Ao longo de sua carreira, Eugene Haire Harris obteve um reconhecimento de público que a grande maioria dos músicos de jazz jamais conseguiu, sequer, chegar perto. Os álbuns gravados para a Blue Note nos anos 50 e 60, quando liderava o The Three Sounds, alcançavam, invariavelmente, os primeiros postos das paradas de jazz e, não raro, faziam ótima figura na bem mais concorrida parada pop.
Mais tarde, nos anos 80, fez uma bem-sucedida parceria com a Concord, onde também gravou discos bastante populares. No entanto, muitos puristas torcem o nariz para Harris e sua música. Acusam-no de excessivamente comercial e de adotar, em seus discos, uma abordagem previsível, que o aproximaria do chamado “smooth jazz”. É certo que há alguma verdade nessas palavras. Mas ser comercial não é, afinal de contas, o sonho de todo artista?
Como na canção de Milton Nascimento e Fernando Brant, não é necessário que o artista vá até onde o povo está? Essa discussão entre arte “comercial” e arte “autêntica” é tão antiga quanto a própria arte. Provavelmente surgiu quando algum homem das cavernas mais criativo começou a colorir as paredes de sua habitação com imagens rupestres e até hoje desperta celeuma e paixões.
Não creio que o apelo comercial seja algo ruim. Os Beatles faziam música comercial, mas com tanta qualidade que mesmo os exigentes padrões do jazz e do choro reconhecem a excelência de sua obra. Não é por acaso que suas canções têm sido usadas por ases do calibre de Grant Green, Charles Lloyd, Lynn Arriale, Hamilton de Holanda, Sarah Vaughan, Lee Morgan, Tony Williams, Toots Thielemans, Buddy Rich, Henrique Cazes, Joe Lovano, Bud Shank e uma quantidade interminável de outros grandes músicos. O insuspeito Frank Sinatra dizia que “Something” é uma das mais belas canções de amor que ele já tinha ouvido e cuidou de, ele próprio, elaborar a sua belíssima versão.
É justo e natural que o artista aspire a que o maior número de pessoas se identifique com a sua arte e, assim, compre, leia, assista e ouça aquilo que ele produziu. O fenômeno do comercialismo se torna incompatível com a arte quando se torna um fim em si mesmo. Quando uma determinada obra não é feita para expressar o sentimento do artista e sim para responder a uma suposta expectativa do mercado. O cinema infantilizado e estúpido que tem sido feito em Holywood nos últimos vinte anos, que debocha da inteligência do espectador e se preocupa exclusivamente com a receita nas bilheterias, dá bem essa dimensão.
De qualquer forma, o sempre sensato Pedro “Apóstolo” Cardoso tem uma opinião das mais lúcidas sobre Harris e a sua obra. Segundo ele, o pianista “manteve-se em uma fórmula de sucesso que, se lhe trouxe dividendos financeiros respeitáveis, por outra parte restringiu seu desenvolvimento musical em função da permanência da elegância musical, quase tangenciando o estilo ‘piano-bar’. Ainda assim, temos que considerar o swing, a articulação, as idéias claras dentro do que fez, sua linguagem soul, enfim, seu pianismo de alta categoria. Deixou-nos dezenas de gravações de qualidade, que poderemos ouvir até o infinito. E isso poucos conseguiram!”. Depois de palavras tão sábias, o melhor é pegar na estante um bom disco de Harris, ligar o player e desfrutar da sua companhia sempre calorosa e emocionante.
Gene nasceu no 1º de setembro de 1933, em Benton Harbor, Michigan. Autodidata começou a tocar piano com sete anos, graças à influência dos pianistas de boogie-woogie, especialmente Pete Johnson e Albert Ammons. Outra referência musical bastante presente em seus anos de formação foi o pianista e bandleader Charles Metcalf, cuja orquestra era bastante popular na região onde Gene foi criado. No futuro, incluiria a seu rol de influências os ótimos Oscar Peterson e Junior Mance.
Os pais de Gene, John e Ruby Harris, eram oriundos do Arkansas e haviam emigrado para o norte para fugir dos efeitos devastadores da Grande Depressão e também da terrível segregação racial. John logo arranjou emprego na indústria automobilística e pode dar à família um padrão de vida bastante razoável, inclusive mantendo em casa um piano, onde o pequeno Gene costumava se exercitar.
Dono de uma grande musicalidade e incrivelmente hábil para reproduzir, de ouvido, as canções populares do período, Harris formou, ainda na adolescência, a sua primeira banda, que chegou a ter alguma notoriedade local. Ele montou um trio, The 49 Club Trio, com o amigo de infância Bill Dowdy na bateria e um baixista chamado Olehyer Jones, que tocava regularmente em clubes e em programas de rádio na cidade.
As ambições musicais de Harris tiveram que ser adiadas, pois em 1951, logo após a conclusão do ensino médio, ele foi convocado pelas forças armadas e serviu na “82nd Airborne Division”, em Fort Bragg, na Carolina do Norte. No exército, participou de várias bandas da corporação e aprendeu a ler música, pelas mãos do extraordinário Wynton Kelly, que servia na mesma companhia.
Ao ser desligado do serviço militar, em 1954, foi trabalhar em clubes da região de Battle Creek, Coldwater, Ann Arbor e Lansing, em Michigan, onde formou uma banda com o saxofonista Benny Poole. Ao lado dos dois, atuavam o baixista Leonard Hall e o baterista Reuben Upchurch e foi nesse período que Gene fez a sua primeira gravação, “Our Love Is Here To Stay”, pelo selo “Jubilee”, em 1955. A banda se manteve em atividade até 1956, quando um velho amigo do pianista entrou em cena.
Bill Dowdy havia se mudado para Chicago e estava construindo ali uma sólida carreira como acompanhante, tocando com nomes do quilate de J. J. Johnson, Johnny Griffin, Eddie Harris, Gene Ammons, Clifford Jordan, Sonny Stitt, Von Freeman, Wilbur Ware, Junior Mance e John Gilmore. Durante uma gig em South Bend, Michigan, ele e Harris se reencontraram e decidiram tocar juntos novamente.
Assim surgiu o grupo “The Four Sounds”, que contava ainda com Andrew “Andy” Simpkins no contrabaixo, sendo que o quarto membro, por opção dos três, deveria ser um saxofonista tenor. O primeiro deles foi Lonnie Walker, logo substituído por Joe Alexander, que durou poucos meses no posto. Apesar de alguns testes, Harris e companhia jamais encontraram outro saxofonista que se enquadrasse no perfil desejado.
Em 1957 o grupo desistiu de incluir o sax tenor em suas apresentações, passando a se chamar “The Three Sounds”. Harris e seu grupo atuaram inicialmente na região do Meio-Oeste, especialmente nos estados de Ohio e Indiana. Durante quase um ano o trio atuou como atração fixa do clube The Tijuana, em Cleveland, mudando-se em seguida para Washington D. C. Na capital dos Estados Unidos se estabeleceram como banda do The Spotlight e nessa condição acompanharam músicos como Sonny Stitt, Miles Davis, Bucky Pizzarelli, Kenny Burrell, Charlie Byrd e Lester Young,
Durante o período em Washington, Gene conheceu a sua primeira esposa, Ann Haire, com quem se casou em 1958. No mesmo ano, o trio decide tentar a sorte em Nova Iorque, onde aporta com uma recomendação de Mercer Ellington, filho do maestro Duke Ellington. O primeiro trabalho do trio na Meca do Jazz, foi acompanhar o cornetista Nat Adderley em algumas gravações para a Riverside.
Harris, Dowdy e Simpkins foram contratados como atração fixa do The Offbeat Club, onde dividiam os letreiros com a banda do violinista Stuff Smith. Pouco depois, despertaram o interesse da etiqueta Blue Note, que os contratou naquele mesmo ano, graças a uma indicação de Horace Silver, outro que havia se tornado um ardoroso fã do grupo. Em pouquíssimo tempo, os três estariam com a agenda permanentemente lotada, fazendo dezenas de apresentações em clubes, concertos e temporadas pelo país.
Em setembro de 1958, o trio fez sua estréia na gravadora de Alfred Lion. “Introducing the Three Sounds” foi muito bem recebido por público e crítica e a ele seguiram-se outros álbuns, como “Bottoms Up!” e “Good Deal”, ambos de 1959. No mesmo ano, gravaram com o saxofonista Lou Donaldson o bem-sucedido “Lou Donaldson with The Three Sounds”, de onde foi extraída uma versão de “Blue Moon” que chegou aos primeiros lugares da parada de R&B.
Em dezembro de 1960, o trio se juntou a outro grande saxofonista, Stanley Turrentine e o resultado da parceria pode ser conferido no fabuloso “Blue Hour”. Em 1961 mais um grande êxito de vendagens, “Hey There!”, que trouxe de volta às paradas o antigo sucesso de Benny Goodman, “Stompin’ at the Savoy”. Paralelamente ao trabalho com o Three Sounds, Gene desenvolvia uma auspiciosa carreira como acompanhante, marcando presença em trabalhos de nomes como Grant Green, Al Harewood, James Clay, Milt Jackson, Benny Carter, Anita O’Day e B. B. King, entre outros.
O trio desligou-se da Blue Note em 1962 e passou por várias gravadoras. Foi o período de álbuns como “Blue Genes”, de 1962, lançado pela Verve, de “Jazz On Broadway” (1962), “Some Like It Modern” (1963) e “Live At The Living Room” (1964), todos pela Mercury. O grupo assinou com a Limelight em 1964, onde foram lançados álbuns como “Three Moods” (1964), “Beautiful Friendship” (1965) e “Today's Sounds” (1966).
A banda retornou à Blue Note em 1966 e celebrou o reencontro com a gravadora com “Vibrations”. Nessa nova fase, Bill Dowdy daria lugar ao talentoso Donald Bailey, que estreou em 1967, no álbum “Live at the Lighthouse”. O final da década de 60 mostra o trio em busca de novos caminhos musicais. Em “Coldwater Flat”, por exemplo, a banda se faz acompanhar por uma sessão de cordas e com uma orquestra conduzida por Oliver Nelson, que também elaborou os arranjos.
Em setembro de 1968 foi a vez do cultuado “Elegant Soul”, já com Carl Burnette na bateria. Pouco compreendido na época, o disco recebeu uma recepção fria por parte da crítica, mas suas vendas não decepcionaram. Contando novamente com uma sessão de cordas, com arranjos de Monk Higgins, além das presenças do vibrafonista Alan Estes, do guitarrista Al Vesvoco e do baterista Paul Humphrey, o álbum trafega pelo soul-jazz e flerta com o pop, mas sem perder o swing e chegou à décima nova posição na parada da Billboard Magazine.
Em 1969 o baixista Andrew Simpkins foi substituído por Henry Franklin e o grupo se manteve em intensa atividade. No ano seguinte, Franklin deixa o posto, dando lugar a Monk Montgomery, irmão do grande Wes. Essa formação não chegou a gravar e em 1971, o grupo passou a se chamar Gene Harris & the Three Sounds. Com Burnette na bateria e Luther Hughes, no baixo elétrico, o grupo mergulhou ainda mais fundo no pop, gravando canções como “Ain’t No Sunshine”, de Bill Withers, “It’s Too Late”, de Carole King e “Spanish Harlem”, de Jerry Lieber e Phil Spector.
Harris continuou a trilhar esse caminho por cerca de seis anos, período em que lançou mais alguns álbuns pela Blue Note, mas sem a repercussão de outrora. Em 1974, sob a liderança do baixista Ray Brown, fez uma longa temporada pela Europa. De volta aos Estados Unidos, reformulou o seu próprio grupo, que daí por diante seria um sexteto.
Um pouco desencantado com o rumo da carreira, em 1977 Gene se afastou da ribalta e foi morar em Boise, no estado do Idaho. Apaixonou-se pela cidade quando, ainda na década de 60, fez um show no local e costumava dizer que “se você não conhece Boise, não sabe o que é o paraíso”. Ali, assumiu a direção musical do Idanha Hotel e eventualmente se apresentando no Peter Schott’s Lounge, clube mantido pelo hotel, e no restaurante Main Street Bistro.
Gene desenvolveu uma estreita ligação com a Boise State University, onde ministrou diversas oficinas e se apresentou inúmeras vezes. Foi em Boise também que conheceu sua segunda esposa, Janie Harris, filha de uma abastada e tradicional família da região. Apesar de conservadora, a cidade acolheu o pianista com extrema generosidade e ele e Janie nunca sofreram qualquer tipo de preconceito ali.
Janie conta que a única vez em que ela e o marido foram vítimas de racismo aconteceu, inacreditavelmente, na civilizada Suíça. Ela, Gene, Dizzy Gillespie, Ray Brown, James Moody e Grady Tate aguardavam no saguão de um hotel o automóvel que os levaria até o local em que iriam se apresentar, durante o Festival de Berna. Um sujeito se aproximou do grupo e começou a proferir, em alemão, insultos de cunho racista para Janie, que estava abraçada ao marido. Tendo aprendido alemão na juventude, ela entendeu o que o imbecil havia dito e replicou da mesma forma, insultando-o na mesma língua.
Em 1981, Harris se aventurou a retornar ao mundo do jazz, a convite do seu amigo Ray Brown. Ele então assumiu o piano no novo trio que o baixista estava formando, cujo baterista era o talentoso Jeff Hamilton, atualmente bastante conhecido, por conta de sua longa associação com a cantora Diana Krall. O grupo fez uma bem sucedida temporada no Hacienda Hotel and Casino, em Las Vegas e Harris voltou à ativa com toda energia.
O trio excursionou pela Europa, acompanhando Dizzy Gillespie e em 1985 deu o suporte para a apresentação de Benny Carter na edição daquele ano do Concord Jazz Festival. A volta de Harris aos estúdios também aconteceu durante o seu período com Brown, no excelente “Soular Energy”, que conta com a presença, em algumas faixas, da guitarrista Emily Remler.
O pianista também acompanhou a cantora Ernestine Anderson em uma temporada no clube Parnell’s, em Seattle, e, por sugestão dela, foi contratado pela Concord. Em seguida, Harris trabalharia com o saxofonista Red Holloway, com o trompetista Wynton Marsalis e com o vibrafonista Milt Jackson. Animado com a receptividade, ele não demorou a montar seu próprio trio.
Com uma formação que incluía Ray Brown e Mickey Roker, gravou, também para a Concord, o ótimo “The Gene Harris Trio Plus One” (1985), ao vivo no clube Blue Note de Nova Iorque, reeditando a parceria com o saxofonista Stanley Turrentine. O disco foi agraciado com o prêmio Grand Prix Du Disc de Jazz, na França, em 1986.
Em 1987, Gene voltaria a trabalhar com Turrentine, durante uma turnê européia. Naquele mesmo ano, gravou “Tribute to Count Basie”, bastante elogiado pela crítica e que chegou a ser indicado ao Grammy, na categoria “Best Big Band Jazz Instrumental” no ano seguinte. Ainda em 1987, Harris liderou a Philip Morris Superband, grupo All-Star, integrado por Ray Brown, Harry “Sweets” Edison, Jef Hamilton e Herb Ellis, entre outros luminares.
O grupo deixou álbuns como “Live at Town Hall, N.Y.C., With The Philip Morris Superband” (1989) e “Wolrd Tour” (1990), excursionando intensamente até 1991, quando foi desfeito. Uma nova edição da Philip Morris Superband foi reeditada em 1995, para a gravação do disco “Philip Morris All-Stars Live”, ainda sob o comando de Harris e contando com gente do gabarito de Harry “Sweets” Edison, Stanley Turrentine, Kenny Burrell, George Mraz e Lewis Nash.
Mostrando que as parcerias com os saxofonistas sempre produziram excelentes resultados, “At Last” traz Harris na companhia do formidável Scott Hamilton. Os dois dividem os créditos do álbum, que conta ainda com uma retaguarda de peso: Herb Ellis na guitarra, Ray Brown no contrabaixo e Harold Jones na bateria. As gravações foram feitas em maio de 1990 e o que se ouve é um primoroso exercício de destreza, sensibilidade e encantamento.
Logo na faixa de abertura, “You Are My Sunshine”, canção bastante popular nos anos 30 e 40, de autoria de Charles Mitchell e Jimmie Davis, o quinteto mostra a que veio, com uma interpretação musculosa e cativante. Ellis está inspiradíssimo, despejando os acordes com fúria e entusiasmo. Harris injeta doses maciças de blues em sua performance, mas não esquece da força que os spirituals tiveram em sua formação. O sopro de Hamilton é caloroso e sempre muito empolgante e seus solos possuem uma robustez que lembra a poderosa escola texana de tenoristas.
Segue-se uma versão arrepiante de “It Never Entered My Mind”, composição da dupla Richard Rodgers e Lorenz Hart, que fez parte do score do musical “Higher And Higher”, de 1940. O arranjo é uma notável tapeçaria de delicadezas, de onde Harris emerge como um legítimo herdeiro de Erroll Garner. É uma balada romântica de contornos ellingtonianos e Hamilton não participa desta faixa, na qual a guitarra, o contrabaixo e a bateria permanecem como um luxuoso suporte para a sofisticada atuação do pianista.
“After You’ve Gone”, de Henry Creamer e Turner Layton, é ainda mais antiga, de 1918, mas foi imortalizada pela gravação de Louis Armstrong, em 1929. A versão do quinteto é incendiária, com direito a uma eletrizante performance de Ellis, que dispara uma seqüência em velocidade supersônica. Hamilton não é menos enfático em seus solos e a energia percussiva de Jones possui a intensidade de uma locomotiva.
“The Lamp Is Low”, de Bert Shefter, Mitchell Parish e Peter DeRose, foi construída sobre a melodia de “Pavane pour une infante défunte”, de Maurice Ravel. Sua atmosfera classuda deve bastante aos diálogos enternecedores travados por Harris e Hamilton, cuja sonoridade macia evoca o mago Stan Getz. O quinteto trafega com discrição pela bossa nova, merecendo destaque o trabalho irretocável de Brown e de Jones.
O tema que dá nome ao disco é fruto da parceria entre Harry Warren e Mack Gordon, que também deram ao mundo gemas como “Chattanooga Choo Choo”, “There Will Never Be Another You” e “The More I See You”. Aqui temos apenas o sax de Hamilton e o piano de Harris, dialogando de maneira elegante e charmosa. Apesar do arranjo minimalista, a faixa possui uma grande intensidade emocional e evidencia a sensibilidade e o bom gosto de dois dos mais versáteis e criativos nomes do jazz de todos os tempos.
“Blues For Gene” é uma homenagem de Milt Jackson ao pianista, que agradece a deferência da maneira mais auspiciosa possível: tocando com a alma e o coração. Ressaltem-se as impressionantes intervenções de Hamilton, Brown e Ellis, que elevam a arte de solar a patamares restritos a bem poucos músicos. “I Fall in Love Too Easily”, de autoria de Jule Styne e Sammy Cahn, recebe um arranjo quase tão pungente quanto o da versão definitiva, feita por Chet Baker. As comoventes atuações de Harris e Ellis são um espetáculo à parte e põem a sutileza a serviço da emotividade.
A versão de “Some of These Days”, canção de domínio público, é tão arrebatadora quanto a que Alberta Hunter apresentou ao mundo no álbum “The Glory of Alberta Hunter”. Encharcada de blues, ela encanta desde a introdução, a cargo de um inspiradíssimo Herb Ellis. Jones tem uma de suas mais primorosas participações e a atmosfera remete aos anos vinte, temperando a vocação blueseira do tema com saborosas pitadas de swing e dixieland. Merece atenção redobrada o sopro incansável e volumoso de Hamilton.
Na dolente “Stairway to the Stars”, de Frank Signorelli, Matty Malneck e Mitchell Parish, Hamilton cria um clima lânguido e comovente, enquanto Harris dedilha o piano com o lirismo de um poeta oitocentista. Destaque também para a sensibilidade percussiva de Jones, cujo trabalho com as escovas é notável.
Para encerrar, uma interpretação vigorosa de “Sittin' in the Sandtrap”, de Ray Brown. O baixista tem aqui uma de suas atuações mais cintilantes, conjugando força física, habilidade técnica e capacidade melódica primorosas. Hamilton e Harris, cada um a seu modo, fazem releituras impactantes do blues, especialmente o pianista, que se apóia nas notas mais graves para dar maior profundidade ao tema. Um álbum relaxado e despretensioso, onde a música flui com naturalidade e elegância e que dá uma boa mostra das qualidades desse grande pianista, por cujas mãos “a tradição do jazz rude e pouco polido se transfigura numa expressão de vitalidade, explorando uma trama harmônica e certos efeitos sonoros de completo êxito”, nas palavras do pesquisador Sylvio Lago.
Em 1991, Gene modificaria a sua banda, que passou a ser um quarteto, complementado pelo guitarrista Ron Eschete, pelo baixista Luther Hughes e pelo baterista Harold Jones, mais tarde sucedido por Paul Humprey. Com essa formação, o grupo registraria alguns ótimos álbuns para a Concord, destacando-se “Blue Gene” (1991), “Funk Gene’s” (1994) e “Brotherhood” 1995).
O pianista criou, em 1996, a Gene Harris Endowment, entidade dedicada a distribuir bolsas de estudo para que jovens músicos pudessem estudar na Boise State University. Naquele ano, fez uma triunfante temporada no clube Pizza Express, em Londres, cujo resultado pode ser conferido no álbum “Live in London” (Resonance), onde se faz acompanhar do guitarrista Jim Mullen, do baixista Andrew Cleyndert e do baterista Martin Drew. O disco foi lançado em 2008 e aquela turnê gerou também “Snother Night in London”, lançado em 2010 também pela Resonance. A nota triste foi a perda de sua filha, Tammy Haire, aos 36 anos, em decorrência de um câncer.
1998 marca a criação do Gene Harris Jazz Festival, uma iniciativa conjunta entre o pianista e a Boise State University e que é realizado anualmente desde então. Naquele ano o pianista gravaria o seu último álbum, “Alley Cats” Concord), ao vivo, no clube Dimitriou’s Jazz Alley, em Seattle, com participações especiais dos saxofonistas Ernie Watts e Red Holloway. Nesse período, já apresentava os sintomas de uma grave doença renal e também do diabetes.
O ano de 1999 foi doloroso. Crises renais e várias internações praticamente o retiraram de cena. No dia 16 de janeiro de 2000, o pianista faleceu, em decorrência de falência dos rins. Ele estava a poucos dias de receber um transplante renal, e uma de suas filhas seria a doadora. Para o crítico Mike Joyce, da revista Jazz Times, Harris era um “vital, desembaraçado e propulsivo músico, que pode tornar bem-vinda a audição da mais surrada canção”. Em 2005, a viúva do pianista, Janie Harris, lançou o livro “Elegant Soul: the Life and Music of Gene Harris”, escrito em parceria com o jornalista Bob Evancho, onde relata sua vida ao lado de Gene.
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26 comentários:
Ao sucesso! Beleza de música e que grandes artistas neste disco! A resenha é gostosa de ler. Parabéns!
Noffa! Tremeno tranrmimento!, estou ouvindo, tipo secando o poço, TODOS os meus discos do Three Saounds, agurinha mesmo, e antes dessa postage. Matada a sede, já já devoro a resenha.
Esse é o seu Sam!
Valeu, meus queridos Celi e Sérgio!
Um grande músico e uma enorme personalidade esse Mr. Harris.
Me lembra um pouco o Bryant, de quem falamos bastante na postagem anterior, por conta de pegada blueseira, mas o Gene tem um som mais "limpo" e um pouco mais burilado. O Bryant é mais "sujo" e mais cru. Ambos são geniais!
Abração!
Pois é, mr. Érico, Qual a parte do verso “o artista tem que ir onde o povo está” a crítica dita especializada não entendeu? Compreende somente o lado geográfico da coisa?
Estimado ÉRICO:
Excelente resenha e muito bom o CD escolhido para mostrar a categoria de GENE.
Confesso-me um "purista" (what is porra is that ? ? ? ! ! !), mas vejo em GENE e, como assinalado por você na resenha, temos que considerar o swing, a articulação, as idéias claras dentro do que fez, sua linguagem soul, enfim, seu pianismo de alta categoria.
O resto e como diria uma antiga Sinistra, "é apenas um detalhe".
Caríssimos Sérgio e Apóstolo,
Bem-vindos a bordo.
Aqui uma certa candidata se elegeu governadora prometendo "mais hospitais para o povo" (aliás, parece que dos 72 prometidos nenhum ficou pronto até agora). Querro alguém que prometa (e cumpra): mais jazz para o povo!!!!! Nesse eu voto!
Mestre, tenho uma coletânea da Concord que evidencia bem essa faceta mais comercial, mas ainda assim ele não perde a qualidade. E quando está em um contexto eminentemente jazzístico, botas prá quebrar!
Grande abraço aos dois!
érico san,
veja só a que horas passei por aqui pra ler e ouvir a radiola...rs
tá valendo a insônia...bacanudo o som...a segunda faixa me lembra killer joe...hehehe...bluesy pacas
obrigadão e vamuquivamu
abraçsons
Ôba, tô eleito! Não entendi, mestre Apóstulo, "what is porra is that ? ? ? ! ! ! um purista"?
Grandes Pituco e Sérgio,
Ao primeiro, digo que nada melhor para curar uma insônia do que uma boa radiolinha e um vinhozinho (e uma rede também, mas acho que aí em Tóquio não rola uma parada dessas - rs, rs, rs).
Quanto à semelhança com Kiler Joe, você tem razão - parece mesmo. Todas duas são blues sacudido e bacanudo!
Mr. Sérgio, o querido Apóstolo é um purista ligth - assim como eu, tem os ouvidos abertos para outras sonoridades, mas desde que não seja nada de muito pitoresco. Purista purista mesmo é um certo habitante das estrelas, que vai me detonar, com toda certeza...
Saudações cruzmaltinas!
Abração aos dois!
Bom, meu amigo, o que deixei na pergunta ao mestre, no sentido mais puro da palavra, foi uma provocaçãozinha. Também não me parece que mestre Apostolo seja purista, o Predador sim, nunca escondeu a escolha.
Mas, venho cá trazer alguma informação que nem sei se para estudiosos ligados como os frequentadores enciclopédicos, nem seja tão novidade: há dias (17 de setembo / 2011) foi lançado um álbum purista até dizer chega. E eu aqui ouvindo e me deliciando: Wynton Marsalis & Eric Clapton Play The Blues: At Lincoln Center. Não sei se virou manchete aqui no Brasil, pq a crise já chegou aqui em casa e não assino mais O Globo, único grande jornal aqui dessa pobre cidade (em termos de grande imprensa). Mas enfim, é um discaço de puro blues do começo do século 20, pincelado com um rasguinho de guitarra elétrica da mais do que conhecida marca “Eric Clapton” - rasguinho, pq na medida do possível, a eletrificada no som se encaixa perfeitamente a proposta da obra.
Descobri sobre o álbum assistindo o Manhattan Conection, num de seus intervalos musicados. Ainda não vi o preço da bolachinha prateada nos amazons da vida, mas até onde minhas dicas tem algum peso, comprem no escuro.
Ah! Nas últimas faixas a orquestrinha conta com outra luxuosa colaboração, a do bom bluseiro Taj Mahall.
Está chegando o Dead Line, mr. Érico! Faltam poucos dias, tou ligado.
E quanto ao Vasco, com aquele gol do Dieguito, quase um maradona, agora sim! a concorrência se assustou.
Parabéns.
Em tempo: neste endereço:
http://www.wyntonmarsalis.org/discography/jazz/wynton-marsalis-and-eric-clapton-play-the-blues/
um longo depoimento de Marsalis, sobre o álbum / show.
Apesar de purista e detestar a maioria dos discos da famigerada Concord, "um certo habitante das estrelas" não vai detoná-lo por esta postagem, mr.Cordeiro, pois esse "At Last", que não é nenhuma "brastemp", mas um dos raros álbums da Concord incluído na categoria BOM(de boca cheia), especialmente pelas presenças de Gene Harris e Scott Hamilton, da eficiente "cozinha de cobras" e da belíssima música "It never entered my mind", destacando-se a marcante atuação de Harris, com seu toque refinado ao piano.
Concordo com o Predador, o som da Concord é meio 'plastificado' quando comparado aos álbuns da Verve, Blue Note e principalmente os da OJC (Jazzland, Fantasy, Prestige etc). Mas Gene e Scott salvam o disco. Valeu Érico! Estarei lá no dia 02 de outubro, 19h.
Caríssimos Sérgio, Predador e Roberto,
Sejam mais que bem-vindos! Já sabia desse disco Wynton Marsalis & Eric Clapton Play The Blues e estou doid prá pedir (tá a nove doletas no Amazon). Deve ser coisa finíssima e em breve pinta na estante.
Meu intergalático mestre, a sua benevolência surpreende. Pensei que fosse detonar impiedosamente este pobre bloguinho.
Mr. Bob, a partida de tênis não vai rolar - problemas colunais (a viagem ao Rio é, sobretudo, para checar essa minha debilitada coluna). Mas nos veremos por lá, para relembrar os grandes momentos etílico-musicais de Vitória.
Abraços a todos!
BOA TARDE MESTRE E AMIGOS DO BARZINHO SEI QUE ESTOU NO DEVO COM VCS MAS ACONTECE QUE TIVE UMA SEMANA VASTA FUI A OURO PRETO E ESTIVE COM OS PRODUTORES DO FESTIVAL DE JAZZ PARALELO QUE ACONTECE NOS BARES E RESTAURANTE DE LA E AS COMEMORAÇÕES DE CADA VITORIA DO NOSSO VASCÃO ISSO PQ O NOSSO GRANDE DIEGO SHOWZA MORA AQUI NA ILHA E PERTINHO DE MIM E DAQUI A POUCO ESTARA FAZENDO UM GRANDE CHURRASCO NO BAR E EU TENHO QUE PARTICIPAR ENTÃO PÓR ENQUANTO EU SO POSSO DIZER ASSIM
http://youtu.be/c_hWZp_BVAI
GENE HARRIS - SUMMERTIMES
DIEGO SOUZA 1 X 0 VASCO
http://youtu.be/llM7Rx7Mtbk
GENE HARRIS MEDITATION
DIEGO SOUZA 2XO VASCO
http://youtu.be/LjKY5nl3Y7I
GENE HARRIS -EXACTLY LIKE YOU
DIOEGO SOUZA 3X0 VASCO
EM BREVE VOLTAREI COM OS LINK DOS DISCOS E SEI QUE ESTOU DEVENDO O ARTISTA DA POSTAGEM PASSADA IREI ACERTANDO COM SR MESTRE AOS POUCOS AGORA IREI LA NO CHURRASCO DO NOSSO ÍDOLO MUITA CERVEJA E EU NÃO PODEREI PERDER VASCOOOOOO
Thanks for your nice visit . . . and sharing your love of jazz. The Taj Mahal concert was unbelievable. I'll follow your blog -- I love jazz, and the Brazilian flavors of Bossa, etc.
Nice meeting you.
Rick
Caros Renato e Rick
Sejam bem vindos (wellcome).
É um prazer tê-los a bordo.
Ao primeiro, saudações cruzmaltinas e divirta-se no churrasco do nosso Diego "Showza". Que partidaço - o cara tá voando!!!!!
Rick, I hope you enjoy the blog and come to visit it alwys. Jazz is wonderful - the soundtrack of the gods :-)
Abração aos dois!
http://www.mediafire.com/?0wdymwjdjyg
0The Three Sounds - Some Like It Modern
http://www.mediafire.com/?jnmwtnzmmjn
Three Sounds Blue Genes (1962).rar
http://www.mediafire.com/?m5y2zdddmmn
Anita O'Day And The Three Sounds.ra
http://www.mediafire.com/?oyzid05lynz
3SoundsBabesBlues.rar
http://renajazz.blogspot.com/2011/09/entrevista-com-wynton-marsalis.html#links
http://renajazz.blogspot.com/2011/09/lancamento-eric-clapton-e-wynton.html
MATERIAS SOBRE O DISCO DO WYNTON COM A ENTREVISTA CITADA
Valeu, Renato!
Caros amigos Érico e demais confrades,
Permitam-me repetir um comentário que escrevi há tempos sobre Scott Hamilton por ocasião de uma resenha de nosso Gran Master Boss Érico focalizando um CD que não lembro o título.
Na ocasião, comentei que Scott Hamilton tocara duas vezes em Salvador em eventos promovidos por um banco estatal baiano. Na primeira ida do saxofonista a Salvador, seu empresário entrou em contato com conhecido produtor carioca com vistas à possibilidade de negociar com ele uma ou duas apresentações de Scott no Rio, mas não obteve êxito.
Em ambas as vezes, o produtor carioca não se interessou alegando que nunca ouvira falar em Scott Hamilton....
Esse é o nível de conhecimento sobre músicos (????!!!) de algumas pessoas que dominam o chamado "show business carioca".....
Keep swinging,
Raffaelli
Caro Sergio,
Eis o resumo do CD de Phineas a que me referi:
“We Three” (New Jazz – Original Jazz Classics), com Paul Chambers (baixo) e Roy Haynes (bateria. Entre outras maravilhas, destaco “Reflection” (Ray Bryant), “Sugar Ray” (Phineas), o fabuloso “After Hours” (fantástica divagação sobre este blues de Avery Parish em andamento lento), “Sneaky Around” (Ray Bryant) e “Our Delight” (do grande Tadd Dameron, que erroneamente consta no CD como “Tadd’s Delight).
Keep swinging,
Raffaelli
Caro Raffaelli,
Realmente, às vezes o nosso panorama musical é desolador - se fosse uma banda de arghxé certamente teria muita gente disposta a bancar...
Esse disco tem o Haynes como líder, mas quem brilha é o Phineas - fabuloso (o Phineas pinta em breve por aqui e o We Three é um fortíssimo candidato).
Grande abraço, Mestre!
Mr. Raffaelli, tenho e ouço agora "We There". Dizer mais o que? Só deixar claro que quem disse "ninguém toca melhor "After Hours" q o Bryant" foi o Yanow. Arriscar-me a dizer que ningué é melhor q alguém nisto ou naquilo é sempre temeroso.
Quanto ao Phineas pintar no Jazz Bar de mr. Érico, sugiro outro pra pirar a cabeça do mestre anfitrião: Here Is Phineas 1958. Lá estão Kenny Clarke, Oscar Pettiford e... é o irmão?: Calvin Newborn.
Infim, ninguém toca melhor "All The Things You Are" do que Phineas! (brincadeirinha).
Caro Sérgio,
HERE IS PHINEAS foi o primeiro LP de Phineas Newborn, após ter sido indicado à Atlantic por Count Basie. E Gene Harris, ao ouví-lo, foi taxativo: "Ele é o melhor pianista de jazz em atividade".
Opiniões como essas (Basie e Harris) devem ser levadas em consideração, pois sabiam do que se tratava, sem dúvida.
Nesse HERE IS PHINEAS ele mostrou seu cartão de visita, deixando muita gente boa boquiaberta, pois até então era um desconhecido. Pena que mais tarde a depressão e outros fatores negativos contribuiram para sua internação em asilo, onde, segundo li, diariamente fingia tocar um piano imaginario exigindo que os demais internos o aplaudissem. Tristíssimo e lamentável fim desse fabuloso pianista....
Keep swinging,
Raffaelli
Queridos Sérgio e Raffaelli,
Tanto Phineas quanto Bryant merecem uma postagem no barzinho, não acham?
Tenho esse disco (Here Is Phineas), em edição da Colectables e não ouço muito, pois a qualidade do som é meio ruinzinha (porque a Atlantic não remasteriza seus relançamentos, como a Verve, a Blue Note ou a Prestige?).
Mas irei reouvi-lo com atenção redobrada, em homenagem a dois dos clientes mais assíduos e queridos do barzinho.
Abraços!
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