Sobre Conrad Yeatis “Sonny” Clark pode-se dizer que era um homem franzino e de olhar tristonho, que quando se sentava ao piano transmudava-se em um verdadeiro gigante. Não há como duvidar dessa afirmação. Basta olhar as fotos do pianista nas capas e encartes dos diversos discos lançados pela Blue Note para perceber-se a tristeza em seu olhar. Basta pôr um destes discos para rodar na vitrola para constatarmos a presença do gigante.
A pequena estatura física era inversamente proporcional ao talento desse fenomenal pianista, compositor e arranjador, nascido em Herminie, Pensilvânia, cidadezinha a pouco mais de vinte quilômetros de Pittsburgh, no dia 21 de julho de 1931. Aos 12 anos, mudou-se com a família para Pittsburgh, cidade pródiga em grandes pianistas, como Ahamad Jamal e Erroll Garner, e com uma cena musical bastante fértil.
O aprendizado do piano veio ainda na infância, sobretudo graças à influência do irmão mais velho, também pianista. Aos seis anos o pequeno Sonny já impressionava os ouvintes, tocando boogie woogie em rádios da cidade natal e arredores. No início dos anos 50, levado pelo irmão, mudou-se para San Francisco, tornando-se em pouco tempo uma dos mais destacados pianistas do chamado West Coast Jazz.
Tocou com Vido Musso, Oscar Pettiford e Wardell Gray, até que uma nova mudança, em 1953, levou-o para a Meca do West Coast, Los Angeles. Na Cidade dos Anjos, sua reputação só fez aumentar e ali acompanhou músicos do calibre de Art Pepper, Serge Chaloff, Sonny Criss, Dexter Gordon, Shorty Rogers, Art Farmer, Zoot Sims, Barney Kessel, Shelly Manne, Frank Rosolino e Anita O’Day.
Em 1954 integrou o quarteto de Buddy DeFranco, com quem tocou por cerca de dois anos, excursionando com regularidade pelo país e pela Europa. Outra associação importante foi com os Lighthouse All Stars de Howard Rumsey, em 1956. Em 1957, acompanhou a cantora Dinah Washington em uma turnê nacional, fato que pavimentou seu retorno à Costa Leste no mesmo ano, fixando-se, desta feita, em Nova Iorque.
Embora jamais lhe tivesse faltado trabalho na Costa Oeste, o som que ali se produzia não era exatamente aquele que Clark ansiava fazer. Discípulo de Bud Powell e de Thelonious Monk, o pianista se sentia pouco à vontade entre as ensolaradas harmonias west coasters. Preferia o ambiente enfumaçado e sombrio da Costa Leste, a seu ver muito mais identificado com a tradição jazzística e com a própria linha evolutiva do jazz. Ao se mudar para Nova Iorque, declarou:
“Jazz é jazz em qualquer lugar. O problema é a sua concepção acerca da forma de tocar e a minha forma de tocar é diferente da maioria dos caras da Costa Oeste. Quero tocar na Costa Leste porque aqui os caras se mantém mais próximos da tradição. Na Costa Oeste os músicos estão se afastando da tradição, misturando jazz e música erudita, fazendo um jazz de câmara. O que eles tocam é, de fato, muito bom. Acontece que não é a música que eu quero fazer – por isso voltei prá Costa Leste”.
Uma vez estabelecido na Grande Maçã, Clark passou a ser presença constante na cena jazzística local, tocando com John Coltrane, Max Roach, Donald Byrd, Stan Getz, Jackie McLean, Hank Mobley, Art Taylor, Paul Chambers, Wilbur Ware, Philly Joe Jones, Charles Mingus, Sonny Rollins, Billie Holiday, Grant Green, Stanley Turrentine, Lee Morgan, Milt Jackson e Kenny Burrell, entre muitos outros. Ainda em 1957, depois de acompanhar Hank Mobley nas gravações do álbum “Hank Mobley”, lançado pela Blue Note, Clark fez sua estréia, como líder, na gravadora de Alfred Lion (“Dial ‘S’ For Sonny”).
O singularíssimo pianista que até então tinha, de carta forma, limado a sua criatividade e podado as suas avançadas concepções harmônicas, para se adequar ao som que se fazia na Costa Oeste, começou a mostrar a que veio. Com uma forma de tocar profundamente arraigada no blues, Clark não teve nenhuma dificuldade em se integrar à corrente que então dava as cartas no jazz da Costa Leste: o hard bop. Não por acaso, entre 1957 e 1963 participou de centenas de gravações para a Blue Note, sendo uma espécie de homem de confiança de Lion.
E no mesmo annus mirabilis de 1957, outro petardo: “Sonny’s Crib”, um dos mais emblemáticos álbuns do hard-bop e espécie de ensaio de luxo para a obra-prima “Cool Struttin’”, que seria lançado no ano seguinte. Em “Sonny’s Crib” percebe-se um músico no auge da forma técnica, um compositor que amadurece visivelmente e um arranjador de idéias bastante arrojadas.
Podem-se usar diversos adjetivos para qualificar esse álbum gravado no dia primeiro de setembro de 1967. Mas a relação dos músicos que acompanham Clark deve bastar: Donald Byrd (t), Curtis Fuller (tb), John Coltrane (st), Paul Chambers (b) e Art Taylor (bt). A excelência técnica do sexteto torna a audição desse álbum uma experiência única. Seja pela latinidad que o combo imprime à germânica “Speak Low”, seja pela incandescência da faixa-título, uma tour de force hard-bopper irretocável, de autoria de Clark, há aqui predicados e superlativos em profusão.
A versão de “With A Song In My Heart” é irrepreensível e Donald Byrd e Trane se destacam pelos solos excepcionalmente bem articulados e de elevada complexidade. A performance de Taylor também é digna de menção, por conta das viradas surpreendentes e do vigor que imprime ao seu instrumento, sem jamais soar caricato. Sem qualquer demérito aos grandes músicos da Costa Oeste, o ressoar das teclas do piano de Clark parece dizer: “este é o lugar a que pertenço e esta é a minha música”.
“Come Rain Or Come Shine” começa lânguida, com o trombone de Fuller se insinuando por entre as frestas da melodia, iluminando a composição de Harold Arlen como se fossem os primeiros raios de sol da manhã, tecendo um delicadíssimo tapete de harmonias que vai desaguar no maravilhoso solo do líder. Chambers percute as cordas do seu contrabaixo como se tocasse uma canção de ninar e um introspectivo Byrd comete um dos solos mais pungentes do disco.
A influência do blues está presente em “News For Lulu”, outra composição de Clark. Nesta faixa, a técnica superlativa de Clark se sobrepõe com maior intensidade. Os sopros se articulam de maneira bastante engenhosa, com Fuller roubando a cena com um solo devastador. Taylor e Chambers, impecáveis, amoldam a estrutura do blues para receber as contribuições impregnadas de swing de Byrd, com seu solo musculoso e vibrante. No cd, lançado em 1998 pela fabulosa série “Connoisseur”, há takes alternativos de “Sonny’s Crib”, “With A Song In My Heart” e “Speak Low”.
Infelizmente, Clark não escapou ileso do pesadelo das drogas, especialmente da heroína. Uma década de excessos minou-lhe a saúde. O declínio físico do pianista foi presenciado de muito perto pelo amigo Hampton Hawes, outro músico que passou sérios apuros por conta do envolvimento com entorpecentes. Nas loucas noites da Costa Oeste, os dois amigos eram conhecidos como “The Golden Dust Twins”. Hawes conseguiu sobreviver ao vício. Sonny aplicou a última dose no dia 13 de janeiro de 1963 – uma dose muito maior que o seu alquebrado corpo poderia suportar.
A morte prematura de um dos mais talentosos músicos da época, por overdose de heroína, causou comoção e perplexidade no mundo do jazz. Mas não propriamente surpresa. Quem o conheceu de perto sabia que Sonny, à semelhança de Clifford Brown ou Fats Navarro, pertencia àquela estirpe de gênios destinados a brilhar por muito pouco tempo, embora de forma intensa, nesse plano da existência. Outro pianista e amigo, Bill Evans, dedicou-lhe a composição “NYC’s No Lark” (anagrma de Sonny Clark, incluída no álbum “Conversation With Myself”). Uma homenagem que, ao lado dos seus excelentes discos, ajuda a eternizá-lo como uma estrela das mais reluzentes da grande constelação do jazz.
19 comentários:
Mais uma pérola. Aguardo a próxima certo que também será jóia rara.
ÉRICO:
Irretocáveis texto e gravação !
Parabéns.
Mestres Salsa e Apóstolo,
Obrigado pelas palavras gentis.
O Sonny Clark é um monstro - fenomenal, maravilhoso, acho que não há uma única gravação dele regular - são todas de ótimo prá cima.
Valeu mesmo.
Abração!!!!!
Parabéns pelo blog, cara! Espero que o texto sobre Tenório Jr. tenha sido útil. É uma história tristemente incrível, a dele. Seu blog é excelente e tem a qualidade de abarcar de tudo, bem além das obviedades do jazz que costumam aparecer aos montes por aí. Gostaria de aproveitar e convidar a você e a todos os seus leitores que gostam de música a conhecer, caso ainda não conheçam, o site RateYourMusic: http://rateyourmusic.com
Um grande abraço a todos.
PS: ah, adorei os títulos dos "posts".
Caro iendiS,
Seja muito bem vindo e fique à vontade.
Há muito pouca coisa na internet sobre esse grande pianista, vítima da brutalidade das nossas ditaduras (pois o Estado brasileiro foi omisso e/ou conivente com o seu desaparecimento, tortura e morte).
É preciso jogar um pouco de luz nesse episódio tão triste e ainda muito nebuloso.
Obrigado pelas palavras gentis e venha sempre - a casa é sua.
E vou dar uma sacada no RateYourMusic.
Abraços fraternos!!!
Caríssimo Érico,
depois de cerca de um mês sem aceder ao seu maravilhoso blog é muito bom voltar a ouvir estes 'maravilhosos' sons. Que pianista fabuloso..os solo dele em "with a song in my heart" e "speak low" são fantásticos. Pelo Uganda correu td bem já estou cá no pedaço há uma semana mas estive a fazer uma prainha pois lá só o Nilo e o lago Victória (onde n deixam tomar banho devido à presença de 1 parasita qq, q nos dá cabo da vida!!!). Obrigada pela qualidade do seu blog e pela generosidade de o partilhar
Abraço c amizade,
Sofia:)
Quer dizer q o Tenório Jr., um dos Cobras d’O Lp que acabei de postar foi aquele músico q foi tocar na Argentina, se não me engano com o Tom e nunca mais se viu ou ouviu falar? Faz poucos anos li nos jornais sobre o caso. E agora juntando 2 + 2, não vou nem pesquisar na Rede pra me certificar. Tá na cara que é.
É isso aí, seu Mr. Sonic-boy.
Um pianista fenomenal (e eu já dowloadiei Os Cobras, viu).
Ele excursionava na Argentina, acompanhando Vinícius e Toquinho, quando foi seqüestrado.
Merece ser descoberto, não apenas pelo grande músico que era, mas por ter sido uma vítima da imbecilidade e da covardia que caracterizam as ditaduras em geral.
Abração!!!
Prezada Sofia,
Seja bem vinda. Fico muito feliz que tudo tenha corrido bem e, mais ainda, por seu retorno ao nosso convívio.
Espero vê-la sempre aqui no JAZZ + BOSSA e aguardo ansioso os relatos (e as fotos, se possível) da viagem.
O Sonny teve uma vida curta e atribulada, mas seu legado, como se pode perceber, é eterno.
Um grande pianista, de muita personalidade e de de muita entrega à sua arte.
Um fraterno abraço do lado de cá do Atlântico!!!!!!
érico san,
desse jeito vou precisar de mais um par de ouvidos...tanta música boa pra se curtir...rs.
tô ouvindo o jim hall(piramidal)e grant green(sem parar)...mas atualizarei-me com essa tua nova postagem logo mais, ok?
assunto triste e caudoloso esse sobre tenório jr...elis regina também agilizou uma campanha pra se descobrir o paradeiro do pianista sequestrado pelos milicos golpistas argentinos...não é isso?
e por se falar em argentinos...viva a seleção canarinho...e bola pra frente.
abraçsons pacíficos
Valeu, Pituco.
Pois é, no final dos anos 70 Elis chegou a viajar à Argentina para tentar descobrir o paradeiro do Tenório, mas as buscas foram em vão. Ela deu uma entrevista à Folha de São Paulo que teve grande repercussão, mas o governo brasileiro não moveu uma palha sequer para recuperar os restos mortais do pianista.
E se você quiser o Sonny, te mando via Pando, ok?
Abração!!!!
Vido Musso, vcs desenterram cada nome q prefiro ficar anônimo.
Que que isso, Seu Mr. Anônimo.
Não precisa ficar no anonimato não, aqui é uma casa de amigos, um barzinho virtual, com muito papo e música. Só não tem cerveja (por enquanto - uma hora dessas algum nerd vai acabar inventando)!!!
O negócio é que o jazz, assim como qualquer arte ou empreendimento humano, tem os seus arquitetos e operários (estes, por óbvio, acabam ficando bem menos conhecidos que os primeiros, são são tão relevantes quanto).
Assim, o Vido Musso foi um saxofonista italiano (de nascimento, mas se mudou pros states ainda criança) que tocou em muitas orquestras de swing, como as de harry james, Tommy Dorsey e Stan Kenton (onde passou mais tempo).
Não é dos mais conhecidos, mas foi um dos primeiros a dar emprego ao Sonny Clark e ao Maynard Ferguson (um p* trompetista canadense, maravilhoso e que qualquier hora vai receber uma homenagem do JAZZ + BOSSA).
Outro cara pouco conhecido (operário mesmo, do jazz e do R&B) é Earl Bostic que acabou ficando mais conhecido porque empregou um rapazote em início de carreira chamado John Coltrane.
Se o jazz não pode viver sem Coltrane, Miles e Armstrong, também não poderia viver sem os Musso e Bostic, pelo espaço que abriram para muitos gênios em início de carreira.
Não se acanhe não, seja sempre muito bem vindo.
Um fraterno abraço!!!!
signore érico,
acabo de ler tua primorosa resenha e ouvindo teu podcast...sopros e solos nervosos...a galera era jovem e com fôlego, não é verdade?
aqui,
rolando no hd clark trio '57, chambers e j.jones...com aqueles solos nervosos também...rs
abraçsons pacíficos
Mandando muito bem, como sempre Pituco-San.
Aqui na vitrola Miles (The Musings Of Miles - Oscar Pettiford, Red Garland e o velho Phylly).
Abração!!!
A admiração de Bill Evans por Sonny Clark foi profunda.
Além do anagrama de Clark com que intitulou um tema à memória do amigo prematuramente falecido, Bill utilizou a introdução de "My Conception", de Clark, na sua famosa composição "Waltz for Debby". Todavia, Evans foi suficientemente honesto para declarar ter adotado o ínicio de "My Conception" em "Waltz for Debby".
Keep swinging,
Raffaelli
Caro Mestre Raffaelli,
Dois pianistas extraordinários: Evans e Clark.
Quantas aventuras esses dois não devem ter vivido nas loucas noites de Nova Iorque, não é mesmo mestre?
E uma homenagem merecida ao amigo que partiu cedo demais!!!
Tomo a liberdade de recomendar
"Cool Struttin' - admirável, com um timaço de primeira: Art Farmer, Jackie McLean, Paul Chambers e Philly Joe Jones. Sua capa de grande originalidade, bastante comentada na época, foi copiada por outras gravadoras.
Outro CD indispensável (talvez o melhor de todos gravados por Sonny Clark com pequenos conjuntos) é "Leapin' and Loapin'" reunindo Tommy Turrentine (trompete), Charlie House (tenor), Butch Warren (baixo), Billy Higgins (bateria) e somente na faixa "Deep in a Dream" Ike Quebec perpetuou uma das mais memoráveis interpretações de balada em todos os tempos.
Tudo deu certo neste CD: composições marcantes, arranjos bem bolados e solos inspirados.
Keep swinging,
Raffaelli
Caro Mestre,
Ambos os discos constam da minha modesta coleção - duas obras primas, com uma qualidade fantástica.
Ike Quebec era um grande baladeiro (tenho três discos dele e adoro o seu jeito cool de tocar, pena qque tenha ido tão cedo tocar na grande jam celestial).
Abração!!
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