
Segundo Hemingway, “Pamplona não é lugar para se levar a esposa. Todas as circunstâncias contribuem para que ela adoeça, fira-se ou se machuque, ou para que, no mínimo, leve cotoveladas, ou se derrame vinho em sua roupa; corre-se o risco de a perder ou de acontecer até mesmo todas essas coisas juntas.” Prossegue o extraordinário autor de Adeus à armas, acerca da célebre corrida de touros daquela cidade: “É uma fiesta de homens, e as mulheres causam confusão; nunca intencionalmente, é claro; mas quase sempre provocam ou experimentam aborrecimentos.”
Mais adiante, dá a receita para que uma mulher sobreviva àquela algaravia: “Claro que se ela fala espanhol suficiente para saber que estão brincando com ela e não a insultando, se é capaz de beber vinho dia e noite e dançar com qualquer estranho que a convide, se não se importa com coisas derramadas sobre ela, se adora barulho e música contínuos e ama fogos de artifício, principalmente aqueles que estouram perto dela e queimam suas roupas, se acha lógico ver o quanto se pode chegar próximo a ser morto por um touro, por simples diversão, se não fica resfriada quando se encharca de chuva e aprecia a poeira, gosta da desordem e de refeições irregulares, se nunca precisa dormir e se mantém limpa e arrumada, mesmo sem água corrente, então se pode trazê-la. Mas correrá o risco de perdê-la para um homem melhor que você”.
Mabel Mercer era dessa rara estirpe de mulheres capazes de suportar com galhardia todas as intempéries que podem ocorrer durante os festejos de San Fermin, na bela Pamplona. A primeira dama da canção americana, curiosamente, nasceu no dia 3 de fevereiro de 1900 na severa Inglaterra pós-vitoriana. Filha de uma cantora branca em início de carreira e do cantor norte-americano Warren Mercer, negro que faleceu pouco antes de ver a filha nascer, a pequena foi criada em um convento, onde recebeu educação esmerada.
Aos 14 anos, fugiu do convento para se dedicar integralmente à sua grande paixão: a música. Integrou trupes de vaudeville e a partir da década de 20 percorreu a Europa, que então se refazia dos estragos da I Grande Guerra. No início dos anos 30 se estabelece em Paris e passa a ser uma das atrações mais aclamadas do célebre clube Chez Bricktop. Fez amizade com a nata da intelectualidade que ali pontuava e dentre seus maiores admiradores estavam personalidades como Scott Fitzgerald, Django Reinhardt, Gertrude Stein, Pablo Picasso, Vincent Youmans e Cole Porter. Hemingway, autor de O verão perigoso – romance de onde foi extraído o trecho acima – era outro dos seus inúmeros fãs. Paris era, de fato, uma festa!
Em 1938, na iminência da II Guerra Mundial, outra fuga, desta feita para os Estados Unidos, estabelecendo-se em Nova York. Apresenta-se como atração principal em diversos clubes da Rua 52 e em casas noturnas como o Ruban Bleu, o Tony’s, o Onyx Club e o célebre Café Carlyle. Embora não seja um fenômeno de popularidade, Mabel Mercer é uma unanimidade entre seus pares. Influenciou gerações de cantores e cantoras, de Billie Holiday a Lena Horne, passando por Nat King Cole. Todos eram assíduos freqüentadores dos clubes onde a diva se apresentava.
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Outro herdeiro musical foi o extraordinário Bobby Short, que dividiu com ela diversos espetáculos e dois formidáveis álbuns, ambos gravados para a Atlantic, no final dos anos 60. Foi uma emérita descobridora de talentos, tendo sido a primeira a incluir em seu repertório gemas como “Fly Me To The Moon”, de Bart Howard, “The Best Is Yet To Come”, de Cy Coleman, e “While We’re Young”, de Alec Wilder.
Em 1951 prestou um emocionante tributo ao amigo Cole Porter, ao gravar o álbum “Mabel Mercer Sings Cole Porter” para a Atlantic. No repertório, 13 pérolas do genial compositor (no CD, lançado em 1994, o ouvinte é brindado com 4 faixas bônus) sendo que boa parte delas não é muito conhecida. Embora não seja propriamente uma cantora de jazz e sim uma “saloon singer”, Mabel sempre cantou ou gravou em contextos jazzísticos.
Neste disco não é diferente. Acompanhada dos pianistas Stan Freeman (que já havia tocado com Woody Shaw e Charlie Parker) e Cy Walter (um conceituado pianista dos clubes nova-iorquinos, especialista na obra de Richard Rodgers), que se revezavam nos teclados, além do baixista Frank Carroll (tocou com Art Tatum, Sarah Vaugham e Mahalia Jackson), Mabel exibe toda a sua técnica e refinamento, criando um dos mais belos tributos à obra de Porter. Em duas das faixas bônus, não há a identificação dos músicos e nas outras duas acompanham a cantora os pianistas Jimmy Lyon e Buddy Barnes.
A faixa de abertura é a deliciosa (sem trocadilho) “It’s De-lovely”, com ecos de Scott Joplin e Jelly Roll Morton e uma nostálgica levada de ragtime. A adorável atmosfera de cabaré perpassa todo o disco e em “Down In The Depths”, “Experiment” e “Where or Where” atinge o seu clímax – quase se podem sentir o tilintar do gelo nos copos abarrotados de uísque e o odor dos incontáveis cigarros. “After You, Who” é cantada com reverência, realçando todo o lirismo da belíssima letra.
A cínica “It’s All Right With Me” recebe um tratamento que lembra os vaudevilles dos anos 20, de onde a própria Mabel saiu, com um excepcional trabalho dos pianos de Freeman e Walter – embora não haja menção na ficha técnica, é pouco provável que naquela faixa haja apenas um pianista a tocar, a não ser que o produtor Ahmet Ertegun tenha trazido Lennie Tristano, que na época também gravava pela Atlantic, ao estúdio e não tenha feito o seu nome constar dos créditos do álbum.
Em “Just One Of Those Things” e “From This Moment ”, nas quais não é possível identificar os acompanhantes (há, todavia uma belíssima guitarra entre os instrumentos que a acompanham), estão os momentos mais jazzísticos. Essas duas jóias recebem uma roupagem realmente suingante, com destaque para a bateria, bastante acionada – e correspondendo muito bem à responsabilidade. O ragtime volta à cena na hilariante “Ace In A Hole”, onde o piano é nada menos que magistral. A influência de Mrs. Mercer sobre tantos cantores de jazz está, ali, mais do que explicada!
Baladas clássicas, como “Ev’ry Time You Say Goodbye” e “Use Your Imagination”, são cantadas com graça e leveza, apesar do acentuado sotaque bretão da cantora em algumas palavras, levando o ouvinte a uma viagem sonora rumo ao paraíso das grandes canções. O grande momento do disco, e o mais emocionante, é uma sublime versão de “So In Love”, a mais confessional das canções de Porter. Aqui, Mabel disseca a intimidade de sua alma de forma absolutamente arrebatadora, cantando com uma visceralidade e uma entrega como só as maiores cantoras conseguem fazer. Um disco irretocável, enfim.
Cantora de grandes recursos vocais, de dicção perfeita, de repertório impecável e de gestos contidos, Mabel Mercer é um sinônimo de elegância e, também, de um imenso amor à música. Ao morrer, em 20 de abril de 1984, deixou todos os seus bens para a Mabel Mercer Foundation, dedicada a apoiar jovens compositores em início de carreira. Uma grande mulher, sobre quem Frank Sinatra (mais um dos assíduos espectadores dos clubes onde a cantora se apresentava) disse certa vez: “Mabel Mercer me ensinou tudo o que sei sobre cantar”.
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PS.: Este post é dedicado à menina com o sorriso de raio de sol, que provavelmente jamais levarei a Pamplona por ocasião da Fiesta de San Fermin, eis que não quero correr o risco de perdê-la.