói ainda tocava piano e até cantava – e o fazia muito bem! Prova disso é o disco “Kenny Dorham Sings and Plays: This Is The Moment!”, gravado em 1958 para o selo Riverside.

A música brasileira também não era estranha a esse grande artista: além da forte influência exercida pela bossa nova, compôs “Sao Paulo” em homenagem à cidade. Seu temperamento avesso a hermetismos ajudou a lançar diversos novos talentos, como Tony Williams, Joe Henderson e Herbie Hancock. Todavia, por uma dessas ironias do destino, Dorham teve uma vida breve. Sequer chegou aos 50 anos, tendo falecido no início dos anos 70, em conseqüência de problemas renais.

Voltando ao disco “Jazz Contrasts”, o que se ouve, da primeira à última faixa, é uma constelação de astros do jazz no melhor de suas respectivas formas. Desde a abertura, com a hipnótica “Falling in Love with Love” até o encerramento, com a climática “La Villa”, o que se ouve é um bebop de primeiríssima linha. A harpa de Betty Glamman faz as vezes de uma verdadeira seção de cordas em “Larue” (linda composição de Clifford Brown), em “My Old Flame” e em “But Beautiful”, sem qualquer prejuízo ao swing da banda. Em “I’ll Remember April” um endiabrado Max Roach esmurra sem dó nem piedade os couros e pratos de sua pobre bateria, com uma velocidade estonteante, mostrando porque é um dos três maiores bateristas do jazz (você pode escolher os outros dois). Na mesma faixa, a destacar o incandescente diálogo entre o anfitrião e o convidado Sonny Rollins, cujo solo é antológico, além do belíssimo piano de Hank Jones.
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Sem deixar a peteca cair, “My Old Flame” serve de vitrine para que Dorham exiba toda sua técnica e seu elevado senso melódico, reelaborando de forma enternecedora a antiga balada de Sam Coslow e Arthur Johnson, composta em 1934. Outro ponto alto é a versão de “La Villa”, que já havia sido gravada no álbum “Afro-Cuban”, na qual, mais uma vez, Max Roach rouba a cena.
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Trata-se de um álbum indispensável a qualquer coleção de jazz com pretensões mais sérias, sendo que o disco, gravado entre 21 e 27 de maio de 1957, foi relançado em 2007 pela Riverside, através da série “Keepnews Collection”, com uma primorosa remasterização.

16 comentários:

Salsa disse...

Rapaz, o seu texto é daquele tipo que faz a gente prestar mais atenção no que está ouvindo. Dorham merece esse seu cuidado.
Abraços,

PS - Essa versão de Falling in love é realmente muito boa.

edú disse...

Agora sim.Bem vindo ao mundo dos blogs de jazz.Os visitantes agradecem a amostra do q se anuncia algo bastante bom.

Érico Cordeiro disse...

Valeu, mestres Salsa e Edú!
Esse post é uma homenagem a um grande amigo, Rodrigo "Doido" Maia, um apaixonado por música como nós e trompetista amador (ainda não o ouvi tocar, mas soube que ele já passou da etapa do "Parabéns a você" e "Caminhando").
Forte abraço!

Velososb disse...

Presado Érico,
Gostei muito do que vi e ouvi. Vou passar a acompanhar a história do jazz, em seu blog. As suas opiniões estão muito bem escritas. Parabéns!
Enquanto trabalho, deixo a página (blog) aberta... ouvindo a boa música em uma sequência quase mágica, pois eleva o espírito. É Jazz!
Grande abraço,
Veloso

Velososb disse...

Érico,
É prezado mesmo! hehehehe
Está "presado"..., pode-se entender também: "preso ao blog", hehehehe
Veleu!

Érico Cordeiro disse...

Grande Veloso,
quanta honra. Seja mais que bem-vindo. Espero que você nos visite sempre. Acho que você quis dizer "PESADO". Abraços.

figbatera disse...

Muito bom!
Concordo com o Salsa; texto caprichado para um disco de alta qualidade.

Sergio disse...

Hei, amigo, que texto, hein?! O Salsa sabe o que diz: disparei atrás do álbum apresentado - o qual me gabei aqui cá comigo, de tê-lo -, pra reouvir tudo, dessa vez com tua resenha fazendo os extras.
Abraços!

Sergio disse...

ps.: tenta, please, aumentar as letrinhas (o tamanho das fontes) pros véio.

Érico Cordeiro disse...

Grande Sérgio,
Você é um verdadeiro garimpeiro de sons. Sugestão anotada e e providenciada.
Abraços,

Celijon Ramos disse...

E ai Érico!
Não falei que o blog seria um sucesso. Teu texto está objetivo, claro sem perder a riqueza da informação. Também é de uma delicadeza deliciosa. Tens conseguido ziguezaguear pelos temas ( ora avançando fatos, detalhes ou outros temas que se correlacionam e depois retrocedes ao ponto de início com equilíbrio, dando ritmo e fluência).
De mais a mais, a pessoas têm incentivado bastante com seus comentários elogiosos e que são merecidos. O exemplo disto é este teu maravilhosoo artigo que homenagea o grande trompetista Kenny Dorham. Me deixas orgulhoso e contente.
Abraços!

Érico Cordeiro disse...

Caro Celi,
Obrigado por suas palavras generosas - tanto quanto o coração de quem as escreveu. Você é responsável direto por esse blog existir - afinal, você estava lá no marco zero, ensinando este manezinho a dar os primeiros passos na blogsfera.
Grande abraço, irmão e um super beijo!!!!

José Domingos Raffaelli disse...

Caro Érico,

Kenny Dorham tocou em São Paulo e no Rio em julho de 1961, integrando a caravana de astros American Jazz Festival (a gravadora Imagem lançou um LP duplo, e posteriormente dois CDs, do concerto deles intitulado "Jazz no Municipal", em 16 de julho de 1961. A troupe incluiu 14 músicos e uma cantora distribuidos em três formações. Vieram Coleman Hawkins, Roy Eldridge, Al Cohn, Zoot Sims, Kenny Dorham, Curtis Fuller, Herbie Mann, Ronnie Ball, Tommy Flanagan, Ben Tucker, Ahmed-Abdul Malik, Dave Bailey, Jo Hones, Ray Mantilla e a cantora Chris Connor. Chefiando essa constelação veio o ultra-famoso Willis Connover, o mais popular disc-jockey de jaaz em todo o mundo. Os músicos dividiam-se nos quintetos de Al/Zoot e Hawkins/Eldridge, o trio que acompanhou Chris Conner, o sexteto com Dorham-Fuller-Mann e seção rítmica, e a sensacional abertura dos concertos com todos no palco, exceto Chris Connor. Foi uma temporada inesquecível. Caso algum dos amigos tenha essas gravações, sabe do que estou falando. Como curiosidade, na última hora Curtis Fuller substituiu J. J. Johnson, Al Cohn substituiu Sonny Stitt e Chris Connor substituiu Jimmy Rushing, o magnífico "Me. Five by Five" dos áureos tempos da orquestra de Count Basie. Naturalmente, eu e todos os jazzófilos aqui da terra cercamos os músicos para papos, almoços e jantares. Os músicos foram super receptivos. Foram alguns deles que levaram a bossa nova para os USA após conheceram-na aqui, gravando os primeiros LPs da então nova música brasileira. Herbie Mann voltou no ano seguinte para aqui gravar o LP "Do the Bossa Nova!" com Baden Powell, Jobim, Sérgio Mendes, Luiz Carlos Vinhas, a bateria de um escola de samba e outros.
No seu regresso, Kenny Dorham compôs o tema "São Paulo", em homenagem à capital paulista. Na ocasião, mencionei o quanto fiquei emocionado com sua gravação "Autumn in New York", uma obra-prima registrada ao vivo no Café Bohemia para a Blue Note. Em 1962, Dorham submeteu-se ao famoso blindfold test do crítico Leonard Feather na revista Down Beat. No final do teste, Feather perguntou-lhe quais os melhores trompetistas de jazz da nova geração e ele citou Lee Morgan e o paulista Maguinho D'Alcantara, que ouviu em São Paulo, acrescentando "ele tocou a música mais maravilhosa que ouvi nos últimos tempos". Maguinho fez uma cópia ampliada da página da Down Beat colocando-a num quadro na sua sala de música.
Em minha opinião, além de trompetista, compositor e arranjador underrated, Kenny Dorham, falecido aos 48 anos, deixou uma obra valiosíssima, criativa, bela e atemporal que ouço constantemente nos diversos CDs que tenho em nome dele e como sideman em mais de 40 outros CDs.
Keep swinging,
Raffaelli

Érico Cordeiro disse...

Mestre Raffaelli,
Fico encantado (e todos os viajantes que acessam o JAZZ + BOSSA) com os seus comentários. Não basta ter presenciado a história do jazz, mas você transmite ao leitor a sensação de estar ali ao seu lado.
Diga-se de passagem que comprei o "Quiet Kenny" e o "Whistle Stop" por recomendação sua, pois li as resenhas no seu Guia de Jazz (e a resenha está assinada por você).
Há muitos anos, quando a gravadora Imagem ainda existia, encontrei esses dois cds em uma loja aqui de São Luís. Ouvi ambos, mas achei a qualidade sonora não muito boa e, como estudante de grana curtíssima, optei por levar um Chet Baker e uma coletânea do Miles Davis. Hoje me arrependo bastante, pois são gravações históricas. Salvo engano o fundador da Imagem (que chegou a distribuir o catálogo da Steeplechase no Brasil) era o Sr. Jonas (?), ex-vendedor das casas Murray e apaixonado por jazz.
Sobre a caravana do American Jazz Festival, quando do concerto no Rio de Janeiro, o Mestre Lula conta que deu um abraço no Curtis Fuller e este se emocionou ao ponto de chorar.
Em seguida, alguém disse ao Lula que o Curtis havia chorado copiosamente de emoção porque havia sido a primeira vez que recebia um abraço de um branco (nesse exato instante sinto os olhos marejarem - é a força do jazz, capaz de transformar esse nosso mundo em um lugar infinitamente melhor. Que pena que pouca gente tenha se apercebido dissso!!!).
ALIÁS, venho acalentando um sonho (ainda muito distante) que é abrir uma pequena distribuidora de cds de jazz e poder distribuir o catálogo de casas como a Criss Cross, a Candid, a Savoy, a Steeplechase (e muitas outras) no Brasil, pois os cds importados tem um preço proibitivo - o que acaba por restringir o acesso das pessoas ao jazz. Mas isso é para um futuro muuuuuuuito distante.
Um grande abraço, Mestre, e é sempre muito bom contar com a sua generosíssima presença aqui no JAZZ + BOSSA!

José Domingos Raffaelli disse...

Caro Érico,

Fico felicíssimo que influenciei-o a comprar "Quiet Kenny" e "Whistle Stop" através do meu comentário no Guia do Jazz em CD. Espero que não esteja arrepenbdido (rs rs rs...)
A propósito, sua composição "Lotus Blossom" foi plagiada por um músico brasileiro nos áureos tempos do samba-jazz. Analisando criteriosamente a variedade temática-harmônica das suas composições em "Whistle Stop", constatamos que ele possuía uma imaginação ilimitada e criativa, pois cada qual possui um caráter diversificado das demais, fornecendo um amplo painel da sua imensa capacidade de renovar-se sem jamais repetir-se. Isto, para mim, vale muito. E não esqueçamos de que, como trompetista, ele possuía um estilo e fraseado peculiares, cuja sonoridade era facilmente reconhecida. Independente disso, por vezes ele utilizava um efeito com a garganta em meio a seus solos (porém com o maior bom gosto), algo que, ao que eu saiba, nenhum outro jamais fez.
Há muitos anos redigi um texto da contracapa de um disco de Kenny Dorham lançado pela Imagem.
Em julho de 1972, estava na seção de jazz da famosa loja de discos J & R (a melhor do mundo em itens de jazz, em NY), quando um freguês comentou que Kenny Dorham estava muito mal, com problemas renais e precisando de um transplante. Dirigi-me a ele falando que conheci-o na temporada que fez no Rio em 1961, com o American Jazz Festival, e na mesma hora esse
cidadão mostrou-me vários LPs de Dorham debaixo do braço que iria pagar no caixa. Ao despedir-se, deu-me seu cartão e caí para trás: era Benny Bailey, trompetista amicíssimo de Quincy Jones que revelou-se na orquestra de Lionel Hampton e estava morando na Europa (acho que na Suécia, mas não lembro direito).
Como dizia Dizzy Gillespie, "what a small world"!!!
Sobre Jonas Silva, meu amigo de longa data, está aposentado, mas ainda tentando relançar algumas coisas da Imagem. Há algumas semanas telefonou-me dizendo que estava negociando lançar o primeiro CD de "Jazz no Minicipal". Desejemos que ele consiga.
Keep swinging e abração,
Raffaelli

Érico Cordeiro disse...

Mestre Raffaelli,
Torço para que o Jonas Silva (outro grande batalhador pelo jazz) possa voltar à ativa. Nossos ouvidos agradecem!!!
Benny Bailey estava entre os trompetistas que prestaram uma bela homenagem a Miles Davis no festival de Montreux em 91, evento produzido por Quincy Jones e que teve a importante participação do brasileiro Marco Mazzolla na distribuição dos músicos e dos equipamentos no palco (ele narra essa história em seu ótimo livro "Ouvindo estrelas").
Grande abraço, Mestre!

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