
O ano era 1977. A cidade, claro, Nova Iorque. Aos 28 anos, o talentoso William Joseph Martin Joel era um dos nomes mais promissores do cenário pop da época. Pianista brilhante, letrista inteligente, formação musical esmerada, ele era um típico artista nova-irquino, cosmopolita e descolado, que freqüentava os shows de jazz do Birdland e do Village Vanguard, embora também amasse os Beatles (muito) e os Rolling Stones (um pouco menos).
Já havia lançado alguns bons álbuns e tinha na praça uma meia dúzia de hits, como “Piano Man” e “New York State Of Mind” (balada pop com anabolizadas tinturas de blues e jazz, que além de se tornar o hino não-oficial de Nova Iorque, futuramente seria gravada por Carmen McRae e Diane Schuur). Mas ainda não era um pop star, capaz de lotar estádios e arrebatar multidões, e ainda podia andar, tranqüila e quase anonimamente, pelas ruas da Big Apple.
Mas em setembro de 1977, quando entrou nos estúdios da Columbia, ao lado do produtor Phil Ramone, para gravar o álbum “The Stranger”, essa tranqüilidade estava fadada a acabar. Em breve, o artista, que até então era apenas uma talentosa promessa, seria catapultado ao Olimpo dos astros pop. Tudo por causa de uma música, composta para a então esposa Elizabeth Weber. Para gravá-la, o produtor Ramone dispensou o saxofonista da banda, Richie Cannata, e recrutou um homônimo seu, que desde meados dos anos 40 vinha batalhando no meio jazzístico de Nova Iorque e que, na época da gravação, já era considerado um dos maiores altoístas de todos os tempos. Seu nome: Philip Wells Woods. Phil Woods para os íntimos.
Não era a primeira vez que o experiente Woods dividiria os estúdios com um músico pop. Ele já havia feito isso com Paul Simon (no álbum “Still Crazy After All These Years”, de 1975) e com a banda Steely Dan (no disco “Katy Lied”, do mesmo ano). Mas ao entrar no estúdio, tirar o saxofone do estojo e começar a tocar, o esplendoroso solo de “Just The Way You Are”, Woods entraria para o panteão dos ícones pop, da mesma forma que uma tela de Andy Warhol, a capa do álbum “Abbey Road” ou a emblemática saudação “que a Força esteja com você”, usada em um filme lançado em maio daquele 1977 caótico, quando David Berkovitz, o lendário “Filho de Sam”, aterrorizava Nova Iorque.
O resto da história é previsível: o disco vendeu milhões de cópias no mundo inteiro, vários outros artistas gravaram a canção (com destaque para a lúbrica versão do ultrabaladeiro Barry White), Billy Joel engordou a conta bancária em alguns milhões de dólares e o trabalho do saxofonista, ainda que por vias oblíquas, finalmente poderia ser apreciado pelo grande público.
Já para o público de jazz, essa performance nada teve de surpreendente. Claro, pois Woods é um dos mais queridos, talentosos, respeitados e premiados músicos da história do jazz, com uma trajetória de vida riquíssima e uma produção que inclui composições, arranjos e participação em centenas de gravações. Saxofonista e clarinetista, Phil Woods nasceu no dia 02 de novembro de 1931, em Springfield, Massachussets.
Recebeu as primeiras lições de saxofone aos 12 anos, com Harvey LaRose, na própria cidade natal. Curiosamente, o primeiro saxofone lhe foi dado por um tio que, ao falecer, deixou-o em testamento para o sobrinho. Ao abrir o estojo e ver aquele reluzente objeto de metal, tudo o que passou pela cabeça do garoto foi derreter o instrumento e fazer algumas dúzias de soldadinhos de chumbo. Somente algum tempo depois é que o jovem Phil iria querer dar uma destinação menos dramática ao instrumento.
Continuou os estudos musicais em Nova Iorque, para onde se mudou no final dos anos 40. Primeiro, na Manhattan School of Music, onde foi aluno do extraordinário Lennie Tristano, e, em seguida, na prestigiosa Juilliard Conservatory, onde se graduou em clarinete. Profundamente influenciado por Charlie Parker, Woods logo desenvolveu uma sonoridade própria, bastante consistente, mas jamais deixou de explicitar um profundo respeito pela música de Bird. Curiosamente, a comparação com o ídolo somente cresceu depois que, em 1957, Woods se casou com Chan Parker, viúva de Charlie.
Outras influências diretas foram Benny Carter e Johnny Hodges. Depois que saiu da Juilliard, em 1952, o saxofonista tocou nas orquestras de Charlie Barnet (1954), Dizzy Gillespie (1956), Buddy Rich (1958/1959), Quincy Jones (1959/1961) e Benny Goodman (1962). Ao mesmo tempo, montou seus próprios grupos, boa parte das vezes ao lado do saxofonista Gene Quill. Em 1956 recebeu o prêmio New Star da revista Down Beat, como revelação do sax alto.
Além disso, desde a primeira metade dos anos 50 Woods tem sido um dos mais requisitados acompanhantes, com trabalhos ao lado de Jimmy Raney, Art Farmer, Billie Holiday, Joe Neuman, Sal Salvador, George Wallington, Sahib Shihab, Bill Evans, Gene Krupa, Michel Legrand, Al Cohn, Zoot Sims, Jimmy Smith, Oliver Nelson, Ella Fitzgerald, Gary Burton, Gerry Mulligan, Thelonious Monk, Bob Brookmeyer e incontáveis outros.
Sua caudalosa discografia como líder começa em 1954 e está espalhada por selos como Prestige, Savoy, RCA, Candid, Chiaroscuro, Impulse, Verve, Denon, Evidence, Philology e Concord. Nela se destaca o álbum “Sugan”, em que divide a liderança com o pianista Red Garland. Gravado em 19 de julho de 1957, para a Prestige, o disco apresenta um espetacular quinteto formado, ainda, por Teddy Kotick (baixo), Nick Stabulas (bateria) e Ray Copeland (trompete), um músico não muito conhecido, mas com trabalhos ao lado de Thelonious Monk, Randy Weston, Art Blakey e Oscar Pettiford.
Das seis faixas do álbum, três são de autoria do ídolo Parker – “Au Privave” (que abre o disco de forma exuberante e prenuncia a cornucópia sonora que virá), “Steeplechase” e “Scrapple From The Apple” – e todas são interpretadas com extrema competência e inventividade pelo quinteto. A atmosfera energética, típica dos melhores momentos do bebop, é enriquecida pelos diálogos entre Woods e Copeland, sempre muito estimulantes. Ambos são solistas excepcionais, capazes de executar passagens tecnicamente dificílimas com enorme simplicidade e se desafiam mutuamente o tempo inteiro.
Destacar apenas um ou outro grande momento seria injusto, pois o álbum é uma obra coesa, madura e efervescente, mas é necessário dizer que os solos de Woods, Copeland (usando a surdina) e Stabulas em “Steeplechase” são estupendos e a versão de “Scrapple From The Apple” é simplesmente devastadora. Mais contido, Garland prioriza a parte rítmica, solando em poucas passagens. Sua afinidade com o blues é patente, sendo é interessante perceber o quanto o idioma bop, apesar de toda a sua complexidade harmônica, é tributário do blues.
As outras três faixas que completam o disco são de autoria de Woods, que se revela um compositor bastante criativo. A primeira delas é “Last Fling”, cujo riff contagiante a conecta com o hard bop tão em voga naquela época. A autoridade com que Copeland executa seus solos, dotando-os de uma urgência e de um sentido harmônico esplendoroso nos leva à seguinte pergunta: como é possível que um sujeito desses jamais tenha gravado um mísero álbum como líder? Mistérios do jazz! E a faixa ainda conta com um solo vigoroso e cheio de groove de Garland, onde ele abusa de sua técnica “block chords” (acordes em bloco).
“Sugan” é um petardo sonoro da mais nobre estirpe bop, onde, mais uma vez, a performance de Copeland deve ser ouvida com atenção. Mas o líder consegue ser ainda mais sublime, com suas acrobacias sonoras que em nenhum momento padecem da falta de sentido ou resvalam no exibicionismo barato. Woods é um músico com um domínio absoluto do seu instrumento e sua técnica conjuga arrojo e bom gosto. Desse modo, por mais velocidade que imprima em sua execução, o resultado é sempre música de primeira qualidade. E tendo na sessão rítmica monstros como Red Garland (cujo solo também é bastante intenso), Teddy Kotick e Nick Stabulas, fica mais fácil para o líder colocar em prática suas idéias musicais.
É claro que não poderia faltar uma balada e “Green Pines” é belíssima e muito bem construído, com o trompete assurdinado de Copeland e o piano de Garland conduzindo a melodia com a delicadeza de dois ourives. O solo de Woods é envolvente e tépido, completando a atmosfera romântica com extrema classe. “Scrapple From The Apple” fecha o disco em altíssimo astral e deixa no ouvinte a vontade de começar tudo de novo. Um disco para se levar para uma ilha deserta. Obrigatório!
Nos anos 60, Woods enveredou pela educação musical, tendo ensinado na Ramblerny School, em New Hope. Em 1966, participou da trilha sonora do filme “Blow-Up”, dirigido por Michalangelo Antonioni. Composta por Herbie Hancock, as músicas do set ficaram a cargo de uma verdadeira seleção de craques que, além de Woods, incluía Freddie Hubbard, Joe Newman, Joe Henderson, Jim Hall, Ron Carter e Jack DeJohnette.
Em 1968, mudou-se para a Europa, estabelecendo-se na França, onde morou até 1972. Ali fundou a European Rhythm Machine, com a qual se apresentou no Festival de Montreux de 1969. A orientação do quarteto, integrado por George Gruntz (p), Henri Texier (b) e Daniel Humair (bt), flertava com o jazz de vanguarda, inclusive gravando composições da pianista Carla Bley.
De volta aos Estados Unidos, em 1972, montou com o tecladista Pete Robinson um grupo que misturava jazz com a incipiente música eletrônica, mas o trabalho não teve grande repercussão. De volta ao bom e velho jazz, formou, no ano seguinte, um quinteto extremamente bem sucedido e dos mais premiados naquela década, onde atuavam o pianista Mike Melillo, o baixista Steve Gilmore, o baterista Bill Goodwin e o guitarista Harry Leahey.
Do final dos anos 70 até hoje, os grupos de Woods têm se revelado um excelente manancial de novos talentos. Por lá passaram nomes como o trompetista Tom Harrell, o baixista Steve Gilmore e os pianistas Hal Galper e Bill Charlap. Foi indicado sete vezes ao prêmio Grammy, tendo recebido quatro premiações, ao longo da vitoriosa carreira. Atualmente, ele reside em Pocono Mountains, Pensilvânia.
Às vésperas de completar 80 anos, Woods continua a atuar intensamente e tem sido agraciado com diversas homenagens, como o título de Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras, dado pelo governo da França em 1989. Em 2007 recebeu o título de Jazz Master da National Endowment for the Arts e mereceu o título de Doutor Honorário, pela East Stroudsburg University (1994) e pela DePaul University (2009). Torcemos para que esta rotina permaneça inalterada por muitos e muitos anos!
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