Amigos do jazz + bossa

sexta-feira, 1 de maio de 2009

ALLONS ENFANTS DE LA PATRIE OU A FRANÇA TAMBÉM SABE SWINGAR





Os franceses têm um caso de amor com o jazz desde sempre. Apesar do seu reconhecido (diria até caricatural) nacionalismo, os franceses receberam de braços abertos aquela música alegre e sensual que vinha do outro lado do Atlântico, no início dos anos 30. Não por acaso, o mais importante combo jazzístico não americano, o Quintette du Hot Club de France, surgiu na terra de Asterix. Ali pontuavam dois dos maiores nomes do jazz de todos os tempos: o guitarrista belga Django Reinhardt e o violinista francês Stéphane Grapelli.


Durante a II Guerra Mundial, o jazz foi, ao lado da Marselhesa, a trilha sonora da resistência francesa. Nos bailes quase clandestinos, as canções das grandes orquestras norte-americanas aqueciam os corações das pessoas e ajudavam os franceses a manter um pouco de auto-estima, ante a violenta ocupação nazista. Além disso, antes e depois da grande guerra, inúmeros jazzistas encontraram na França um lugar para viver e professar sua arte, como ocorreu com Bill Coleman, Sidney Bechet, Bud Powell, Kenny Clarke e muitos outros.


Da união entre alguns eminentes músicos americanos e franceses, nasceu o álbum “Afternoon in Paris”, uma pequena obra-prima, cuja audição é um verdadeiro deleite para os sentidos. Capitaneando a nau, o pianista John Lewis, americano, e o guitarrista Sacha Distel, francês, estabelecem um diálogo musical de rara beleza, nesse álbum gravado entre 4 e 7 de dezembro de 1956. Coadjuvando os anfitriões, estão o saxofonista franco-americano Barney Wilen (que gravou com luminares como Miles Davis e Art Blakey e, na época, contava com apenas 19 anos), os baixistas Pierre Michelot e Percy Heath, que atuam em três faixas cada, o mesmo sucedendo com os bateristas Kenny Clarke e Connie Key.


John Aaron Lewis dispensa apresentações. Educador, compositor, diretor musical e cabeça pensante por trás do Modern Jazz Quartet, é um dos pilares do jazz moderno, tendo participado ativamente da criação do cool jazz, ao lado de Miles Davis, Gerry Mulligan e Lennie Tristano. Esteve presente nos momentos iniciais do bebop tendo tocado com Charlie Parker no final dos anos 40 e passado algum tempo na orquestra de Dizzy Gillespie. Sua reputação cresceu após emprestar seu talento como músico e arranjador para a gravação do célebre “Birth of Cool”, um dos álbuns fundamentais da história do jazz. Na ourivesaria sonora de Lewis eram trabalhados os mais variados estilos, desde o bebop ortodoxo da linha Parker até o flerte com a música erudita da chamada “third stream” (uma curiosa versão das bachianas brasileiras foi gravada no disco “The Sheriff”, do MJQ). Tudo feito com muita sobriedade e elegância, pois apesar de ser um mestre em seu instrumento, Lewis não era dado a rompantes virtuosísticos como, por exemplo, um Erroll Garner.


Sacha Distel pertence a outra geração de músicos e trazia consigo uma outra concepção musical, transitando com bastante fluência entre a chanson francesa, o jazz e a música pop. Bonitão, talentoso e extremamente simpático, fez grande sucesso nos anos 50/60, inclusive como cantor. É o autor de “The Good Life”, imortalizada na voz de Tony Bennet. Tocou com grandes nomes do jazz, como Louis Armstrong e Dizzy Gillespie, apresentou um programa bastante popular na televisão francesa e, mais que tudo, teve um ardente caso de amor com a belíssima Brigitte Bardott.


A união de músicos de temperamentos tão díspares funcionou à perfeição. Exatamente por mostrar um Lewis muito menos contido que nas gravações com o MJQ, este “Afternoon in Paris” surpreende e encanta tanto. A sofisticação do pianista em nenhum momento é posta de lado, mas, talvez inspirado pela espontaneidade do jovem parceiro, o severo Jonh Lewis toca com a alegria e o despojamento de um iniciante. O disco abre com uma delicada versão de “I Cover the Waterfront”, com destaque para a guitarra melodiosa de Distel, cujo estilo econômico e fluido se assemelha ao de Jim Hall ou Jimmy Raney.


Na calorosa “Django”, percebe-se com clareza a diferença entre as concepções harmônicas de Lewis no MJQ e em gravações “avulsas”. Aqui, o pianista está mais relaxado, criando uma atmosfera de puro swing, para que o guitarrista francês possa brilhar nos solos, sem deixar de lado a pegada de blues. Outro destaque é a canção que dá título ao álbum, composta por Lewis, na qual o pianista exercita todo o seu domínio do idioma cool, com espaço para uma linha de baixo quase hipnótica, a cargo do francês Pierre Michelot. O ponto alto do disco é, sem dúvida, a versão arrebatadora de “Dear Old Stockholm”, extraída do folclore escandinavo e incorporada ao repertório jazzístico graças às gravações de Stan Getz e Miles Davis.


Aqui todas as loas vão para o jovem saxofonista Wilen, que esbanja classe e vigor em solos estonteantes e ajuda a desenvolver o clima harmônico sugerido pelo piano de Lewis, com seu som caudaloso e sem arestas. O lirismo que impõe a seu fraseado, e que serve de guia aos demais membros da banda, revela um músico maduro e de alta personalidade, não deixando o ouvinte perceber que se trata de um garoto de apenas 19 anos. A seção rítmica alinhava uma expressiva tintura de blues – é a mágica geografia da música, capaz de fazer desaguar no Lago Mälaren as sinuosas águas do Mississipi.


Esses predicados fazem de “Afternoon in Paris” um disco especial, que merece ser ouvido muitas e muitas vezes, não apenas por ser uma verdadeira declaração de amor a Paris, mas também por se revelar um libelo contra a intolerância e a xenofobia. Ali, brancos e negros, de países e culturas distintas, interagem fraternalmente, tecendo um documento vivo da capacidade do jazz de falar aos ouvidos de todos os povos do mundo.

13 comentários:

James Magno Farias disse...

Álbum sensacional mesmo;belo post. Não esqueça de Jean Luc Ponty, discípulo direto de Grapelli, entre os grandes franceses. forte abraço.

Celijon Ramos disse...

Excelente esgrima, caro Érico. Touché!
Além de tudo que bem disseste sobre o disco,gostei muito da bateria;um tanto enérgica e raras vezes econômica,perfilou bem junto à guitarra e ao piano.
O jazz é mesmo a música que conseguiu tocar em qualquer lugar do mundo; qualquer cultura musical que permita o improviso, pimba! Lá está o jazz e emocionar.
Abraço!

Érico Cordeiro disse...

Valeu Molossos James e Celijon. Esse disco é maravilhoso e tem uma história de que o Barney Wilen salvou o crítico Roberto Muggiatti do suicídio (mas isso é uma outra história, que um dia hei de contar aqui).
Abraços fraternos!

Salsa disse...

Esse disco está na minha estante. Realmente, o jovenzinho tem um som warm muito interessante.
Aguardo a história do quase suicídio.

Érico Cordeiro disse...

Grande Salsa,
pena que as gravações do Wilen sejam tão difíceis de encontrar. A história é bem legal e uma hora dessas eu posto.
Abs.

figbatera disse...

Muito bom, Érico!
E o seu podcast está funcionando bem, com uma ótima seleção.
Bola pra frente!

Érico Cordeiro disse...

Obrigado, Grande Figbatera.
Você mandou muito bem, tocando com feras do naipe de Jamil Joanes e Alberto Continentino - dei uma passada no seu blog e já me incluí como seguidor.
Grande abraço.

figbatera disse...

Eu tb estou seguindo o seu...

Érico Cordeiro disse...

Valeu, grande mestre das baquetas, escovinhas, pratos e adjacências!!

José Domingos Raffaelli disse...

Caros amigos (desculpém tomar a liberdade de chamá-los amigos?) correligionários,

Esse disco é extraordinário. Desde os tempos do LP, devo tê-lo ouvido centenas de vezes. Como dizia Duke Ellington, "A simplicidade é o caminho certo para as grandes realizações". Nada de altos decibéis, agudos espalhafatosos, exbicionismos gratuitos, mas tão-somente grandes músicos em magníficas interpretações - o dedo mágico de John Lewis certamente comandou as ações em grande estilo. Não há destaques, todos se nivelaram a despeito de cada músico possuir sua própria identidade.
Quando ouço esse disco, sempre com atenção e muita emoção, entristece-me lembrar que todos seus músicos já nos deixaram. Todavia, se não fosse o disco, o que restaria desses grandes artífices da nossa querida "música dos músicos" ? O disco é eterno, e um CD como esse continuará sendo ouvido por muito tempo, ao menos pelas pessoas de bom gosto e real sensibilidade.
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Falando em jazz francês, quando Sacha Distel cantou no Rio (anos 60), entrevistei-o e, entre outras coisas, revelou seu enorme entusiasmo pelo jazz, a despeito da vir cantando música popular. Disse-me que seu guitarrista favorito era Tal Farlow, mas sabia que nunca alcançaria o nível do sey ídolo, mas também ouviu e gostava muito de Django, o americano Jimmy Gourley, que morava em Paris, e o belga René Thomas, que andou pelos States nos anos 50, inclusive gravando com Sonny Rollins.
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Dois episódios contados por Stephane Grappelli, em 1988, quando tocou no Free Jazz Festival:
1) Nos anos 20, o melhor violinista francês de jazz era Michel Warlop, que, nos anos 20, deu-lhe seu violino de presente.
Anos depois, Grappelli deu o violino para Jean-Luc Ponty.
Posteriormente, Ponty deu-o a Didier Lockwood.
Lockwood deu o mesmo violino ao neto de Grappelli, voltando a ser parte da família.
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2)Na época da Segunda Guerra, quando os alemães invadiram a França, foi proibido tocarem música americana, mas os franceses usaram um estratagema para enganar os alemães: tocavam músicas americanas com letras em francês feitas para ludibriarem os invasores.
Certa noite, Grappelli tocava num clube em Paris quando adentrou um grupo de seis ou sete oficiais alemães. Naquele momento, o conjunto de Grappelli tocava o clássico "Saint Louis Blues" interpretado com letra em francês pela sua cantora. Grappelli e seus músicos ficaram apreensivos, pois, caso os oficiais inimigos reconhecessem a música, estariam sujeitos a uma severa punição. Quando a música terminou com o público apaludindo, o oficial mais graduado dos alemães (provavelmente um coronel) perguntou a Grappelli o nome daquela música, e este, já prevenido, respondeu que era "Tristesse De Louis XV", e que a letra falava nos amores do finado rei da França e fazia referência aos diamantes de Maria Antonieta (Nota: a letra em inglês menciona diamantes e rubis, mas nada tem a ver com Louis XV). Aparentemente satisfeito, o oficial voltou à mesa e os músicos respiraram aliviados, continuando a tocar músicas americanas com letras me francês.
Antes de os alemães retirarem-se, um oficial menos graduado veio cumprimentar discretamente Grappelli parabenizando-o pelas belas músicas que tocaram, mas, Grappelli ficou petrificado quando o mesmo disse-lhe: "A que mais gostei foi Saint Louis Blues". Achando que todos iriam presos, aterrorizado e apanhado de surpresa Grappelli ainda tentou gaguejar algumas coisa, mas, para seu alívio imediato,o tal oficial falou-lhe baixinho ao pé do ouvido: "Não tema, so queria cumprimentá-lo porque eu sou pianista de jazz e nunca iria denunciar um colega de profissão."

Keep swinging,
Raffaelli

Érico Cordeiro disse...

Mestre Raffaelli, que prazer em "ouvi-lo" contar essas deliciosas histórias que só o jazz poderia proporcionar.
Esse disco é um dos meus favoritos - ouço-o sempre e a cada audição ele me revela algo de novo. John Lewis é um gênio e consegue soar com extrema delicadeza em qualquer contexto.
Grande abraço!

José Domingos Raffaelli disse...

Um adendo relativo a Barney Wilen.

Um disco dele que considero ótimo é JAZZ SUR SEINE, editado em CD pela Emarcy francesa, com temas de Django Reinhardt e canções de Charles Trenet.

Barney é acompanhado por Milt Jackson (piano, imaginem!), Percy Heath e Kenny Clarke (mais um percussionista africano em duas faixas, acho).

Não se assustem com a menção às canções de Charles Trenet, que foio um dos maiores chansoniers franceses de todos os tempos e suas músicas merecem atenção - claro, não são temas de jazz, mas algums gosto muito, especialmentre "Que rest-il des nos amours", que Milt Jackson toca uma introdução que nada tem a ver com a música, Barney improvisa muito bem e o tema só aparece no final. Também há uns dois ou três originais de Barney, inclusive um blues pauleira sensacional.
Um motivo a mais para adquirí-lo: é vendido a preço de banana em fim de feira - na base de 7 ou 8 dólares + o porte.
Enjoy and keep swinging,
Raffaelli

Trilha Música
1 Swing 39
2 Vamp
3 Ménilmontant
4 John's Groove
5 B.B.B. (Bag's Barney Blues)
6 Swingin' Parisian Rhythm [Jazz Sur Seine]
7 J'Ai Ta Main
8 Nuages
9 Route Enchantée
10 Que Reste-T-Il de Nos Amours?
11 Minor Swing
12 Epistrophy

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Descrição:

Swing 39
Vamp
Ménilmontant
John's Groove
B.B.B. (Bag's Barney Blues)
Swingin' Parisian Rhythm [Jazz Sur Seine]
J'Ai Ta Main
Nuages
Route Enchantée
Que Reste-T-Il de Nos Amours?
Minor Swing
Epistrophy

Ficha Técnica:
Label: EMARCY IMPORT
Número de Catálogo: 548317
Data de Lançamento: 26/06/2001

José Domingos Raffaelli disse...

Érico,

O jazz nasceu nos Estados Unidos e espalhou-se pelo mundo, tornando-se linguagem universal. Entretanto, por grande ironia do destino, não coube aos americanos, mas aos europeus mpromoverem e realizarem os primeiros trabalhos (crítica e livros), fundação de clube e festivais de jazz em todo o mundo, como segue:

1. 1919 - Primeira crítica de jazz - do maestro suíço Ernst Ansermet, sobre o clarinetista Sidney Bechet num concerto da banda de Will Marion Cook.

2. 1934 - Primeiro livro de jazz: "Aux Frontières du Jazz", do crítico belga Robert Goffin.

3. 1934 - Primeiro clube de jazz: "Hot Club de France", fundado pelos críticos franceses Charles Delaunay e Hugues Panassié.

4. 1946 - Primeira discografia de jazz: "Hot Discography", do francês Charles Delaunay.

5. 1948 - Primeiro festival de jazz: "Jazz a Nice", em Nice, França ."

6. 1953 - Primeira enciclopédia de jazz: "Enciclopedia del Jazz", do italiano Arrigo Pollillo.

Keep swinging,
Raffaelli

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