Amigos do jazz + bossa

sexta-feira, 15 de maio de 2009

A BALADA DO MAR SALGADO


O cálido sopro da brisa marinha acaricia as narinas e o murmúrio das ondas, chocando-se contra o resoluto quebra-mar, hipnotiza os ouvidos daqueles cinco homens que atravessam, com passos firmes, o pequeno cais. Promessas de mil aventuras e perigos espreitam os tripulantes daquela elegante escuna que ora se prepara para zarpar. Quatro indômitos lobos do mar ouvem, atentos, as últimas palavras do seu capitão, antes de içar as velas e partir rumo ao desconhecido. Um agridoce sabor, misto de reverência e esperança, perpassa a boca de cada um deles. O jovem capitão, decidido a singrar por mares nunca dantes navegados e a encontrar indizíveis tesouros, fita o horizonte ao longe e tenta, inutilmente, perscrutar os insondáveis propósitos de Netuno. Lentamente, a pesada âncora é içada. Nada mais há a ser feito. A sorte está lançada. Sem titubeios, a nau começa a cumprir o seu glorioso destino.

O deus dos mares foi generoso com aquele jovem e destemido capitão. Quando gravou este “Maiden Voyage”, poucos dias antes de completar 25 anos, Herbert Jeffrey Hancock tinha o mundo a seus pés – fama, prestígio e dinheiro – boa parte deste por conta dos direitos autorais do seu grande sucesso “Watermelon Man”. Apesar de novo, já acumulava uma experiência que muitos jazzistas mais velhos jamais ousariam conceber. No currículo, além dos elogiados álbuns com o então empregador Miles Davis, importantes participações em vários discos como acompanhante (Donald Byrd, Jackie McLean e Phill Woods tiveram a honra de tê-lo como sideman), além de alguns outros como líder. Destes, pelo menos uma obra-prima irretocável: o extraordinário “Empyrean Isles”, de 1964.

Além disso, é o autor de inúmeros standards jazzísticos, como “Cantaloupe Island”, “Riot”, “Goodbye to Childhood”, “The Sorcerer” e “Speak like Child”. Também compôs trilhas sonoras para o cinema, onde se destacam a do enigmático “Blow Up” e a do comovente “Round Midnight” (laureada com o Oscar). Músico versátil, criativo e de espírito inquieto, Herbie sempre foi um incansável pesquisador (mergulhou de cabeça nos ritmos africanos, tendo chegado ao ponto de mudar seu nome para Mwandishi, nos anos 70), mas, ao mesmo tempo em que construiu uma sólida carreira, cometeu algumas heresias em sua trajetória. Sua bem sucedida (comercialmente falando) incursão pelo fusion e pelo pop até hoje provoca urticárias entre os puristas mais renhidos, embora, a bem da verdade, jamais tenha abandonado totalmente o jazz.

Nascido a 12 de abril de 1940, Hancock logo demonstrou ser um prodígio ao piano, tendo começado seus estudos aos sete anos e, aos onze, tornando-se um destacado solista da Orquestra Sinfônica de Chicago. Foi fisgado pelo jazz ainda no colegial e sua influência mais perceptível é o lírico Bill Evans. Formou-se em música e engenharia elétrica pela Faculdade de Grinnell, nunca tendo escondido sua admiração pelas inovações tecnológicas – foi um dos primeiros jazzistas a aderir ao piano elétrico e aos sintetizadores. Convidado por Miles Davis para integrar sua banda, permaneceu com o trompetista de 1963 a 1968 sendo, juntamente com Wayne Shorter, o principal responsável pela sonoridade quase cubista daquele mítico quinteto. Durante esse período, também gravava em seu próprio nome, com certa regularidade, alguns excelentes discos para a Blue Note – esgotamento criativo, portanto, era algo que passava ao largo do nosso bravo capitão.

Retomando a viagem da nossa valorosa escuna, os companheiros de Hancock nessa viagem são o também jovem e igualmente prodigioso Freddie Hubbard (trompete) e dois companheiros da banda de Miles Davis – o baixista Ron Carter e o baterista Tony Williams (este, com inacreditáveis 20 anos, já acumulava uma milhagem náutica considerável), além do saxofonista George Coleman, recentemente substituído por Wayne Shorter na banda de Miles. Coleman, com seu fraseado obliquo e seus solos pouco convencionais, era um mestre da complexidade rítmica mas, por alguma razão, não teve muito destaque em sua breve passagem pelo combo liderado por Davis. Em “Maiden Voyage” ele está extremamente à vontade para desfiar a sua técnica soberba, a serviço de um repertório impecável – talvez por isso mereça o posto de imediato.

As sofisticadas texturas harmônicas propostas por Hancock, que assina todas as faixas, revelam que as águas inicialmente singradas por seu patrão no notável “Kind Of Blue” ainda não haviam sido totalmente exploradas – e o pianista e sua tripulação se encarregam de fazê-lo com maestria e competência técnica ímpares. Abrindo o álbum, um clássico do jazz moderno: a climática “Maiden Voyage”, na qual o sax tenor de Coleman e o trompete de Hubbard exalam uma contida sensualidade, fazendo um belíssimo contraponto ao piano delicado e ultracool do líder. A destacar o maravilhoso trabalho de Williams com os pratos e o magistral solo de Coleman – a escuna do capitão Hancock navega por águas límpidas e tranqüilas.

Uma tempestade se aproxima. Em “The Eye Of The Hurricane” pode-se sentir a violência da borrasca a chacoalhar a nossa querida nau. Sua experiente tripulação não se intimida e manda ver um hard bop nada ortodoxo, onde o capitão exibe toda a sua exuberante técnica – o dedilhado feérico conduz a tripulação através da tormenta, com o apoio mais que preciso do imediato Coleman. Em seguida, mar calmo novamente: é a bela “Little One”, uma balada pra lá de cool, na qual recai sobre o baixo de Carter a responsabilidade de sustentar a melodia, com outro excepcional solo de Coleman. Ecos de Wayne Shorter povoam a quase swingante “Survival Of The Fittest”, com seu andamento surpreendente, cheio de modulações e variações climáticas – é a vez do grande Freddie Hubbard mostrar toda a sua competência técnica.

O gran finale ficou a cargo da delicada “Dolphin Dance”, mais um clássico da inesgotável oficina de idéias do Capitão Hancock. Sua levada hipnótica faz do ouvinte um clandestino de luxo a bordo da preciosa escuna. Podem-se perceber os contornos das belas praias que aguardam os nossos sedentos marujos, onde sensuais dançarinas, vestidas com diáfanos sarongues, os esperam para um inesquecível banquete tropical. Coleman e Hubbard, outra vez, estão soberbos. Carter e Williams executam com a habitual maestria a tarefa de manter o prumo da nau. O capitão dispensa comentários – mantém uma postura discretíssima, destilando econômicos porém certeiros acordes – mas jamais deixa dúvidas sobre quem está no comando da embarcação. A viagem chegara ao fim!

O tombadilho agora está vazio. A escuna, atracada no porto, retornou incólume à segurança inquietante do cais. Ao longe, o tremeluzente farol cumpre a sua nobre sina de alertar os navios para os incontáveis perigos que se escondem sob as águas. Nos bares próximos à zona portuária, alguns velhos marinheiros, homens de pele curtida de sal e de sol, tartamudeiam à meia luz e especulam sobre um valioso tesouro que, diz-se à boca pequena, teria sido encontrado por um certo Capitão Hancock e sua pequena tripulação. De repente, faz-se um silêncio solene naquele bar enfumaçado e lúgubre. Então, aos primeiros acordes de “Dolphin Dance”, os ouvidos embevecidos daqueles rudes lobos do mar são presenteados com um som mais belo que o mais belo canto da sereia. Não é preciso dizer mais nada. Todos ali souberam, no mesmo instante, que o bravo Capitão Hancock havia, finalmente, aberto o seu baú do tesouro.

P. S.: Post dedicado aos queridos amigos Celijon Ramos e James Magno Farias, com um afetuoso abraço.

13 comentários:

Gustavo Cunha disse...

esse é o cara !
Maiden Voyage é daqueles discos pra se ouvir no escuro, e da época em que o jazz iniciava um novo rumo que foi devastado nesta segunda metade de década por Miles.

Boa !!
Abs,

Érico Cordeiro disse...

É isso aí, Guzz.
O cara é gênio. Enfileirou cinco ou seis discos antológicos entre 61 e 65 como líder, tocou em discos seminais (e não só com Miles) e ainda ganhou rios de dinheiro, subvertendo aquele surrado clichê (tão comum no jazz) do músico genial que vive e morre na miséria.
É um dos maiores!!!
Abraços.

James Magno Farias disse...

Grande Mestre Molosso,
obrigado pela homenagem ao final; Hancock está entre os grandes de todos os tempos e sua delicada sintaxe sonora deu ao jazz ainda mais sofisticação.
aguardamos mais posts.
forte abraço,
James

Érico Cordeiro disse...

Hiper Molosso,
Que bom que você gostou - sei da sua paixão pelo Hancock, traduzida nas dezenas de cds dele que repousam em suas bem fornidas estantes.
Abração!

Salsa disse...

Tive o prazer de ouvir Hancock ao vivo. Ele é uma figura extremamente elegante diante do piano.
E esse tema que abre a sessão da radiola é delicioso para se tocar.

Érico Cordeiro disse...

Caro Salsa,
Que inveja!!!! Esse período da Blue Note é espetacular.
E lembra aquela história do quase suicídio?
Preparei umaa resenha em sua homenagem sobre outro disco com o grande Barney Wilen e em breve irei postar.
Grande abraço!
PS.: aqueles discos do Ray Charles + Milt Jackson são maravilhosos!

Celijon Ramos disse...

É necessário chover no molhado. Como todos seus leitores-ouvintes ressaltaram, Hancock é genial nota por nota. Isso é que conduzir um trio.Todos os músicos têm visibilidade e seu grande momento sob a batuta do grande Capitão.Em nenhum momento se percebe vaidade ou excessos.
Obrigado por dedicar a mim e a James tão bonita página de seu blog. Para mim mesmo é uma honra.

Érico Cordeiro disse...

Valeu, compadre.
Delicadeza e sobriedade, aliada a uma capacidade técnica excepcional: eis a receita do homem!!!
Beijo grande.

João Bouères disse...

A clareza do piano de Hancock, aliada a lucidez de como Érico descreve a importância deste grande virtuoso e seus músicos, leva qualquer simpatizante desta manifestação musical, nascida na região de Nova Orleans, nas comunidades negras, a se encantarem por este rítimo rico das mais variadas harmonias.
Grande abraço!

figbatera disse...

Mais uma maravilhosa resenha de Érico, mais novo mas já mui importante blogueiro navegando nas ondas do jazz com muito conhecimento e bom-gosto.
Parabéns!
Somzão...

Érico Cordeiro disse...

Caros João e Figbatera,
Obrigado pelas palavras gentis! Poder estar em contato com pessoas como vocês, que amam tanto a música e que possuem um conhecimento tão enricquecedor, é que é o verdeiro barato.

Grande abraço aos dois.

PS 1.: A gente sabe quando o sujeito é chique quando liga prá ele por volta da meia noite e o cara tá ouvindo Debussy!!!
PS 2.: Espero que você, ó Marquês de Beckman, tenha gostado do CD!

Jarbas Couto e Lima disse...

Caro Érico,
Acompanho aprendendo, meio de escanteio(a ignorância acanha!), seus belíssimos artigos. Obrigado!
Para mim, seus artigos são como novas lições para os ouvidos.
Um abraço carinhoso!
Jarbas

Érico Cordeiro disse...

Valeu mesmo, Mestre Jarbas!
Deixe de modéstia, meu caro. Você, além da extrema sensibilidade musical (e agora dono de estúdio) possui um gosto refinado, o qual espero não decepcionar.
Abração!

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